Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Obra dispersa, de Manuel Antonio de Almeida


Edição de base:

Obra Dispersa, de Manuel Antônio de Almeida, Rio de Janeiro: Graphia, 1991.

ÍNDICE

CIVILIZAÇÃO DOS INDÍGENAS

FISIOLOGIA DA VOZ

O NOME

O RISO

AS MULETAS DE SIXTO V

REVISTA BIBLIOGRÁFICA. ENSAIO COROGRÁFICO DO IMPÉRIO DO BRASIL, DE MELLO MORAES E IGNACIO ACCIOLI

REVISTA BIBLIOGRÁFICA. ENSAIO COROGRÁFICO DO IMPÉRIO DO BRASIL, DE MELLO MORAES E IGNACIO ACCIOLI

REVISTA BIBLIOGRÁFICA. HISTÓRIA DA TURQUIA, POR LAMARTINE

REVISTA BIBLIOGRÁFICA. INSPIRAÇÕES DO CLAUSTRO POR JUNQUEIRA FREIRE (DA BAHIA)

REVISTA BIBLIOGRÁFICA. O COMENDADOR, ROMANCE POR FRANCISCO PINHEIRO GUIMARÃES

REVISTA BIBLIOGRÁFICA. O LIVRO DO POVO, POR L. A. NAVARRO DE ANDRADE

REVISTA BIBLIOGRÁFICA. EXERCÍCIOS POÉTICOS DE FRANCISCO MUNIZ BARRETO

REVISTA BIBLIOGRÁFICA DO SR. ALMEIDA SOBRE OS MEUS EXERCÍCIOS POÉTICOS

REVISTA BIBLIOGRÁFICA. EXERCÍCIOS POÉTICOS, POR FRANCISCO M. BARRETO

ZALUAR

A INDEPENDÊNCIA DOS JORNAIS

CARTAS

4 de março de 1859

11 de julho de 1859

27 de julho de 1859

Chico. 17 de Novembro

Friburgo 25 N. 1860

Friburgo 30

N. F.   11 10 bro 1860

Nova Friburgo 4 de J. de 1861

Nova Friburgo, 8 de Fev° 1861

Nova Friburgo 30 de Março de 1861

Nova Friburgo 13 de junho de 1861

Friburgo, 26 de junho de 1861

27 de junho de 1861

Friburgo 29

Friburgo 4 de julho de 1861

A UMA JOVEM ESPANHOLA

O MORRER DA VIRGEM

AMOR DE CRIANÇA

AS FLORES E OS PERFUMES

UMA HISTÓRIA TRISTE

RESPONDA ALGUÉM

TEATRO DE SÃO JANUÁRIO — BENEFÍCIO DA ATRIZ D. DEOLINDA PINTO DA SILVEIRA

TEATRO LÍRICO: DOIS PEDIDOS

 

CIVILIZAÇÃO DOS INDÍGENAS[1]

Duas palavras ao autor do "Memorial Orgânico"

"En maintenant l’unité de l’espace humaine, nous rejetons, par une conséquence nécessaire, la distinction désolante de races supérieures et de races inférieures. San doute il est des familles plus susceptibles de culture, plus civilisées, plus éclairées; mais il n’en est pas de plus nobles que les autres. Toutes son également faites pour la liberté...

(Humboldt — Cosmos)

Um grito de guerra, bem pouco generoso, contra as raças indíge­nas do Brasil, acaba de ser levantado pelo autor de um trabalho intitulado Memorial Orgânico — publicado nas páginas do Guanabara; um grito de guerra, que parece ser o eco daquele que ao pôr pé no território brasileiro fora soltado pela cobiça dos Portugueses.

Julgávamos que a questão relativa aos nossos indígenas se achava de muito resolvida; julgávamos que não havia mais filósofo de qualquer seita, político de qualquer cor, que não acreditasse que o único meio de fazer servir esses homens à humanidade, a Deus, e ao Estado, é acabar para sempre com esse sistema de tirânica opressão, que tanto tem pesado sobre eles, que tem conseguido esmagar-lhes famílias inteiras; pensávamos que todos aqueles meios estúpidos, atrozes, inconseqüentes, com que se pretendia outrora domar o nosso gentio, haviam acabado com a barbárie dos tempos coloniais; que dessa época só havíamos guardado para esse fim a cruz de Anchieta e a palavra de Nóbrega. Enganávamos-nos! Ainda há quem venha restabelecer os hábitos da barbaridade passada, adoçados ou esquecidos pela civilização presente; ainda há alguém que, descrendo impiamente da força da palavra, do poder da religião, do influxo da civilização, ouse ir desenterrar a espada de Mem de Sá, o Devastador dos Tamoios, e dizer-nos: “Eis aqui a civilizadora das raças indígenas”.

Vale a pena de nos ocuparmos por um pouco com esta importante questão; deixaremos de parte tudo mais que nesse trabalho diz o autor, e ocupar-nos-emos unicamente deste ponto.

E no capítulo “População e Colonização” que o autor começa. Como Bacon e Descartes, que desaprenderam primeiro a filosofia que sabiam, para depois formarem o seu sistema, quer o autor desaprender primeiro tudo o que sabe a respeito da matéria, para depois apresentar suas novas idéias; aspira à originalidade. Vejamos primeiro o que é que o autor aprendeu, ou deve ter aprendido e agora quer esquecer, e depois veremos o que apresenta de novo.

Da religião aprendeu o autor que ensinar aos que ignoram é um santo dever; que devemos utilizar e não destruir as obras de Deus; que o homem deve ajudar aos mais ignorantes com a sua inteligência, assim como aos mais fracos com o seu braço. Da marcha da humanidade, da civilização, da história, aprendeu o autor que o homem lucra com a conservação do homem; que os hábitos de guerra tornam ásperos os costumes dos povos; que o meio mais seguro de conquista é a força da inteligência; que o homem se enobrece quando a põe em exercício, que ele apura os seus conhecimentos e crenças, quando os reparte com os outros. Tudo isso aplicado à questão dos indígenas dá em resultado que devemos antes de tudo procurar com ardor, com afinco, catequizá-los, aproveitá-los no serviço de Deus, repartir com eles a nossa ilustração, a nossa indústria; domarmos-lhes o gênio belicoso com exemplos de paz, atraí-los enfim a nós pelo meio que mais poder exerce sobre o homem, qualquer que seja o seu estado, a segurança de liberdade. É isso o que o autor deve saber, porque é isso o que todos sabem; tudo o mais a respeito está proscrito e desprezado. É isto portanto o que o autor quer esquecer; quer esquecer a humanidade, a religião, a história... tudo por amor de mais 100 ou 200 léguas de território de que poderemos dispor, e que tanto ciúme lhe causa ver nas mãos do gentio, que nelas nasceu, e que nelas vive desde muito antes que lhe soubéssemos nós da existência!

Vejamos agora o resultado novo que apresenta o autor depois de ter desaprendido tudo isto. E muito simples; é mesmo conseqüente: o autor quer de hoje em diante para os indígenas a guerra e a escravidão! A guerra, apoiado em não sei que direitos herdados dos Normandos, pede-a ele em termos claros e precisos; a escravidão, apesar de a julgar lícita, vem disfarçada com o nome de tutela. Mas isso que quer ser novo é velho e muito velho, mesmo mais do que aquilo que o autor repele como teorias sediças de filo-tapuias; isso é o que forma a história sanguinolenta do domínio espanhol e português na América; é essa a linguagem dos escritores e pensadores daquele tempo. Parece que o autor se deixou levar pela leitura dessas crônicas em que se faz de Pizarro um herói, e de Cortez um filósofo humanitário. É essa a linguagem copiada das cartas e arengas dos capitães-mores do Estado do Brasil. Não há pois originalidade no que diz o autor, senão repetição de coisas muito sabidas e muito reprovadas. Entretanto, mesmo porque são coisas muito combatidas, é que a sua sustentação cumpre que seja altamente estranhada.

Quando, por toda a parte, fatigados pelas lutas materiais a que se tem arrojado a humanidade, os políticos e os filósofos invocam a fraternidade como meio de conciliação; quando no meio do tumultuar desabrido dos movimentos recentes da Europa se forma um congresso que hasteia a bandeira da paz, é impiedade vir entre nós, também feridos, também martirizados pelos golpes das revoluções, tocar um alarme de guerra. E sobretudo é isso cruel, porque a guerra que se pede não tem por causa motivo algum generoso e nobre; não tem por fim senão o sórdido e material interesse de adquirir mais algumas léguas de território, como se não o tivéssemos nós em quantidade capaz de satisfazer a mais desenfreada cobiça!

Quando depois de alguns anos de combate tivermos conseguido conquistar, ou antes destruir esta ou aquela tribo indígena, ganhare­mos, é verdade, mais um pedaço de terra; porém quanto teremos perdido em moralização, em doçura de costumes, em hábitos de humanidade? Acha o autor que ainda não estamos bastante embrute­cidos com as nossas revoluções políticas? Assenta que a idéia do apelo à força material, como meio de resolver todas as questões, ainda não está bastante enraizada no pai? Temos tido até aqui bastantes guerras em nosso seio, porém têm sido todas entre partes de forças mais ou menos iguais; o autor quer dar-nos agora um espetáculo a que não estamos habituados; quer o massacre, a guerra do forte contra o fraco, do armado contra o inerme, da arte contra o instinto, do fuzil experimen­tado contra o tacape selvagem.

Quando os Portugueses aportaram ao Brasil toda a sua extensão se achava coberta de imensas tribos de selvagens; parece incrível: quando se ajuntavam para algum combate, ou para outro qualquer fim, diz uma testemunha ocular que pareciam tantos quanto as folhas das árvores. Entretanto, apesar do número, raras vezes foram os primeiros a romper hostilidades; entretanto, apesar da reputação de infidelidade que lhes emprestam, guardavam muitas vezes de um modo muito nobre a fé dos tratados e promessas. Os Portugueses, porém, vinham a buscar riquezas, e não a trazer civilização; desprezaram essas boas inclinações; trataram de matar os indígenas para lhes tomarem as terras; mataram muito, e em número espantoso. De cada vez que precisavam de algumas léguas de terra para fundar uma capitania faziam um Saint Barthélemy e no outro dia tinham o que queriam e ainda mais uma centena de escravos, os prisioneiros do combate. Assim progrediram em toda aquela série de torpezas que dói comemorar. Não se pode pois falar em brandura empregada com os índios sem mentir à história. Dois, três ou quatro missionários constituíam toda a força moral com eles empregada; esses mesmos tinham que lutar com a má vontade dos donatários das terras, e de toda aquela caterva de senten­ciados e aventureiros que lhes faziam honroso cortejo. Quando o jesuíta trazia do meio dos bosques algum índio convertido, o donatário do lugar o arregimentava logo no número de seus escravos; o pouco que a fé fazia por um lado, desfazia-o por outro a avareza. Nós modernamente, se não seguimos a barbaridade de uns, também não imitamos a dedicação de outros; temos nos conservado em um estado de completa inação; catequeses, missões, tudo isso hoje é nominal; os governos têm pela maior parte desprezado completamente a questão. Não sabemos portanto de que experiência de meio século fala o autor para provar a insuficiência dos meios brandos; esses nunca foram, nem são empregados senão em uma escala tão acanhada que não pode ser levada em conta.

Se a história dos fatos não serve para justificar o que pretende o autor, o exame dos direitos está no mesmo caso. Não serve para justificar a guerra aos indígenas o alegar-se que são gente nômade e sem assento fixo, porque enfim, ainda que isso fosse absolutamente verdadeiro, há de haver na terra um lugar para eles, que como nós têm direito à vida e à subsistência. É também sofisma dizer-se que eles constituem uma revolução armada dentro do império, desobedecendo ao nosso chefe e à nossa lei! Quando se criou o império, o chefe e a lei, já eles ocupavam os lugares que ocupam e viviam a vida que vivem; o império, o chefe e a lei foram criados debaixo dessas condições. Como pois pode dizer-se que eles constituem uma revolução dentro do império? As nossas leis nem eles as juraram, nem mesmo sabiam delas, mas o autor diz que para o crime não vale em direito a alegação de ignorância. Ora, não há compêndio de moral que não consagre este princípio: — quando um indivíduo não sabe o que faz, o ato não lhe é imputável.

Tudo isso que acabamos de dizer serve para combater o princípio absoluto de fazer-se guerra aos indígenas; e como o autor se encarre­gou depois de indicar o modo por que a guerra deve ser feita, diremos também alguma coisa sobre isso, ainda que seja uma questão prejudi­cada por ter caído a primeira.

O autor pede o restabelecimento das bandeiras, isto é, quer dar, a qualquer que disso tenha vontade, o direito de armar-se e partir em uma correria sanguinária a buscar no meio dos bosques quem trabalhe em sua fazenda, ou quem sirva em sua casa. O mesmo que se vai hoje praticar-se na costa d’África quer o autor que se pratique dentro do império. Hoje um capitalista ambicioso tripula um navio e manda-o, à custa de muitos riscos e trabalhos, buscar uma centena de negros em Guiné; todos sabem até que ponto chega o embrutecimento dos que se empregam nesse cruel trabalho, todos os horrorosos padecimentos a que eles sujeitam esses infelizes, vítimas da cobiça: amontoadas no estreito porão de um navio, homens, mulheres, velhos e crianças, todos os dias durante a viagem o mar recebe uns tantos que a nostalgia, a fome, a sede, a falta de ar, porque tudo sofrem eles aí, entregaram à morte; e não é só os mortos, que muitos recebe: se o navio periga, se ao longe no horizonte aparecem as velas do cruzeiro, se escasseiam os alimentos, abre-se a escotilha, e o navio lança ao mar às vezes quase toda a sua carga!... Pois bem, alguma coisa que bem se parece com isso há de produzir-se com o restabelecimento das bandeiras. Para tripular um navio negreiro é mister empregar um grosso capital com o risco de o ver perdido pelo cruzeiro; para armar uma bandeira basta juntar cem homens, mesmo escravos, cem ambiciosos, cem vadios, porque ninguém que o tenha deixará seu emprego para ir a essa horrível caçada de gente e partir... partir sem medo de cruzeiros, partir com carta de marca ou autorização da presidência, porque não quer o autor, para maior escândalo, que falte a essas levas de sangue o caráter oficial! Chegando a uma aldeia de índios essas caravanas de destruição, armadas com armas superiores e com a sede da cobiça, surpreendem ordinariamente de noite esses incautos no meio do sono; caem sobre eles; destroem, matam... matam cem para colher um prisioneiro, porque é sabido que se não entregam eles com facilidade, senão que lutam com esforço até a morte. Regressam depois com os despojos da carnificina; isto é, meia dúzia de prisioneiros; são estes sempre esco­lhidos entre os mais moços e robustos, que os velhos e as crianças, que para pouco serviriam, ou os matam, ou os deixam abandonados. Pelo caminho, se alguns deles buscam livrar-se das cordas que os amarram, vigorosos azorragues buscam submetê-los; se persistem, como é natural a homens da têmpera de um índio, um tiro na cabeça ou uma facada no coração põe tudo em tranqüilidade! Quantas vezes depois de muito matar e muito destruir volta a bandeira sem um só prisioneiro!?

É esta a história sabida; nem dela precisávamos; basta o simples bom senso para ver que tudo isso é muito conseqüente, que isso mesmo é o que deve suceder. Uma guerrilha composta até de escravos grosseiros e brutais, que acharão sem dúvida um cruel prazer em ter também o direito de matar, castigar, prender, em ser também ainda que por pouco tempo, senhor absoluto no meio de seu cativeiro; uma guerrilha cujo ferrete é o interesse particular do chefe e de seus associados, com a avareza e a crueldade por disciplina, há de ser por força brutal no combate, desleal e covarde fora dele!

Esse espírito belicoso que o autor deseja ver nascer, aparecerá sem dúvida, mas em uma escala perigosa; o fazendeiro, por exemplo, chefe de uma ou muitas bandeiras, quando tiver a sua gente bem aguerrida, tornar-se-á um senhor feudal dentro de sua casa; oprimirá seus vizinhos, zombará das leis, e resistirá às autoridades; o autor bem sabe o que neste sentido se pratica em certos pontos do império, e não está ainda desenvolvido o espírito belicoso com a criação das bandei­ras.

Depois da guerra, dissemos nós, o autor quer para os índios a escravidão, mas não tendo coragem de pedi-la abertamente, disfarça-a, acrescentamos, com o nome de tutela ou protetorado. Em verdade, quem será tão ingênuo que não compreenda o que é uma tutela desse gênero, que recebe por paga o serviço do tutelado? Não é assim uma coisa semelhante a essa distribuição de africanos chamados livres que se fazia aqui há tempos no Rio de Janeiro quando era capturado algum navio negreiro? O que é um tutor com direito ao trabalho do tutelado? Um senhor julga-se autorizado a exigir de um escravo a maior soma de trabalho possível, trabalho pesado, constante, insuportável; se não é satisfeito, castiga-o cruelmente, e muitas vezes esse escravo não lhe tem custado senão uma insignificante soma. Calcule-se agora que quantidade e que qualidade de trabalho não se julgará autorizado a exigir um tutor de um tutelado que lhe custou as fadigas da luta e o risco da vida? Se não for satisfeito, tem o direito de obrigá-lo, de castigá-lo. E não sabe o autor o que é o castigo domesticamente aplicado ao índio robusto das florestas? É prender-lhe as mãos, os pés, e muitas vezes a cabeça em um instrumento chamado tronco; é amarrá-lo de braços para trás à roda de um serviço; é escrever-lhe por todo o corpo a golpes de azorrague a sentença de uma degradação eterna!!

A história aí está para atestar o que dizemos: não é, como bem conhece o autor, nova a idéia de bandeiras; todos os que viram ou leram alguma coisa sobre a questão sabem que nunca aproveitam elas senão como meio de destruição; mesmo o autor fazendo o seu elogio, em vez de dizer-nos (e não o faz porque seria mentir) “por este meio se reduziu à civilização esta ou aquela tribo", diz-nos com verdade "por este sistema se deu quase cabo do indômito caiapó”.

O autor, apesar de conhecer os princípios liberais e os sentimen­tos de bom senso do publicista Vatel, não o acha muito humano, e pede que o sejamos nós mais do que ele; quer que eduquemos à força os nossos selvagens, e que quinze anos depois, quando já não precisem mais de tutela, façamos deles prestantes cidadãos e bons cristãos!

Não podemos conter a indignação diante de semelhante doutrina; é o maior escândalo que se pode fazer ao bom senso!... Quinze anos de humilhação, quinze anos de sujeição aos ferros, ao tronco, ao azorrague, para fazer um bom cidadão! Há de ser realmente um cidadão digno de toda a consideração aquele que se apresentar na sociedade com o corpo lanhado pelo azorrague, embrutecido pelos maus-tratos, arrastando consigo as cadeias de quinze anos de escra­vidão! Não se diga que carregamos aqui a pena; que isso não há de suceder, porque as tutorias só serão dadas a pessoas de reconhecida probidade. Todos conhecem o poder dos hábitos e dos costumes; estão entre nós em maioria as pessoas que sendo de um trato social o mais delicado, incapazes de se envolverem em transações menos honestas, bons e devotos cristãos, tratam com uma dureza bem censurável seus subordinados e escravos. O que acabamos pois de apontar é a conse­qüência inevitável dos princípios que impugnamos. Deus nos livre que o autor seja atendido em suas pretensões a este respeito.

Terminamos pedindo-lhe que renegue em bem da humanidade essas doutrinas que prega, e que se compenetre das palavras que servem de epígrafe a este artigo: elas são do homem talvez o mais sábio que possui hoje o mundo.

Manoel Antônio de Almeida,

aluno da Escola de Medicina

 

FISIOLOGIA DA VOZ[2]

Balzac pôs a fisiologia em moda; por ele e depois dele todos os sentimentos, todas as funções, os gostos, as ocupações, certos sacra­mentos, e até certas desgraças, foram explicadas em seu modo de ser. Verdade é que a ciência pouco ganhou com os descobrimentos daquele escritor e de seus discípulos; estamos porém em época de reformas, e hoje que tudo se emancipa, porque há de o absurdo, esse escravo, esse servo, esse plebeu, continuar a viver na tutela tirânica da verdade, ludibriado, escarnecido, pateado, maltratado? Não tem ele direito aos foros da liberdade? E por quê? Não tem por si todos os títulos de autoridade que se contam na terra?

A realeza, por exemplo, prevalece-se da antigüidade como um de seus mais valiosos títulos. E o absurdo não é tão antigo como a razão humana, que o deu à luz logo no seu primeiro dia de existência?

Tudo que procura fazer época neste mundo não se prevalece da autoridade dos grandes pensadores? E qual é o grande pensador que não professou pelo menos vinte absurdos de mão cheia?

A força não é também um elemento de autoridade? E por ventura o absurdo não dispõe da força, e em larga escala? Por ventura a esta hora o Imperador da Rússia não está dando que fazer aos exércitos inglês, turco e francês?

O absurdo pois dispõe dos três grandes e principais elementos de autoridade na terra: o tempo, os homens e a força. A ele pois os foros de cidadão livre da grande república do mundo; a ele pois o direito de falar, de propor, de eleger, de ser eleito, — a respeito destes dois últimos direitos, falando a verdade há muito tempo que se acha na sua posse, e não terá que ganhar; o absurdo elege e é eleito desde longa data — que lhe seja livre fazer-se ouvir de todos os ouvidos pelas cem mil bocas da imprensa; que lhe seja livre cortar o espaço nas locomotivas férreas, romper ondas no fumegante vapor, fender as nuvens no assombroso aerostático, que corra, que gire, que voe.

Dir-me-ão que ele faz tudo isso. Sim; faz, é verdade, bem se vê: o Papa está em Roma, Luís Napoleão na França, na Rússia exerce o Knut soberanas funções, no conselho de estado de Paris propõem-se leis contra a imprensa, no Brasil há escravos, Victor Hugo está exilado, Rosas ainda vive, Haynau morreu tranqüilo na Hungria, os frades têm conventos.

Bem se sabe disso; o que se quer porém é que ninguém se admire dessas coisas, que se acabem de uma vez os murmúrios em voz baixa, o escárnio pelas costas, as contínuas ameaças de que há de viro futuro, o progresso e todos esses fantasmas que de tão prognosticados já não há quem com eles se assuste.

Vamos pois também por nossa parte concorrer no artigo fisiologia para a consagração dos direitos do irmão gêmeo da verdade.

Falam do olhar, e dizem que é nele que a alma se manifesta com mais verdade; é um erro.

No olhar a alma transluz apenas; na voz a alma expande-se.

O olhar é a flor que se abre, a voz o perfume que se desprende.

O olhar vive da luz que não está em nós, mas fora de nós, deve-lhe suas reflexões, o seu fogo, as suas centelhas, os seus desmaios; a voz em suas inflexões, em sua harmonia, em seu canto, em seus gemidos, em seus gritos, nada, ou bem pouco, deve aos agentes externos; é toda nossa, é toda do íntimo.

O olhar recebe, a voz dá.

Ponde o mundo em trevas, e a voz será a sua luz.

No olhar não há nada que corresponda ao que na voz se chama o timbre; tudo que há no olhar se qualifica, mas o timbre da voz não tem nome. Quando se quer exagerar a força de um olhar diz-se que ele fala.

Dizem que se mente muito com os lábios, e pouco com os olhos; é que os olhos falam raras vezes.

Não sei que escritor moderno fez a seguinte observação, da mais rigorosa exatidão: que a convivência prolongada de dois entes que se amam acaba por torná-los não só moral como fisicamente semelhantes; tomam um do outro certos gestos, os modos e os meneios, assim como tomam as idéias e os princípios. É sobretudo quanto à voz que este fato se verifica com mais exatidão.

É que a voz é a correspondência mais direta, mais íntima das almas.

Tudo que há de grande na natureza fala: fala o homem, fala o mar, falam as florestas, fala a tempestade; tudo que há de belo também fala, e de um modo todo particular: as aves cantam, o regato murmura, a brisa cicia.

Nos excessos de dor ou do prazer as lágrimas vêm aos olhos e empanam o olhar; quando a alma quebra a cadeia da emoção, expan­de-se, e às vezes parece que toda inteira, num grito único.

O pranto é eloqüente; mas a voz também chora: os gemidos são suas lágrimas.

Na escala imensa que a voz percorre, desde o suspiro quase mudo, apenas murmurado, até o grito agudo, pungente, dilacerante, há uma nota para cada emoção. A voz fala, e bem claramente, muito antes de ser palavra, e é então que ela manifesta a alma com mais exatidão e pureza. Quando a voz se modifica na palavra, começa a desnaturar-se; a palavra pode ser a mentira, a voz é sempre a verdade. Quantas vezes a palavra está dizendo não quando a voz está dizendo sim?

Quem nunca viu o pudor em luta com o amor?

Um combate com a palavra, é o pudor; o outro com a voz, é o amor. É o mesmo quando a calúnia luta com a consciência: a palavra dá o juramento falso; a voz protesta pela verdade.

É por isso que em todas as línguas uma mesma palavra pode ter dois sentidos absolutamente diversos: com um — não — pode afirmar­se, e com um — sim — negar-se.

Entre a voz e a palavra há quase tanta diferença como entre o corpo e a alma.

Se algumas mulheres soubessem qual o encanto da voz, enfeita­riam menos os cabelos e contrafariam menos o riso!

Não contam a história de um cego de nascença que amou tanto a uma mulher como tem amado aqueles que podem ver o rosado das faces, a cor dos olhos, as pérolas do riso?

Adivinhou ele a beleza pela voz? Talvez; mas antes creio que ele amou, porque a voz que ouvia e que o encantou tinha por si todos os atributos que despertam o amor.

Não conheço nada de mais voluptuoso, nem o fogo dos olhos, nem as ondulações do movimento, de que o som de uma voz que, perfumada pelo hálito, nos murmura junto à face, ainda mesmo quando não percebemos bem o sentido das palavras, porque de ordinário essas palavras não o tem.

Penso que a voz é tudo que Deus criou de mais perfeito; devia ser a sua última criação, porque nela tudo se resume.

Mas, como já disse, a voz é a alma, e, meu Deus, é isso o que ela tem de mau. Nem todas as almas são boas almas; há com efeito vozes que são tudo que há de mais antipático neste mundo.

Há muita cara feia, verdadeiras calamidades de carne e osso, que, postas nos ombros de um homem, o acompanham por toda a vida, fazendo que o cerque sempre um cortejo de antipatias, de repugnância, de escárnios, mas afinal chega a gente a acostumar-se com elas, e se não a amá-las, ao menos a tolerá-las. Porém há vozes tão amargas umas, tão azedas outras, tão repugnantemente lânguidas, tão asnati­camente fofas, tão ocas, tão dessaboridas, que nem mesmo o costume lhes vale...

Mas dessas nos ocuparemos quando nos der outro dia a mania de filosofar por conta e risco do absurdo.

A.

 

O NOME[3]

Dizem os gramáticos, gente detestável nestes tempos de discor­dância, que o nome é uma voz com que se dão a conhecer as coisas. Quando nos tempos de colégio de minha memória, rebelde às exigên­cias do decurião, recusava guardar no seu arquivo esta triste definição, é que o meu espírito, agora o conheço, pressentia-lhe já todo o absurdo e falsidade. Nunca em verdade uma mentira tão grande se escreveu em letra redonda.

Aquilo por que as coisas menos se dão a conhecer neste mundo é pelo seu nome.

O nome é hoje, e não sei se o deixou de ser em algum tempo, a primeira mentira de todas as coisas: é como um cunho do pecado original impresso sobre tudo o que existe.

A tradição da Torre de Babel parece-me errada até certo ponto; o que ali se confundiu não foram as línguas, foram os nomes das coisas.

Daí datou, segundo penso, em falta de origem mais remota, essa confusão à custa da qual tanta gente vive.

Com efeito, se as coisas se chamassem pelo seu nome, muitas leis não seriam leis, muitos legisladores não seriam legisladores, muitos governos não seriam governos, muitos sentimentos não seriam senti­mentos, e até muitos homens não seriam homens, nem mulheres muitas mulheres.

Quando se fala em confusão não se pode deixar de falar em mulheres, que são os entes mais confusos da criação. É também nelas que a mentira do nome é mais constante e mais manifesta. Tenho visto algumas, feias como um pesadelo, a quem todos, desde o padre que com o batismo santificou a peta, até elas mesmas — e nisto vai o maior escândalo — chamam pelo nome de Rosa, por exemplo.

Algumas há a quem a menor contrariedade encoleriza no mais subido grau, que cospem blasfêmias contra a terra e o céu porque se lhes desarranjou a mais pequenina prega do vestido. Pois se numa ocasião dessas alguém lhe perguntar o nome, responderá com voz de tempestade: Angélica! Há outras que passam dia e noite prostradas ante o altar do espelho adorando a imagem de uma divindade, que às vezes não tem segundo devoto, que nunca põem a mão no peito para ver se o coração palpita, e que morrem no dia em que se convencem da existência da primeira ruga no rosto e do primeiro fio de prata na cabeça. Verdade é que muitas destas ficariam eternas se a morte esperasse tal convicção.

