Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Juízo crítico ao romance Fantina, de Duarte Badaró, por Bernardo Guimarães


Edição de Referência:
Duarte Badaró, F. C. Fantina, Rio de Janeiro: L. B. Garnier, 1881.

Meu caro Badaró

Vou por meio desta carta comunicar-te a impressão, que deixou em meu espírito a rápida leitura, que fiz, do teu romance manuscrito intitulado — Fantina —, e que pretendes dar à luz da publicidade. Em meu entender estreias lindamente a tua carreira de romancista, e se o gosto literário não está ainda inteiramente pervertido, o teu livro será acolhido com aplausos e obterá considerável sucesso.

Talvez estejas lembrado, que por vezes te disse em conversação, que em matéria de literatura, e especialmente no romance não conheço escola alguma, que tenha jus a predominar exclusivamente, e só admito a autoridade daquela, que é presidida pelo bom senso e pelo bem gosto.

É somente guiados por estes dois fanais, que poderemos descriminar e seguir o que há de bom e belo nas tendências das diversas escolas e nos escritores de melhor nota, e escolher com critério o que há de aproveitável no material, que a nossa própria imaginação e observação nos podem sugerir para um empreendimento literário. O bom senso nos esclarece para rejeitarmos o que há de fútil, banal e grosseiro, e só escolhermos o que há de conveniente, útil e decoroso na vida real. O bom gosto nos inspira para que só lancemos mão do que é belo, isto é, daquilo que pode ser agradável à imaginação do leitor.

Utile dulci — eis o axioma de crítica lideraria, que nunca será derrogado. Do primeiro se encarrega o bom senso, o segundo é tarefa do bom gosto.

Se o romantismo puro não pode constituir uma escola, também não o pode o realismo. No romance principalmente, gênero de literatura, sobre o qual ainda ninguém legislou, nem pode legislar, campo vasto, aberto a todas as imaginações, ninguém deve ser julgado segundo os aforismos desta ou daquela escola, deste ou daquele sistema.

No romance nada de exclusivismo escolar; nada de exagerações. Caracteres e descrições, lances e peripécias, tudo deve ter o cunho da verossimilhança e da naturalidade; tudo deve marchar de acordo com as leis físicas e morais, a que o mundo e a humanidade estão sujeitos, a menos que não se trate de alguma dessas produções, que pertencem francamente ao gênero fantástico, como os poemas de Ariosto, as Mil e uma Noites, os contos de Offmann, alguns romances de Teófilo Gauthier, e outros.

O romance, como tudo que é produto literário, deve visar a um fim qualquer, que seja útil ao homem e a sociedade. Sua missão consiste, no meu entender, em procurar elevar o espirito humano exaltando-lhe a fantasia e inspirando-lhe sentimentos nobres e generosos por meio da criação de tipos brilhantes e dignos de imitação em contraposição a caracteres ignóbeis, torpes ou ridículos. Ora, a realidade é quase sempre fria, trivial, e ás vezes abjecta e repugnante; bem poucas vezes se apresenta em condições de poder ser copiada ao natural em uma tela literária; sempre é mister, que o pincel ou lápis do artista retoque as linhas e o colorido, para que o painel se torne apresentável como obra de arte. Eis aí porque não posso compreender, que haja produção literária de mérito, sem que tenha alguma coisa de poética e ideal. Se o realismo prevalecesse absolutamente nos domínios da literatura, esta não seria uma arte nobre, engenhosa e profunda, como é; seria apenas um mero processo mecânico, como é a fotografia em relação à pintura.

Por outro lado o romantismo, ou antes, o idealismo exagerado nos leva de encontro a um escolho não menos formidável, e que devemos evitar com igual cuidado. Perdendo-se de vista inteiramente o mundo real, que em todo caso deve servir de tipo às produções da fantasia, o espírito como que perde a órbita de seu giro, embebe-se nas regiões do delírio, e só engendra criações monstruosas, cuja deformidade em vão procura disfarçar sob o aparato de brilhantes acessórios, e de uma linguagem rica e imaginosa.

No meu entender soubeste evitar em teu pequeno romance com igual felicidade os dois escolhos, que acabo de indicar. Se bem que se filie francamente à escola realista, — escola que sem dúvida deve predominar, quando se trata de um romance brasileiro, de costumes e da atualidade, — todavia não é ele o transunto de uma realidade chata, grosseira e trivial, mas sim um quadro vivo e interessante do que ela oferece de digno da atenção do artista, do literato e do filósofo. Muito mais longe ainda anda ele das quixotescas exagerações do romantismo descabelado. Caracteres bem delineados e bem sustentados, lances e peripécias bem conduzidos, dialogo sóbrio e animado dão muita vida, interesse e realidade ao teu romance; ao passo que uma linguagem correta, elegante e pura, sem degenerar em lusitanismo, e também muito brasileira sem descair no americanismo, de que tanto abusam alguns escritores nacionais, fornece-lhe o verniz ideal, de que não se pode prescindir em toda a produção literária.

É por agora o que te posso dizer ao correr da pena a respeito de tua produção, depois de uma rápida leitora. Aguardo ansioso sua publicação para poder lazer dela mais ampla apreciação.

Teu amigo

Bernardo Guimarães.