Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico

Poemas de Joaquim José da Silva (o Sapateiro Silva)


Texto de referência:

Projeto Memória de Leitura

GLOSAS

Amor, busca a tua vida...

Amei a ingrata a mais bela...

Sábado fez quinta-feira...

Empunhou Cupido as setas...

Ao pé do monte Sião...

Alminhas do purgatório...

Tenho um galante chinelo...

SONETOS 

Eu queria, mas eu tenho vergonha...

As Rimas de João Xavier de Matos...

Senhor Mestre Alfaiate, este calção...

Se quiser tomar lá o seu codório...

Não se enfade, menina, dessa sorte...

Um batuque se fez em São Gonçalo...

Grande festa, Senhores, lá se fez...

Mais bulha, mais estrondo, e mais abalo...

GLOSAS

Amor, busca a tua vida...

MOTE

Amor, busca a tua vida,

Que me resolvo a deixar-te;

Se até agora te sofri,

Não posso mais aturar-te.

GLOSA

I

Vai inspirar teu orgulho,

Ó tu rapaz malfazejo,

A quem arde no desejo

De seguir a teu barulho.

Longe de ti o engulho

De trazer-me de corrida:

E se alguma amante lida

Acaso fazer-me intentas,

Antes que eu te chegue às ventas,

Amor busca a tua vida.

II

Das tuas setas pontudas 

Meu peito não participa,

Pois que desse arco de pipa

Se despedem já rombudas.

Té não temos as mais agudas

Que teu pai costuma dar-te:

Bate as asas por descarte,

Tira a venda, dá um ai,

Vai queixar-te à tua Mãe,

Que eu me resolvo a deixar-te.

III

Inda que vás aos Ciclopes

Pedir temperados ferros,

Te hei de largar quatro perros,

Que fugirás aos galopes.

Inda que o cendal ensopes

Com pranto de frenesi,

Zombarei sempre de ti,

Pois não posso sem atalho

Aturar-te tão bandalho,

Se até agora te sofri

IV

Esse espírito guerreiro

Oculta por desafogo,

Que não deves ter tal fogo,

Sendo filho de ferreiro.

Outra vez alcoviteiro

Vai a ser do fero Marte;

Que eu posto agora de parte

Pertendo dar de ti cabo:

Não és amor, és diabo,

Não posso mais aturar-te

Amei a ingrata a mais bela...

MOTE

Amei a ingrata mais bela,

Que o mundo todo em si tem;

Eu morri sempre por ela,

Ela nunca me quis bem.

GLOSA

I

Quando eu era mais rapaz,

Que jogava o meu pião,

Andava o Centurião

Dando a todos sotas e ás.

Nesse tempo aos Sabiás

Armava a minha esparrela;

Comia caldo em panela

Por ter os pratos quebrados;

E até por mal de pecados,

Amei a ingrata mais bela.

II

Depois de mais alguns meses 

Já por baixo da sobcapa,

Pelas calçadas da Lapa

Pernoitava muitas vezes.

Não bastaram os arneses,

Que herdei de Matusalém;

Só sei que querendo bem

Me achei como Antão no ermo,

E o mais galante estafermo,

Que o mundo todo em si tem.

III

Com os anos, com a idade,

Na festa e s seu oitavário,

Só em passo imaginário,

Andava pela Cidade.

Se é mentira, ou se é verdade,

Diga-o a minha mazela,

Que não sendo bagatela

Bem mostra de cabo a rabo,

Que por artes do diabo

Eu morri sempre por ela.

IV

Depois de velho caduco,

Já cheio de barbas brancas,

Eu bispei-a dando às trancas

Nos sertões de Pernambuco.

Ali trabalho e trabuco

Por lhe abrandar o desdém;

Mas o mau modo, que tem, 

Procedido da vil prole,

Faz crer que nem a pão mole

Ela nunca me quis bem.

Sábado fez quinta-feira...

MOTE 

Sábado fez quinta-feira,

Domingo fez três semanas,

Que pariu a porca um burro,

Mas com vinte e cinco mamas.