Já perguntei o nome a uma criatura nestas circunstâncias, e respondeu-me que se chamava Modesta!

Os homens a esse respeito não terão também muito de que gabar-se. Daqui se pode concluir que há muita gente neste mundo que mente de cada vez que assina o seu nome.

Há algumas coisas que se diz não terem nome; nisto há uma economia de mentiras. Há porém uma infinidade de coisas que tem uma infinidade de nomes. Entre estes contemos os príncipes, o que por certo não lhes deve ser muito lisonjeiro.

Um homem, ou uma coisa com muitos nomes, devia representar uma idéia pelo menos por cada um deles; se isto se não dá, há mentira em cada nome de mais.

É por isso que ninguém se batiza com uma série de nomes; a igreja não quer santificar senão uma mentira, e já não faz pouco.

Não sei qual foi o povo que primeiro pôs em uso ter um indivíduo muitos nomes; isso não deixa talvez de ser uma invenção espanhola. Os Ingleses por certo não estabeleceram semelhante uso.

Entretanto — eis aqui uma prova das misérias humanas — um nome é às vezes a história de urna vida; entretanto há épocas em que os lábios não sabem pronunciar mais do que um nome, em que os ouvidos não escutam em todas as vozes da natureza senão um nome, em que não se tem escrito na memória senão um nome. Sabe Deus quantas vezes entre estas palavras que se estão lendo o autor não escreveu sem querer um nome!

Isto porém, como já disse, não prova senão a que misérias está sujeita a pobre humanidade.

Queria que me dissesse qual a razão por que quando um homem se eleva acima do comum, ninguém o conhece nem o chama pela enfiada de nomes com que o obrigam a carregar; por que é que se diz: Lamartine, Chateaubriand, e todo o mundo sabe logo de quem se trata?

Há gente que trabalha a vida inteira para conquistar um nome, que deixa em breve à humanidade, às vezes nas mãos de um descen­dente, que nem lhe pode com o peso, e o atira de lado para tomar outro mais leve e que mais lhe quadre.

E morre-se por um nome!

E morre-se para manter ileso um nome de honra! Nome de honra! Estas palavras invertidas dão: honra de nome, espécie muito comum e vulgar, cuja conquista não vale o menor trabalho.

Havia em Roma, perto do Coliseu, que dele tirara o nome, um colosso de mármore representando o filho de Agripina. A respeito desta magnífica obra de arte dava-se um fato muito curioso: cada soberano que subia ao trono dos Césares queria que o colosso servisse a perpetuar sua memória. Para isso o que fazia? Nada mais simples: mandava copiar em mármore sua cabeça, e fazendo tirar a que a estátua tinha primitivamente, colocava-se-lhe a nova sobre os ombros. Alguns Césares houve menos pretensiosos que fizeram apenas subs­tituir a cabeça do colosso por uma que representava o sol.

Aquele colosso e suas diversas cabeças representam com exati­dão o que se passa no mundo em relação ao nome das coisas: um capricho de César decide o batismo: o que era ontem verdade chama­-se hoje mentira, o que era ontem soberano chama-se hoje vassalo, só porque isto aprouve a uma seita ou a um homem.

Mas tudo vai como deve ir, e nem se pode dar que fosse de outro modo. O nome verdadeiro das coisas só Deus o há de dar quando a sua obra imensa se achar consumada: o nome há de então caber perfeitamente a tudo, porque há de compreender a essência e o modo; será a última palavra da Divindade, o selo da grande obra.

Enquanto porém este tempo não chega — e eu pressinto que ele está bem longe — vamo-nos servindo com o nome de empréstimo que temos; o que quero apenas é que não se lhe dê grande importância, porque em resumo o nome é a origem de quase todas as questões com que quebra a cabeça a pobre humanidade, e isso explica ainda a razão por que tanta gente se mete a questionar.

A.

 

O RISO[4]

O homem é o único animal que se ri. — A observação não é nova, nem lhe quero as honras do achado. Se estivesse hoje em veia de filosofar havia entrar na indagação das causas desta singular exceção. Mas contento-me por ora, sem discutir, com a explicação de um pessimista que me disse: o homem é o único animal que se ri, porque é o único animal que é tolo.

O riso tem três variedades principais que eu chamarei de forma:

É sorriso, é riso, é gargalhada.

Entre o sorriso e o riso há a mesma diferença que entre o botão e a flor.

No sorriso há toda a incerteza, todo o encanto e toda a fugacidade da esperança.

O sorriso é uma palavra que os lábios dizem sem voz.

O sorriso é belo em todos os rostos; em alguns é um raio de luz que os ilumina com o toque da suprema beleza.

É tímido como a modéstia, passageiro como tudo que é belo na vida.

Se eu tivesse, como muitos de meus colegas de pena, o hábito de namorar pela imprensa, tinha agora aqui a lira afinada para cantar um idílio sobre certos sorrisos que às vezes vejo enfeitar um rosto moreno, tão puros, tão suaves, tão cândidos, que morro de inveja ao lembrar-me que não é só para mim que eles desabrocham. Mas não culpo por isso aos lábios em que eles se aninham, não; eles me estão dizendo: — somos como o céu: na primavera não sabemos senão sorrir. E eu creio que eles têm razão.

Voltemos porém ao assunto.

O riso já não tem todas estas qualidades, ou, pelo menos, não as têm sempre.

Há, por exemplo, rostos bonitos a que o riso dá ainda maior encanto; há mesmo rostos feios que o riso, por assim dizer, enfeita. Mas também há por outro lado caras que o riso transforma em caretas. Muita gente conheço eu que não pode fazer maior desfeita a quem a encara, do que rir-se.

O sorriso pode ser às vezes, e quando muito, um ligeiro disfarce; o riso em muitos casos serve de verdadeira máscara!

O sorriso compõe; o riso transtorna.

O sorriso não é todo do mundo externo; metade do que ele é fica conosco, nossa alma guarda essa segunda parte de que os outros não tomam posse.

O riso não, esse, desde que o soltamos, escapa-se inteiro, e nada fica em nós mesmos do que ele foi.

O prazer acaba ordinariamente quando acaba o riso; ao contrário quando nos sorrimos é que o prazer começa.

O riso parece muito expansivo e não é; basta dizer que tem quase uma só forma para todos os sentimentos; vemos um riso e podemos ficar na dúvida se foi de assentimento ou de escárnio.

O sorriso, não; quando é só dos lábios, quando a alma não participa dele, mostra-o logo no que lhe falta de cândido e sincero.

E fácil fingir o riso; o verdadeiro sorriso não tem imitação.

Com o sorriso podemos exprimir o prazer e a dor; há sorrisos pálidos, tristes, são quase o pranto; mas ninguém confundirá estas duas sortes de sorrisos.

No ruído do mundo, no tumulto das sociedades, os homens e as mulheres riem-se quando se encontram. No silêncio, no retiro, quando dois entes que se amam estão sós com o seu amor, sorriem-se apenas um para outro.

Apesar de tudo o que fica dito, ainda o sorriso e o riso têm entre si pontos de semelhança, que ninguém poderá negar.

Se compararmos porém estas duas variedades com a terceira que a princípio notamos, isto é, com a gargalhada, bem se poderá ver o que de diverso há às vezes entre coisas que se dizem da mesma origem.

A gargalhada está tão longe do riso e do sorriso, como a algazarra do canto.

Sem dúvida foi pensando na gargalhada que se fez o provérbio risus abundat in ore stultorum.

A gargalhada é uma desnaturação do riso. O riso deleita; a gargalhada aturde. Não é uma expansão, é um desconcerto. Na gar­galhada a boca escancara-se, as faces engratam-se e enrugam-se; os rostos mais formosos tornam-se caricatos; não assenta bem em nin­guém. O ridículo daquilo que nos arranca uma gargalhada, reverte um pouco sobre nós mesmos. E por isso que muitas vezes está um homem rindo-se às gargalhadas de qualquer coisa que só ele viu, chegam outros, e, sem saber por quê, começam a rir-se do mesmo modo.

E entretanto, meu Deus! parece que há homens fatalizados a este respeito: as gargalhadas são os pontos e vírgulas das suas orações; dão gargalhadas pelo que eles mesmos dizem, pelo que ouvem dizer aos outros, pelo que vêem nos outros e por aquilo que os outros vêem neles. Que entes lamentáveis! Que caricaturas de carne e osso!

Querem realizar o prodígio do que se chama — gargalhada homérica — mas, não podendo consegui-lo pelo que toca ao volume, buscam suprir esta falta pela continuidade, e então fazem de toda a sua vida uma gargalhada constante.

As mulheres conhecem mais do que os homens o ridículo de semelhante hábito; por excesso porém algumas tornam-se carrancudas e então pecam pelo extremo oposto.

Tudo nesta vida é assim: o segredo do justo meio é a sabedoria eterna. No amor por exemplo não há nada pior do que o excesso. E isso é muito natural; os excessos são raros; e um amor excessivo dificilmente achará correspondência... Mas a que veio aqui falar-se de amor? Talvez pensem que isto tem alguma aplicação; não tem: eu estava dizendo que a gargalhada era uma coisa tola; o amor veio a propósito de coisas tolas.

E, para que não venham outras coisas do mesmo gênero interromper o curso destas muito sérias observações, façamos aqui ponto, alegando, em falta de outra razão, uma que anda agora muito em moda, e que entretanto talvez bem poucas vezes seja tão verdadeira como nesta: a hora está muito adiantada.

A.

 

AS MULETAS DE SIXTO V[5]

Aquela tão sabida história das muletas do Inquisidor de Veneza, é a parábola da hipocrisia, que tem aplicação a todos os atos da vida humana. Todos neste mundo andam de muletas, e todos as atiram ao chão quando trocam o seu barrete em mitra.

Como vai um candidato à casa de um eleitor? De muletas.

Como vai um pretendente à casa de um ministro? De muletas.

Como entra um cortesão nos paços reais? De muletas.

Mas o candidato apenas conta maioria esquece o nome do eleitor, faz nova profissão de fé, ou antes faz profissão de nova fé, porque todas as profissões são iguais apesar de haver tanta fé diferente, ergue a cabeça, põe a mitra, atira fora as muletas: é deputado, é papa!

Um pretendente que alcançou despacho não é mais do que um cardeal que subiu ao papado; fora pois com as muletas da humildade!

Um cortesão quando sabe da presença real deixa as muletas atrás da porta do paço, e caminha de mitra alta, mandando cortar a língua que lhe dirige o mais leve epigrama.

Todos, cada um no seu gênero, são Sixtos V neste mundo; uns sérios, outros caricatos, uns sempre, outros algumas vezes, mas não há ninguém que o não seja.

As mulheres, que fazem exceção a todas as regras, não o fazem desta, e antes muito a confirmam.

Vede aquela moça: tem a modéstia nos olhos, a candura no sorriso, toda ela respira inocência e bom gênio. Cora, porque o rapaz apaixonado que a leva pelo braço na sala do baile disse-lhe baixinho alguma palavra mais ardente, ou porque lhe apertou com mais força a mão na volta da contradança; é tímida como a rola, dócil como um cordeirinho... É um cardeal em candidatura.

Amanhã é noiva; coroam-na de flores de laranja.

Pôs a mitra!

Vão agora ver das portas para dentro o Sixto V do gênero feminino!

Um redator de jornal de partido anda de muletas até a hora em que triunfa o lado cuja causa advogava.

Um deputado de oposição anda de muletas até que caia em suas mãos uma pasta do ministério, que é a sua mitra.

Antes das muletas o caixeiro, até o dia em que o amo lhe dá sociedade.

Um ator em vésperas de benefício anda de muletas por casa dos amigos e conhecidos.

Anda de muletas o cantor antes do début.

O marido hipócrita que tem mulher ciumenta anda por casa de muletas; quando sai à rua deixa-as na porta.

Muitos velhos de moral austera, que não perdoam à mocidade o menor desvio, sempre com a virtude nos lábios, andam de muletas à luz do dia; vão observá-los em outras horas: estão de mitra, são papas.

Os procuradores de viúvas ricas tomam as muletas na escada de suas clientes; entregam-nas ao vigário no dia em que a infeliz não pode mais resistir às saudades do defunto.

Toda a ciência consiste em se não largar as muletas enquanto não se tem bem segura a mitra na cabeça: o esquecimento desta regra é a desgraça de muita gente; largam-nas antes de tempo, e caem então por terra os infelizes, perdendo o equilíbrio.

Quem observa este preceito com todo o rigor tem talento.

Se se procurasse um emblema para o frontispício da história do homem, eu proporia um par de muletas e uma mitra.

A.

 

REVISTA BIBLIOGRÁFICA. ENSAIO COROGRÁFICO DO IMPÉRIO DO BRASIL, DE MELLO MORAES E IGNACIO ACCIOLI[6]

Esta revista há de ser mais noticiosa do que crítica; o seu fim não é julgar das obras, é dá-Ias a conhecer. Podendo conseguir este fim julgo que satisfaço uma necessidade. Entre nós lê-se muito, mas há um grande desvio na leitura; perde-se um tempo precioso com livros, as mais das vezes, comprados pelos catálogos, porque não se acham vulgarizadas as fontes onde se colhem detalhes que garantem, quando não mais, ao menos que a obra corresponde ao seu título. E é bem sabido quantas vezes o frontispício de um livro é uma grande mentira. Se os livros fossem aqui, como são na Europa, muito baratos, o trabalho que empreendo teria uma recomendação de menos, mas estando os nossos leitores sujeitos à violência dos livreiros que exorbitam no preço das obras, aqueles que não dispõem de grandes recursos podem dele tirar um partido econômico, ficando salvos do risco de comprar um livro que só satisfaça ao seu pensamento na primeira página.

Traçando este plano de trabalho não quero por isso perder o direito de ensaiar o meu juízo algumas vezes sobre aquelas obras, cujo objeto for o de meus estudos especiais. Nesses casos, que serão poucos, hei de ser sincero e despir-me de toda a pretensão.

Para que esta revista satisfizesse completamente ao seu título era necessária a concorrência de muitas especialidades, que não se podem encontrar em um só indivíduo, e muito menos em mim.

Por este lado há de haver falta indispensavelmente, a menos que alguns de nossos homens de pena me não queiram ajudar. Se for tão feliz que alguém entenda que me deve acompanhar neste trabalho, receberei com prazer o seu concurso em proveito meu e de todos.

 

REVISTA BIBLIOGRÁFICA. ENSAIO COROGRÁFICO DO IMPÉRIO DO BRASIL, DE MELLO MORAES E IGNACIO ACCIOLI[7]

A primeira página deste livro entristeceu-me, e indipôs-me com a obra, que tem aliás um certo merecimento que seria injustiça negar-lhe. Mas essa primeira página não é só uma falta, é um crime de escritor, porque levanta do esquecimento uma antiga calúnia!

A história é tão perigosa quando se faz panegírico, como quando se faz filípica. Alguns investigadores conscienciosos, principalmente nos tempos modernos, conseguirão à custa de seus trabalhos e pes­quisas purgar os livros de seus antecessores das baixezas da lisonja e do fel, que ódios ainda muito vivos tinham lançado em suas páginas. Para chegar a seu fim foi preciso a estes obreiros da verdade derrocar muitos monumentos, lançar por terra muitos altares, quebrar muitos ídolos.

Podia crer-se a princípio que eles se faziam apóstolos da destrui­ção. Nhiebur chegou a fazer de Catão um usurário; Lafon faz de Sêneca um dissoluto. Parecia que eles pregavam o desprezo do passado, e queriam apagar todas as tradições do heroísmo e da virtude!

Mas de todo o seu trabalho surgiu a verdade com sua luz anima­dora, e com suas consolações. Grandes reabilitações se fizeram; muitas vítimas da ignorância, das paixões, ou da indiferença, essa filosofia do egoísmo, tiveram seus dias de nobre vingança.

Esta escola da consciência teve porém bem depressa seus faná­ticos; fizeram dela uma moda, exageraram-na. Os seus fundadores e alguns bons discípulos tinham destruído para reconstruir; vieram outros que se contentam com o primeiro trabalho: destroem para deixar ruínas. E esta a sua paixão.

Se há na história, por exemplo, o nome de um homem de armas, cujos louros foram ganhos defendendo uma boa causa com valor e lealdade, aí vão eles folhear crônicas empoadas, revolver arquivos, decifrar hieróglifos até achar a anedota da traição que vendeu a esse homem suas vitórias, ou o incentivo mesquinho que o levou aos combates.

Se é de um poeta que se trata, lá vão arrancar do canto escuro de uma biblioteca um manuscrito apagado, sem nome do autor, mas com data de cem anos antes, onde se encontram textualmente os seus versos mais aplaudidos. E eis aí estão gritando contra o plagiário.

O mesmo praticam com as grandes virtudes, com todas as ações magnânimas, com tudo que encontram digno da admiração ou do amor dos homens.

Como isto é neles uma paixão, não escrupulizam muito nos meios que empregam; quando não encontram as provas que buscam, forjam-nas.

Assim se faz um sistema histórico da calúnia.

Entre os grandes nomes da história, um dos que mais tem sofrido as crueldades desta seita, é sem dúvida o de Colombo. Entretanto se há glória merecida é de certo a do descobrimento do novo mundo, que custou àquele que o sonhou, empreendeu e levou a efeito as lágrimas da miséria, as peregrinações da indigência, as lutas com a ignorância, as afrontas ao amor próprio, os perigos da vida, os ferros da escravidão, e a morte no abandono.

Mas eis aqui como procedem os historiadores de quem falo.

Colombo anunciou o seu descobrimento como um profeta, pregou a verdade de sua profecia como um fanático, demonstrou-a como um sábio. Sacrificou tudo para vê-la realizada; não quis outro futuro senão o que o esperava na imensidade até ali misteriosa dos mares. Mendigou de porta em porta, de trono em trono os meios de levar ao cabo sua empresa. Conseguiu-os afinal. Partiu sem mudar de rumo. “É ali”, e para ali caminhou.

Todos desanimavam, ele só era forte em sua crença. Pediu tantos dias, tantas horas mais, como se conhecesse a derrota que tantas vezes fizera em espírito. Dentro desse tempo o assombro teve lugar: a idéia do louco, o sonho do visionário tomaram corpo; esse corpo era um mundo. A profecia realizara-se em todos os seus detalhes, quase com precisão de dia e hora.

Mas onde é que os espíritos fáceis e ingênuos levam o seu entusiasmo! Quando a frota descobridora ancorou naquelas plagas virgens, não é sabido que o próprio Colombo declarara supor que a terra que tinham diante dos olhos não era mais que um prolongamento da Ásia?

Que mais quereis?

Aí está o acaso, o simples acaso reclamando para si os louros com que coroais a fronte do velho marinheiro.

Todas as afirmações proféticas, todos os argumentos apresenta­dos antes da consumação do fato, caem diante daquela dúvida no momento de sua realização.

Todo o mundo duvidava em quanto Colombo cria; quando a verdade se tomou palpável, e que o herói recuou como assombrado de sua própria ventura, todos o acompanharam na sua dúvida de antemão desmentida!

Se em certos atos humanos não se devesse tomar em conta a má-fé, dir-se-ia que há no espírito dos homens um como instinto fatal que os arrasta para o erro!

Felizmente para todos, a escola de que acabamos de falar não conta grande número de discípulos, ou pelo menos este número a põe em minoria desproporcional com seus antagonistas. Tudo que não é documentado ou lógico não merece hoje conceito, estando a autoridade individual muito desacreditada em matéria de história.

Foi por isso que eu disse que me entristecera a primeira página do livro do Sr. Mello Moraes e Ignacio Accioli. Se não tivesse em tão bom conceito estes dois nomes, acreditaria que aquelas linhas foram escritas na intenção de apresentar uma reação às tendências do tempo.

Os autores deste livro copiaram quase textualmente do padre Vasconcellos, na sua Crônica da Companhia de Jesus, a seguinte anedota: — Que o descobrimento da América pertencia a um outro piloto que não Colombo, chamado Affonso Sanches, o qual tendo morrido ao cabo de uma viagem em casa daquele, lhe deixara por herança a carta onde tinha marcado a situação do novo-mundo.

Transcrevo o trecho para melhor inteligência:

“No condado de Nieble, em Andaluzia, existia um homem, piloto de profissão, denominado Affonso Sanches, que costumava navegar às ilhas Canárias e Madeira, das quais conduzia diversos gêneros que permutava na Espanha, e acossado em uma dessas viagens, em 1492, de forte temporal, chegou depois de 22 dias a descobrir um novo pai pelo ocidente, país esse que mais não investigou pelo estado de quase inanição em que se achava, tornando por isso a recolher-se à Madeira, onde comunicou em segredo a Cristóvão Colombo a sua descoberta, falecendo pouco depois”.

Se isto viesse garantido com alguma prova, de qualquer natureza que fosse a argumentação levaria outro caminho; mas não trazendo absolutamente garantia alguma de critério, não há remédio senão julgar o fato da maneira por que foi narrado.

Não farei mais que um reparo.

Affonso Sanches descobriu a América em sua última viagem; mas a terra que avistou, viu-a ele só; toda a gente de sua tripulação ignorou-o, ou soube de tal arte guardar o segredo que ele nunca transpirou no tempo em que teria toda a oportunidade, para ser depois revelado ao cronista Jesuíta, não sei por que voz desconhecida e misteriosa.

Esta inverossimilhança leva tantos ares de romance, que só resistiria à evidência de grandes provas.

Fatos como o do descobrimento do mundo que habitamos, pas­sados com as circunstâncias com que ele se passou, são os mananciais onde o homem alimenta a sua crença no poder da inteligência, tirando daí mil deduções benéficas.

É pois um crime, como disse ao começo, procurar destruí-los ou tirar-lhes tudo o que tem de belo e grande, lançando mão da primeira banalidade que nos cai sob as vistas.

O que ficava sendo Colombo para a história, a serem verdadeiras aquelas linhas que acima transcrevi?

Nada menos que um charlatão tenaz e intrépido.

Que desencantamento!

Ainda bem que nem sequer a anedota tem verossimilhança; e ainda mesmo que a frota de D. Isabel não tivesse saído de Palos, ou que Colombo tivesse morrido em Santa Maria de Arribada, vindo mais tarde outro navegante a fazer o descobrimento em seu lugar, a glória pertenceria sempre ao Genovês: a iniciativa da idéia e tudo que por ela sofreu reclamam indispensavelmente essa glória para ele.

Quanto ao mais, por melhor boa vontade que tenha, não posso dizer que o resto da leitura me reconciliasse com o livro. Acho que ele tem tudo quanto podia ter para não corresponder ao seu fim. Muito incompleto a respeito de pontos de grande importância, é futilmente prolixo a respeito de questões muito secundárias. Não faz a descrição dos rios do Pará, por ser um longo e enfadonho trabalho, mas gasta muitas páginas com a história do descobrimento da ilha de Fernando, e ocupa muitas outras com a transcrição dos artigos acordados entre los signores Daniel etc.

Mas não são só os defeitos por omissão que fazem carga ao livro; há faltas mais graves porque são positivas. Assim na nova Corografia o Ceará pertence ainda ao bispado de Pernambuco; a cidade Teresina ainda não é capital do Piauí; o território de Santa Catarina compõe-se de duas ilhas; o Alto Amazonas é ainda uma comarca do Pará com sua capital; cada comarca da Bahia tem o seu juiz municipal; no Rio de Janeiro o café e o açúcar passam pela alfândega; Petrópolis tem um bom teatro e famosos edifícios públicos!

Isto basta para que se ajuíze as faltas em que incorrerá o livro quando se ocupar das questões, por sua natureza tão difíceis, que se referem à determinação das populações e outros pontos semelhantes.

Não é uma obra como pretendem seus autores, que se possa confiar à mocidade; quem por ela se guiasse correria risco não só de ficar ignorando muita coisa, como o de adquirir idéias absolutamente falsas.

Não a desculpa o seu título de Ensaio. Um ensaio pode ser incompleto, pode conter erros, opiniões falsas a respeito dos pontos não estudados, das questões não resolvidas, mas não pode omitir o que todos sabem nem incorrer em erros já desvanecidos.

Esquecia-me dizer que o estilo do livro é muito descuidado e a gramática algumas vezes sacrificada.

Entretanto, em nome de todos os que se interessam pelo nosso adiantamento, agradeço aos Srs. Mello Moraes e Ignacio Accioli o seu trabalho. Não pareça que há nisto contradição ou evasiva de crítico medroso que busca adoçar com cumprimentos o que disse a respeito de um trabalho alheio.

Sou muito sincero e muito pouco pretensioso para socorrer-me a tais expedientes. Quem pensar no nosso estado a respeito de biblio­grafia nacional verá que tenho razão.

ALMEIDA

 

REVISTA BIBLIOGRÁFICA. HISTÓRIA DA TURQUIA, POR LAMARTINE [8]

  

Faziam quase seiscentos anos da vinda do Messias, quando de uma tenda do deserto saiu um novo profeta, falando de uma nova crença.

Esse homem pensava fundar apenas um culto e criou uma nacionalidade; essa tenda, que ele queria fazer o santuário da nova doutrina, foi o centro de um povo.

O império otomano surgiu à voz do livro de Maomé.

Esse império, depois de ter passado pelas mais estranhas vicis­situdes de grandeza e degradação total, tinha chegado em nossos dias ao último grau de infortúnio de um povo; era esquecido do resto do mundo. As nações que marchavam avançadas na senda larga do progresso nem voltavam os olhos para aquele ponto imóvel que lhes ficava na retaguarda.

Pois bem! Como para justificar se por mais um fato a promessa de que os pequenos serão exaltados, os povos deste século foram chamados ao Oriente e a Turquia é hoje o campo de batalha onde a civilização disputa na Europa, talvez a sua última vitória.

O mundo que ainda há pouco sabia apenas repetir com lástima e desprezo o nome da Turquia quer agora saber a história deste povo, a quem a providência fez depositário dos destinos da civilização por estes séculos.

Essa história porém faltava.

Não é que não houvessem livros preciosos relativos aos turcos. Mas o que se quer agora não são mais as datas das dinastias, nem os nomes dos reis, a época dos combates, nem o nome das cidades. Isso já não basta; é mister ir mais longe. Quer-se saber o peso moral das nações, no globo.

Era isso o que faltava quanto a Turquia

São poucos os que escrevendo a história atingem ao ponto desejado; porque é mister ter a vista muito larga para abranger o horizonte imenso da humanidade e copiar as sombras que este ou aquele povo desenhou em sua passagem por toda essa extensão.

São poucos, porém alguns realizam em toda a sua grandeza a missão da história. Entre esses, faço grande violência ao meu entusiasmo para dar apenas a Lamartine um lugar dos mais distintos; eu queria dar-lhe o primeiro.

Lamartine, compreendendo a necessidade de que acabo de falar, escreve atualmente a história da Turquia.

Acham-se já publicados dois volumes que acabo de ler.

O primeiro é a história do profeta árabe. É a vida do deserto, ora abrigada debaixo das tendas, ora concentrada em torno do Kaaba idólatra, ora espraiada pela imensidade.

São as páginas do Alcorão escritas uma a uma, versículo a versículo.

É a queda dos ídolos.

São as lutas da crença antiga com a crença nova num mesmo povo, antes de começarem entre povos diversos.

É a conquista de Yathreb, pela palavra; de Meca, pelas armas.

Depois, enfim, o triunfo do alcorão entre os Árabes e a morte do profeta.

É um livro de grandes consolações. Nunca o espírito me ficou tão calmo e tão tranqüilo a respeito de suas crenças no justo e no santo, como lendo aqueles pedaços da história de um povo semi-bárbaro e de uma crença falsa. Nunca senti nascer em mim tantas disposições tolerantes, tanto amor pelos homens, como percorrendo aquelas pági­nas manchadas de tanto sangue e de tantos crimes!

É esse o grande talento de Lamartine como historiador. Nunca se fecha triste um livro de sua pena. Ele tem sempre um raio de luz para tudo que é trevas; sabe onde é que está a providência naquilo que só parece fatalidade, e quando enfim, porque não é um otimista cego e desasisado, tem de confessar um crime sem defesa, ele tem sempre uma lágrima para cada gota de sangue.

Acabei a leitura do primeiro volume completamente reconciliado com Mafoma.

Eis aqui o epílogo em que Lamartine dá seu juízo decisivo a respeito do profeta. Cito-o para justificar a filosofia perante a crença.

“Este homem era um impostor? Não o pensamos depois de ter bem estudado sua história. A impostura é a hipocrisia da convicção. A hipocrisia não tem o poder da convicção, como a mentira nunca teve o poder da verdade.

“Se a força de projeção é em mecânica a medida exata da força de impulsão, a ação, na história, é também a medida da força de inspiração. Um pensamento que vai tão alto, tão longe, é um pensa­mento forte; para ser tão forte era mister que ele fosse bem sincero e de convicção. A inspiração anterior de Maomé foi sua única impostura. Havia nele dois homens: o inspirado da razão e o visionário do êxtase. As inspirações do filósofo foram ajudadas pelas visões do enfermo. Seus sonhos, seus delírios, seus desmaios durante os quais a imagi­nação atravessava o céu e conversava com seres imaginários, iludiam-no a ele como ele iludia os outros. A credulidade árabe inventou o resto.

