Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Resposta do vigário Lourenço Ribeiro escandalizado de que o poeta satirizasse do modo que fica dito


Edição de referência:

BRANDÃO, Roberto de Oliveira. Poética e poesia no Brasil (colônia).

São Paulo, Editora da UNESP, 2001, pp. 141-148.

Doutor Gregório Guaranha,

pirata do verso alheio,

caco, que o mundo tem cheio,

do que de Quevedo apanha:

já se conhece a maranha

das poesias, que vendes

por tuas, quando as empreendes

traduzir do Castelhano;

não te envergonhas, magano?

Cuida o mundo, que são tuas

as sátiras, que acomodas,

supondo que a essas todas

pode chamar obras suas:

os rapazes pelas ruas

o andam publicando já,

e o mundo vaia te dá,

quando vê tal desengano:

não te envergonhas, magano?

O soneto, que mandaste

ao Arcebispo elegante

é de Gôngora ao Infante

Cardeal, e o furaste:

logo mal te apelidaste

o Mestre da poesia

furtando mais em um dia,

que mil ladrões em um ano:

não te envergonhas, magano?

Cuidas, que os outros não sabem?

o que sabes, é mui pouco,

e assim te gabas de louco

temendo, que te não gabem:

só nos ignorantes cabem

as asneiras, que em ti vemos,

pelas quais te conhecemos

seres das honras tirano:

não te envergonhas, magano?

Não há no mundo soldado,

cavalheiro, homem ciente,

que tu logo maldizente

não deixes vituperado:

porém dizes mal do honrado

ou por ódio, ou por inveja,

ou porque o teu gênio seja

fazer aos honrados dano:

não te envergonhas, magano?

Dizes mal alguma vez,

dos que não procedem bem;

mas dirás, que não convém,

por serem, como tu és:

dizer do Pai, que te fez,

que bem tens, que dizer dele

o mal, que há na tua pele,

já que ninguém te acha humano:

não te envergonhas, magano?

Se com sátiras tu só

a todos desacreditas,

trazendo sempre infinitas

no forge de teu Avô:

como não temes, que o pó

te sacuda algum bordão:

pois sabes, que a tua mão

não pega obras de Vulcano!

não te envergonhas, magano?

Sendo Neto de um Ferreiro

trazes espada de pau,

nisso fazes, berimbau,

o adágio verdadeiro:

porém se em nada és guerreiro,

para que te chamas guerra,

e a fazes a toda a terra

co’a língua, que é maior dano?

não te envergonhas, magano?

Tua avó, de quem tomaste

de Guerra o falso apelido

a um, e a outro marido

lhe fez de cornos engaste:

se temes, que te não baste

por agora, o que ela fez,

na tua cabeça vês

milhares deles cada ano:

não te envergonhas, magano?

Sendo casado em Lisboa,

Achava logo qualquer

remédio em tua mulher,

e se provou, era boa:

a fama desta outra soa

não menos que na Bahia;

sendo tua não podia

deixar de ter gênio humano:

não te envergonhas, magano?

Pois é cousa bem sabida,

que o teu casamento sujo

veio por um Araújo,

que a tinha bem sacudida:

casou contigo saída

da casa dele, onde esteve

por sua amiga, e não deve

dizer alguém, que te engano:

não te envergonhas, magano?

Fazes o que fez teu Pai,

porque a mesma fama cobres,

que por fazer bem a pobres

amou muito à tua Mãe:

na tua progénie vai

herdado como de ofício,

pois toma por exercício

dar carne ao gênero humano:

não te envergonhas, magano?

Tuas irmãs se casaram

publicamente furtadas,

e há, quem diga, que furadas

doutros, que se não declaram

oh! se as paredes falaram!

inda hoje bem poderias

ouvir várias putarias

de tanto caminho lhano:

não te envergonhas, magano?