GLOSA

I

Sebo de grilo em cardume

Dizem de ser de boa medra;

Sabão mole feito em pedra

é um galante perfume.

Não é má para betume

A raiz da escorcioneira;

A galinha na popeira

Põe os ovos na malhada;

Lá na semana passada

Sábado fez quinta-feira.

II

Arroz de nabo e cominhos

Serve de emplastro à espinhela,

Pimenta, cravo, e canela,

De lambedor de carinhos.

Cantochão de Barbadinhos

Faz árias italianas;

Criam misérias humanas

Um, e dous, e argolinha;

Inda há pouco na folhinha

Domingo fez três semanas.

III

O Estreito de Gibraltar

Mora da parte dalém;

Arroz feito de moquém

Faz um belo paladar.

Não deixa de admirar

Quem dá forte um grande murro;

Qualquer estrondo ou sussurro

é traste de tabuleta;

Faz bem notório a Gazeta

Que pariu a porca um burro.

IV

Moela de pato macho

É cordial d'esquinência

Não se atura a impertinência

De quem joga e dá camacho.

De carapuça e penacho

Se representam os Dramas;

Usam hoje as novas damas

No Marquesado de Nisa

Um cavalinho de frisa,

Mas com vinte e cinco mamas

Empunhou Cupido as setas...

MOTE

Empunhou cupido as setas,

Dirigiu-as a meu peito,

Obrigou-me a ser amante,

Amei, ficou satisfeito.

GLOSA

I

Nenhum outro mais que eu

Zombou sempre por capricho

Desse formidável bicho,

Ou gigante pigmeu.

Do ardente poder seu

escarneci às secretas;

Mas depois bispando as netas

Do mui famoso Plutarco,

Vibrando mais forte o arco

Empunhou Cupido as setas.

II

Inda assim fugi ao queima,

Pois na verdade não quero,

Como Leandro por Hero,

Fazer outra tal toleima,

Persisti na minha teima

Com manha, cômodo e jeito;

O que vendo o tal sujeito,

Despreza as setas rombudas,

Põe no arco as mais agudas,

Dirigiu-as a meu peito.

III

Qual outro amante mingote

Ardendo de amor na calma

Quase dei ai demo a alma

Na ponta do meu fagote.

Pôs-me logo andar de trote

Sem sossegar um instante;

E com furor incessante

Em tão terrível cuidado,

Depois de trazer-me a nado,

Obrigou-me a ser amante.

IV

Nisto tanto se interessa,

E me faz tamanho fogo,

Que fiquei amante logo

Desde os pés té a cabeça.

Sucedeu com tanta pressa

Esta caso com efeito,

Que sem mover-se mais pleito

Que o dizer dos Rabolistas,

Me pôs no Rol dos fadistas,

Amei, ficou satisfeito

Ao pé do monte Sião...

MOTE

Ao pé do monte Sião

Há um pé de Cajuru,

Onde limpava seu cu

O Almirante Balão.

GLOSA

I

Desprezou Matusalém

Duzentos anos de vida,

Por não ver na amante lida

O gosto, que o lamba tem.

O Juiz de Santarém

Quase estala de paixão;

Das montanhas do Japão

Ungi-lo veio o seu Cura,

Mas desceu-lhe a quebradura

Ao pé do Monte Sião.

II

Sem dar acordo de si

Na dura terra prostrado,

Acudiu-lhe o Deus vendado,

Com a funda de Davi.

Uns daqui, outros dali

Já chegam do Calundu;

Levado de Berzebu

Confirma o bom Juvenal,

Que na nossa Catedral

Há um pé de Cajuru.

III

Esta mentira tamanha

Que soou no Oriente,

Fez abortar de repente

A Imperatriz de Alemanha.

Veio a parteira de Espanha

Montada num baiacu:

Faz-se a guerra no Peru

Por se saber que Mavorte

Vende a gadanha da morte,

Onde limpava o seu cu.

IV

No Romano Capitório

Todas as tradições

Se dão a ler às Nações

Num grosso livro de fólio.

Sentado então no seu sólio

Sem ter alguma atenção,

Deu tremendo cachação,

No tempo dos três Filipes

Em sua filha Floripes

O Almirante Balão.