“Mas sua vida, seu recolhimento, suas blasfêmias heróicas contra as superstições de seu pai, sua audácia em afrontar os furores da idolatria, sua constância em suportá-los durante quinze anos em Meca, a aceitação do papel de escândalo público e quase de vítima entre seus compatriotas, sua fugida afinal, sua prédica incessante, suas guerras desiguais, sua confiança no triunfo; sua segurança sobre-humana nos revezes, sua longanimidade na vitória, sua ambição toda de idéias e não de império, suas orações, sua conversação mística com Deus, sua morte e seu triunfo depois do túmulo, atestam mais que uma impostura, atestam uma convicção. Foi esta convicção que lhe deu o poder de restaurador de um dogma. Este dogma era duplo: a unidade de Deus e a imaterialidade de Deus; uma derrocando com a espada deuses mentirosos, outra inaugurando com a palavra uma idéia.

“Filósofo, orador, apóstolo, legislador, guerreiro, conquistador de idéias, restaurador de dogmas racionais, de um culto sem imagens, fundador de vinte impérios terrestres e de um império espiritual, eis aqui Maomé!

“Por qualquer escala que se meça a grandeza humana, qual foi o homem maior?

“Maior não há senão aquele que proclamando antes dele o mesmo dogma, promulgara ao mesmo tempo uma moral mais pura, que não tirara a espada para ajudar a palavra, única espada de espírito, que vertera seu sangue em vez de derramar o de seus irmãos, e que foi mártir em vez de ser conquistador. Porém esse julgaram-no muito grande para ser medido pela medida dos homens, e se sua natureza humana e sua doutrina o fizeram profeta, sua virtude e seu sacrifício o fizeram Deus!”

À vista deste juízo a consciência da humanidade é aliviada, e sente que tem de menos sobre si o peso de um homem mau.

Cada reabilitação destas é um triunfo para a nossa raça; aqueles que as fazem são os beneméritos da consciência humana.

No segundo volume começa uma série de guerras sanguinolentas com diferentes povos, e as armas muçulmanas abrem caminho até Constantinopla.

Aparecem então os vultos terríveis de Amurad e Bajazet.

O estilo vigoroso do escritor faz com que o leitor assista como que presencialmente àquelas tremendas lutas.

Do fundo da Tartária surge Tamerlau, e vem dar o exemplo não repetido da maior heroicidade reunida à maior barbárie, e de uma magnificência que nunca se igualou.

Eis aqui como Lamartine faz o retrato desse homem, a quem ele chama o Caim da sua raça.

“Ou porque o sangue de Gengis Kan que corria em suas veias tivesse enobrecido sua tribo, ou que tivesse ele nascido de uma dessas mulheres indianas ou persas, cuja beleza transformava nos haréns de Samacanda a rusticidade da raça tártara, o jovem Timour não tinha de sua tribo senão o gênio nômade e a coragem. Pertencia mais aos Turcos orientais do que aos Tártaros propriamente ditos. Seu exterior e a sua educação eram de um príncipe, e não de um pastor de camelos. Era de estatura alta, delgada e ágil como a de um árabe; tinha a tez alva e corada como a de um hindu; os traços de seu rosto eram os de um Grego do tipo de Alcebíades. Tinha os olhos rasgados, o nariz quase aquilino, a testa larga e elevada, as faces ovais, a boca bem talhada, a inteligência, a força e a graça no sorriso; o traje indiano, as armas enriquecidas de pedras preciosas, os xales de cachemira passados em torno a sua cintura e a sua cabeça, o sabre de Damas, o arco sobre a espada, a aljava adornada de arabescos em relevo, o cavalo de Nedjed, cuja crina e cauda eram tintas com um suco dourado, enfim dois brincos formados cada um de uma pérola oval, balançando sobre suas faces, faziam ressaltar a beleza ao mesmo tempo viril e efeminada de sua pessoa. Uma só coisa contrastava, segundo os historiadores tártaros, com aquela mocidade e graça de seu rosto: eram seus cabelos que se tinham embranquecido quase no berço. Este fenômeno que lembrava os cabelos brancos do herói popular dos Persas, Sam, contribuía para atrair ao jovem Timour a atenção e respeito dos Tártaros. Eles viam um sinal de madureza precoce indicado pelo céu naquela coroa de sabe­doria na fronte de uma criança. Ele próprio se adornava com aquela desgraça da natureza como um privilégio do céu. Aqueles cabelos brancos sobre as faces de vinte anos realçavam sua tez e imprimiam um caráter estranho, porém mais agradável que desgracioso à sua beleza”.

Esta felicidade de estilo é um dom bem raro, de que Lamartine tira um grande partido. O leitor fica com a personagem descrita, gravada na imaginação, tem-na diante de si, como expondo-se ao seu exame. Acompanha-a daí em diante em suas ações com duplicado interesse, porque parece-lhe que se trata de um conhecido com que se praticou por muito tempo, às vezes de um amigo a quem se amou.

Os dois volumes são cheios de quadros, como os que acabo de citar, que prendem a quem os percorre, e fazem com que ao mesmo tempo se deseje que as páginas se abreviem e se alonguem; que se abreviem para conhecer-se onde é levado a personagem ou o fato em ação; que se alonguem porque teme-se a cada momento que as belezas cessem. Elas são infinitas e antes cansa de as acompanhar a atenção do leitor, do que a pena do escritor.

Tarda-me já muito a continuação da obra, cuja primeira parte apresso-me a recomendar.

Não se pense que o livro de Lamartine é uma obra de ocasião, nem vão os espíritos desviados pelo interesse dos últimos sucessos do Oriente, criar prevenções contra ele, como uma exploração da atualidade.

Desde sua viagem ao Oriente, a que o cantor de Jocelyn deveu tantas daquelas suaves inspirações com que nos acalenta a alma nas horas de sofrimento, com que no-la vigora nas horas de desânimo, que ele medita a história da Turquia. Foi antes a ocasião que veio em busca da obra, do que a obra que a escolheu.

Repito que é um livro de consolações. Depois de sua leitura a alma sente-se melhor e mais propensa às crenças doces e santas, a amar o que é belo e justo.

É um grande e proveitoso emprego do tempo a conversa com os livros de Lamartine.   

ALMEIDA

 

REVISTA BIBLIOGRÁFICA. INSPIRAÇÕES DO CLAUSTRO POR JUNQUEIRA FREIRE (DA BAHIA).[9]

Entre os monumentos do passado que desabam nestes tempos de grandes reformas e de grandes destruições, desaba também o claustro; lança-o por terra o anacronismo da sua construção. Assustam-se os espíritos tímidos com a queda do altar, que eles pensam ser também a queda da crença. O que lhes parece porém a derrota não é senão a grande vitória.

A clausura era o sacrifício da liberdade matéria em favor da liberdade idéia. Estar só para ser livre: foi este o pensamento que povoou a Tebaida. O primeiro sacrifício valeu logo um triunfo. Já não era mister ir ao deserto; o desterro pôde ser menos longe; o homem pôde exilar-se dos homens vivendo mais perto deles. Levantaram-se porém grandes muralhas inacessíveis e sombrias entre os que queriam ser livres e os que o não eram; fez-se o deserto no meio do povoado, a solidão no meio do ruído.

A Tebaida foi transportada.

A idéia caminhou de triunfo em triunfo; os claustros foram deixan­do de ser necessários. Chegou um tempo em que eles não se construí­ram mais. Os que existiam foram envelhecendo e ficando desertos. Veio a época em que se pode ser livre por toda a parte, em que se pode ser livre ao ar livre: o claustro caiu. Antes de cair tinha-se desnaturado, e isso apressou a sua queda, que abafou a memória de muitos crimes. Não resta mais para ele senão a história. E que história não é a sua! A ciência, a arte, a literatura, a poesia, o direito, a política, tudo lhe irá pedir uma página de engrandecimento e de glória.

Mas é só isto que lhe resta. O claustro, que tanto produziu, nada mais hoje produz. Agora apenas, de longe em longe, sob algum arco de abóbada que se suspende ainda por cima das ruínas, debaixo do teto de alguma cela que escapa por momentos ao derrocamento geral, acorda-se o eco raro de uma inspiração feliz!

Algumas páginas de poesia, escritas sobre o breviário durante alguns anos de clausura num convento de província, acabam de juntar-se ao livro da história monástica da nossa terra, que não é sem dúvida o mais pobre dos que hão de formar a história monástica do mundo. Trazem um título fiel; chamam-se — Inspirações do Claustro.

Não se pense porém que se vão achar nelas êxtases contínuos ou arroubos de misticismo; não, e é por isso que lhes acho o título fiel. O claustro já não pode dar inspirações dessas. Já se compreendeu que o espírito não pode perder sua atividade no arrebatamento de uma adoração estéril: servir à humanidade é a grande adoração da Provi­dência.

O novo livro traduz em substância esta idéia. O poeta canta o monge, isto é, canta a vida que ele viveu, com a qual não se conformou por estéril e ociosa; mas canta-a lamentando-a. Eis aqui o seu pensa­mento nalgumas linhas que servem de prólogo ao livro:

“O que cantas? perguntar-me-ão. O que podia eu cantar, encer­rado nas muralhas solitárias de um claustro, ouvindo a cada hora o toque de um sino que chama à oração, vendo uma turma de homens com vestidos talares negros, que me levavam à recordação dos costu­mes dos tempos antigos, passeando sempre sobre um chão povoado de sepulcros, conversando com o silêncio do dia e a solidão da noite?

“Cantei o monge e a morte.

“Cantei o monge porque ele sofre, sofre muito.

“Cantei o monge porque o mundo o despreza; porque ele é hoje uma coisa inútil em conseqüência de suas instituições anacrônicas. Cantei o monge porque ele não tem culpa de ser mau, nem pode por si só ser bom. Cantei o monge porque ele poderia ser uma personagem quase necessária, dando-se-lhe as leis comuns da humanidade. Cantei o monge porque ele é infeliz, porque ele é escravo, não da cruz, mas do arbítrio estúpido de outro homem. Cantei o monge porque não há ninguém que se ocupe de cantá-lo.       

“E por isso que cantei o monge, cantei também a morte. Ela é o epílogo mais belo de sua vida, é o seu único triunfo.

“Na verdade ao homem sincero, amante de sua pátria, dói-lhe ver tanta gente estacionada, sem nada fazer e podendo produzir tanto bem. Não; a caridade que o Cristo ensinou não é egoísta...”

O poeta anuncia-se dizendo a verdade; o seu livro a sustenta.

Este livro é por tal arte um livro de pensamento que não haveria lugar, falando dele, para entrar em questões de forma. Demais, o coração, quando fala, fala sempre bem, e o poeta, cujos versos tenho diante dos olhos, é um poeta que sente o que diz. Os seus versos são algumas páginas de uma vida de aspirações, que ainda se não esgo­taram, que ainda brilham, variadas como as flores da mocidade. Ao lado da idéia capital de seus cantos, idéia filha da situação que os inspirou, ele canta tudo aquilo porque o coração palpita. Chora saudades de sua mãe; abençoa a inocência de sua irmã; respira o perfume da flor abandonada na banqueta do altar; embriaga-se com o incenso que se

evapora das brasas do turíbulo; lamenta o abandono do órfão; entusias­ma-se pela memória dos outros poetas. Tudo isso com naturalidade, sem esforço; sente-se que a inspiração lhe veio sem que ele batesse na fronte. Não se lhe nota essa espécie de convenção entre o poeta e o assunto, que nos cantores de certa escola faz adivinhar a poesia pela simples leitura do título.

Cada página do novo livro é uma surpresa. A impressão que modifica a alma do poeta é sempre o que dá tom à sua voz. Por isso nunca a música é desconcertada pela letra, isto é, nunca o verso está em desarmonia com a idéia. Falando de uma flor murcha, ele acha bastante descuido e singeleza para dizer:

Está murcha; — assim a morte

Da vida as glórias desfaz;

Assim um'hora de gosto

Mil horas de dores traz:

Assim o dia desmancha

Os sonhos que a noite faz.

Feliz! — seu leito de morte,

Sobre as aras ela tem.

A prece que vai ao céu

Sobre ela primeiro vem,

A mirra que a Deus incensa

Há de incensá-la também.

Quando se eleva a lamentar os destinos de uma nação que foi grande, acha também bastante energia e vigor para escrever estes versos:

Também foste proscrito.

..................................

Ah! quantas vezes desejaste em ânsias

Voltar à pátria cara!

Na pedra tumular da avita glória

Sobre o pó dos troféus, pobre, aviltado,

Seus maus destinos Portugal pranteia

E pranteado dorme!

Ossada de nação co'os pés em terra,

Coas mãos a custo sustentando o crânio,

A cada sopro do suão vacila.

Estes exemplos repetem-se por todo o livro; não são uma felicidade de momento; são, ao contrário, o caráter predominante do poeta.

Muita gente confunde a propriedade, com um excesso de cor local, que, longe de dar caráter, desnatura aquilo que se escreve, seja verso ou seja prosa. No verso esse defeito passa à monstruosidade.

É isto o que tem perdido grande número de nossos escritores. Quando Gonçalves Dias publicou no primeiro volume de seus cantos as poesias americanas, a aceitação que tiveram, o entusiasmo que excitou aquela grande novidade literária, atirou quase todas as aspira­ções poéticas da época para o caminho que ele acabava de percorrer. Confiaram no assunto; esqueceram o talento. Resultou disto um gênero disforme, que se quis chamar escola, e que não passou de uma caricatura, ou de uma cópia a borrões.

O que há de pior neste mau sistema, é que semelhantes desvios não se dão unicamente por ocasião das inovações.

Quando falta por muito tempo uma idéia nova, atrás da qual se improvise uma escola, faz-se reviver alguma coisa que estava já bem morta, arrebica-se uma figura bem velha, vestem-se-lhe uns frangalhos descosidos, e aos gritos de uma aleluia de comédia, aí aparece o novo Scariote literário, que apesar de tudo goza sempre o seu triunfo de algumas horas.

No meio de tudo isto, quantos talentos se não perdem, quantas aspirações felizes não caem a meio vôo, para nunca mais erguer-se!

Fugir a essa vertigem de imitação, deixar-se levar naturalmente pela inspiração, e não querer violentá-la a este ou aquele rumo, acreditar sobretudo no talento próprio, eis como se consegue nas obras literárias, senão o toque da perfeição, cujo segredo é de poucos conhecido, ao menos alguns traços que o preparam.

Todas as simpatias que desperta o livro de que me ocupo nascem principalmente da originalidade sem pretensão, da confiança do autor no seu trabalho, que por todo ele respira.

Não há necessidade de prometer futuro ao poeta, de pedir-lhe que caminhe, de apontar-lhe o horizonte que se lhe abre esplêndido e risonho. O seu livro inteiro é uma promessa, que se há de cumprir. Ele crê muito para desanimar tão cedo. Não importa que nalgumas horas, bem poucas, seu espírito se aquebrante e um laivo amargo lhe venha ungir os lábios. Não importa que ele diga:

.............................

Essa abstração do espírito quimérica,

Esse suposto coração de amigo

Existe algures? — Morará no peito

Da pombinha que afaga entre os arrulhos

A coleira do esposo — e abandonada,

Deixando-o no pombal beijando os filhos

Deita a voar ’trás os casais vizinhos?

— Ou morará talvez no adunco bico

Do pelicano que espedaça as vísceras

Para dar de beber seu sangue aos filhos

E sendo adultos desconhece-os todos?

.....................................

Antes sozinho ser. Se n’um despenho,

De ignorante, cair, — nele pereça

De vez p’rá sempre. Assim lascado o seixo

Das penedias da fragosa costa

Com ruído sonoro ao mar descendo

Do gravitar nas asas necessárias,

As vagas perfurando, acha no pego

E paz e olvido e sepultura eterna.

.....................................

Estas queixas não significam senão o amor, a fé do poeta nas suas crenças, se assim me posso exprimir: elas estão salvas enquanto isso durar.

Amare, amabam, dizia o santo filósofo; credo credere pode dizer do poeta.

ALMEIDA

 

REVISTA BIBLIOGRÁFICA. O COMENDADOR, ROMANCE POR FRANCISCO PINHEIRO GUIMARÃES[10]

  

A nossa literatura de hoje é filha da política: a política dos povos que começam é escrava das paixões. Daqui nasce que a audácia, a petulância e a descuidada impavidez de uma reflete-se toda inteira na outra. Alguns vultos magníficos, estranhos pela sua própria grandeza, erguem-se, é verdade, parecendo desmentir este princípio. Mas, é mesmo por suas proporções agigantadas e descomunais entre nós que eles o justificam. Compreendo Lamartine em França, assombro-me de Porto Alegre no Brasil. Quando digo França e Brasil, quero dizer a alma, a vida, a civilização de cada uma destas nações: alguns povos chamam a certos homens seus filhos, deviam chamá-los seus pais; eles não são filhos senão da civilização universal, e ninguém, a não ser a humanidade inteira, pode enobrecer-se de lhe ter dado vida. O mais seria ligar muita importância ao acidente do nascimento de um homem neste ou naquele ponto da terra.

Pondo pois de parte estas exceções tão grandiosas como raras, não se pode deixar de reconhecer que uma política de pacotilha, audaz, ignorante, indecente, produziu uma literatura do mesmo gênero e com as mesmas qualidades.

Os triunfos deslumbrantes da política de ocasião, seduzem e arrastam a literatura de horas vagas; políticos por acaso, literatos por distração, todos os que têm audácia se elevam e se impõem, e ninguém sabe o que mais admirar neles, se o displante, se a ignorância.

Uma das piores conseqüências de semelhante estado de coisas é o desânimo que se apodera dos espíritos modestos; parece a estes que os defeitos alheios são seus defeitos, e por isso retraem-se num acanhamento timorato; aspiram à glória e ao renome, mas temem que não haja depois meio de distingüir seus louros, se os alcançarem, dos que coroam certas frontes.

O autor das páginas que temos ante os olhos, foi vítima desta fraqueza, ou desta virtude.

O seu romance, descontadas as imperfeições de todo o escritor que começa, não tem senão um defeito: é um esboço, não é um quadro. Através das tintas mal esbatidas vê-se ainda o lápis que traçou o contorno. Algumas figuras apenas delineadas, dão, pelo contraste, muito relevo a outras que parecem, assim, tocadas de exageração. O que se observa de uma figura para com as outras, observa-se também em algumas figuras em relação a si mesmas: certos traços excessiva­mente vivos, ao lado de outros demasiados e indecisos dão ao todo uma desigualdade muito sensível.

O autor esqueceu-se que não estava escrevendo uma obra de imaginação, esqueceu-se que copiava, e que a exatidão importa minu­ciosidade. Teve medo de ser extenso, foi incompleto. Parece que ele se havia imposto o propósito de não passar de um certo número de capítulos; sacrificou muitas cenas à idéia de ser breve. Nos três primei­ros capítulos este sacrifício revela-se pelo precipitado da ação. Quando se quer resumir uma ação preliminar, que deve servir de ponto de partida à grande ação dominante, é melhor que o autor a refira ele próprio como coisa passada ou a faça referir por uma de suas perso­nagens. Desde porém que ele cria uma ação viva, que forma um episódio, deve ser completo, não lhe é lícito precipitar coisa alguma.

Os amores de Emília com Alfredo, os passos que dá este para aproximar-se de sua amada, o meio por que o consegue, a súbita mudança no projeto de D. Tereza, relativamente à sua afilhada, à morte daquela, à partida de Emília para a casa do parente que lhe restava, enfim todas as cenas que precedem a da chegada do comendador ao arraial de Santo Antão, quando sai o povo da missa, que é onde verdadeiramente começa o romance, tudo isso, dizia, é precipitado, sem cores pronunciadas. São três ou quatro capítulos perdidos inteira­mente para a ação do romance, e perdidos a meu ver, não porque não tenham em si elementos para cativar o leitor, mas porque esses elementos são mal aproveitados.

Na cena a que acima me refiro, começa a novidade e o interesse do trabalho.

Antes de prosseguir e de acompanhá-lo no seu desenvolvimento, paro aqui para fazer ao autor o elogio que sempre lhe havia caber, por baixo que fosse o merecimento de sua obra sob todos os pontos de vista; é o elogio que ele merece pelo que toca à moralidade ao fim do seu romance.

Era já tempo.

O tipo hediondamente original dos nossos mandões de aldeia, essa torpe idealização da perversidade, perversidade estúpida, gros­seira, esquálida que traz sob a pressão de suas numerosas torpezas todo o interior de nosso país, amparada e sustentada pela outra perversidade inteligente, polida, dourada, que de longe a açula em seus maus instintos para fazê-la servir a seus fins mais indireta porém não menos friamente criminosos, de há muito que devia ter sido trazida às páginas imparciais e eloqüentes do romance.

Nos processos encontram eles juízes venais, testemunhas perju­ras para inocentá-los nos seus crimes mais públicos e provados.

Nas colunas da imprensa diária, abertas por sua própria natureza à verdade e à mentira, encontram penas vendidas para escreverem o panegírico de sua malvadez.

Na tribuna, vozes que lhe devem o fôlego, não se animam a erguer-se para profligá-los.

Pois bem, o romance que os trouxer em toda a verdade de sua hediondez ao tribunal da consciência pública, será, quando não mais, uma página de santa vingança.

Se outro merecimento não tivesse o trabalho de que nos ocupa­mos, este só era já muito grande para pagar o esforço que pode ter custado a seu autor. Porque, tenho firme confiança, a coragem do primeiro vai ser a coragem de muitos e espero ver o comendador Gonçalves exposto à luz da publicidade sob todas as mil formas desse caprichoso Proteu, em que a impunidade e a força transformam o crime.

O interesse, dizia, começa com a cena em que se apresenta ao leitor o potentado de uma de nossas vilas do interior, cercado de seus capangas, espalhando o medo em torno a si, distribuindo insultos, humilhando a uns, exaltando a baixeza de outros, e fazendo alarde de uma sensualidade brutal.

Há verdade, animação, vigor em todo esse pedaço. A situação foi bem escolhida. Quase todos os moradores da pequena freguesia de Santo Antão acham-se reunidos à saída da missa; isso dá lugar a uma descrição pitoresca de seus tipos físicos, ao passo que o modo por que se portam à vista do que pratica o comendador, dá lugar a uma descrição rápida, mas exata do seu caráter: o hábito externo, e a face moral dos habitantes dos nossos lugarejos do interior, foram assim apanhados num só traço, sem esforço, nem embaraço.

Não acho tanta naturalidade na passagem em que Alfredo, que vai em busca de sua noiva, trava amizade e cativa o reconhecimento do homem que mais tarde se tem de sacrificar para salvá-lo. — João, esse tipo esboçado por demais rapidamente, para ser tão romanesco. Há esforço, sem haver novidade, naquela luta desigual que João sustenta contra seus agressores e que acaba pela fuga na garupa do cavalo de seu salvador.

O herói deste episódio, já o disse, é rapidamente esboçado: conviria que o autor se tivesse demorado mais com ele. Veja-se como procede o grande mestre, o grande gênio do romance moderno, cujo engenho assombroso quase que não tolera a possibilidade da imitação. Quando Dumas destina e prepara a alguma de suas personagens, ainda que não seja senão mais do que um lance importante de seus romances, ele descreve com minuciosidade o seu físico, demora-se em seus hábitos, fala de sua vida anterior ao conhecimento do leitor, e em todo esse desenvolvimento, que em nada prejudica ao dramático da ação em que o via fazer entrar, o dispõe contra o choque da mais ligeira inverossimilhança.

E isso que faltou ao belo tipo da dedicação rústica que apenas ficou delineado em João.

A cena mais bela de vigor e novidade de todo romance é aquela em que o vigário da freguesia, em vestes talares e de crucifixo em punho, vem impedir a consumação do crime nefando do comendador. Todo esse lance, perfeitamente dramático, é de uma bela concepção sustentada pela força e segurança da descrição.

A primeira tentativa de fuga dos dois amantes, malograda pela tormenta, o primeiro beijo de amor e o desmaio, ao fuzilar do relâmpago e ao bramir dos trovões, pareceram-me deslocados do caráter geral do romance, e não vi nesse quadro senão uma obediência às reminiscên­cias romanescas de alguns trechos que muito nos seduzem aos dezoito anos.

A descrição da fazenda do comendador é um dos pedaços mais felizes do romance: não pode ser completo pela própria natureza do assunto, que tem tanto de vasto, como de importante, e que só pode ser tratado por partes. Que desastrosos lances, que ensangüentadas peripécias, que dramas medonhos não se passam no interior desses domínios da prepotência, da estupidez, e da impunidade! Seria exage­rado esforço para uma só pena procurar retraçá-los num único quadro, tão múltiplas e variadas são as suas cenas.

A morte da mãe de João, a velha Brígida, e seu enterro são de uma naturalidade tocante.

A morte de João e do comendador referidas na carta do vigário vêm a propósito e são descritas sem pretensão e com verdade.

Estas linhas que aí ficam escritas não pretendem ser uma crítica ao novo romance; é um ligeiro estudo sobre o trabalho de um amigo a quem prezo por muitos títulos. Não há ninguém a que se possa falar com mais independência do que a um amigo inteligente.

Faço-o sem escrúpulos nem reservas, assim como sem pretensões. As páginas que acabo de ler, inspiraram-me pelo seu talento, que eu já conhecia de muito perto, a mais decidida confiança. Se algum dia, como é possível, esse talento avigorado pelo estudo e pela idade, tiver a inspiração de alguma dessas obras felizes que guardam por muito tempo o nome de seus autores, peço que ele se lembre, para meu orgulho, de que, no começo de sua carreira literária, fui eu um dos que mais sincera e confiadamente lhe disse:

Trabalha!

M. A. DE ALMEIDA.

 

REVISTA BIBLIOGRÁFICA. O LIVRO DO POVO, POR L. A. NAVARRO DE ANDRADE[11]

  

O Sr. Navarro de Andrade, que por algum tempo dirigiu, como redator em chefe, uma das folhas diárias da capital, publicou há pouco um livro, cujo título, alguma coisa assustador, deve ter chamado sobre ele a atenção pública. O autor acabava de deixar, contrariado sem dúvida, uma pena de jornalista que não fora em sua mão das menos independentes nem das mais medrosas; retirado por alguns meses da luz fatigante da publicidade, e recolhido às sombras da vida doméstica, todo mundo esperava no seu livro uma explosão de despeitos abafa­dos: a obra, nas circunstâncias em que foi publicada, parecia de sua parte uma renúncia à luta diária, suspeitava-se que era o seu grito de desespero, e todos aplicavam o ouvido pressentindo o sussurro do escândalo.

Acharam-se todos enganados. O livro nada tem que possa deleitar o apetite da malignidade: não é um libelo pessoal, nem uma filípica de ocasião. Falta-lhe muito, é verdade, para aquilo que o autor quis que ele fosse, — um livro de doutrina, — mas tem muito pouco ou quase nada daquilo que devia não ter; não satisfaz o seu título no bom sentido,mas também, e sobretudo, está mui longe de o justificar no mau sentido.

Lendo-se o título dos diversos capítulos da obra, vê-se logo que o autor ficou aquém do assunto, direi melhor, dos assuntos; não há concisão de estilo, não há esforço sintético que possa realizar em um número tão estreito de páginas a discussão das extensas e gravíssimas questões que esses títulos enunciam: a matéria não se acha ali resumida, mas sim comprimida. As demonstrações são raras, as transições nenhumas: é um enunciado de teses sucessivas, cujo desenvolvimento fica adiado talvez para uma segunda parte que deve ter a obra. O Sr. Navarro neste sentido não escreveu verdadeiramente um livro, juntou apenas diversos artigos de jornal, desses que se escrevem sob a pressão da necessidade do dia, nos quais a urgência do tempo e do espaço mutila a idéia, e que produzem tanto mais efeito quanto mais em suspenso deixam o espírito do leitor; o artigo de jornal, salvo casos excepcionais, traz sempre no fim um continua invisível, que é a transição para artigos futuros que o devem completar, e que poucas vezes aparecem. Uma pena que nunca se exercitara em outro gênero de trabalho não podia escapar a este defeito do hábito. Em um volume de cento e tantas páginas apenas mal cabe por certo o enunciado, a exposição de questões como — NATUREZA DO HOMEM, SOCIABILI­DADE, CIVILIZAÇÃO, ORGANIZAÇÃO POLÍTICA, SOBERANIA, ME­LHOR FORMA DE GOVERNO, INFLUÊNCIA DA CIVILIZAÇÃO SOBRE AS REPÚBLICAS E SOBRE AS MONARQUIAS, e outras de igual valor e gravidade.

A obra peca pois principalmente por ligeireza: diria por frivolidade, se algumas conclusões de conseqüências muito sérias não mereces­sem sério reparo. Não posso entrar no exame de todas elas, porque apenas escrevo estas linhas como um estudo noticioso, que não tem outro fim senão despertar a curiosidade pública. Neste sentido, qual­quer que seja a minha opinião, em falta de quem se ocupe de tarefa igual, creio que faço sempre um bem à obra de que me ocupo. Não vou além destas pretensões.