Teu Pai foi outro Gregório

no pouco asseio, e limpeza,

de cuja muita escareza,

se lembra este território:

que andou roto com notório

escândalo, até fazer

o luto, que quis trazer

por certo Rei em tal ano:

não te envergonhas, magano?

De teus irmãos te asseguro,

Que têm sido na Bahia

Um labéu da companhia,

outro sequaz do Epicuro:

mas ambos juntos te juro,

que em nenhum vício te igualam;

oh que de causas se falam,

e todas tanto em teu dano!

não te envergonhas, magano?

Dizes, que dos Pregadores

o sol é teu irmão, quando

Vieira está-se aclamando

pelo melhor dos melhores?

dizes, que aos esfregadores

pode dar ele lições;

não sabes quantos baldões

tem sofrido pelo cano?

não te envergonhas, magano?

Diga esse Frade maldito,

se injuriado ficou,

quando co’a negra se achou

na mesma cama do Brito:

sei que se ria infinito,

quando o Pintor lhe quis dar

depois de o injuriar,

vendo-o com a amiga ufano:

não te envergonhas, magano?

O que se riu numa festa,

dando ele satisfação

d’alma daquele sermão

publicou, que era mui besta:

e se tudo isto não presta,

para maior glória sua,

veja-se amando a Perua

que diz, que Eusébio é seu mano:

não te envergonhas, magano?

Se teu irmão este é,

como é sol dos Pregadores?

e se tens erros maiores,

que nome é bem, que te dê?

lembra-te o quanto na Sé

escandalizou a todos

o pícaro dos teus modos,

amando sempre o profano:

não te envergonhas, magano?

Por não querer confessar-te,

o Cura te declarou,

e esta Quaresma tornou

o Vigário a declarar-te:

da Igreja o vi lançar-te

em uma solene festa;

mas tu de uma ação como esta

não te corres, sendo humano:

não te envergonhas, magano?

Tens mudado mais estados,

que formas teve Proteu,

não sei, que estado é o teu,

depois de tantos mudados:

sei, que estamos admirados

de te vermos rejeitar

a murça capitular,

para casar como insano:

não te envergonhas, magano?

A nenhum jurista vês

que logo não vituperes,

chamando-lhe néscio, e queres

contradizer, quanto lês:

eu sei, que mais de uma vez

disseste já na Bahia,

que Bartolo não sabia.

e que era um asno Ulpiano:

não te envergonhas, magano?

Arrezoando em um feito,

por mofar do Julgador,

fizeste do mal pior,

fazendo torto e direito:

porém se no teu conceito

todos os mais sabem nada,

tua ciência é palhada,

se se vê com desengano:

não te envergonhas, magano?

Lembra-te, quando o Prelado

pelas tuas parvoíces

decretou, que te despisses

do hábito atonsurado:

não ficaste envergonhado.

porque não há, quem te ponha

na cara alguma vergonha

ante o Povo Baiano:

não te envergonhas, magano?

Vieste de Portugal

acutilado, e ferido,

e do Burgo socorrido,

a quem pagaste tão mal:

essa sátira fatal

te desterrou a esta terra,

mas cutiladas em guerra

sempre as de o valor humano:

não te envergonhas, magano?

Admira excessivamente,

que mandando-te apear

certo homem para te dar

disseste “não sou valente”:

mas se és galinha entre gente,

assim havias fazer,

cacarejar, e correr,

que em ti é ofício lhano:

não te envergonhas, magano?

Fala de ti, que bem tens,

que falar de ti, Gregório,

e a todo o mundo é notório,

que tens males, e não bens:

não queiras pôr-te aos iténs,

com quem sobre castigar-te

sei, que há de esbofetear-te,

e com este desengano,

não te envergonhas, magano?

Vê, que te quero cascar

por outra sátira agora,

pois nem a ver o sol fora,

queres à porta chegar:

pois sabe, que hás de apanhar

mais de quatro bordoadas,

e com maiores pancadas,

que as do teu papel insano:

não te envergonhas, magano?