Alminhas do purgatório...

MOTE

Alminhas do purgatório,

Que estais na beira do rio,

Virai-vos da outra banda

Que vos dá o sol nas costas.

GLOSA

Atrás da Porta Otomana

Se conserva um bacamarte,

Com que Pedro Malasare

Defende a cúria romana.

Nas margens do Guadiana

Dá Castela o repertório:

Um tal frade frei Gregório

Nas ventas do seu nariz

Tem um letreiro que diz:

Alminhas do purgatório.

No passar do Helesponto,

Esta nossa atmosfera

O seu ambiente altera,

Por não achar barco pronto;

Em falsete ou contraponto

O tempo passa de estilo;

O mestre inverno com frio

Manda ascender o farol,

Pois vê de ré-mi-fá-sol

Que estais na beira do rio.

Depois do geral dilúvio,

Inda nos ficaram mágoas,

Porque no tempo das águas

Inunda mais o Danúbio.

Qualquer átomo ou eflúvio

Sempre fede que tresanda;

Renasce o mal de Luanda

Na cidade de Guiné;

Se quereis tomar café,

virai-vos da outra banda.

Raia agora a lua cheia,

A nova faz eu eclipse:

É galante parvoíce

Deitar-se a gente sem ceia.

Junto da Palma Iduméia

Estão as cousas dispostas

Para evitar as propostas

Em que estão sobre a vindima:

Ponde a barriga pra cima

Que vos dá o sol nas costas.

Tenho um galante chinelo...

MOTE

Tenho um galante chinelo

Com que vou a São Mateus,

Tenho minha fralda rota,

Ninguém me bote quebranto.

GLOSA

Se vós tendes um baiju

Com seus babados de chita,

Eu tenho agora a marmita,

Semi-rubra de ourocu.

Se tendes de gorgutu

Um macaquinho amarelo,

Eu nas casas do castelo,

Como é público e notório,

Por baixo do consistório

Tenho um galante chinelo.

Se vós tendes de cambraia

Camisa fina e bordada,

Eu tenho minha rendada

Que veio da Marambaia:

Se de cetim tendes saia,

Eu só tenho os cações meus;

Se com estes trastes teus

De mim todas te desunes,

Eu tenho os panos de Tunes,

Com que vou a São Mateus.

Se tendes sapato justo,

E pões as mãos nas ilhargas,

Eu tenho as botas mui largas,

Com que passeio sem custo.

Se tendes de raios susto

Eu caço da vela a escota;

Se tendes no frasco a gota

Como mostra das crioulas,

Eu por baixo das ceroulas

Tenho a minha fralda rota.

Se tendes novo capote

Mais chibante do que o velho,

Eu tenho um torto chavelho,

Que me faz vezes de pote.

Se a cavalo andais de trote,

Eu do chão não me levanto,

Não me assusto, nem me espanto,

Serei sempre pé-de-boi,

Ora aí está como foi,

Ninguém me bote quebranto.

SONETOS 

Eu queria, mas eu tenho vergonha...

Eu queria, mas eu tenho vergonha

De dar e conhecer a minha tolice;

Deixamos de fazer a parvoíce,

Que havia de feder mais do que a peçonha.

Mas que importa que outro se me oponha

Por querer ser pateta, ou ser felice,

Se comigo assentei por fontorrice

Ser hoje o grande Duque de Borgonha?

Já contente no meu gaudério estado

Tenho fardas, palácios, e dinheiro:

Já não peço a ninguém nada emprestado.

Porém leve o diabo o meu roteiro,

Que apesar das farófias do Ducado, 

Todos me lêem nas costas - sapateiro.

As Rimas de João Xavier de Matos...

As Rimas de João Xavier de Matos

São obras de um gênio bem completo;

Mas melhor não faz ele um bom Soneto,

Do que eu faço alguns sapatos.

Se ele só procura gênios gratos,

Eu quero Cordovão do mais seleto;

Queixa-se ele do seu ingrato afeto,

Eu me alegro de ver gênios ingratos.