Abro então o livro ao acaso no capítulo — Soberania. Eis aqui a conclusão que tira o autor dos princípios que estabelece: “A soberania não reside no povo, qualquer que seja a sua forma de governo: a soberania reside no homem ou corpo que pela legitimidade de seus direitos hereditários ou de livre escolha e eleição, conforme a disposi­ção do pacto social, ocupa o primeiro lugar nas nações”.

Há nestas palavras o erro assinalado por Duclerc e outros, em que tanta gente tem caído confundindo a soberania com o poder. Essa confusão é nada menos que a da causa com o efeito: é o fato tomando o lugar do princípio. Trata-se de um poder que reside em um homem por herança; essa hereditariedade não pode ser tolerada senão por dois motivos: ou porque ela se impõe, e não há meios de resistir-lhe, ou porque os que a toleram concordaram em tolerá-la. A primeira hipótese não pode sofrer discussão: a lei imposta não é lei, é violência.

No segundo caso é claro que o poder tolerado parte da vontade que o tolera, e só dele deriva sua força e sua razão de ser. Em quem reside então a soberania? No tolerante ou no tolerado? De uma comparação mais poética do que exata tem-se querido tirar um argu­mento em favor da doutrina que combato: busca-se a analogia entre a sociedade e a família; o governo toma o papel do pai, e donde este deriva o seu poder quer-se fazer derivar o poder daquele. Há antes de tudo uma grande diferença: o pai precede à família, o governo sucede aos governados. A autoridade do pai tem sua origem na lei natural da necessidade; ninguém lha poderia disputar. Quem dirigiria a família em seu lugar? Os filhos? Se houvesse mais de um, qual deles? Em que idade poderia o filho assumir as funções de pai? Na idade em que ele naturalmente escapa ao domínio paterno, porque vai por sua vez ser pai também. Depois, na família as necessidades são limitadas e idênticas: a inteligência de um só pode bastar para as satisfazer: na sociedade é o contrário; sendo os interesses mul­tiplicados, é mister que todos eles advoguem a sua causa, sob pena de ficarem esquecidos; daí a necessidade indisputável da participa­ção de todos na formação e direção do governo. É pois na própria heterogeneidade dos princípios, convicções e desejos, que importa para o Sr. Navarro a negação da soberania do povo, que se deriva a sua existência nele.

Das próprias palavras do autor se está verificando o que acabo de afirmar, se é, como disse a princípio, que ele não confunde a soberania com o poder: a soberania, diz ele, reside neste ou naquele, conforme a disposição do pacto social. Mas esse pacto social que precede a tudo de que direito existe? Donde tira sua razão de ser? Por que é necessário um pacto social anteposto a tudo, para dar a este ou aquele tais e tais direitos?

Como um último refúgio à doutrina que sustenta o autor, resta só alegar que a soberania pode originariamente residir no povo, mas que ele passa a seus delegados em virtude dos pactos que se estabelecem.

Segundo Lammenais, a soberania não é senão a independência mútua dos homens em razão de sua igualdade essencial e nativa: ora, ninguém se pode despojar de sua independência, direito inerente à nossa natureza. De que serviria obedecer de fato, se se ficaria livre de direito? A liberdade de querer importa a impossibilidade de delegar a vontade.

Admira tanto mais a sustentação de doutrinas opostas a estas, quando os debates dos publicistas modernos têm esclarecido a questão por tal arte, as exigências da lógica estão tão plenamente satisfeitas, que parece impossível qualquer novidade sobre o assunto; a volta às doutrinas antigas é uma obstinação que só se explica pelo desconhecimento do caminho que levam às idéias do século.

Discutida a doutrina, cabe agora entrar numa questão de aplica­ção, numa questão de fato.

“No sistema por que somos regidos, diz o autor, o monarca é o único em quem reside a verdadeira soberania”.

O art. 12 do tit. 3º de nossa constituição desmente sem réplica ao Sr. Navarro. O art. 10 do mesmo título diz:

“Os poderes políticos reconhecidos pela constituição do Império do Brasil são quatro: o poder legislativo, o poder moderador, o poder executivo e o poder judicial”.

O art. 12 acrescenta:

“Todos estes poderes no Império do Brasil são delegações da nação”.

Sem sair do mesmo período em que se acham as palavras acima citadas, encontra-se ainda um outro princípio que contradiz os preceitos constitucionais:

“..., as leis por ele elaboradas (poder legislativo) podem ser ou deixar de ser sancionadas pelo verdadeiro soberano...”

Eis a reposta que a isso dá a lei fundamental no art. 65, cap. 3° tit 4º:

“Esta denegação (à sanção das leis) tem efeito suspensivo so­mente; pelo que todas as vezes que as duas legislaturas que se seguirem àquela que tiver aprovado o projeto (não sancionado) torna­rem sucessivamente a apresentá-lo nos mesmos termos, entender-se-á que o Imperador tem dado a sanção”.

De um simples limite, de um preceito que regula apenas o exer­cício do direito, quis o autor concluir a sua negação.

Não são poucos em todo o livro os pontos em que, como nos que ficam citados, o autor levou tão longe a exageração, que ela tem laivos bem visíveis de pouca sinceridade: é este para mim o mais grave defeito do seu trabalho. Para encobri-lo não basta mesmo às vezes a obscuri­dade de certos períodos onde as idéias se baralham, se repetem, se contradizem, por meio de uma sinonímia pouco estudada, ou pelo emprego de termos cujo valor o autor parece desconhecer. Exemplifi­quemos:

“Finalmente os delegados do povo gozam de prerrogativas desti­tuídas de força, e que se reduzem a um simples direito.”

Há aqui evidentemente desconhecimento do valor das palavras prerrogativa e direito.

“Os pactos fundamentais dos povos são ao mesmo tempo leis e instituições políticas.

“A criação de um cargo civil ou político qualquer é uma instituição; as regras prescritas sobre os direitos e deveres políticos também são instituições”.

Qual é pois a diferença entre lei e instituição? O que é regra e o que é lei? O que é pacto político e o que é lei política?

Ou estas proposições são de uma frivolidade imperdoável em sua obra a que seu autor assinala um fim tão elevado, ou não tem sentido algum.

“O poder deve resistir na liberdade, assim como esta deve residir no poder; mas nem a liberdade nem o poder se podem manter desde que não há entre eles harmonia”.

Busco debalde neste período o sentido do verbo residir e a natureza do poder de que se trata: duvido até que o autor ligasse qualquer sentido a essas duas proposições.

Há ocasiões mesmo em que a obscuridade toma quase o lugar do absurdo. Falando da independência que define — o princípio de força e atividade inerente à organização do homem, e esse império que tem este sobre suas ações, pelo qual pode fazer o que lhe aprouver sem o auxílio de qualquer impulso estranho, o autor acrescenta que se não existisse esse império tão eficaz e pronunciado, o homem não se submeteria à lei, sob a qual conserva a liberdade de ação sujeita ao dever de obediência que tem jurado a mesma lei, e daqui concluir que o homem pode física, mas não moralmente! Como corolário junta ainda que há por isso duas espécies de independência, uma física, e outra moral ou de direito!

É o temor de não haver bem entendido a passagem citada que me impede de a declarar com franqueza absurda. O que porém se deduz claramente deste e de outros trechos é que o autor está pouco ao corrente daquilo que se tem aceitado como verdade em questões psicológicas.

Não repito outros exemplos, porque eles me arrastariam na dis­cussão mais longe do que desejo, e não quero exceder ao fim a que me propus. Peço ao autor que acredite que não tenho a pouca modéstia de pretender prejudicá-lo apontando este ou aquele defeito ao seu trabalho; e aproveitando esta palavra trabalho, direi alguma coisa, que servirá de elogio ao seu livro, e que tem uma aplicação geral a certas doutrinas que corvejam na nossa atmosfera literária, e de que tem sido vítima mais de uma boa intenção.

Arvoraram nesta terra a preguiça em modéstia e o trabalho em vaidade; e os que têm por único título a primeira, julgam-se com direito de atacar os que se dão ao segundo. Há vaidade em criticar, há vaidade em escrever, há vaidade em traduzir, quase que há vaidade em pensar.

Aparece um trabalho qualquer: tudo quanto não for repicar ime­diatamente todas as campainhas da lisonja, e enfumaçar o nome do autor com o incenso da mais beata admiração, é uma prova de arrojo que suscita o mais amargoso despeito.

Criticar!

E os teus próprios defeitos? Vaidoso! — Como se a crítica não fosse um trabalho tão legítimo como outro qualquer; como se não fosse um meio de estudo, e dos mais proveitosos; como se não fosse nos defeitos alheios que melhor se aprende a corrigir os próprios; como se afinal todo o trabalho não supusesse crítica! Para mim creio que é tão vaidoso quem escreve um artigo de crítica como quem escreve um romance ou um drama. Se, quando escreveste um livro qualquer, não comparaste as idéias que nele emitiste com as que outros emitiram; se não procuraste apresentar alguma coisa que te lembrou de bom, e que vai corrigir alguma coisa que viste em outros de mal; se não tentaste imitar o que viste de perfeito e corrigir aquilo que viste de defeituoso; se não te discutiste a ti próprio e se não discutiste os outros, isto é, afinal de tudo, se não criticaste, se não exerceste a crítica em toda a sua amplitude; com que título apresentas o teu trabalho? Pois publica-se um livro como se correm os dados: para ver o que sai?

Se exerceste a crítica, e exercendo-a chamaste a tua obra — Romances, Drama, Versos, História, sem que ninguém te suponha pretensioso por isso, donde vem que queiras dar ao teu trabalho o prestígio da cabeça da Medusa, que petrificava aos que a encaravam? E donde vem ainda que aceites sem reparo a crítica que elogia, e que negues a legitimidade da crítica que censura? Para que uma faça honra, é preciso que se autorize com as mesmas qualidades da outra, e se elas se apresentam vestidas dos mesmos dotes, por que abraças a primeira e repeles a segunda?

Há pouco vi um escritor (que escrevia um artigo de crítica!) admirar-se ironicamente de que uma corporação literária se tivesse animado a dirigir censuras, a propósito de certo trabalho, a um indivíduo que havia criticado o trabalho de outrem!

De maneira que, para que qualquer censure um trabalho alheio, do valor de uma tradução, por exemplo, é mister acreditar-se a si próprio tão perfeito no gênero de que se trata, que tire a um terceiro a coragem de lhe dirigir censuras por seu turno! Em que conta não é mister que o autor do artigo tenha o primeiro censurado!

São todas esta teorias que escandalizam o bom senso, e que revoltam a tolerância mais decidida, que truncam as aspirações mais lisonjeiras, e que matam as vontades firmes. Por minha parte faço timbre em não acoroçoá-las, e antes as combato sempre com todas as minhas forças. Num trabalho vejo antes de tudo o esforço que o produziu, e não entro pelas intenções alheias senão quando elas francamente se revelam: no ponto de vista literário quem supõe as intenções boas erra apenas uma vez sobre cem. E assim que procedo, e nas obras que merecem mais a minha desaprovação pela sua forma ou pela sua idéia tenho sempre muito que aplaudir quando me ocorre o esforço que foi mister para produzi-las, e a intenção que presidiu a esse esforço.

É por isso que, pondo de parte o merecimento da obra, que fica sujeito a juízes mais ilustrados, aplaudo o livro do Sr. Navarro como esforço, como revelação de atividade. Pelo pouco que fica dito ninguém está autorizado a antecipar juízos sobre a obra.

Eu noticio, leiam-na.

ALMEIDA

 

REVISTA BIBLIOGRÁFICA. EXERCÍCIOS POÉTICOS DE FRANCISCO MUNIZ BARRETO[12]

  

Eis-me aqui um livro sobre o qual posso escrever sem o mais leve escrúpulo.

Não se trata de um nome novo, nem de uma reputação indecisa. É um poeta conhecido, vitoriado por longos triunfos, desencantado mesmo das visões passageiras da glória, e que, farto de seus proveitos fugitivos, vem hoje em busca de proveitos reais: vende os versos que cantou, e deles não quer mais senão aquilo que lhe possam dar em espécie.

Eu não armo ao louvor, armo ao dinheiro”.

É este o pensamento, a idéia, o fim do livro.

Confessando-o, o poeta julga ter feito tudo, e espera salvar-se com a ingenuidade de Filinto.

Não o consegue.

Colocado na condição de simples mercadoria, o seu livro perde a grande qualidade das boas obras, perde a única qualidade que salva as obras más: — a crença do autor no seu trabalho. Há uma grande diferença entre um livro que se publica e um livro que se põe à venda.

Escuso ressalvar-me contra os arroubos de romantismo que me vão sem dúvida imputar.

É tempo, mesmo para que se esteja a salvo daquilo que chamam ficções da escola romântica, de tomar as idéias como elas são repre­sentadas, de tomar as palavras no seu sentido próprio. Há muito que os prólogos dos livros são tidos na conta de uma página mentirosa que se escreve para engrossar o volume. Ao menos acredite-se naqueles que são os primeiros a pronunciar-se contra esta prática: o autor de que me ocupo é um desses. Acredito que ele não incorreu na falta que assinala. Falou a verdade; escreveu para vender.

Eis o modo por que ele compreendeu a sua missão de poeta. Fique julgado pela sua confissão.

Por essa confissão pressente-se, sem lhe ter lido um verso, a escola a que o poeta pertence.

A leitura não desmente essa idéia; o vulgo chama aos trabalhos desse gênero — obra de carregação. — Há rigor nessa frase aplicada ao livro do poeta mais popular da Bahia; mas o Sr. Muniz pertence sem dúvida à escola daqueles que materializam a poesia, fazendo dela uma questão de ritmo e de consoantes.

E esta a sua grande falta.

O esforço quase material que produz o verso está muito longe da faculdade que produz a poesia.

Além disso, há certo gênero de poesia que tem apenas um valor todo relativo: — é a poesia da ocasião e da localidade.

O Sr. Muniz tem sobretudo uma reputação fundada de grande repentista. Não era mister sabê-lo de antemão; sente-se, à leitura dos seus versos, a facilidade oca do improvisador; sente-se uma idéia rara, que de vez em quando lampeja, aproveitada, esticada, repisada muitas vezes na mesma poesia, no mesmo assunto. Isso dá em resultado uma monotonia que escapa quando se ouve o poeta recitar na mesa do banquete, junto ao féretro, no meio da multidão, na hora do prazer, na hora da dor, na hora do entusiasmo. No volume porém, de página em página, é impossível resistir à fadiga que dela resulta.

Está nisso todo o segredo do improviso. Saia o verso cadente, o consoante estudado, vista, ainda que desmaiada, a cor da circunstância e do lugar, e o efeito não falhará: abundarão as lágrimas que já corriam, raiarão mais belos os sorrisos que já se abriam, acender-se-á mais brilhante o entusiasmo que já reinava. Mas o lampejo, filho do momento, morreu com ele: nada fica, se assim me posso exprimir, da poesia do verso; resta unicamente o que ele tem de material: — o ritmo das sílabas, a harmonia dos consoantes.

Estou já ouvindo o nome de Bocage invocado como um desmen­tido ao que fica dito.

A resposta é fácil.

O talento de Bocage foi um fenômeno intelectual que raras vezes se repete; e a escola que o arremeda, pensando que o copia, não se pode autorizar com aquela exceção.

Havia em Bocage dois homens: o poeta e o repentista: ambos fenomenais na sua qualidade. E direi meu pensamento inteiro: — o segundo estragou muitas vezes o primeiro. Muitas vezes o improviso matou nele a poesia, a forma sacrificou a idéia. Se o improviso não andasse em moda na sua época, Bocage teria sido muito maior poeta do que foi, o que quer dizer que adquiriria proporções gigantescas. Bocage teria sido não a transição da escola clássica na língua portuguesa para a escola romântica, mas o tipo, a encarnação desta última.


Como improvisador, e improvisador que não pode querer uma comparação com aquele de quem acabo de falar, o autor dos Exercícios Poéticos perdeu com a publicação de seus versos, que têm todos a palidez dos corpos sem vida, a desanimação da palavra sem idéia.

O livro que tenho diante dos olhos divide-se em três partes por ordem dos assuntos: — natalícios, epitalâmicos, elegíacos. — O poeta, estimado por suas qualidades pessoais, tem um círculo muito extenso de amigos, para os quais unicamente parece afinada a sua lira; ela tem um eco constante e infatigável para responder a todos os seus prazeres e a todas as suas dores. Assim na primeira parte vereis uma saudação jubilosa a quase todos os dias do ano, nos quais o poeta vê o sol brilhante, a natureza em risos, uma festa universal, porque nasceu um filho a um amigo, casou-se uma parenta, ou faz anos um compadre. Voltai a página: a humanidade traja luto; baixou à campa um gênio. Voltai outra, outro gênio. Voltai mais, ainda outro.

Vê-se bem que o poeta se sacrifica a suas afeições, sacrificando a verdade. Estas exagerações estão longe da natureza, e fazem crer que o cantor não sente o que canta.

Quando apontei aquilo que bastava para fazer um improvisador, e que aceitei a reputação de que como tal goza o Sr. Muniz, fiz implicitamente o elogio do mérito que ele possui no seu gênero. Para que não pareça que me empenho em fazer salientes os defeitos esquecendo as qualidades, devo dizer que o ouvido mais exercitado procuraria debalde a falta de uma silaba, um erro de acento, de cadência, um consoante falso em todo o volume; sente-se realmente, ao percorrer-lhe as páginas, que a poesia não corresponde ao verso. O artista prepara os moldes com rara perfeição, a figura sairia perfeita, dispensaria os retoques do buril e do cinzel. Mas neste ponto ele pára; falta-lhe a matéria para encher esses moldes.

Tome-se ao acaso qualquer de seus sonetos, esqueça-se por um momento a idéia, e não achará em parte alguma dos da última escola portuguesa, nada de mais redondo, de mais cadente, de mais fiel aos preceitos da arte de metrificar.

Eis aqui um belo exemplo do que acabo de dizer: citando-o, devo acrescentar que mesmo pelo que diz respeito à idéia é este um dos melhores sonetos do Sr. Muniz:

“A estrela que saudei quando brilhante

De luz a terra em seu zênite enchia,

Se ao seu ocaso declinando eu via,

Saudá-la sempre costumei constante.

À rosa que afaguei no ledo instante

Em que viçosa e festival sorria,

O mesmo afago no seguinte dia

Nunca deixei de tributar amante.

Assim contigo praticando agora,

Dou-te, senhora, aos dotes soberanos

Louvor e culto que te dera outrora.

Tu foste a estrela e rosa dos Baianos;

Cantei no teu zênite a tua aurora,

No teu ocaso cantarei teus anos.”

Nos versos soltos achar-se-á a mesma facilidade: as palavras moldam-se e acomodam-se perfeitamente ao metro.

Talvez o esforço que foi preciso ao Sr. Muniz desperdiçar para conseguir esta certeza e facilidade prejudicasse o poeta em proveito do versejador; talvez que com ele tenha sucedido no todo, como a muitos outros, aquilo que a Bocage sucedeu em parte.

No fim do volume o poeta aborda uma dificuldade toda clássica: escreve uma metamorfose. Aqui sou forçado a dizer que tudo se desmente, até as qualidades que acabo de mencionar. Uma série de cacófatos ridículos fazem perder todo o dramático da composição: um excesso de cor local desfaz-lhe toda a ilusão.

Era aqui o momento de fazer citação de alguns trechos; mas não quero prejudicar de modo algum a leitura do livro.

Depois do que fica dito, devo acrescentar: este juízo não é um juízo desesperado a respeito do Sr. Muniz. O seu prólogo nos promete ainda mais dois volumes. Cantarei talvez com prazer a palinódia. Será uma fortuna. O nome do Sr. Muniz era como uma glória literária, se não do país, ao menos de sua província. É pena vê-la desmentida. O sacrifício que faço arrostando a opinião de que goza esse nome garante a sinceridade do meu juízo. Se eu estiver em erro, perderei mais com ele do que há de perder o Sr. Muniz, se a verdade estiver do meu lado.

ALMEIDA

 

REVISTA BIBLIOGRÁFICA DO SR. ALMEIDA SOBRE OS MEUS EXERCÍCIOS POÉTICOS[13]

                                                                                             

Francisco Muniz Barreto

No Correio Mercantil do Rio de Janeiro, jornal da propriedade do meu parente, o Sr. Dr. Joaquim Francisco Alves Branco Muniz Barreto, foi publicado sob n° 153, de 4 de Junho último o escrito que me serve de tema.

Admirou aqui a todos que em tal gazeta me viesse uma crítica tão pessoal, tão extemporânea, tão mordaz e malévola como essa assina­da por um Sr. Almeidinha. Eu, ao contrário já esperava do Correio Mercantil esse generoso obséquio, pelo modo por que me tratou, durante a sua primeira estada nesta cidade, e se despediu de mim, o Sr. Dr. Joaquim Francisco, em cujo eterno desagrado incorri pelas minhas opiniões acerca de sua estrada de ferro, não obstante haver-me nesse negócio, por consideração a S.S., conservado sempre neutral.

E esperava-o ainda mais, depois da lisonjeira notícia da publica­ção dos meus versos, dada muito de indústria pelo dito jornal, a cuja redação, por isso mesmo, ofereci um exemplar do meu primeiro volume para o censurar a seu cômodo.

Isso suposto, unicamente para provar que a Revista do Sr. Almei­da é mais uma sátira de despeitosa encomenda, com o fim de desacreditar o meu livro e diminuir-lhe a saída na corte, que uma crítica razoável e justa, de espontânea devoção literária, vou dar-me ao trabalho de analisar alguns de seus pontos.

Principia o nobre escrevedor da Revista por querer classificar de uma infâmia o que em mim não passou de uma ingenuidade, que muitos louvaram, e em Filinto consideraram todos uma facécia:

“Eu não armo ao louvor, armo ao dinheiro”.

Certamente, ponderadas as razões que a esse respeito dei no prólogo, só a mais requintada malevolência poderia atacar-me por essa confissão singelíssima.

Em tom dogmático diz o Sr. Almeida — que não conseguirei salvar-me com a sinceridade do Píndaro português! — Mas salvar-me de quê? Da maledicência do metamorfoseado jornal da Pacotilha?! Ora isto faz rir!

No mesmo tom decide o Sr. Almeida que — o meu livro perde a única qualidade que salva as obras más, a crença do autor no seu trabalho. E como queria S.S. que houvesse em mim essa crença, sendo eu não só uma mediocridade em poesia, como me julgo, e no meu prefácio confessei francamente, mas até uma nulidade poética, como S.S. me avaliou? Além disso, eu não escrevi para publicar: publiquei o que estava escrito, pelas considerações que já disse. O desabrimento com que neste assunto se pronuncia o Sr. Almeida faz crer que muito se afligiu ele com a minha modéstia, que é talvez um sarcasmo à demasiada confiança que S.S., também mediocridade em letras, pelo que mostra, tem por ventura em si.

Escrevi para vender — acrescenta o Sr. Almeida. E o que tinha isso, ainda quando assim fosse? Começando pelo ilustre folhetinista e o seu amável Correio Mercantil, todos escrevem para vender, e até há quem se venda para escrever. A verdade é que raros falam como eu falei.

Não me arrependerei jamais de haver imitado a ingenuidade de Filinto: deixe-me o Sr. Almeida com ela, e fique-se com a sua fidalguia tola, condenada pelo visconde de Almeida Garrett em a nota referida no meu pobre prefácio.

“Por essa confissão (continua o Sr. Almeida) pressente-se, sem lhe ter lido um verso, a escola a que o poeta (obrigado) pertence! Pois quê! Só a escola clássica mercadejava com todas as letras?! Não mercadeja o próprio Sr. Almeida, que é da romântica, com os seus folhetins, etc, etc? Muitos escritores e poetas da Europa pertencentes à nova escola, não traficam com os seus escritos, com os seus versos, e do produto deles não subsistem? Com efeito, não haverá quem leva às lampas ao Sr. Almeida em escrever de oitiva! E era necessária a confissão para presentir-se o que aliás pelo simples título do livro Clássicos e Românticos já estava sabido?! O que cumpria ao Sr. Almeida era mostrar que eu só pertenço a uma escola (a antiga), e não a ambas, como na minha introdução aventurei-me a dizer. Mas isso era mais difícil; e ainda quando o pudesse o Sr. Almeida bem demonstrar, não se cansaria com esse trabalho, certamente desnecessário para quem só quer maldizer.

O tal pressentimento, e logo adiante o apelido de obras de carregação, aplicado aos meus versos, que como uma grande desco­berta apresenta o erudito Sr. Almeida, quando nos meus primeiros anúncios que por aí andaram tão repetidos assim havia eu já qualificado as minhas composições, tudo isso é mais uma prova de que S.S. criticou inteiramente a esmo, e só com o intuito, que fica dito, de desconceituar a obra e prejudicá-la na sua extração.

Confirma também a precipitação e má vontade da crítica o declarar o seu responsável autor — que não é desesperado o juízo que de mim faz, etc! Se isto é verdade, por que não aguardou o Sr. Almeida a leitura dos mais volumes, para à vista deles criticar-me com a devida circunspeção e justiça? Que sofreguidão foi essa de crítica? Que ponto de brio ou de honra o obrigava a antecipar-se?! Pois não bastava que desse S.S. notícia da publicação da obra, reservando o seu juízo para o exame final? Bastaria por certo, se o seu fim fosse criticar o autor e não fazer mal à pessoa que não entoou aqui hosanas ao empresário feliz, embora não se aliasse aos que por força de convicção dignamente o embaraçavam de chegar à estrada que tão pronto e suave caminho lhe oferecia à sua maior prosperidade.

Prova sobretudo a má fé e mesquinho propósito que presidiram a elaboração da Revista Almeida-Mercantil, o dar o seu respeitável signatário como dividido em três partes o livro, que aliás divide-se em quatro, afora a desventurada metamorfose; o que é em crítica uma intolerável inexatidão.

O Sr. Almeida, ou quem o fez instrumento de seus desabafos, só viu os versos natalícios, epitalâmicos, elegíacos e a metamorfose, porque nesses convinha que expiasse o seu autor o crime já dito, e os Exms. Srs, visconde da Pedra-Branca, Barão de São Francisco, e pessoas de suas famílias, a quem são algumas dessas trovas ofereci­das, o delito de assinarem S. S. EEx. a representação da nobre junta de lavoura, que com o Sr. Dr. Joaquim Francisco pleiteava acerca da mencionada estrada de ferro.

Não lhe importou - ao eco do proprietário do Correio Mercantil — que nessas três partes do meu livro estivessem os nomes dos Srs. Drs. Pedro Muniz, Francisco José da Rocha, etc, que na Assembléia Provincial foram favoráveis ao pretendente da corte. Dirá este, dirá o seu caro folhetinista, que nada tem com os últimos senhores isso que só deve entender-se com os primeiros, e também com o Sr. Dr. Luiz Antônio Barbosa de Almeida, primo e cunhado do Sr. Dr. João Barbosa, e a Exma. Sra. D. Adélia, irmã do Sr. Francisco Justiniano de Castro Rebelo, que lá estão nos epitalâmicos. Os Srs. Dr. João Barbosa e Castro Rebelo foram com o Sr. Dr. Fernandes da Cunha na Assembléia Provincial os mais valentes impugnadores da pretensão do Sr. Dr. Joaquim Francisco; e eu não devia fazer a este senhor o acinte de publicar no meu livro louvores a pessoas das famílias de semelhante gente.

Os versos escritos em álbuns, que fazem a quarta parte do livro, esses sim, não continham nomes odiados, e ao contrário brilhavam neles os das Exms, esposas dos Srs. senador Gonçalves Martins e Dr. Manoel Dantas, amigos prestantes do cortesão coroado com os louros da estrada de ferro; e pois escondeu-os a deferência aos olhos perspi­cazes do folhetinista do Sr. Dr. Joaquim Francisco, que os deixou passar sem censura, ou antes com silenciosa aprovação.

A exceção das duas referidas senhoras, de cujos louvores, como fica dito, se não ocupou a Revista, considera o Sr. Joaquim Francisco, ou por ele o seu ajudante, indignas de elogios todas as pessoas cantadas por mim, quando diz: — Vê-se bem que o poeta (obrigadíssimo) se sacrifica às suas afeições sacrificando a verdade. — Em nome dessas pessoas de minha amizade, em nome do próprio Sr. Joaquim Francisco, cujo pai e irmão tiveram como último tributo de estima e afeto as minhas endeixas, protesto contra essa insolência, contra essa injúria que se lhes faz. Por minha parte perdôo ao Sr. Almeida a temerária suposição de que canto para adular, que é o mesmo — que não sentir o que canto, - atendendo a que julgou-me S.S. por si, que se presta a escrever ou assinar sátiras por satisfazer a caprichos e vinganças de outrem.

Que é sátira e não crítica a Revista, denuncia-o, além do mais, o seu — vereis uma saudação jubilosa a quase todos os dias do ano, etc. — Esta e outras hipérboles mais parecem de um murmurador insípido que de um crítico circunspecto e imparcial.

Ainda algumas palavras acerca do — cantar sem sentir.