Bem sei que toda corte de Lisboa

Aplausos mil lhe dá com bizarria:

Que a fama do seu verso o mundo atroa;

Porém eu tenho cá outra valia,

Porque todo o Brasil já me apregoa

Primaz de Parnasal sapataria.

Senhor Mestre Alfaiate, este calção...

Senhor Mestre Alfaiate, este calção

Está como os sapatos, que eu lhe fiz?

De que serve o dedal, tesoura e giz,

Se não sabe pagar-lhe com a mão?

Você não é alfaiate, é remendão,

Eu bem podia crer o que se diz;

Porém como por asno nunca quis, 

Justo é sinta o mal sem remissão.

Já outro que ali mora junto à Sé

Bem conhecido, Antônio Marroquim,

Me deitou a perder um guarda-pé.

Se eu daqui a dez anos, para mim,

Não fizer um calção de sufulié,

Não me chamem jamais Mestre Joaquim.

Se quiser tomar lá o seu codório...

Se quiser tomar lá o seu cordório,

Os desencaixes meus afoito leia,

Que gostará mais deles que da ceia,

Que onte à noite comeu no Refeitório.

Não nego que meu Padre Frei Honório

Goste mais do molinho da lampreia,

Porém a frigideira cá da veia

Causa a todos melhor consolatório.

Ao menos o bom Rio de Janeiro

Não possui um gênio desta casta,

Por mais e mais que corra seu roteiro.

Tem possuído alguns de afasta-afasta:

Porém nunca um Poeta sapateiro,

Que tenha um tal humor; adeus, que basta.

Não se enfade, menina, dessa sorte...

Não se enfade, menina, dessa sorte,

Por São Paulo me espere mais uns dias,

Que os sapatos irão nas noites frias,

Pois não quer São Crispim que agora os corte.

Praza a Deus que eu de todo vença a morte,

Que verá como em três Ave-Marias

Lhe faço pra estragar as francesias

Sapatos de cetim com sola forte.

Mas se os quer com mais pronta raridade,

Requeira a Solimão na Mauritânia

Que servida a de ser com mais vontade.

Pois ele pela ver na nova Albânia,

Lhe trará pra que traje à divindade,

As botas do Grão-Duque de Aquitânia.

Um batuque se fez em São Gonçalo...

Um batuque se fez em São Gonçalo

Das moçoilas do Rio de Janeiro,

Onde foi Frei Tobias pasteleiro,

E escamador, Pai Paulo, de um robalo.

Eis o grande Camões em seu cavalo,

Todo torto, mui feio, e mui feceiro,

Conduzia a função de um candieiro,

Três tainhas, seis  pargos, e um galo.

Por não perder da Festa a grande manja

Também se achou um certo salafrário,

Com cara mais inchada que turanja

Porém com não era batucário,

Apenas o bridaram com laranja

Serenada no ilhós do seu Vigário.

Grande festa, Senhores, lá se fez...

Grande festa, Senhores, lá se fez

Onde voa no mar muito alcatraz;

Foi o bom pregador o Frei Tomás,

Sendo só os cantores pargos três.

Dous galos cada qual por sua vaz,

Com vinte xereletes mais atrás,

Dera sota, codilho, seis, e ás, 

O peixe de que gosta o Rei Francês.

À função não faltaram três goris,

Que dentro em quatro mil casca de nóz

Lhe serviram de pajes dous seris.

Mas tem mão, Musa minha, à tua voz,

Que quase me parece por um triz,

Que o Soneto lá vai de foz em foz.

Mais bulha, mais estrondo, e mais abalo...

Mais bulha, mais estrondo, e mais abalo

Faz em meu peito a vossa tirania,

Do que fez a Troiana Monarquia.

A traição formidável do cavalo.

Mais brandas dão as torres ao badalo

No Sábado depois da Aleluia,

Do que a vossa cruel dura porfia

Bate em mim fortemente por regalo.

Ora deixe esse gênio presumido,

Não darás mil carreiras e galopes,

Como Jarbas fez dar à amante Dido.

Imita as Tisbes, Eros, e Meropes,

Senão o coixo pai do Deus Cupido,

Te fará servadija dos Ciclopes.

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