Que eu somente canto a quem no meu entender o merece; que espontânea é sempre a voz da minha lira ou do meu alaúde; que, em suma, não elogio a ninguém por cálculo vil; sabem-no felizmente todos que me conhecem, e é disso mais um testemunho a minha constância na oposição às idéias que uma vez combati. Daí as privações com que sempre luto; daí o estado em que ora me vejo sem perceber como funcionário um real, etc.

Ainda bem recentemente dei aqui dessa minha altivez e inde­pendência uma prova.

Quando veio a esta sua terra, da qual nunca até então se lembrou, o referido meu parente, Sr. Joaquim Francisco, com a sua pretensão da estrada de ferro, nem prestei a S.S. os elogios e serviços que, no pensar de alguns, devia-lhe eu tributar, nem recebeu de mim O Paiz, periódico que fazia oposição vigorosa, a saudação poética que com instância me pediram alguns dos meus amigos e aliados políticos. Estes não levaram a mal a recusa, não se enfadaram comigo; mas não sucedeu assim com o meu nobre e honrado parente, que nem a visita me pagou, e, retirando-se para a sua corte, despediu-se de mim na Alfândega, por ocasião de ir ali falar ao seu inspetor!

Ainda mais. No baile que deu o Exm. visconde da Pedra-Branca de saudosa memória, em aplauso ao nascimento e batismo de seu neto, o primogênito do Exm. Sr. visconde de Barral, quando todos, começan­do pelo nosso literato e sábio prelado, se dirigiam a mim para felicitar­me pelo canto que então recitei, o dito Sr. Joaquim Francisco, encon­trando-se comigo, nem uma palavra me deu, e tratou-me o mais seca e friamente possível

Os que nessa ocasião estranharam e reprovaram tais modos, atribuindo-os a mero despeito, por ser a minha trova em obséquio ao velho proprietário, que brioso assinara a representação da ilustre junta de lavoura já referida; esses, digo, que olharam a ida do Sr. Joaquim Francisco a semelhante baile como um forçado cumprimento cortesão, lendo agora o que diz o Sr. Almeida em menosprezo dos amigos por mim celebrados, e sobretudo refletindo naquele muito positivo — por­que nasceu um filho a um amigo — da sátira de S.S. a quem não escapou a única trova que produzi nesse assunto, concluem que o mesmo despeito que outrora influíra para a silenciosa e fria maneira por que o Sr. Joaquim Francisco no sobredito festim me tratara, influiu ainda para o seu escrevedor de revistas, condenar as minhas canções natalícias, e também as de morte, onde está a vênia ao mesmo Sr. visconde da Pedra-Branca, a quem nunca perdoará de coração orgulhoso empresário a assinatura do papel contra ele.

Diz o Sr. Almeida falando da minha lira: Ela tem um eco constante e infatigável para responder a todos os prazeres e a todas as dores dos seus amigos.

Como se concilia isto com o — cantor não sente o que canta — do mesmo senhor?! Entregando ao juízo dos leitores essa contradição, que muitos apontam, aceito a proposição do Sr. Almeida, e muito me desvaneço que tenha a minha lira esse eco tão nobre e não santo. Eco infatigável e constante para responder, como outros, a todas as conve­niências de um ministério que satisfaça a minha ambição é o que peço a Deus que me livre de ter.

Como improvisador (prossegue o Sr. Almeida) e improvisador que não pode querer uma comparação com aquele de quem acabo de falar (Bocage) o autor dos Exercícios Poéticos perdeu com a publicação dos seus versos, etc.

A minha nota, favor que sempre tive, e terei por imerecido, escrita no epicédio à morte do Sr. José Francisco Cardoso de Moraes, em referência à semelhança que me dava ele, assim como o senador Paulo José de Mello e outros, com Bocage, escusava essa intimação do Sr. Almeida — que não pode querer, etc —. O Sr. Almeida quis porém fazer-se em tudo singular e notável. Quando os próprios literatos portugueses, como o Sr. desembargador Adriano Ernesto de Castilho, literato mais abalizado, e pelo menos mais conhecido que o Sr. Almei­dinha, não se designam de comparar-me com o seu famoso improvisa­dor, proíbe-me categoricamente S.S. aceitar essa comparação, que, como já disse, nunca aceitei! É sina dos Brasileiros serem mais estima­dos pelos estranhos do que pelos seus. Os meus cantos à morte de uma minha filha e à Marília de Dirceu mereceram do Sr. Mendes Leal, que pode dar lições de literatura, e principalmente de crítica, ao Sr. Almeida, ao seu patrão e a muitos que escrevem por cá, a honra de os transcrever na sua Imprensa e Lei, dizendo no seu belo artigo a respeito deles: “Em ambos há a sensibilidade da poesia ou a poesia da sensibilidade”. O meu Hino à Mulher mereceu igualmente que o referido Sr. Adriano Castilho, depois de aplaudi-lo com entusiasmo vivíssimo, dele com a melhor instância me pedisse uma cópia para mostrá-lo a seus ilustres irmãos e a seus amigos.

O Sr. Almeidinha só achou nessas e em todas as mais canções do meu livro a palidez dos corpos sem vida, a desanimação da palavra sem idéia!!! Apenas agradou um soneto! Nada disso admira; o que muito se nota é que, não tendo ainda saído à luz o volume dos meus improvisos, que é quando com exatidão se me pode julgar bom ou mau repentista, afirma-me já o nosso Alexandre Herculano da Pacotilha que, como improvisador, perdi eu com a publicação dos meus versos! Ignora por ventura S.S. que há improvisadores que são melhores nos seus repentes do que nas suas produções meditadas? Ignora que há pessoas que são mais poéticas e eloqüentes falando do que escrevendo? Valha‑nos Deus!

A respeito dos calculados louvores que me dá o Sr. Almeida de bom metrificador, devo asseverar-lhe que, se realmente o sou, nenhum esforço ou estudo fiz para isso, como supõe. A natureza, que me não fez poeta, pecado do qual S. S. tão cavalheirosamente ainda me acusa, depois de havê-lo eu já confessado no meu prólogo com a maior humildade; a natureza que a S.S. prendou com uma inteligência feno­menal, havia comigo também repartir algum de seus dotes: e, pois, deu-me esse de metrificar e rimar com facilidade, que aliás não têm outros talvez estimados por S.S., como grandes poetas.

E todavia, na minha infeliz metamorfose oferecida ao Exm. Sr. barão de São Francisco, um dos membros da Junta da Lavoura e primeiro signatário da representação já citada, e a seu digno filho, o Sr. Dr. Balthazar de Araújo Bulcão, também estrênuo adversário do Sr. Joaquim Francisco, na Assembléia Provincial, desmenti eu para o mestre Sr. Almeida essa mesma qualidade de metrificador, que em mim se reconheceu ele no mais alto grau, e não achou S.S. na pobrezinha nada que prestasse, e ao contrário nela só enxergou uma série de cacófatos ridículos, que lhe fazem perder todo o dramático da composição; um excesso de cor local que desfaz-lhe toda a ilusão, etc! Quais serão porém esses cacófatos, quais esses defeitos de ritmo, qual esse excesso de cor local, etc., não apontou, como lhe cumpria, o Sr. Almeidinha; e conclui com a maior sem cerimônia dizendo que não cita alguns trechos da Metamorfose por não querer prejudicar a leitura do livro! Isto (permita-me a expressão) é infame, e, a dar com algum gênio mais férvido, teria sem dúvida uma resposta dessas que o diabo enjeita, e que levam todos os dias pelas verrinas aqueles que, tocados pela maga varinha de ouro, humildes curvam-se hoje ao poder que ontem afrontavam altivos:

“Romanos ontem são escravos hoje.”

Mas eu, que sou velho e pacato; eu, que apesar de tudo respeito o amanuense do meu parente, seguindo aquela santa advertência do meu bom Filinto,

“Paixões não são de lucro; as paixões nossas

 São pratos com qu'os críticos engordam”,

satisfaço-me em rir, sobretudo da tal achada de cacófatos; com que ainda não dei, com que ainda não deu ninguém que tem lido de novo a Metamorfose a ver se os encontra, concordando todos em que entendeu por cacófato o Sr. Almeidinha o nome próprio do rio - Acu — que não me competia alterar!! Esta é célebre!

Remata a sua memorável Revista o Sr. Almeidinha com expressões e lances de cortesia estudada, de que não usou ao princípio. Ao despedir-se dos leitores, sem dúvida por melhor iludidos, — tem S.S. por uma fortuna o poder talvez com a leitura dos outros meus livros cantar a palinódia; sente ver desmentida a glória que no meu nome contava, se não o país, a minha província; compara a sinceridade do seu juízo com o sacrifício que faz arrostando a opinião de que gozo; e finalmente declara que, se estiver em erro, perderá mais do que eu perderei, se a verdade estiver do seu lado.

Reconhecido o fim malévolo da Revista — Joaquim-Almeida, — quem haverá tão inocente que espere que o seu autor se desdiga do que contra mim escreveu? Pois se fossem boas as intenções do Sr. Almeidinha, não aguardaria ele essa leitura que diz, para, como crítico circunspecto, dar um juízo que ao depois não se visse obrigado a contrariar? Ou será que, satisfeita a vingança do seu patrão, queira o Sr. Almeidinha contentar-me com a tal palinódia para destarte ficar bem com um e com outro, e também com o público, que em geral indignou-se com a sua façanha bibliográfica? Que engano, ou antes que miséria do Sr. Almeidinha! Por minha parte fique S.S. convencido de que com a mesma indiferença com que recebi as suas dentadas de cão de palácio receberei as suas assopraduras de morcego de corte.

Com o afetado sentimento de ver desmentida a glória do meu nome, quis o Sr. Almeida dar-me já por desacreditado como poeta; fato possível, sim, mas que por ora não passa do seu juízo, e este tão incompetente com suspeito. Eu disse no meu prólogo, à pág. 10: “Que pouco me importava que a posteridade reformasse, se o entendesse, a setença dos que me julgaram poeta; que o meu consolo era que nessa reforma haviam de ter a mesma sorte da minha muitas outras reputa­ções pânicas, devidas ao tempo que ali passam ainda em julgado entre nós.” Agora acrescentarei mais uma consolação, e é — que quando o meu nome de poeta for caminhando um dia para o olvido, há de pisar por sobre os destroços apodrecidos da reputação crítico-literária do Sr. Almeida, já condenada ao vilipêndio pelos homens justos e realmente ilustrados que têm lido a sua Revista infamíssima.

O sacrifício alegado pelo Sr. Almeida merece a mesma fé que tudo mais quanto S.S. escreveu contra mim. Quem não vê que o colaborador de um jornal, que não se importa de arrostar a opinião pública com artigos apóstatas e dissonantes da própria constituição, como esse intitulado — Agitação Vassourense — que vem no mesmo número da amável Revista, nenhum sacrifício é o arrostar a opinião de que goza como poeta um simples particular?

Essa opinião com que há trinta anos me honram os meus compa­triotas e alguns estrangeiros, com que noutro tempo me honrava o próprio Sr. Joaquim Francisco, a ponto de mandar-me do Rio de Janeiro pedir por seus amigos poesias para a sua defunta Pacotilha, que Deus haja; essa opinião, digo, perde tanto com o voto deste senhor, assinado pelo seu amigo folhetinista, quanto com a sua apostasia perde a opinião pública legalmente manifestada no digno passo de Vassouras, e nos mais que se irão dando para o real vencimento da causa da liberdade do povo. Do encontro pois dessa opinião de que gozo só pode resultar ao Sr. Almeida o desprezo, que para S.S. nada será.

Daqui se conclui que a perda em que fala S.S. por sua parte é nenhuma. Pela minha se limitará ela à diferença de menos alguns assinantes no Rio de Janeiro, que é no que pode dar a vingança do Sr. Joaquim Francisco, exercida pelo seu rabiscador de Revistas, ante o ilustrado, liberal e brioso público fluminense, que sempre me distinguiu, e ainda distingue com o seu acolhimento e aplauso, e que portanto não deixará de ajudar-me na empresa a que me atirei, confiado nele, no da minha terra, e no das outras províncias que desejavam a coleção das minhas trovas impressa, instando muitos para isso comigo, como já disse e é bem notório.

Quanto ao nome, esse, se desmerecer na estima da aristocracia literária e civil não desmerecerá por certo na do povo, para quem sou poeta, e é quanto me basta.

A vingança do Sr. Joaquim Francisco vai sendo abraçado pelo seu novo partido político. A Época, periódico governista desta cidade, espon­taneamente, ou de encomenda, transcreveu a Revista Bibliográfica do Correio de S.S. É um prévio ajuste de contas pelos meus versos patrióticos, cuja coleção, mercê de Deus, sairá breve à luz no meu terceiro volume, o qual completará a desforra que na última parte do segundo, já quase pronto, começo a tirar destes literatos de estradas e de partidos de enche barriga, a quem a minha única resposta d'ora em diante será o silêncio do desprezo ou o riso do dó escarnecedor que merecem.

Para juízes competentes apelo dessas injustiças vilíssimas, des­ses desabafos mesquinhos: o seu julgamento é que há de decidir o que eu sou. De um de tais juízes, do patriarca das portuguesas musas, o Sr. conselheiro Antônio Feliciano de Castilho, que nas poucas horas que ultimamente aqui se demorou, de volta para Portugal, fez-me a honra de visitar, recebi eu a aprovação verbal do meu primeiro volume, em presença do meu digno primo e amigo, o Sr. Dr. Luiz Maria Alves Falcão Muniz Barreto, irmão generoso do Sr. Dr. Joaquim Francisco. O grande literato e poeta, que sem dúvida está no caso de lecionar nestas matérias aos nanicos escritores do Correio Mercantil do Rio e da Época da Bahia, prometeu-me dar por escrito, logo que chegasse a Lisboa, esse seu voto de aprovação ao que achou de merecimento no meu livro, injustamente condenado, no seu justo entender, pelo Sr. Almeida como nulidade poética. Ao ouvir o que disse o Sr. Castilho a respeito das minhas trovas publicadas nesse livro, que, em geral, S.S. aben­çoou, não pôde o Sr. Luiz Maria deixar de confessar a injustiça da crítica... não da censura mordacíssima da gazeta de seu nobre irmão.

Com esses pareceres, indeclináveis por certo, com os mais que forem aparecendo de julgadores idôneos, com o meu prefácio, e finalmen­te com a carta do literato e poeta visconde de Pedra-Branca a respeito da minha Metamorfose, responderei ao Sr. Almeidinha que certamente não terá a ousadia de contestar, também por despeito ao falecido visconde, a competência que a mesma Europa reconheceu nele para tais assuntos no tempo em que por lá tão dignamente serviu ao país.

Pondo aqui remate a esta resposta, demorada por meus incômo­dos de saúde, por minhas ocupações, e também pelos festejos do imortal Dois de Julho, de que talvez nem se lembre, ocupado como anda com os seus negócios de casa, o Baiano Sr. Joaquim Francisco, observarei desde já um dever de cristão perdoando ao Sr. Almeida a sátira que fez ao meu livro, como perdoou o eterno visconde de Almeida Garrett as que fizeram às suas primorosas Folhas Caídas os seus pessoais inimigos, os invejosos do seu alto engenho poético.

As Folhas Caídas do Sr. Garret deram mais lustre aos zoilos que contra ele conspiraram: talvez que aos meus livros dê mais importância do que na realidade merecem a Revista do Correio Mercantil do Rio transcrita pela Época da Bahia.

A sorte que lhes tiver Deus fadado se há de cumprir[14].

Francisco Muniz Barreto

(do Mercantil da Bahia)

 

REVISTA BIBLIOGRÁFICA. EXERCÍCIOS POÉTICOS, POR FRANCISCO M. BARRETO[15]

  

Os leitores hão de estar esquecidos de um livro que aqui apareceu com o título de Exercícios Poéticos, e sobre o qual escrevi algumas linhas.

Também eu o terei esquecido: pedia-me isso a vergonha que ele me custou. Mas o livro tinha uma continuação, e eu havia prometido acompanhá-lo até o fim. Devo pois voltar ao assunto, uma vez que acaba de chegar-me às mãos o segundo volume da obra, que ainda não é o último.

Peço porém aos leitores que não leiam as linhas que se vão seguir antes de terem lido o artigo a que elas servem de resposta, e que acharão transcrito em seguida. Não é a importância da questão que quero reavivar com isto: é a sua degeneração que busco tornar sensível.

A questão literária suscitada a propósito de um volume de versos, degenerou numa resinga injuriosa, com todo o cáustico do tempero baiano; a outros talvez que ela nem faça arder os lábios, a mim afogueia-me de pejo, e por meus créditos de homem bem criado quero que se saiba donde foi que partiu.

O Sr. Muniz (da Bahia) respondeu, no artigo a que me refiro, àquilo que escrevi quando apareceu o primeiro volume de seus Exercícios Poéticos. Nunca vi tão bem provada a máxima que diz — o estilo é o homem. — Vê-se ali no torneio da frase, no picante das injúrias, no peso dos epigramas, no destempero da lógica, o capadócio de província acostumado ao jogo da palavrada: parece-me que o estou vendo, ao sair da senzala do batuque, de chapéu derreado e viola em baixo do braço, vindo ao terreiro descompor meio mundo, só porque lá dentro chacoteavam dos seus desafinados no garganteio de uma modinha.

Por desairosa a luta torna-se difícil com um adversário destes; a vitória custa pouco, mas a vergonha que é preciso afrontar para alcançá-la custa muito. Depois, tudo para mim é novo numa luta em tais condições: é a primeira vez que provo o amargo da injúria pessoal, é a primeira vez que a manopla grosseira da vaidade ofendida me bate na fronte.

Além disso, que desforço há a tomar contra um velho a quem aos cinqüenta anos ainda não veio a sisudez, contra um Quixote literário, que, enfeitado com os louros que sobram aos acepipes dos banquetes onde canta, pensa ter desempenhado o seu conceito poético porque sabe desenfiar correntemente uma descompostura?

Temo porém que vão tomar por covardia aquilo que em mim não seria senão vexame: em que me custe, devo carregar com a falta de ter tomado ao sério um poeta de sobremesa.

Aqueles que se lembrarem da Revista que publiquei sobre o livro do Sr. Muniz hão de lembrar-se também que não fui além das páginas do volume: ocupei-me dos versos, deixando ressalvada a pessoa do autor. Escrevi sobre o livro e não sobre o homem. Não costumo indagar do parentesco de um escritor para estudar o seu trabalho: estudo literatura e não filiações. Entretanto o Sr. Muniz entendeu dever desa­fogar sobre meu nome seus torpes ciúmes de família, e com os olhos vesgos do despeito, viu num artigo literário a continuação da frieza com que um seu parente o tratara num baile, e uma vingança contra suas opiniões acerca de estradas de ferro! Foi-lhe preciso o desconchavado enredo desta ridícula chicana para explicar a crítica do seu livro. A sua vaidade não o deixou acreditar nos próprios defeitos: era mister achar alguma alta razão de Estado por cuja conta corressem os senões apontados ao seu trabalho.

Descoberta esta razão, engonçado o arcabouço desta comédia da vaidade atordoada, quatro picuetas bem lambregonas fizeram o resto.

Escreveu-se depois uma carta de nomes; vieram à baila as certidões de poetas por cartas particulares; o cantor do povo chamou em seu auxílio toda a nobreza da província; o vate tribuno rodeou-se de barões e de viscondes, e em nome de todos rasgou uma página do Marcos Mandinga, que subscreveu e me mandou em resposta.

Tomando-se de uns brios muito equívocos, e vestindo o mais cediço disfarce da hipocrisia apanhada em flagrante, começa por fingir-se ingênuo, e arremeda uma quixotada muito sem sabor para defender a efígie do seu livro:

“Eu não armo ao louvor, armo ao dinheiro”.

Confessa que nisso não tivera senão a intenção de um gracejo, como querendo desculpar-se do fato: mas sustenta o gracejo em princípio. Eu, tu, nós, vós, eles, todos vendem o que escrevem. A pena é um instrumento de trabalho como outro qualquer, é o utensílio do pensa­mento. Não há nada mais legítimo do que o direito do trabalho à recompensa.

Mas o que é o trabalho?

O salteador que se esconde de dia e vaga de noite, que evita o povoado e se abriga na mata, que arrisca sua vida acometendo o viajante prevenido e armado, que luta, que se afadiga, que sofre, também trabalha.

O moedeiro-falso que estuda as artes mais úteis, que desenha, que burila, que grava, que estampa, também trabalha.

Dareis ao salteador e ao moedeiro-falso o direito de recompensa? Não, porque o trabalho é tudo pela moralidade de seu fim e de seus meios. Não é o braço nem a cabeça que trabalha: quem trabalha é a consciência.

Era esta, a toda a evidência, a significação da censura que fiz nas palavras — escreveu para vender —. Eu queria dizer: — o escritor amontoou páginas sem exame, sem reflexão, sem escolha: quis en­grossar o volume, basculhou seus papéis velhos, e tudo lhe serviu, fez enfim uma obra de carregação. Pensou publicar um livro, e abriu um belchior de coisas inúteis, inúteis para proveito alheio, inúteis para glória sua, mas que, apesar de tudo, se vendem.

Não há bom senso noutra interpretação que não seja esta. Mas era mister dramatizar a defesa, e o autor figurou atacado em sua pessoa o princípio santo do direito que tem o escritor a viver de sua pena, como o alvanel de sua picareta.

Outro destempero não menos cômico é aquele em que se sai o Sr. Muniz pedindo a citação especial de cada um dos defeitos sobre os quais formei o meu juízo. Não lhe foi possível acreditar na sinceridade com que eu disse que não queria com tais citações prejudicar a leitura de sua obra.

Há coisas que se não aprendem de ouvido: é mister senti-las para acreditar nelas. A boa fé é desse número.

Mas esse plano não é novo: peca até, e enjoa por sediço e batido.

Escreve-se alguma coisa sobre uma obra ruim, mas escreve-se procurando a filosofia do trabalho, buscando a sua expressão sintética, o seu pensamento dominante.

“Fora a crítica desleal e catedrática, que impõe o seu juízo sem justificá-lo”, é a resposta.

Segue-se outro sistema: desce-se a analisar o livro página por página, apresentam-se-lhe os erros da gramática, as contradições da lógica, o desconchavo da retórica, o verso mal medido, a oração ininteligível. Desta vez a saída ainda é mais irrisória: “Analisado com esse rigor, respondem, Homero tem defeitos, Virgílio não escapa à censura, Bossuet está no caso de Virgílio!”

Não sei se será uma puerilidade satisfazer a exigência do Sr. Muniz e descer às citações pedidas. Mas quando se discute com certos adversários, é mister pôr de parte o bom senso. Vou pois citar. Não serei longo.

Do canto — A mulher — que o próprio autor se desvanece em recomendar, não citarei senão meio verso: deixarei a palidez da composição, o desenxabimento dos lugares comuns, o abuso das figuras que leva o autor depois de todos os epítetos líricos mais sabidos e gastos a chamar a mulher — alquimia que transforma o ferro em ouro. Não falarei também da idéia de fazer a apologia de um ente atribuindo-lhe a causa de todos os males:

“A origem verdadeira

No mundo só tu és de bens, de males.”

Tudo deixarei de parte para citar unicamente uma prova de que o autor ignora a língua em que escreve, pelo menos a significação das palavras que emprega.

“ .................... Se tu faltasses

...................... Quem suprira

Teu vazio, anjo meu?...”

O vazio de uma coisa não se pode confundir com o vazio que a coisa deixa: o autor quis falar do vazio que a mulher deixaria se faltasse no mundo, e chamou a isto — o vazio da mulher!

O vazio da mulher, dizem todos os dicionários, é a ilharga. Quando esta interpretação não fosse a única verdadeira, quando mesmo por uma retórica muito extravagante a regra dos possessivos pudesse ter a elasticidade que lhe dá o autor, ele devia evitar aquele trocadilho de mau gosto, para não assustar-se com a calamidade de faltar ao mundo a ilharga da mulher!

Falto à promessa de só citar meio verso, citando o mau gosto e falta de apuro com que no meio de uma composição em verso solto se enquadram dois versos rimados, e com a pior rima do mundo:

  “Como mereces

Chamem-te vate, sábios e filósofos;

A mim só cabe, trovador mesquinho

Na lira que afinaste hinos tecer-te

Adorar-te, servir-te e bem dizer-te.

Ainda como prova do gosto do autor, leia-se esta quadrinha de um canto natalício, que parece caída de uma bala de estalo:

“E de ser do céu espero

Teu dia sempre gentil

E tu hás de ser a estrela

Sempre de nosso Brasil”.

Vinte quadras como esta fariam a fortuna de um confeiteiro.

Vejam agora o desleixo imperdoável com que se deixam cair no final de três versos seguidos de três verbos com igual terminação, fazendo a mais triste dissonância: isto mostra no autor um dos ouvidos mais rombos que se possa imaginar.

Trata-se ainda de um canto natalício:

“Cuidavas que tão lerdo e tio eu fosse

Que o não descantasse e não viesse

De improviso quando ele ressurgisse

Dar sobre ti com hinos e louvores.

Queria só falar dos três verbos, e acho ainda aquele — dar sobre ti — tão pouco delicado e tão falto de propriedade. Dar sobre um indivíduo com hinos e louvores vale tanto como se o autor dissesse: — mimoseio-te, obsequio-te com uma enfiada de calúnias, com um tiro, com uma estocada: é uma ironia muito tosca, principalmente numa apologia.

No mesmo canto encontra-se, algumas páginas adiante, uma figura que parece pedida de empréstimo pelo autor a Gôngora em pessoa:

.......................................

“Somente o ouro vil por que se engana:

Mas no anfiteatro de tua alma

Que nobres regem sentimentos puros

Esta da gratidão prova que ofereço

Há de o grau a que aspiro conferir-mo

Na tua opinião, na estima tua”.

Posto este pedaço em prosa e na ordem gramatical, quer dizer: — Esta prova de gratidão que ofereço há de conferir-me no anfiteatro de tua alma, que sentimentos puros e nobres regem, o grau que aspiro na tua opinião e na tua estima.

Isto é a retórica em delírio, renegando o bom senso e maldizendo a gramática.

Um anfiteatro regido por sentimentos puros e nobres, onde se conferem graus de estima, é uma caricatura feita à pena representando o templo do disparate.

Quando há pouco falei em versos de balas de estalo esqueceu-me lembrar uma sextilha que rivaliza com tudo quanto há de melhor no gênero:

“Se a formosura tivesse

A sua aristocracia

Teu natalício por certo

De gala e festa seria:

Se não para o Brasil todo

Ao menos para a Bahia.”

Este verso é nada menos que uma censura feita ao decreto dos dias de gala, que privou o calendário de mais um feriado.

Onde vai aquela musa buscar inspirações? Que pouca elevação! Como a poesia rasteja aqui tão baixa e tão mesquinha!

A propósito de abuso de figuras e de pouca elevação de idéia e de estilo, leiam-se ainda os seguintes versos, que são também uma apologia:

“As esperanças paternais cumprindo,

   Cresceste, e fervoroso

Da melhor Califórnia dos humanos.

Domínio eterno da fecunda Palas

Extraíste o tesouro que guardado

Na mente avulta e te enriquece o nome.”

Não sei o que é mais para admirar neste pedaço, se a pouca elevação da idéia, se a confusão, se a anarquia literária com que se põe a Califórnia no domínio de Palas.

Não termino estas fatigantes citações sem tocar na Metamorfose que fecha o primeiro volume dos Exercícios Poéticos. Como concep­ção, essa peça é vulgar, e recorda tudo quanto no gênero se escreveu de pior. O descuido com que foi escrita toca quase à indecência, pelos repetidos cacófatos a que dá lugar o emprego da palavra Acu. Notarei apenas os mais frisantes, pedindo desculpa ao pudor dos leitores:

“Era Acutinga um anjo e por tal filha

Esmorecia Acu”.

O hiato que obriga a suprimir o — a — da palavra esmorecia, ou o — a — da palavra Acu, dá na pronúncia um resultado muito pouco decente para insistir nele.

Outro tanto sucede com os versos:

“Logo a fazê-lo se prepara a grata

Duplicada visita Acu recebe”.

Farei uma última citação, por já não poder resistir ao vexame que elas me causam:

“Uma tarde que ausente Acu lidava

No costumado trêfego...

Eu sabia que o verbo lidar admite a preposição — a — depois de si, e que se lidava a braço, à mão, etc. Nunca porém supus que a significação do verbo pudesse estender-se tão longe como a levou o mau gosto e a rudez do ouvido do autor.

Penso que me tenho desobrigado para com aqueles que puseram em dúvida a minha sinceridade, apontando o menor número dos defeitos em que fundei o meu juízo sobre o livro do Sr. Muniz.

Quanto ao segundo volume, com duas palavras o condeno: é irmão incontestável do primeiro: descorado, incorreto, frívolo, sustenta a opinião que firmei do autor com um vigor que eu próprio estava longe de supor.

Fico esperando que se apele do segundo volume para o terceiro, como do primeiro se apelou para o segundo. A palinódia que prometi está ainda em suspenso.

Restava-me, voltando-me ao artigo do Mercantil da Bahia, tomar ao Sr. Muniz séria satisfação das recriminações injuriosas que aí me faz: tenho porém sinceros escrúpulos de consciência: não sei se um estonteado, cego pela vaidade, pode ter imputação das grosserias que comete num momento de desatino.

A distância dá coragem ao mais covarde, e anima esse heroísmo da insolência, que muitos tomam por força de ânimo, e que não passa de baixeza de princípios e defeitos de educação.

ALMEIDA

 

ZALUAR[16]

  

Desejo que estas linhas te cheguem às mãos no dia mesmo em que vir à luz o primeiro número do teu jornal. Bem sabes de que abundante espontaneidade d'alma não aplaudo eu o empenho que de agora tomaste: há nele duas coisas que seduzem: a idéia em si mesmo, e o teu nome que vai ligado a ela. Quanto a ti, devo dizer-te que no estado atual do século e sobre tudo em um país como este nosso, não conheço esforço mais digno de uma inteligência ativa e vigorosa do que esse de abrir caminho com a força da palavra na vanguarda das lutas do progresso; nada podes fazer melhor da tua mocidade, da sua consciência, e de tuas crenças do que empenhar tudo no afanoso apostolado da imprensa periódica.

Admiro com orgulho e com entusiasmo todas as grandes coisas da época em que vivemos: pasmo ante as pesquisas implacáveis da ciência com que os sábios de gabinete, macerando a inteligência, violam os segredos mais íntimos da natureza; arrebatam-me as con­cepções da indústria que parece querer formar um outro mundo no mundo, e que tem por assim dizer multiplicado o homem ao infinito, dando-lhe quase a ubiqüidade; extasia-me a fecundidade da poesia, da história e da literatura moderna, que excederam de uma imensa supe­rioridade tudo quanto produziu o mundo antigo, mas de todos esses lidadores — sábios, industriosos, poetas, historiadores e literatos, o tipo não mais admirável porém mais simpático, mais do século, mais original, mais moderno, é o do jornalista periódico.

Abracei essa profissão por instinto quando ainda não lhe podia medir bem toda a importância: obscuro entre os obscuros, não tendo ainda o que ela tem de glorioso /  *  / idéias, vão conhecer-se como partes na mesma causa e por conseqüência estimar-se. O isolamento que força ao egoísmo e a que dá lugar a dificuldade do contato físico, vai desaparecer ante a facilidade do contato intelectual.

A importância usurpada vai cessar para dar espaço à influência legítima, porque cada qual será conhecido pelo seu próprio valor. Até aqui chamava-se fazendeiro mais importante, ao mais violento nos manejos eleitorais e que só desse mérito tirava o direito à preferência que lhe davam sobre os outros. Quando as estatísticas publicadas por uma folha que acompanhar de perto e com vista imparcial a marcha de cada estabelecimento, anunciar e comparar a sua produção anual, os progressos introduzidos, a qualidade relativa dos produtos, essa quali­ficação caberá de certo ao mais produtor, ao mais inteligente, ao mais progressista, e então cada um com títulos autênticos poderá apresen­tar-se e disputar favores, a reclamar proteção e terá de si mesmo a importância que até aqui só se dava de empréstimo. Depois vem a flagelação dos abusos. Neste ponto invoco em favor do bom êxito da tua obra toda a imparcialidade e independência de que te sei capaz: abre sem escrúpulo um respiradouro a todas as queixas justificadas, fala, chama pela boca de todos os que sofrem; não há pertinácia no crime que seja capaz de resistir ao grande castigo da publicidade. A maior tirania dos abusos que se cometem no interior do país, longe dos centros da administração e da justiça, está no mistério de que se acobertam; trazê-los à luz, é puni-los. Que o teu jornal exerça a polícia moral nessas localidades onde a ação da polícia dos códigos não aproveita por longínqua, por tardia, quando não por abusiva, de si mesma. Só estas duas partes de cronista e advogado te valerão um grande mérito, mas há ainda outra, a mais importante sem dúvida dos que tomou a si o jornalismo de hoje: é a do professorado. Um jornal em uma localidade não é só um depositário de fatos diários, onde se acumulam os elementos da história que o futuro há de vir buscar; não é só seu tribunal a que são levadas todas as queixas e onde se distribuem com a prontidão desejável prêmios ao mérito, castigos ao pecado: é também uma escola, onde as lições fáceis, amenizadas e variadíssimas vão procurar elas mesmas os discípulos, seduzi-los pelas suas vocações, instruí-los desapercebidamente e muitas vezes contra a própria vontade. A instrução por meio do jornal é o método mais astucioso e infalível para vencer a ignorância no que ela tem de mais terrível — essa presunção de suficiência que de ordinário se disputa no espírito dos que pouco aprendem. Quando os Americanos do norte querem fundar uma povoação que em poucos meses se torna uma cidade, e em poucos anos um Estado, levam dois instrumentos impor­tantes; uma charrua para lavrar a terra, um prelo para lavrar a inteligên­cia do homem, e com tais meios em aparência limitados, todos sabem que milagres ali se não operam.

Um dia, quando Petrópolis descer pela encosta de suas admirá­veis serranias a vir buscar e unir-se nos vales e no litoral com as povoações que a cercam formando todas um corpo único, e imenso de cidade, quando suas matas enormes se abaterem em quarteirões de moradas, se abrirem em ruas e praças espaçosas, quando as torres das igrejas e os grandes edifícios dominarem as alturas onde agora se balançam as grimpas /  *  /. Quando Vassouras /  *  / que apenas desesperam os egoístas que só têm fé no que lhes é imediatamente pessoal.

Tens em tuas mãos um meio benéfico para a produção do bem, mas se o creio profícuo, devo também dizer-te que o creio perfeito; ele precisa de corretivos que o nobilitem; tendo já tanta, se não tem ainda toda a força desejável, é que há modificações indispensáveis a fazer-lhe. Não compreendo a imprensa sem responsabilidade efetiva de quem dela se serve perante a opinião a quem ela principalmente se dirije; nem o que seja a publicidade anônima, senão o abuso covarde de um princípio nobre e santo. A lei pede apenas a responsabilidade perante a Justiça organizada, e todos sabem como o fim dessa exigên­cia é escandalosamente iludido; mas perante a lei da opinião que tem por sanção o conceito público, o que é que tem de efetivo essa responsabilidade de chicana? O anônimo é a praga da imprensa. Procura acabá-lo; há de haver luta a começo, mas a verdade há de afinal calar nos espíritos. A prática que tenho na redação de um dos grandes jornais da corte me ensina que dois terços pelo menos das publicações anônimas que se apresentam tem por origem a calúnia, a maledicência ou a frivolidade. Poucas vezes se verifica a hipótese da necessidade de ocultar o nome de quem reclama justiça. Nesses casos raros terás o meio de tornar a causa à ti e de falar em teu nome, convencido de que pugnas pelo direito. Esta é que é a imprensa da constituição; esta é que é a liberdade na manifestação do pensamento de que fala essa sábia lei; a imprensa mascarada que por aí se inventou e que tanta aceitação tem por isso que fere com certeza de impunidade, é um crime ante a moralidade pública e convém que te não faças aplicar dela. Este melhoramento que, e que ninguém ainda tentou, será um título de glória para quem tentar o sacrifício por ele.

Há ainda alguns outros a apontar-te, e eu o faria de bom grado, mas não quero dar a estas linhas destinadas a uma felicitação de confraternidade, ares de um artigo doutrinário, tanto mais que sei que comungas comigo em grande parte das idéias que professo a respeito, e que só as não realizarás se te careceres condições azadas.

Paro aqui repetindo-te o que já tantas vezes te disse: a tua obra é o empenho de todos os moços de nossa comunhão e entre tantas empresas louváveis que estão todos os dias a surgir entre nós dificil­mente se achará uma tão simpática e esperançosa como a tua. Trabalha com afinco e dedicação; a terra é fértil; o fruto há de vir. Envergonha com o teu exemplo esses talentos ociosos que consomem toda a sua atividade no alarde de sua estéril suficiência; que em vez de trabalhar praguejam e que vendo ir mal a obra que com o toque de suas mãos podiam conseguir e aperfeiçoar não têm no seu patriotismo senão votos de censura e sorrisos de desprezo para tudo e para todos. O presente os adula e festeja, mas o futuro há de ajustar contas com eles. Contigo e com os que têm a tua coragem e as tuas intuições já estas contas estão antecipadas, justas e o saldo é a favor.

Teu.

M. DE ALMEIDA

 

A INDEPENDÊNCIA DOS JORNAIS[17]

  

Quando dois interesses se contrariam, um deles não é legítimo. Este princípio, de aplicações fecundíssimas, é o que santifica, nas lutas da imprensa, a independência do jornalista. Não há escrúpulos que resistam a esta verdade.

Há mil causas de ilusão, há muita hipótese enganosa; mas a harmonia entre os direitos é constitucional na vida das sociedades. Uma daquelas causas, a mais comum talvez, é a extensão, a intensi­dade dos interesses, que se tomam, de ordinário, como sua razão de legitimidade.

A timidez aconselha o sacrifício do menor ao maior, medindo a justiça pelo tamanho do prejuízo individual, ou pelo número dos preju­dicados. Há erro em ambas as hipóteses.

Não há coisa alguma isolada e verdadeiramente individual na sociedade: atrás da maioria aparente que disputa um interesse imediato e de fato, há a maioria real, que disputa o princípio em suas aplicações mais remotas.

Essa é que é a maioria do direito. O que hoje aproveita a cem contra um, sendo ilegítimo, prejudicará amanhã a mil em favor de cem.

É o esquecimento desta doutrina que autoriza reação aparente­mente fundada, quando os jornais atacam o que se chama interesses constituídos. Resistir a tais reações é uma das grandes virtudes cívicas dos que tomam a pena por ofício.

A imprensa nunca pode localizar-se em torno deste ou daquele, destes ou daqueles: sua posição é demasiado alta para que ela enxergue nas questões os indivíduos; de sua elevação tudo se vê em grande.

Só a insensatez do egoísmo obcecado pode revoltar-se contra a resistência que as penas íntegras do jornalismo oferecem tantas vezes às seduções do interesse imediato e local. Um jornal não é um libelo de circunstância ou de ocasião, escrito pelo advogado mercenário para não perder a freguesia.

Se todos pudessem saber quantos sacrifícios de conveniência, de amor próprio, de aflições sagradas custam às vezes algumas linhas que o público lê distraidamente sem lhe compreender o alcance, haveria sem dúvida mais sinceridade nas exigências que se fazem todos os dias à imprensa.

Em muitos casos o jornalista consciencioso realiza o predicado que o anexim vulgar atribui à Providência: escrever direito por linhas tortas. Na minha obscura e pouco longa vida de imprensa tive muitas vezes lisonjeiros triunfos nesse gênero.

Atacava hoje a autoridade, aliás em boa fé, os direitos de um em favor das conveniências de muitos; revoltam-se estes, revoltava-se aquela. Amanhã trocavam-se os papéis, e um dos revoltados, por sua vez acometido, vinha reclamar apressado o apoio contra cuja legitimi­dade tinha protestado na véspera. O que ontem se tinha chamado agressão, chama-se hoje defesa.

Uma longa série dessas palinódias da parcialidade castigada, confirmaram-me nesta doutrina, que tantas vezes repetida, ainda se aceita com repugnância.

Num jornal que começa como O Parahyba, nunca é demasiado recordar estes princípios; eles tranqüilizam aos que escrevem, e des­pertam a benevolência dos que lêem.

Não se creia porém que estou aqui a pedir vênia, em nome da redação desta folha, a alguns detratores que ela tem encontrado, e a quem tem feito a justiça e o favor de nulificar.

Não me dirijo senão aos homens de boa fé, que podem não ter bem presentes, em todas as circunstâncias, as causas de erro nos juízos a seu respeito.

Para aqueles que pecam com resistência, e que morrem impeni­tentes, nunca há castigo bastante. Sejam profligados, abatidos, esma­gados, sem escrúpulo, sem piedade. Este procedimento para com eles é ainda uma conseqüência, uma aplicação de tudo quanto fica dito.

O que eles atacam quando arremetem contra a individualidade que se antepõe com a censura a seus desvarios, é um direito do maior número, é um direito de todos. Toda agressão que se lhes faça é pois legítima em nome desse direito.

A esses é mister fazer-lhes o benefício de os anular: amanhã eles próprios virão gozar dessa anulação, que deu vigor à causa de um princípio geral, que mais tarde ou mais cedo lhes pode ser proveitoso.

Tenham pois os homens de boa fé bem presente que o benefício mais remoto que produz a independência de um jornal, é o que recai sobre o jornalista: ele lucraria mais direta e prontamente pondo-se ao serviço dos interesses de ocasião.

Os benefícios imediatos recaem sobre os que sancionaram essa independência com a sua tolerância, e imparcialidade do bom senso.

M. A. D’ALMEIDA

 

 

4 de março de 1859

Meu Quintino,

Como te achas de saúde e de espírito? Eu vou bem de uma e mal de outro. E a regra; e anda bom de um e não vá mal de ambos.

Recebi a ordem de 500$000 que foi pontualmente paga. A outra sê-lo-á também amanhã, pois já tenho com que em minha mão. E não foi mister recorrer a teu tio que aliás se prestava a coadjuvar-nos.

Há mister porém que me não faltes com a nova ordem que me prometestes, e mesmo que previnas a teu tio para acudir-nos em apertos futuros. Fomos pontuais, temos agora direito. Não se rias... Que direito temos nós a que nos prestem tais serviços?

Pelo que me disseste nas tuas cartas, ajuizei que tinhas por aí algum grande plano de fortuna... falavas-me com tanta confiança no futuro! Manda contar-me isso por miúdo. O verdadeiro é vires para a corte, pois temos muito que conversar.

Não te falo sobre política porque a miséria é cada vez maior. A Gazeta Official ficou adiada até que venham as câmaras para se pedirem fundos. Quererão alugar-me a pena, mas o negócio está suspenso, porque eu declarei que não recebia dinheiro da nação senão pelo Tesouro, em verba conhecida.

Adeus.

Vem que fazes aqui muita falta, ao coração sobretudo...

Teu

Maneco

 

11 de julho de 1859

Quintino.

Hoje de manhã te escrevi, quando ainda não havia recebido a carta que me escreveste pelo Murinelli. Vou dar cumprimento para o que me mandas para o Remígio e para o Mercantil.

Quanto ao mais, devo dizer-te que para coisas muito urgentes preciso de 2:000$, notando que não entram nessa conta os 500$ que me mandaste. Ainda assim não poderei desempenhar meus ordena­dos, para o que seriam precisos talvez mais 800$ ou 1:000$.

Isto, rogo-te, é para livrar-me de vexames perigosos.

Quanto a endireitar a vida, seria muito, talvez o triplo.

Manda-te dizer o Emílio que já que achaste meios por lá que lhe arranjes uns 2:000$ sem prêmio por 24 meses. Isto é um pau por um olho!

Adeus.

Volta que ansiosos te esperamos.

Teu

Maneco

Recomendo-te ainda urgência nos arranjos.

 

27 de julho de 1859

Quintino.

Não está mal que se queixes tu do meu silêncio, quando por aí já todos te dão por morto, uma vez que há bons dois meses que ninguém tem notícias tuas. Como quer que seja, vejo que tem havido extravio das tuas e minhas cartas, e assim tudo se explica. Agradeço-te o enviado que costumamos a tomar pelos meus tristes negócios. A grande tormenta serenou, como já te mandei dizer, mas não imaginas por que qualidade; e por que quantidade de vexames tenho passado. Livre daquele grande perigo, não posso entretanto estar em circunstân­cias mais desesperadas: todos os dias se me vence um vale, uma conta, uma letra, que não pago porque não tenho com quê, e que ficam adiados para o dia seguinte me caírem em cima de novo. Ainda não me mudei para Sto. Amaro por não ter dinheiro. Por mal de pecados, estou reduzido à metade do que ganhava, porque me levaram as provas da Typ. o que quer dizer que tendo rebatido o que era propriamente ordenado, estou literalmente sem vintém!

Lembraste que me havia o Sales prometido mundos e fundos com a história da Gazeta Official, e por ordem dele deixei as provas, que me davam, como sabes, tanto como o ordenado e a gratificação.

Encartou-se para esse trabalho um outro filho da miséria, como eu; de maneira que agora que a Gazeta não se realizou, não me sofreria o coração, nem quero carregar com a odiosidade de desalojar o coitado! Fico pois a ver navios! Ainda mais. Para compensar tais desarranjos, tinha aceitado um lugar de tipógrafo(!) que me davam no Senado, com 500$ mensais. Mandei pedir licença ao Salles e negou-ma, aliás com considerações muito razoáveis relativas à categoria do lugar que ocu­po.

De tudo isto resulta que estou perdendo atualmente 700$ men­sais!

... Não falemos mais nisto.

Não vi ainda o Saldanha; mas desconfio muito que ele não...[18]

 

Chico. 17 de Novembro.

N. Friburgo.

Chegamos ontem à tarde, muito fatigados, mas sem novidades. Ficamos no Hotel Lonerote, por estar a casa desprovida de tudo. Os meus cálculos a respeito de despesas foram os exatos; os teus falha­ram todos. Poderei viver aqui perfeitam.e com o produto das traduções. Precederam-me as dívidas, mas tenho já alg.m crédito, de que não espero abusar.

Procura no Diário a carta que espero lá ter com o dinheiro. Se não a tiverem deixado indaga do Ama.t q.m foi o rapaz da Opera, que recebeu dinheiro no Tesouro com ele e com o Cintra no m.mo dia; é esse o q' ficou de deixar a carta com 20$000. Remete-me das nossas contas o que puderes. Se falares com alg.m credor, dize-lhe que vim trazer m.a família e que volto p.r todo este mês. Dep.s te escreverei mais detalha­dam.e. Tudo que mandares seja em carta segura.

Recomenda-me ao Per.a  e a toda a rapaziada.

Teu do

coração

Maneco

 

Chico 

Friburgo 25 N. 1860

  

Só hoje recebi a tua carta de 22. Fico ciente do que me dizes e agradeço-te os cuidados que tens tido por mim. Trabalha, mas sem afligir-te, por me enviares algum dinheiro, seja d'aqui, seja dali. O rapaz da Ópera, creio que é m.mo o Andrade. Estou sem vintém: felizm.e não tenho outras despesas por ora, além da lavadeira, mas sabes quanto custa estar com família e in albis.

Aí vai a carta para o Souza Lima.

Não mandei, nem posso ainda mandar romance apesar de já ter muito adiantado: o que estou traduzindo é pequeno, e quero mandar o primeiro volume de uma vez.

Tenho recebido Mercantis e Diário. Por este último vi que se começou a publicar novo folhetim. O meu sairá q.do puder ser.

Se souberes por lá de algum romance bonito manda-mo: os dois que trouxe são ruins, e só me decidi a traduzir um deles para não perder tempo.

Sabes como tivemos que fazer na véspera da partida. Foi porisso que não disse adeus aos rapazes; mas já lhes escrevi uma circular.

Saudades a todos.

Seu do

C.

Maneco

 

Friburgo 30.

Chico

Já respondi a tua de 22, mas quero ainda lembrar-te que, quando mandares o Paletot, me mandes também a minha escova de fato, que não veio e me faz falta. Pede ao Quintino que me mande, pelo pé dele, um par de botinas, que sejam p.m um bocadinho largas.

Indaga se chegou o Frond e se recebeu um trabalho que lhe mandei.

Dá lembranças a todos os rapazes, e pergunta ao Eduardo como vão os nossos credores dep.s da m.a ausência.

Ad.s

Teu

Maneco

Volte.

Se vires o Jorge Neylor dize-lhe de m.a parte que cada vez me convenço m.s de que ele é um rapaz muito discreto; mas que se lembre que eu posso retribuir-lhe a leviandade e pô-lo nos matos.

 

Chico.                                                                                                                                 N. F.    11 10 bro 1860.

Não tenho recebido novas nem mandados teus, o que me tem inquietado. Vê, pois, se te vendes menos caro, caso não tenha havido motivo justificável pr tal silêncio.

Mandou-me dizer o Conde que por seu intermédio, tinha sido entregue a Antônio Dias uma carta com dinheiro pa mim. Até esta data ainda não a recebi. Indaga se já partiu daí o tal Dias, — que é aqui conhecido, porque quero escrever-lhe pr Cantagalo reclamando a carta.

Se já pilhaste os 20$ do rapaz da Ópera, manda-m’os, que com a demora da carta do Conde tenho andado baldo no naipe.

Que novidades há por aí? Meus credores mordem-me muito na pele? Mesmo aqui não me abandona seu pesadelo.

Há notícias do Zaluar? e do Emílio?

Ads. Dá lembranças ao Remígio e ao Antônio Carlos.

Ads. Teu

Maneco

Não te esqueças das botinas q. mandei pedir. —

 

Nova Friburgo 4 de J. de 1861.

Quintino.

Já sabia do teu casamento e felicito-te muito cordialmente.

Deste um passo que, realizando sem dúvidas um impulso do teu coração, é uma garantia para tua família — tuas irmãs — que eu me afligia de ver dispersa e separada de ti. Esta consideração deve fazer calar quantas argüições se possam levantar contra a sofreguidão que se queria atribuir a tua decisão em vista de tua pouca idade. Os que nunca tiveram o seu lar disperso não calculam quantas amarguras isso custa ao coração... Deve ter muitos encantos tua noiva, pois que embebido na sua contemplação esqueceu-te dizer-me quem é, e como se chama! Dize à noiva que sou obrigado a pedir-te que apresentes meu respeito à Exma. Sra. D.?

Minhas irmãs muito do coração me acompanham nas felicitações que faço a essa venturosa incógnita. Temos suspeitas de quem seja, — eu ao menos —, mas quem, antes de ti, me deu a notícia não me forneceu um complemento indispensável.

Inquieta-me o que me dizes a respeito de tua saúde e da de tua irmã, e penso que te dou um bom conselho, quer por ti, quer por ela, dizendo que se não devem deter no emprego dos meios indicados pelos médicos, nenhumas considerações de zelo exagerado pelas tuas obri­gações. Tens já feito bastante pelo Diário para que te não seja lícito cuidar de tua saúde e da dos teus.

Salta tanto aos olhos a evidência disto, que me parece inútil argumentar. Entretanto, dir-te-ei sempre que, a serem verdadeiras as tristes apreensões do Pertence — que de modo algum deves desprezar — o sacrifício que agora queres evitar retirando-te por algum tempo da Corte, não poderá ser dispensado mais tarde, quando correr o risco de já não ser proveitoso. É pois uma imprudência que nada remedeia. Isto é verdade não só pelo que te respeita, mas pelo que toca a tua irmã. Em pouco tempo tenho conhecido milagres do clima de Friburgo; não há desespero que aqui se não transforme em esperança. Causa espanto ver como aqui encontram saúde doentes condenados por médicos como o Rocha e o Valladão!

A única dificuldade real que eu posso enxergar na tua vinda seria a dispensa, porque podes não estar habilitado. Entretanto para que não te assombres vou supor o que pode gastar cada pessoa, para o caso de que te resolvas a tomar o acertadíssimo alvitre de vir. Paga-se por pessoa livre 2$000 da Prainha a Sampaio na barca, 2$000 de Sampaio a Porto das Caixas em carro, 6$000 do Porto das Caixas a Cachoeira no Caminho de Ferro e 8$000 por um animal de Cachoeira a Friburgo. Quanto a cargas calculando duas canastras por pessoa, custa isso 10$000 da Prainha a Friburgo (tantas duas canastras quantos 10$000).

Há ainda a despesa de uma noite de pousada na Cachoeira e da alimentação, que não chega talvez a 4$000 por pessoa.

Aqui tens quanto à viagem.

Agora quanto ao passadio em Friburgo, dá-se quarto limpo, seco, claro, arejado e independente, luz, banhos, roupa de cama mudada todas as semanas, botas limpas e mais serviço miúdo; ao amanhecer mingau, café, simples ou com leite, chá e pão (à escolha); às 10 horas almoço de 5 pratos para cima; à 1 hora da tarde caldo, às 4 jantar na conformidade do almoço; às 8 da noite chá com os seus pertences... tudo isto por 3$000 diários para cada pessoa! É pasmoso, não é? Pois é verdade porque nesse regime vivo eu aqui. Acresce que o serviço da comida é feito à mesa redonda ou nos quartos à vontade dos hóspedes, sem que isso altere o preço da diária.

É absolutamente dispensável trazer escravos; somos perfeita­mente servidos e desde que aqui estou não tenho sentido falta deles, tendo até reenviado um preto que havia trazido por inútil. (Os escravos pagam na viagem e aqui no Hotel metade da despesa das pessoas livres). Assim a viagem para ti, tua senhora e duas irmãs custar-te-á de 150$000 a 180$000 não mais, porque há ainda a despesa indispensável de um guia para. O passadio 360$000 por cada vez. Demorando-te três meses gastarás, incluindo a despesa de regresso perto de 1:500 a 1:600$. Não falo de extraordinários porque aqui não os há, a não ser algum passeio a cavalo, que custa apenas 1$500!

Ganhas no Diário 300$(?) mensais; já vês que o excesso não é coisa pela qual se deixe correr risco a saúde de uma pobre moça, que ainda não viveu.

A tudo que fica dito acrescenta que encontra-se aqui no Hotel uma família de gente carinhosa que tratam os hóspedes como a parentes. Enfim quando te resolveres a vir faze-me aviso marcando dia imprete­rível para que eu dê as providências necessárias para que tenhas bons animais para a subida da serra, pois os que há na Cachoeira não prestam.

Resolve-te, pois não há no que te digo o desejo de te ver aqui, mas meu zelo por ti e pelo que a ti pertence. Em todo o caso, se não puderes vir com toda a família e quiseres confiar tua irmã à companhia das minhas, sabes que isso me daria o maior prazer; não hesites pois por temer de dar-me o menor incômodo.

Adelina, depois de alguma recrudescência (o que aliás sempre sucede aos doentes que chegam) passa agora muito bem. Está engor­dando, tomando cores, ultimamente quase não tem tido ataques, e é muito sensível à reforma que experimenta no seu temperamento, causa principal de tudo quanto tem sofrido.

Eu e Eulália passamos às mil maravilhas.

Previne ao Saldanha que tendo calculado em 150$ a importância dos dois volumes de tradução que mandei, e que já o Diário começou a publicar, dei aqui uma carta de ordem contra ele na importância de 100$000, que lhe será apresentada de quinta-feira em diante. Se o que já estiver publicado até essa data ainda não importar nos cem mil rs. tenha ele a bondade de adiantar a diferença por conta do que ainda estiver por publicar.

Recebi as botinas, que muito te agradeço. Fizeste bem em mandá-las sovadas.

Dá saudades a todos esses rapazes.

Resolve-te a vir. Não facilites. Quando voltares cuidarás então em arranjar casa.

Adeus.

Teu do coração

Maneco

 

Nova Friburgo, 8 de Fev° 1861

Quintino.

  

Recebi hoje ao mesmo tempo as tuas cartas de 2 e de 5 do corrente. Está pois, explicado por que me queixava do teu silêncio.

O que me dizes a respeito de folhetins rendeu-me os maiores apuros, pois bem sabes que nem eu, nem tu, podíamos contar com esse terrível contratempo, que põe o Diário na impossibilidade de acertar e remunerar o meu trabalho. Sabes que desde muito assentei em não oferecer nem aceitar trabalho do Mercantil estipendiado. O que hei de fazer agora? O Muzzio escrevendo-me há poucos dias fala-me em lutar com coragem! De que serve a coragem quando faltam combinações tão razoáveis como aqui eu havia feito contando com as traduções do Diário para manter-me aqui? Pedes-me um plano! Tenho a cabeça oca e o coração amargurado; sinto-me incapaz de coisa alguma. Está-me parecendo que se conseguir arranjar uma cadeira de qualquer coisa em qualquer dos colégios aqui existentes, não terei remédio senão ficar em Friburgo. Vocês todos hão de dizer que isto é um disparate. Mas indiquem-me se são capazes dum plano melhor, se é que isto se pode chamar plano.

Ofereceram-me capitais para fundar aqui uma Casa de Saúde, idéia evidentemente lucrativa. Mas isto amarrava-me de pés e mãos: de um momento para outro o vento da fortuna podia soprar no sentido de minha vocação e de minhas aptidões, mas então já não seria tempo de largar ao abandono capitais alheios. Em todo o caso, porém, mesmo quando as circunstâncias me resolvessem a sem sacrifício — que equivale a anular-me completamente — no momento de se fazer o contrato oficial, não recuaria o capitalista diante da minha insolubilida­de, que eu não poderia esconder?

Tenho os miolos calcinados de resolver hipóteses sem achar uma saída para a minha penosa situação, e, ainda por cima, tudo isto, mais se agrava com a penosa revelação que fazes a respeito do seu estado, no que sabes que tomo parte como em negócio pessoal! Valha-me Deus! Já se viu um aborto mais desastrado de tão lisonjeiras esperan­ças?

Tenho uma tradução em mais de metade; manda-me dizer se a devo em todo o caso remeter ao Diário, ou se será melhor ver (lembrei-me agora disto de repente) se, por intermédio de Cussen, o Jornal do Commercio a quer comprar, para não se perder o trabalho.

Aí vão 50$960 da publicação que por minha ordem fez o Diário.

Esquecia-me há pouco da Assembléia Provincial. Quem há de querer para Deputado nas circunstâncias atuais de luta a um pobre diabo como eu? Depois não te parece que acabarei por cair no ridículo com tanta pretensão? Enfim logo conversaremos.

Não deixes nunca de escrever-me.

Manda-me o teu panfleto.

Recomendações a D. Lulu.

Teu irmão

Maneco

 

Nova Friburgo 30 de Março de 1861.

Meu Quintino.

Lamento os teus terçóis, pois sei o que eles custam. Eu vou agora melhor dessa praga, e desejo que te suceda o mesmo.

Podes apropriar-se não só dos jornais, mas de tudo quanto for meu, e que te possa prestar utilidade. Vê se encontras na minha papelada as cartas da L. e da C.. Guarda-as para que não vão parar em mãos indiscretas. Falas-me em voltar; não o farei antes do mês de maio, pois até lá se prolonga a renovação da licença que obtive, e que quero esgotar em proveito de Adelina.

Desejava bem poder passar aqui o inverno, mas tenho medo da justiça do escrupuloso Paranhos.

Lamente-se como me lamentava pela carência de recursos, em que ambos nos achamos. É bem irmã e bem bonita a nossa sorte! Eu já tenho esgotado toda a resignação, e há momentos em que me entrego a um verdadeiro desespero, aliás ineficaz, mas que não está em mim (ilegível).

Conheço o Saldanha, faço toda a justiça a suas intenções, e não sabes o que me custa importuná-lo. Entretanto como ele mesmo disse ao Conde que eu tinha lá 200$, mandei te falar da remessa dessa quantia. Até agora ainda não veio. Emiti uma ordem de cem mil rs. Peço que previnas ao Saldanha disto, e com toda a instância lhe peças para que a cumpra caso ainda não tenhas entregue os 200$ ao Conde.

Imagino que eu teria aqui o dinheiro de que carecesse, se acaso tivesse sido cumprida a primeira ordem que mandei, e da qual esta segunda não é senão uma renovação. Fiquei porém de mãos quebra­das com semelhante falta. Não se descuides desse negócio.

Adeus. Visita nossa a sua Senhora e lembranças a todos.

Teu

Maneco

P.S. Vê também se entre os meus papéis achas os meus títulos de empregado do Tesouro, e manda-me dizer.

 

Nova Friburgo 13 de junho de 1861

Alencar

V. há de ter paciência de ler esta carta até o fim, por comprida e malsoante que ela lhe pareça. Trata-se de um negócio para mim da mais decidida importância, e espero das boas relações que nos ligam, que isso lhe não será indiferente. V. sabe se eu tenho ou não lutado com a vida, e se mereço dos que me são afeiçoados auxilio e proteção. E um grande favor que lhe quero pedir, mas V. deve crer que, com tudo quanto lhe vou dizer, não tenho de modo algum a pretensão [de] violentar a sua integridade: V. me servirá se a isso se não opuser o voto de sua consciência.

V. conhece a idéia da obra publicada pelo Victor Frond e pelo Ribeyrolles — O Brasil Pitoresco. — Pela parte até hoje conhecida pode-se desprevenidamente verificar se houve ou não consciência no trabalho e boa fé nos compromissos. Morto o Ribeyrolles, nem por isso desistiu o Frond de completar o seu plano, isto é de prolongar a todo o Império o trabalho até aqui unicam.te feito sobre o Rio de Janeiro. Já vê V. que é uma empresa grandiosa. Chamou-me o Frond para seu sócio, e eu não duvidei aceitar, visto a honestidade e utilidade do trabalho: a empresa é hoje, pois, de nós ambos. Sem desvanecimento creio que ela ganhou com isso: uma obra sem.e feita sob as vistas e direção de um brasileiro consciencioso, não pode senão adquirir maior mérito, e por conseqüência servir melhor a seus fins.

O plano a desenvolver será, como já fica dito, estender às demais Províncias, o trabalho até agora feito sobre a Capital.

O texto do resto da obra, como o da primeira parte, será escrito em duas línguas — francês e português. Pretendemos que a parte francesa seja escrita pelo E. Pelleton, que se fará vir da Europa, como se fez vir o Ribeyrolles; as vistas serão fotografadas pelo Frond e por mais dois dos melhores artistas, que também se farão vir de Paris, as fotografias serão depois litografadas com o mesmo esmero que as da primeira parte. A mim cabe a colheita e fornecimento de dados estatís­ticos e históricos, a indicação dos pontos mais importantes a tratar, a tradução do francês p.a o português, enfim a retificação geral da obra e a inspiração do espírito que a deve dominar. Uma vez feita a grande edição, faremos tirar na Bélgica outra edição em menor formato — das chamadas: — de chemin de fer, para tornar o trabalho acessível a todas as fortunas e vulgarizá-lo o mais possível. Deste modo ao lado de uma bela obra de arte, como talvez não possua no mesmo gênero país algum, tiraremos a vantagem, de tornar a nossa terra conhecida na Europa, coisa como sabes indispensável p.a servir aos interesses da nossa colonização. Não sei que idéias V. nutre a respeito, mas quais­quer que sejam, estou certo, que V. não desconhecerá que falar com verdade à imaginação e ao espírito, é hoje um dos meios mais eficazes de que se possa lançar mão para atrair simpatias e levantar no estran­geiro o crédito do nosso pai tão atroz.e caluniado.

Para empresa porém de sem vulto, sabe V. muito bem que não bastam unicam.e os recursos particulares; se não houver auxílio oficial nada se poderá levar a efeito. Tínhamos pensado a princípio em pedir às Câmaras um auxílio de loterias, e já se havia disposto tudo para isso, quando nos ocorreu a lei do ano passado, que acabou com esse modo de auxílio oficial. O João de Almeida Per.a , que é nosso principalm.e (sic) protetor, e que se tem conosco empenhado pelas promessas mais formais lembrou-se então de fazer passar na lei do orçamento deste ano um artigo autorizando o governo a prestar-nos o seu concurso. É nisto que V. nos pode prestar a maior utilidade, não só pelo seu voto simples como Deputado, mas principalm.e como membro da comissão de orçamento.

Segundo as asseverações de João de Almeida o governo está disposto em nosso favor, e por promessas que nos tem sido feitas a idéia não sofrerá impugnação alguma por parte da oposição. Não trago isto para pesar sobre o seu espírito com autoridade de gênero algum, mas unicamente para pô-lo ao corrente do estado do negócio.

Já vê pois V. que tudo está bem encaminhado. Espero portanto que de sua parte não na virão embaraços. V. pode entender-se com o João de Alm.da a respeito, e pelo que ele lhe disser conhecerá melhor a veracidade do que assevero.

Agora acrescentarei que esta empresa me oferece vantagens como não poderei esperar de outro qualquer esforço que faça. V. sabe dos meus meios: o que posso eu fazer pela carreira pública? Preciso dos empregos; estes por um lado fecham-me a porta do jornalismo, e por outro não me compensam as vantagens que perco abandonando essa carreira. Bem sabe V. que sou apenas 2° oficial do Tesouro, com dois contos de rs. por todo o vencimento. Não tenho pois remédio senão recorrer à indústria particular, que [é] o que até aqui me tem servido.

Não sei se V. conhece de perto o Frond: ele julga, aliás ignorando os motivos, não lhe haver inspirado grande simpatia. A este respeito nem m.mo apelo para sua generosidade: sei que V. convencido da utilidade e justiça de meu pedido, não deixa de aceder a ele por motivo de ressentim.tos pessoais.

Confio pois este negócio a suas mãos esperando que V. se não esqueça que fui sempre.

seu

(Ilegível. Sem assinatura).

 

Friburgo, 26 de junho de 1861

Quintino.

Ainda se não escrevi depois que cheguei, por nada ter tido a dizer-te de novo, a não ser que temos aqui todas as manhãs gelo de uma polegada de espessura. Agora porém que surge um negócio importante, apresso a comunicar-to, mesmo porque preciso de ti para ele. Travei aqui relações íntimas com o Carlos de Carvalho, que foi suplente do Siqueira na legislatura passada. Acoroçoado por ele quero ver se vou à campanha da eleição provincial. O Carvalho tem relações em toda a província e promete fazer-me muito. Resta escolher bem o triângulo. Tinha vontade de apresentar-me pelo daqui, se por meio da Comissão Central me pudesses tu alcançar a proteção do Andrada que dispõe de Cantagalo, mas tenho medo da carga de Campos; salvo se pelo Antônio Rodrigues, se pudesse ter o Barbosa de meu lado. Parecia-me melhor o círculo onde entra Ignácio, porque aí a influência do Carvalho é decisiva. Enfim tu que estás mais ao fato destas coisas, manda-me dizer o que pensas que se poderá fazer: dirije-te às pessoas indicadas e conversa com elas, assim como com o Saldanha. Manda­-me uma resposta com urgência, assim como uma nota das partes de que se compõe cada círculo da Província.

Recomenda-me a D. Lulu e ao Felix.

Adeus.

Teu do coração

MANECO ALMEIDA

 

27 de junho de 1861.

Quintino.

  

Escrevo-te às carreiras porque o Correio vai partir e só agora recebo a tua carta de 21. A respeito da Cadeira de Economia falar-te-ei na carta seguinte. Convinha-me muito o secretariado da Província mas como arranjá-lo? Autorizo-te a dares os passos que julgares preciso. Pede ao Felix para que peça ao J. Jacintho para este pedir ao Saraiva, ou lembra-te de algum outro empenho.

Adeus.

Teu

MANECO

 

Friburgo 29

Quintino,

  

Vi pelo Mercantil que qualquer tentativa de minha parte para o lugar da Província, seria inútil, e isto quando eu já estava disposto a partir! Mais uma boa ocasião que perdi. Não falemos mais em tal.

Indaga se a inscrição para o concurso se pode fazer sem a minha presença e inscreve-me, é uma boa idéia, e estou disposto a correr o risco e perder o tempo.

No entanto vê lá entre os livros que tiveres, o que há de Economia e trata de mandar-me quanto antes. Se receberes e tiveres alguma obra de direito mercantil (compêndio) manda-me também. Podes entregar tudo ao Fr. para que ele me remeta. Não te descuides, porém, de apresentar por lá alguma coisa que me convenha: lembrava-me de um dos lugares da inspetoria itinerante da escola na Província: é coisa de 3:600$.

Não desdenhes também o que te mandei dizer a respeito da eleição provincial. Será esse talvez o meio mais seguro para que eu alcance alguma boa fatia. Apesar da minha disposição vejo pouca probabilidade de ficar por aqui.

Dize a tua mulher que não esteja mal comigo: sou estúrdio mas sou bom amigo. Quando for à Corte tantas festas hei de fazer que ela ficará bem comigo.

As meninas vão bem, mesmo a doente e muito se recomendam. Escreve-me.

Adeus.

Teu

MANECO

Lembranças ao Felix.

 

Friburgo 4 de julho de 1861

Quintino.

  

Agradeço-te a remessa da nota dos triângulos, e agradeço-te o que me prometes fazer por Cantagalo. Decididamente apresento-me pelo teu círculo. Resta-me que não durmas nos passos que se tem de dar junto ao Andrade. Cuida disso quanto antes; manda-me dizer o que ele disse a respeito, e consulta-o a respeito da probabilidade de vitória dispensando-se Campos. Aí não posso contar com grande coisa. Minhas relações com o Almeida Pereira não me inspiram grande confiança, principalmente não estando eu como deves presumir, dis­posto a aceitar imposições, nem compromissos políticos. Depois o Almeida Pereira está ausente e não voltará tão cedo. Noticia ao Honório Caldas a minha pretensão, que ele talvez me possa fazer alguma coisa. Fala também a todos os meus amigos.

Nada me dizes a respeito da inscrição pelo Concurso nem tão pouco a resposta da indagação de que se incumbisse sobre o lugar de inspetor itinerante das escolas na Província. Vê-me isso com zelo e urgência, ou vê-me mesmo outra coisa que me possa convir.

Olha que nem tenho para viver senão o meu crédito em Friburgo! Qualquer coisa de que saibas, dá logo os passos que puderes e comunica-me assim sem perderes tempo algum.

Escreve-me por todos os correios se puderes.

Lembranças minhas e das meninas a Madame.

Adeus.

Teu

Maneco

 

A UMA JOVEM ESPANHOLA[19]

És tão mimosa e tão bela,

Como a estrela, 

Que desponta rutilante,

E que se mira luzente

Na corrente,

Que retrata deslumbrante.

És airosa, qual palmeira

Que altaneira

Sua coma eleva ao ar,

ou qual batel enfunado,

Que apressado

Desliza à face do mar.

Esses teus olhos brilhantes,

Fulgurantes

Tem um quê, que diz — amor —;

Eu que os buscava evitar

Sem pensar

Me queimei no seu calor.

Esses lábios teus corados,

Engraçados,

E teus dentes de marfim,

São dotes que te invejara

O mais lindo Querubim.

A ti, virgem tão formosa,

Tão donosa

Votei santo e puro amor;

E tu serás insensível,

Impassível

Aos votos do Trovador?

Ah! não o sejas, Deidade,

Tem piedade

Deste mísero cantor;

Com teus olhos tão brilhantes,

Fulgurantes

Dá-lhe doce olhar de amor;

Com teus lábios tão corados,

Engraçados,

Dize um — sim — que lhe dê vida,

E serás na lira amada

Decantada

E no seu peito querida.

 

O MORRER DA VIRGEM[20]

Já viste alguma vez ao romper d’alva

Da lua que se esconde no ocidente

Os derradeiros pálidos reflexos

Que se apagam no mar?...

Ouviste alguma vez no fim da tarde,

Já quando vem caindo a muda noite

Do sabiá o canto que se extingue,

Nos ramos da palmeira?...

Já viste um lírio branco na campina

Crestado ao forte ardor do sol estivo,

Triste exalar o derradeiro eflúvio

Do seu odor suave?...

—      Do astro o raio tênue que se apaga

Sem deixar um vestígio à flor das águas,

Da ave e triste canto que se perde

com os vapores da tarde,

E o perfume da flor que se esvanece

No meio da campina, são imagens

De casta virgem inocente

No seu primeiro amor!...

E assim a vi morrer... e assisti-lhe

Aos preciosos últimos momentos...

E neles eu bebi porção bem grande

De bem doce poesia!...

Foi seu último olhar o raio frouxo

Do astro a sepultar-se no ocidente;

Seu último pensar foi qual o canto

Do sabiá do vale,

E o extremo suspiro que escapou-lhe

Da linda boca que sorria à morte

Foi doce extremo aroma que exalara

A bela flor do prado!

—      Seu derradeiro olhar eu trago n’alma

Seu último pensar trago na mente,

E o extremo suspiro perfumado

Guardo dentro do peito!...

A capela de rosas que adornou-lhe

A linda fronte, quando o belo corpo

Foi esconder-se na profunda terra,

Eu p’ra mim a tomei!

Com ela engrinaldei a triste lira

E vim sentar-me junto ao seu sepulcro

E daqui fui soltando os tristes carmes

Que a triste me inspirou!...

 

AMOR DE CRIANÇA[21]

Era um amor de criança

Puro como a luz! Que amor!

Que perfume de inocência

Daquela alma aberta em flor!

Inda era um anjo... pecou

No momento em que me amou!

Aquele amor foi a crença

Mais doce da minha vida;

Tive outras depois... nenhuma

Chorarei de ver perdida.

Enquanto dure a lembrança

Daquele amor de criança!

Quando ela me via triste

A olhá-la estático e mudo

Tinha dó de mim, e aflita

Jurava por Deus, por tudo,

Amar-me sempre... mentia,

Mas sua alma é que a iludia!

Uma vez de fatigada

Junto a mim adormeceu;

Entre um beijo e um sorriso

Um sonho me prometeu,

Mas quando voltou à vida...

De tudo estava esquecida...

Do roto colar as pérolas

Procurei ver se juntava;

Quis colher na brisa a flor

Que esfolhando-se voava...

O amor que um riso criara

N’um leve sonho acabara!

Inundei-lhe as mãos com pranto

Que a dor funda me arrancava;

Sorriu-se... já não sabia

Que por amor se chorava!

Perdi de todo a esperança:

Já não era mais criança.

A.

 

AS FLORES E OS PERFUMES[22]


Lenda Oriental

Numa hora de ciúme o sultão Abdul foi encontrar-se no quiosque do lago com a sultana Djali, causa de seus tormentos.

Achou-a brincando tristemente com um pendão de flores. Sentou-se junto dela, tomou a guzla que ela há pouco tinha deixado, e ao som de sua toada melancólica cantou-lhe o seguinte:

“A princípio as flores eram todas brancas e não tinham perfume.

“O sol namorou-se delas, e, nos raios com que as beijava, mandou-lhes as cores de que cada uma se vestiu.

“As que se abriam ao amanhecer para receber do horizonte seu primeiro olhar ficaram com as cores da aurora;

“As que lhe mostravam os seios quando ele estava no ponto mais elevado do céu ficaram rubras pelo fogo de seus beijos nesses momen­tos de triunfo;

“As que lhe esperavam na hora do ocaso para sorrir-lhe um adeus de saudade ficaram com as cores desmaiadas e melancólicas do crepúsculo.

“Os perfumes eram silfos que vagavam no espaço, transparentes e invisíveis; brincavam com as brisas, adormeciam no seio das nuvens brancas, corriam pela superfície dos lagos, dos mares e dos rios.

“Ora, os perfumes, depois que viram as flores tão garridas com as novas cores, namoraram-se também delas, e, ocultos nas gotas do orvalho da noite, vinham beijá-las ao desdobrar dos botões, antes que o sol aparecesse no horizonte, e apenas ele se escondia no ocaso.

“As flores não desprezaram a luz pelos perfumes, nem também os perfumes pela luz; aceitaram tudo, as cores e o aroma.

“Eram flores! Daí veio que as mulheres gostam tanto delas, e que todas as chamam irmãs.

“Os últimos amantes são sempre os mais felizes, porque para eles se guarda o requinte das carícias.

“Assim sucedeu com os silfos.

“O sol nunca passara de beijos na corola; os perfumes penetraram o seio de suas amadas, encarnaram-se nelas, nenhum mistério lhes foi vedado.

“Mas Deus permitiu que a luz castigasse as flores, e é por isso que, dardejando os raios sobre elas, o sol faz acordar no seu seio os rivais felizes que as abandonam medrosos: ao seu calor evapora-se o perfume.

“É por isso que algumas flores, bem raras, que se conservaram fiéis a seus primeiros amores, que não receberam perfumes em seu seio, têm mais longa vida: as flores sem perfume são de ordinário as que mais duram.

“Ao contrário, quanto mais perfumada é a flor, mais é tênue e menos vive.

“É por isso que as flores ficaram sendo o símbolo das glórias neste mundo, que são vãs, das esperanças que são fugazes, dos sonhos que se não realizam.

“É por isso que, como emblema da duplicidade, elas servem para coroar a fronte dos heróis e enfeitam as vítimas do sacrifício, adornam os altares e as sepulturas, o tálamo e o ataúde.

“Deus podia castigá-las ainda mais, tirando-lhes as cores que lhes dera o sol. Mas, como o seu crime era um crime de amor, quis que elas ficassem sempre belas, e que fosse mais uma prova de que a beleza é vária e ingrata”.

Quando ele acabou de cantar, a sultana passou-lhe os braços em roda do pescoço, e entreabriu nos lábios um sorriso de amorosa censura.

O amante olhou-a um instante, e disse:

— Sabes o que me lembra esse teu sorriso? Lembra-me as flores da cantiga que acabaste de ouvir...

A sultana aproximou mais seu rosto do dele, e entreabrindo novo sorriso, deixou ao mesmo tempo escapar um vagaroso suspiro.

O amante, vencido, foi colhê-lo com um beijo na passagem, dizendo, à meia voz:

—... Mas ah! o perfume de algumas flores dá a felicidade na embriaguez que produz...

A.

 

UMA HISTÓRIA TRISTE[23]

Dois passarinhos tinham tido na primavera uns amores muito inocentes e muito ternos. Começaram por um trinado alegre nos ramos da mesma árvore, depois fizeram juntos um vôo para a árvore vizinha, depois chamaram-se um ao outro nuns pios muito doces para o denso da mata, depois um deles baixou à terra, e ergueu-se levando no bico uma palhinha seca.

Sobre o rio que ali perto corria debruçava-se o ramo de uma grande árvore, e com suas folhas beijava quase a superfície das águas.

Para esse ramo foi levada a palhinha seca que deu começo ao ninho.

Por cima havia a copa da árvore, por baixo as águas do rio. O ninho ficou naquele meio voluptuoso de sombra e de frescura.

Durante alguns dias passaram-se ali ao pôr do sol alguns mistérios que a solidão escondeu; ouviam-se uns chilros intercortados, o sussurro de umas asas que se debatiam, o ramo que se agitava. Depois a aragem, passando pela copa da árvore, desfolhava sobre o ninho as flores que haviam desabrochado naquela mesma aurora.

Um dia, ao despontar do sol, os dois passarinhos cantaram mais do que nunca, esvoaçaram alegres em torno do ramo, pousaram em todas as grimpas da árvore, e de cima de cada uma delas cantaram, trinaram, chilraram.

De dentro do ninho partiram uns pios que mal se ouviam, e começaram a agitar-se umas asas pequeninas cobertas de penugem.

Nesse mesmo dia, ao descair da tarde, os céus cobriram-se de nuvens, e as águas do rio tornaram-se turvas.

De noite caiu a tempestade.

Ao amanhecer, um dos passarinhos, tendo ficado a noite inteira com as asas abertas sobre o ninho para protegê-lo, cedeu o lugar ao outro, e foi nos ramos mais altos esperar um raio de sol que lhe enxugasse as penas úmidas da chuva.

Debalde esperou, o sol não veio nessa manhã.

No entanto, as águas do rio, engrossadas pela chuva da noite, começaram a crescer com um ruído longínquo e surdo.

Já as últimas folhas do ramo se achavam mergulhadas, e este começava a balouçar com o movimento da corrente.

Os infelizes pressentiram o perigo que iam correr as premissas do seu amor, e começaram a esvoaçar inquietos em torno do ninho.

As águas continuaram a crescer, e já se não via a extremidade do ramo.

A inquietação dos malfadados crescia com elas; continuavam a esvoaçar soltando uns gemidos rápidos, mas repetidos, único meio por que podiam manifestar a sua aflição. Quando cansavam, pousavam num ramo vizinho, mas só por um instante, e recomeçavam logo a esvoaçar e a gemer.

As águas cresciam sempre, e já grande parte do ramo estava mergulhado na corrente.

Os infelizes redobravam os vôos e os gemidos.

Depois o ramo vergou com a força da água, estalou e partiu-se. Preso às plantas marinhas ficou alguns instantes no mesmo lugar; depois começou a correr levado pela corrente.

O ninho ficara fora da água, e dentro dele os recém-nascidos agitavam medrosos suas asas de penugem para os pais que acompa­nhavam o ramo, disputando no vôo a velocidade da corrente.

Correram assim por muito tempo, o ninho sobre as águas, os pássaros cortando o ar.

Quando encontravam alguma raiz ou planta, ou quando nalguma volta do rio a corrente menos rápida demorava o ramo, os infelizes tentavam pousar nas bordas do ninho; mas este ameaçava submergir-se com o peso: eles erguiam-se de novo, e começavam, voando, a descrever em torno dele círculos tão estreitos, que muitas vezes suas asas se encontravam.

Fatigados da luta inútil, já o seu vôo era rasteiro, trêmulo e incerto. Pousando em qualquer árvore da margem poderiam cobrar novas forças, mas durante esse tempo onde teriam ido o ninho, e os filhinhos que pipitavam de fome!

Continuaram a voar, e o ninho a correr.

Afinal um deles caiu numa vertigem da fadiga sobre a corrente; quis erguer de novo o vôo; abriu as asas na superfície das águas; pesaram-lhe porém as penas molhadas; e sumiu-se num redemoinho que fazia o rio.

O companheiro continuou a seguir ainda por algum tempo o ninho; mas venceu-o também o cansaço; abateu-se trêmulo sobre um ramo da margem, donde caiu desfalecido na corrente.

No entanto era já de tarde; o céu tinha-se tornado limpo, aparecera o sol, as águas do rio tinham baixado.

O ninho encalhou por fim no remanso da areia, onde os infelizes filhinhos de um amor tão inocente e tão puro morreram de fome, de orfandade e de abandono, não tendo vivido duas auroras!

Pois sobre aqueles seres tão inocentinhos, tão inofensivos, que parecem não ter sido criados senão para adorno da criação, pesará também a fatalidade da desventura?

Pois nem aquele amor que fora tão puro e tão breve deixou de pagar ao infortúnio o seu tributo de dores?

Ou será que a Providência que rege os destinos do homem deixa o dos outros seres à lei do acaso?

Se não tivesse medo que se rissem de uma questão de passari­nhos, havia de apresentar estes problemas aos grandes pensadores, a ver se os resolviam.

A.

 

RESPONDA ALGUÉM[24]

Se os novos estatutos da escola de medicina ordenam que só os lentes públicos poderão ser examinadores de preparatórios para o curso da mesma escola, dar-se-á ainda o escandaloso fato de ser um certo Sr. chamado para satisfazer o seu pertinaz capricho?

A.

 

TEATRO DE SÃO JANUÁRIO — BENEFÍCIO DA ATRIZ D. DEOLINDA PINTO DA SILVEIRA[25]

Acha-se anunciado para o dia 14 do corrente mês o caprichoso e interessante drama — Trinta anos ou a vida de um jogador — que o público já conhece de há muito e que é levado à cena em benefício da Sra. D. Deolinda Pinto da Silveira, que nele faz o interessante papel de Alberto, filho de Jorge de Germany, o desgraçado jogador, que uma vez lançado na vida tortuosa do vício, atinge a meta dela.

Se a arte dramática no Brasil se acha ainda na infância; se aqueles que a ela se dedicam precisam de apoio e proteção, ninguém por sem dúvida o merece mais que a Sra. Deolinda, que ora arrisca um passo nessa carreira tão cheia de embaraços, principalmente entre nós.

Artista de merecimento, porém não favorecida pela fortuna, é além disso, uma mulher honesta que busca com o seu talento ajudar seu marido a granjear a necessária subsistência a seus inocentes filhinhos.

Traçando essas poucas linhas só tivemos em vista chamar a atenção do ilustrado e generoso público desta capital para o espetáculo anunciado, ao qual ele não trepidará em assistir, não só para apreciar uma bela produção, como para animar e recompensar uma artista digna de toda a proteção, que se lhe apresenta invocando a sua benevolência.

A.

 

 

TEATRO LÍRICO: DOIS PEDIDOS[26]

Ao Sr. Castegneri para que faça afinar toda a orquestra por um só alamiré e ao Sr. inspetor de cena, para que faça com que os entreatos sejam menos longos.

A.

DOIS AMORES

PERSONAGENS

LEANDRO, capitão de corsários                        Sr. Marchetti

GIANNI, ajudante do mesmo                            Sr. Soares

MARINA, moça e amante de Leandro                Sra. D. Luíza Amat

DILÁRA, escrava favorita de Mourad                 Sra, D. Guillemette

MOURAD, paxá de Rhodos                                 Sr. Trindade

OSMAN, agá dejanizaros                                 Sr. N.

EUNUCO, preto do harém de Mourad                 Sr. N.

UM ESCRAVO                                                Sr. N.

DEMÉTRIO, corsário que não fala                      Sr. N.

Coros, comparsas, corsários, guardas, janizaros, eunucos, escravos,

odaliscas, aias de Marina

Diretor empresário da Companhia

da Ópera Nacional                                         Sr. D. José Amat

Maestros, dirigindo a música                            Sr. Antônio Carlos Gomes

Sr. Júlio José Nunes

Ensaiador                                                     Sr. Emilio Doux

Pintor cenógrafo                                           Sr. Joaquim Lopes de Barros Cabral

Contra-regra                                                 Sr. Pessina

Chefe das alfaias                                           Sr. Ludovino

Aderecista                                                    Sr. José Ramos

ATO I

A ilha dos corsários no mar Egeu — Bahia rodeada de escolhos elevados que imitam a sua extensão. De longe vê-se uma rocha maior, uma torre maciça, quadrada, de arquitetura bizantina. Por entre os escolhos, à esquerda vêem-se choupanas e grutas — abrigo dos corsários. Tarde; cair do sol.

CENA I

(Ouve-se ao fundo o canto dos corsários)

CORO

(no fundo)

Como livres os ventos resvalam

Pelo plaino das águas ferventes,

Assim correm corsários ardentes

Luta e presas e glória buscar.

          Tem seu reino no pego espumante;

          E seu espectro vermelha bandeira;

          Eles sabem com alma altaneira

          Os perigos e a morte afrontar.

O que é vida? — Infinito repouso,

Um sorriso fulgaz, duvidoso!

O que é morte? — Infinito repouso,

Em que findam os gozos e a dor!

          Sus, gozemos! Debalde a vingança

          Contra nós clama e brada ameaças!

          Que se abafe ao ruído das taças

          Os lamentos do nauta a expirar!

CENA II

LEANDRO

(entra pensativo)

Fero é o canto de minha ousada gente...

Oh! sim!... bem dito... guerra!...

Perene, atroz, inexorável guerra

Contra todos os homens!...

Por eles hei sofrido... odeio a todos!...

Temido sou por eles e execrado...

Desditoso me vejo, mas vingado!...

Tudo em prazer sorria-me

Da idade nos verdores!

Era-me a vida um límpido

Prisma de lindas cores!

Porém, um fado indômito

No abismo me lançou!

Não pode o encanto plácido

Volver, que já passou.

CENA III

O MESMO, GIANNI E CORSÁRIOS

GIANNI

Do galerno ao sopro brando

Arribou barco veleiro;

É do grego vigilante

Um discreto mensageiro.

(Entrega a Leandro uma carta)

Lê, e rompa-se o mistério

Que até hoje se guardou.

LEANDRO

(depois de ter lido)

Prontos sede a acompanhar-me!...

Vai as armas preparar-me!

Eia, avante! D’entre em pouco

Trôe o bronze! eia, guerreiros!...

Eu comando hoje a bandeira!

TODOS

Ó Deus! Tu mesmo?

LEANDRO

Sim!

Sim, do corsário os raios

Vibrar me manda a sorte!

Da nossa mão a morte

O muçulmano terá.

TODOS

Às armas! sus, intrépidos,

Corramos à peleja!

Qual nossa força seja

O vil aprenderá.

(O CORO se dispersa e Leandro se dirige à torre)

 
CENA IV

Aposentos de Marina no interior da torre: boudoir com mobilia européia

MARINA

                  (só)

Não volta não, ainda!

Oh, como longo, eterno,

Quando ausente ele está, me passa o tempo!

(Toma a harpa)

Harpa, que muda jazes,

Vem, e dos meus suspiros

Segue o vôo; que mais veloz alcancem

Os meus fracos lamentos

O destino a que vão na asa dos ventos!

(Senta-se e acompanha-se)

De mil imagens tétricas

Me curvo ao triste império!

Passam-me os dias hórridos

Nas sombras de um mistério!

Se acaso um rio pálido

Das trevas rompe o manto

Pouco me dura o encanto

Do brilho enganador!

Mais vale a morte! o ‘spirito

Irá de pronto a Deus!

Do meu Leandro as lágrimas

Terão os restos meus!

Do pranto o doce bálsamo

Que verte um peito amante,

É prêmio, sim, bastante

A quem morreu de amor.

 
CENA V
MARINA E LEANDRO

LEANDRO

(Tendo ouvido as últimas palavras de Marina)

Por que é triste, Marina, o canto teu?

MARINA

Quando estás longe, posso eu ser contente?

Por que de mim te afastas?

LEANDRO

Tu sabes que no mundo

Nada me resta quando tu me faltas!

Quase não tenho que esperar dos Céus...

MARINA

Oh! cala-te, Leandro!

LEANDRO

Tu no passado encontras

O penhor do futuro!

Não! nosso amor não morrerá, Marina!

Mas é preciso ter coragem!...

MARINA

Céus!

LEANDRO

Um dever a cumprir, mas sem perigo...

MARINA

Não partirás... não fujas, meu afago!...

LEANDRO

Consola-te... hoje sigo...

MARINA

Bem me dizia o coração pressago!

Não! Compreender não podes

A minha angústia e dores

Quando n’ausência matam-me

A dúvida e os temores!

Qualquer gemer do vento

Parece-me um lamento,

Que te anuncia, ó mísero,

Presa do irado mar!

LEANDRO

Essas idéias tétricas

De ti desterre o Céu!

Hei de voltar incólume,

De novo ao seio teu!

Hei de pagar com beijos

Tua pena e meus desejos!

E tantas dores súbito

Em gozo e amor trocar!

Mas soa... a hora... deixa-me!

MARINA

Onde e por que te vais?

LEANDRO

Um dia o saberás...

MARINA

Não me abandonas?

LEANDRO

Não!

Marina eu devo...

MARINA

Escuta-me!

(Ouve-se um tiro de peça)

LEANDRO

Ouve! o sinal já soa!

MARINA

Atende às minhas lágrimas...

LEANDRO

Adeus! em hora boa.

MARINA

Oh! céus! que dor!

LEANDRO

Esperam-me!

Sossega, voltarei!

MARINA

Voltarás, mas talvez quando

Já não viva a malfadada!

Voz infausta ora me brada

Que nunca mais te verei!

Se tens alma não me deixes,

Ou de angústia morrerei!

LEANDRO

Louca idéia te atormenta!

Crê da sorte na ventura!

Uma voz também me augura

Que mui cedo voltarei!

E tal mágoa, tantas dores

Por mil gozos trocarei!

(outro tiro de peça)

É dada a hora... Adeus! (foge)

MARINA

Ah! não te vás... Meu Deus! (desmaia)

(FIM DO PRIMEIRO ATO)

ATO II

CENA I

Rica sala no harém de Mourad.

(Odaliscas, apresentando véus, xales, rendas e jóias a Dilára)

CORO

Oh! que perene prazer te é dado!

Tu, que os extremos tens do Paxá,

Vem, ó Dilára, que a teu agrado

Quanto desejes se te dará!

De vestes ricas, de gemas belas

Orna os encantos que o céu te dá!

Do harém dominas entre as estrelas

Huri mais vaga no céu não há.

DILÁRA

Não há na terra criatura alguma

Do que eu mais desgraçada!

Mourad, que me ama... odeio!...

Oh!. muçulmano vil, tu não conheces,

Tu não compreendes inda

Que alma me abriga o peito,

Que ao ouro vil nunca será sujeito!

Livre do horrendo cárcere

Adeja o pensar meu,

Percorre o espaço límpido

Busca da pátria o céu!

Aí recobra o ânimo,

Esquece as vis prisões;

E em doces ilusões

Se embala em gozo e amor...

Mas ah! do algoz no tálamo

Renasce a minha dor!

 
CENA II

AS MESMAS, E EUNUCOS

EUNUCOS

Mourad celebra com pompa e galas

Uma vitória que alcançará;

Vem que da festa nas ricas salas,

Tua presença quer o Paxá!

DILÁRA

Irei... (os eunucos saem)

(Às odaliscas) Comigo também não vindes?

(a sós)

A seu mandado quem fugirá?

É conforto só a esperança

Para esta alma acabrunhada!

Mas nem sempre sepultada

Foi-me a vida em tanta dor.

Grato alívio a penar tanto

Talvez mande o céu piedoso,

Talvez cedo seque e pranto

Que hoje verto com fervor.

CORO

Do Paxá tu és o encanto,

Tudo pode o teu amor.

(sai seguida pelas odaliscas)

CENA III

Quiosque no cais do porto do arsenal de Rhodes — No porto avista-se fundeada uma corveta turca, iluminada festivamente — À esquerda do espectador vê-se uma parte do serralho doPaxá, também iluminado — A direita um pavilhão com mesas postas a uso turco.

SOLDADOS E OFICIAIS MUÇULMANOS

CORO

Só gritos de festa

Se escutam agora,

Mais brilho qu’aurora

A noite terá.

P’rá os ímpios infesta

Tal noite será.

Tremei, inespertos

Piratas, a sorte,

Que um golpe de morte

Mourad vos dará,

E os mares libertos

Seu braço fará!

MEUZZIN

(no Minaret)

Alá é grande! Há só um Deus!

E Maomé é seu profeta!

 
CENA IV

OS MESMOS E MOURAD SEGUIDO DE OSMAN E DE OUTROS GUERREIROS

(Todos se inclinam profundamente, fazendo o temeneh)[27]

MOURAD

Ousada gente, erguei-vos,

Espera-vos a glória,

Teremos hoje as honras da vitória!

Soem clarins no entanto

E a Alá vencedor se entoe o canto!

Salve, Alá! todo o plaino da terra

A seu nome potente ressoa!

Do profeta aos devotos ferventes

Ele a espada invencível fará!

TODOS

Santo em paz, mas terrível em guerra

É para nós o gran nome de Alá!

MOURAD

Salve, Alá! seu olhar carregado

Luto e sombras derrama no mundo!

Mas seu riso inefável, jocundo

Luz de amor e prazeres nos dá!

TODOS

Quem lutar em seu nome sagrado

A vitória de certo terá!

 
CENA V

OS MESMOS E UM ESCRAVO DO SERRALHO

ESCRAVO

Um Derviche fugido das cadeias

Do réu corsário, uma audiência pede.

MOURAD

Que aqui venha!...

CENA VI

OS MESMOS E LEANDRO

(em traje de Derviche introduzido pelo escravo)

MOURAD

D’onde vens tu?

DERVICHE

Dos pérfidos

Pude salvar-me a custo!

MOURAD

Mas foste preso? e quando?

DERVICHE

De muito ando vagando

Entre aflições e susto.

MOURAD

Quem te há salvado?

DERVICHE

Um mísero

Piedoso pescador...

A ti recorro súplice...

Protege-me, senhor!...

MOURAD

Diz-me, os piratas tremem-se

Da ira que lhes voto?

Pensam fugir-me os ímpios

Por um ardil ignoto?

A atroz vingança fera

Conhecem, que os espera?

Sabem que mão intrépida

Em pouco os ferirá?

DERVICHE

Eu só via o meu cárcere,

Os ferros meus só via,

Das vagas mal o frêmito

O ouvido me feria,

E graças dou ao fado

Por ter-me assim salvado...

Que os ímpios de ti riem-se

Oh! dúvida não há...

(vai retirando-se)

MOURAD

Fica ainda...

DERVICHE

Senhor!

MOURAD

    Eu o quero,

Nem demora ao que mando tolero.

(Um clarão deslumbrante alumia a cena)

Mas que luz tão brilhante nest’hora?

DERVICHE

(com júbilo)

Meus guerreiros!

(Enquanto todos correm confusamente à praia, faz explosão um brulote. O fogo invade os navios da esquadra e o serralho)

TODOS

Traídos estamos!

Já o fogo os navios devora!

MOURAD

Eia! às armas!

TODOS

À luta corramos.

(DERVICHE não pode conter o júbilo)

MOURAD

É chegada, ó infame, tua hora!

Seja preso este espia traiçoeiro!

O seu dia chegou derradeiro!

LEANDRO

(tirando o disfarce, barba, boné e turbante de Derviche, e sobreveste; aparece armado, toca uma buzina e desembainhando a espada, exclama:)

Sus! coragem, valentes, corramos!

(Os turcos são repelidos e postos em fuga pelos corsários, que a esta voz têm invadido a cena)

Que estes vis n’um momento acabamos!

 
CENA VII

(Vozes no harém)

Quem acode!... socorro!

LEANDRO

Avancemos!

A salvar os imbeles viemos

Morte aos homens! aos mais defendamos!

Eu vos sirvo de guia! corramos!

(corre para o harém seguido dos corsários)

CENA VIII

          LEANDRO, DILÁRA, GIANNI, CORSÁRIOS, ODALISCAS

LEANDRO

(entra precipitadamente, tendo nos braços Dilára; os corsários seguem-o, levando odaliscas)

DILÁRA

Ah! piedade! meu Deus!

LEANDRO

Que temeis?

Respeitadas e livres sereis!

CORO

(no fundo da cena)

II Alá! II Alá!

LEANDRO

Sus, coragem! (aos seus)

Um esforço, eu vos abro a passagem.

(os corsários obedecem)

CENA IX

OS MESMOS, E MUÇULMANOS

(que prorrompem capitaneados por Mourad)

CORO

II Alá! II Alá!... morte! morte!

LEANDRO

Malfadado! que falha-me a sorte!!

(Demétrio e parte dos corsários fogem, os outros ficam rodeados e vencidos. O mesmo Leandro, vencido pelo número dos agressores, cai e fica em perigo de vida iminente)

MOURAD

Quero vivo esse homem!... Insano!...

Vil raptor de mulheres tu és!

Quero ver-te!... Foi ardido o plano,

Mas a sorte contrário t'o fez.

LEANDRO

É inútil que fales; espero,

Não palavras, mas morte de ti.

MOURAD

Audaz e atrevido, inda ousas mostrar-te?

Que és vil e covarde vou pronto provar-te!

A hórrida morte que aqui dá-te a sorte

Veremos se podes tranqüilo afrontar!

LEANDRO

P’rá os vis e covardes medonha é a morte!

Mas medo não sofre meu ânimo forte.

Verás se o tormento me arranca um lamento!

Por ver-me tremendo não hás de gozar.

DILÁRA

É homem ou nume ignoto guerreiro?

Que altivo semblante! que olhar sobranceiro,

Que acende em minh’alma d’afetos a chama!

Por ele ao tirano vou pronta rogar!

GIANNI

Que vale a pujança no peito do forte,

Se esquiva, adversa, não sorri-lhe a sorte?

De mais teve espr’ança Leandro no fado

E a fronte altaneira deve hoje curvar.

CORO de Janizaros

Vitória! Vitória! A empresa é cumprida,

Caiu a cabeça da hidra temida!

Já livres os mares dos feros piratas

Podemos as velas seguros soltar.

ODALISCAS

Quem pena não sente do ousado, do forte!?

Ah! muito contrária lhe foi hoje a sorte!

Pois ele buscava no meio de p’'rigos

A honra e a vida dos fracos salvar!

CENA X
OS DITOS E OSMAN

(seguido por soldados do Paxá, que arrastam piratas em ferros)

OSMAN

Senhor, os vis, os pérfidos

De todo estão vencidos,

Escravos uns, e o resto

Na fuga vão perdidos.

Se ao seu alcance queres

Podemos...

MOURAD

É louco empenho,

Se este seguro tenho

Buscar os mais é vão!

LEANDRO

(faz um gesto de desprezo)

MOURAD

Inda ameaças, pérfido?

LEANDRO

Eu, pérfido? Bem sei!...

Um ferro dá-me, á bárbaro,

E humilde te farei.

É abjeto, indigno, é déspota

Lançar-me agora o insulto.

MOURAD

Morres...

LEANDRO

Mas não insulto...

MOURAD

Suplício novo horrendo

Ignoto até no Inferno

De imaginar terei.

MOURAD E CORO

Vais morrer de morte atroz,

Lenta, infame, horrenda morte,

Como a tua uma igual sorte

Jamais nunca alguém terá!

Nem um só braço, uma só voz

Em teu prol não se erguerá.

DILÁRA E ODALISCAS

Ah! senhor, escuta, atende

Que ele é bravo, qu’é valente!

Se hoje fores tu clemente,

Também Deus p’rá ti será;

O teu ímpeto suspende

Que a tua glória ganhará!

LEANDRO E GIANNI

Nem as fúrias, nem o medo

Nada altera o meu valor!

Quem abusa, vencedor,

Abatido se verá!

Insultai aos que vencestes!

Mais vileza, não, não há!

(FIM DO SEGUNDO ATO)

ATO III

Aposento de Mourad — Mobilia turca. Mourad, sentado com cachimbo na mão fumando pensativo

 
CENA I

MOURAD

O vil pirata enfim tenho seguro!

Já não pode escapar-me e agora espere

Da minha raiva o duro golpe! ousado!

(levanta-se impetuoso)

Dilára a minha amada

Tentou roubar-me... e ela... ó fúria! ó raiva!...

Serpe feroz que eu abriguei no seio

E que astuta me morde!...

Oh! que horríveis tormentos

Tu preparas a quem duvida e ama,

Quem suspeita e adora! Oh, vai! me deixa

Pensamento suspeito!

Porque me agitas com tal fúria o peito!...

Quantas donzelas lindas

Queriam afetos meus!

Desprezei a todas; férvido

Só quero a huri dos Céus!

Mas se este amor indômito

Tentar ela trair

Do meu ciúme aos ímpetos

Terá de sucumbir...

Mas risque-se do ânimo

Esta incerteza insana!

Olá...

 
CENA II

O MESMO E OSMAN

OSMAN

Senhor.

MOURAD

Escuta-me;

Que aqui venha a sultana.

O último sol ao pérfido

Amanhã luzirá:

Que em convulsões expire!

Ouviste?

OSMAN

Entendo.

MOURAD

Pois vai!

 
CENA III

MOURAD

(só)

Avizinha-se o momento

Fera sede de vingança!

Só pensando em seu tormento

Já começo a me vingar!

E Dilára, se o engano

Lhe alimenta alma esperança

Ah! que o juro! o seu tirano

No amante ela há de achar!

Ei-la... finjamos...

 
CENA IV

(Entra Dilára)

MOURAD

Vem, adorada!

DILÁRA

(É este o instante)

MOURAD

Vem, minha amada,

Meu doce e cândido amor primeiro!

DILÁRA

Venceste?!

MOURAD

Oh! Sim! meu prisioneiro

É já Leandro!... Breve agonia

Terá...

DILÁRA

É justo! Mas não seria

Melhor guardá-lo? paga subida

Colher podias pela sua vida!

MOURAD

Livre o não quero pelo tesouro

Que esconde a terra em gemas e ouro...

DILÁRA

Livre, não digo, mas deixa-o vivo;

Melhor te vingas tendo-o cativo!

MOURAD

De um inimigo é pois tão cara

P’rá ti a vida, bela Dilára?

É louca a idéia a que te abraças!

Debalde rogas, em vão disfarças!

Ímpia, tu o amas!

DILÁRA

Que escuto, oh céus!?

MOURAD

A culpa leio nos olhos teus!

DILÁRA

Ingrato!

MOURAD

É certo! no teu semblante

Vejo as angústias de uma alma amante!

Atende, ó perfida, ao que te digo,

Só p’rá o corsário não é o p’rigo...

Uma palavra, talvez a extreme...

DILÁRA

(Como salvá-lo?)

MOURAD

Reflete e treme!

Ah, maldito o afeto seja

Com que, ímpia! eu te adorava!...

Não esposa, abjeta escrava

Tu vais ser de teu senhor.

Treme, iníqua; tu não sabes

Qual te aguarda horrenda sorte!

Treme, ingrata! vês a morte

Do meu zelo no furor.

DILÁRA

(Só ameaça, e não conhece

Quanto pode uma alma amante,

Onde cresce a cada instante

Inaudita raiva e amor!

Não esqueço, eu não, tirano,

Quem a honra me há roubado,

Quem votou-me, vil malvado,

A infâmia e eterna dor).

 
CENA V

Interior de uma torre. No fundo uma porta fechada que dá para o mar; perto da mesma uma sacada com grade; à esquerda do espectador, porta com grade que conduz às galerias superiores do serralho. De um lado há um tosco leito..

LEANDRO

(carregado de ferros, passeia altivo)

Enfim, sou prisioneiro!

Ambiciosos sonhos meus voastes;

Periga a honra e ainda mais a vida...

Desgraçada Marina,

Quanto dela me dôo!... o fero anúncio

A matará... Se um ferro alguém me desse!

Se estas cadeias... Céus!... desejos loucos!

Frio, imóvel cadáver, n’um instante

Terei repouso ao menos!

E acabe, enfim, a morte

A minha pesada sorte.

(Atira-se no leito e adormece)

CENA VI

O dito e Dilára, que, depois de ter cautelosamente aberto a grade do serralho, chega-se vestida de branco com uma lanterna (turca, de papel) na mão.

Chegada ao pé de Leandro contempla-o amorosamente.

DILÁRA

Ah! dorme! eu entre suspiros

Velo por ele ardente! Força oculta

Me prende ao seu destino... a minha vida

Devo-lhe e a honra... porém... já se acorda...

LEANDRO

És tu mortal, ou espírito?

DILÁRA

Aquela não conheces

Qu’inda há pouco salvaste... a ti eu venho...

LEANDRO

A quê?

DILÁRA

Nem mesmo eu sei; mas inimiga

Certo não sou!

LEANDRO

Deveras?

DILÁRA

Não! sossega!

LEANDRO

A compaixão, a compaixão te cega!

DILÁRA

Deverás morrer; inúteis

Foram-te os rogos meus!

LEANDRO

Por mim rogas-te?

DILÁRA

Oh! livre

Serás! eu juro aos céus!

LEANDRO

Quem me há de abrir o cárcere?

DILÁRA

Meu braço; assim o espero!

LEANDRO

Não! se vencer não pude

Devo morrer! Não quero!

Só uma idéia mata-me.

DILARA

De quem?

LEANDRO

De uma alma aflita.

DILÁRA

Então tu amas?... (mísera!)

LEANDRO

Era minha glória e dita!

DILÁRA

Amas então?

LEANDRO

A um anjo!

DILÁRA

Quanto o invejo!...

LEANDRO

E caro

Não te é Mourad?

DILÁRA

O bárbaro?...

Escrava eu sou, corsário!

E pode a escrava enlevos

Sentir pelo opressor?

Somente em peitos livres

Se acolhe e vive amor.

Porém que digo! o único

Alvo dos sonhos meus

Seja tua vida! Eu quero

Daqui salvar-te.

LEANDRO

O podes?

DILÁRA

Sim, tudo eu posso... segue-me!

LEANDRO

Seguir-te... e estas cadeias?

DILÁRA

Hão de cair... são minhas

As guardas tuas... comprei-as!

LEANDRO

Oh! não!

DILÁRA

Duvidas? Rápido

Navio nos aguarda;

Tudo está pronto... segue-me,

Livrar-te já me tarda.

Na fé dos que te guardam

Dorme o tirano. Toma!

Eis um punhal, tua vítima

Será esse tigre insano!

LEANDRO

Basta, Dilára, deixa-me,

O teu rogar é vão;

Não saberei de um pérfido

Punhal armar a mão.

DILÁRA

Do amor de que ardo mova-te

O ímpeto insensato.

Vem! por tua vida!

LEANDRO

Deixa-me

Ao meu destino.

DILÁRA

Ingrato!

Tu não sabes que a tormenta!

Sobre nós feroz rebenta!

Que tua morte e meu suplício

Pode a aurora iluminar!

Ah, fujamos d’estes muros!

Livre abrigo é o vasto mar.

LEANDRO

Oh! não! me deixa à minha sorte;

Quer o céu a minha morte,

O universo me faz guerra,

É baldado o empenho teu;

Ah! maldito eu sou na terra

E maldito eu sou no céu.

DILÁRA

Pois seguir-me deveras recusas?

LEANDRO

Eu recuso!

DILÁRA

Terror d’um punhal

Sentes tu no momento fatal?!

(Resoluta)

Uma imbele a vibrá-lo te ensina!

(corre rapidamente pela grade brandindo o punhal na maior exaltação)

LEANDRO

Oh! que faz!?

 
CENA VII

LEANDRO

(só)

Ouvem-se trovões, relâmpagos

LEANDRO

Sobre mim caia inteiro

Do destino o poder justiceiro!

Leva, á Deus, esta mísera vida!...

(Os trovões e raios que têm durado desde o princ!oio desta cena acalmam-se, o Céu se torna sereno.)

E inda vivo!!

 
CENA VIII

DILÁRA

Entra espantada, olhando com horror atrás de si; caminha vacilando e cai... diz à meia voz Leandro...

A missão está cumprida!

Ia erguer-se do leito... e morreu!

LEANDRO

Quem, Dilára, o homicida?

DILÁRA

Fui eu!

(Levanta-se e chegando-se a Leandro diz chorando)

A terra e o céu detestam-me,

Nem mais minha alma espera!

Do amor o afeto indômito

Fez-me cruel e fera.

Ah! vem! com férreo vínculo

A ti me prende o fado,

Sem esperança amado

Mas salvo te terei.

LEANDRO

Oh! só por mim és mísera!

E sofres mais do que eu!

Por que buscaste o ímpeto

Quebrar do fado meu?

P’rá nós de mais injusta

Se mostra a sorte irada,

Não podes ser amada,

Mas livre te farei.

(Fogem pela porta que dá para o mar)

 
CENA IX

Costa do mar e cenário como no ato t

CORSÁRIOS, MARINA EAIAS

MARINA

Calai-vos... e eu não ouso

Interrogar-vos... não verei... o esposo?

Silêncio... á Céu... sei tudo!

O meu Leandro já não vive... em pouco

Serei com ele. Sinto em mim a morte!...

Da vida desço em meio do verdor

À tumba fria que me abriu o amor.

AIAS

Marina, ainda espera!

(Vê-se despontar um navio na ponta do promontório)

I. CORO

Olá uma vela!

II. CORO

Amiga, ou inimiga?

I. CORO

Fez sinal,

É já um outro!

II. CORO

É amiga?... será?...

TODOS

Salve, é ele Leandro... é sim Leandro!

MARINA

Ele! que fez?... ó desditoso fado!

 
CENA X

OS MESMOS, LEANDRO, DILÁRA EALGUNS CORSÁRIOS

LEANDRO E MARINA

(abraçando-se)

Oh! este abraço é bálsamo

À minha longa dor!

DILÁRA

Respira peito plácido

No amplexo do amor!

AIAS

Da esperança o raio

Renova seu fulgor!

CORSÁRIOS

Inda nos há a glória

Levar o teu valor!

MARINA

Ora contente morrerei!

LEANDRO

Que dizes?

MARINA

Contempla-me!

LEANDRO

Ai! ó Céu!

MARINA

Mas que dama chorosa aqui vejo eu?

LEANDRO

Por mim, coitada, sacrificou-se;

À morte certa, por mim votou-se.

Do Paxá era prenda querida;

No harém em chamas, salvei-lhe a vida.

Grata e piedosa, lutou co’a sorte.

Livrou-me heróica, de horrenda morte;

Fugimos juntos

CORO

Ó generosa!

MARINA

Graças te rendo, bela piedosa.

DILÁRA

Graças não busco, nem homenagem;

Muito culpada, foi-me a coragem:

Os meus remorsos, e dor não calo;

Ouve-me, escuta-me, franca te falo,

Saber te baste, que no meu ardor

Não segui piedade, mas só ao amor.

MARINA

Amas-o, que escuto?

DILÁRA

Qual Deus no Céu,

Mas debalde!

MARINA

É certo? Leandro! adeus!!

LEANDRO

Que fazes, mísera?

MARINA

Eu te julgava

Já morto, e a vida não suportava.

Perdoa...

LEANDRO

Abre-te, ó terra... quero morrer!

TODOS

Quem pode o pranto aqui conter?

MARINA

Ó meu Leandro, apressa-te!

Deram-me a dita os Céus

De vir aos braços teus

A minha alma exalar!

Da vida a luz me foge...

Já não... te vejo... adeus!...

No Céu... perante... Deus...

Eu vou... por ti... rogar!

LEANDRO

Oh, se te vás, inóspita

P’rá mim se torna a terra!

Do meu destino a guerra

Não mais quero afrontar!

Minh’amada escuta-me!

Atende aos rogos meus!

Se conservou-me Deus,

Por que me vais deixar!

DILÁRA

Cara inocente vítima

De malfadado amor,

Que a nossa eterna dor

Te possa consolar!

Oh! leva, leva as lágrimas

Do meu remorso aos Céus!

E o meu perdão de Deus

Tu saberás ganhar.

CORO

Oh! quem podia, ó mísera

Tal sina te aguardar!

(Marina expira nos braços de Leandro.)

LEANDRO

Morta é Marina!!!... os vórtices

Recebam-me do mar!

(Atira-se no mar)

CORO

Que faz? ó Céu! corramos

O mísero a salvar!

(Correm apressados; as aias levam o corpo de Marina, Dilária cai.)

FIM

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



[1] Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 1851.

[2] Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 9 de julho de 1854.

[3] Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 30 de julho de 1854.

[4] Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 13 de agosto de 1854.

[5] Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 3 de setembro de 1854.

[6] Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 11 de dezembro de 1854.

[7] Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 11 de dezembro de 1854.

[8] Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 4 de janeiro de 1855.

[9] Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 18 de junho de 1855.

[10] Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 20 de julho de 1856.

[11] Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 7 de outubro de 1856.

[12] Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 4 de junho de 1855.

[13] Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 2 de março de 1856.

[14] Quando já estava encerrado este escrito, disse-me um amigo que o Sr. Almeidinha é o genro do Sr. Joaquim Francisco. Tanto melhor para mim; tanto pior para o genro e o sogro. [nota do autor]

[15] Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 2 de março de 1856.

[16] O Parahyba, Petrópolis, Ano I, n° 1, 2 de dezembro de 1857.

[17] O Parahyba, Petrópolis, ano II, 12 de dezembro de 1858.

[18] A seqüência desta carta não foi encontrada no arquivo de Bocaiúva.

[19] Harpejos Poéticos, Rio de Janeiro, Tipografia Francesa, n° de 3 de maio de 1849, pp. 201-202.

[20] Harpejos Poéticos, Rio de Janeiro, Tipografia Francesa, n° de 20 de junho de 1849, pp. 286-287.

[21] Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 16 de julho de 1854.

[22] Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 27 de agosto de 1854.

[23] Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 24 de setembro de 1854.

[24] Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 9 de novembro de 1854.

[25] Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 6 de junho de 1856.

[26] Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 5 de agosto de 1856.

[27] Cumprimento usado entre os turcos. [nota do autor]