Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Cantiga de amiga, de Maura de Senna


Edição de base:

Maura de Senna Pereira, Poesia reunida e outros textos.

Org. de Lauro Junkes, Florianópolis: ACL, 2004.

ÍNDICE

Oh América

A sábia mão

A profecia

Confiteor

Canto natural

Revoada

Evolução

Grumixamas

Festa e fome

A chave

Balada contra a tormenta

Culto mutilado

Anacreôntica

Carnaval

Busco a palavra

Para ALMEIDA COUSIN

o grande companheiro

para ILKA, RUTH, SAMUEL E ZAURINHA

irmãos muito amados

e para os meus amigos

que são também irmãos

Penetra surdamente no reino

das palavras.

Lá estão os poemas que esperam

ser escritos.

Carlos Drummond de Andrade

           

A autobiografia de um poeta

são seus próprios poemas.

O resto é suplementar.

Eugênio Evtuchenko

A poesia é um centauro

Ezra Pound

Sou um evadido.

Logo que nasci

Fecharam-me em mim,

Ah, mas eu fugi.

Fernando Pessoa

 

 

Oh América

"Ai flores ai flores

do verde pino"

Ai negros regatos em veios profundos

que podem jorrar e mover os mundos

Ai tesouros ai minas de prata e de ouro

de pedras soberbas e ricos minérios

Ai não os levem barcos nem peixes

barcos pesados

peixes aéreos

Ai flores ai flores

des-pe-ta-la-das

Ai florestas imensas decapitadas

para nelas abutres cravarem as garras

Ai duras amarras e agruras e lutas

oh América

Latina e sofrida América

em dia porvindouro (longe? perto?)

oh transmutada

em chãos libertos e povos cantando

de mãos dadas

Oh flores oh flores

ressuscitadas

 

A sábia mão

“... pois toda mão é movida

pela inteligência"

Tristão de Athayde

Quando todos trabalharem

o trabalho será uma alegria — disse alguém

Meta ou sonho — não questiono:

sonho

E nessa questão do trabalho humano

força do mundo

sobretudo me conturba

haver no trabalho hierarquia

conforme seja cerebral ou não

Por que a discriminação

se é sempre nobre o labor

seja ele qual for?

se no próprio fio que tece o artesão

é sempre a mente que lhe move a mão?

se no preparo do prato mais singelo

ao mais requintado em baixela servido

a mão que os cozeu para o filho ou o patrão

é sempre guiada pela inteligência?

se na construção de qualquer edifício

a mente tem que estar a postos sempre

ao colocar o operário tijolo sobre tijolo

ao armar o concreto a viga o bloco?

Objetarão aí que tudo se deve ao arquiteto:

à planta ao cálculo ao saber ao projeto

Mas se — para erguer a casa a rua a urbe —

não concentrasse o operário toda a forca

mental na execução

e não vigiasse o corpo talvez subnutrido

para não cair do andaime, para levantar a obra

todas as plantas jazeriam no chão

 

A profecia

Quando me libertei dos profetas bíblicos

em boa hora ainda, cor de aurora,

num manifesto muito claro e honesto

indignados fariseus vaticinaram

que eu terminaria na sarjeta

Entanto

nesta hora já de esmaecidas papoulas

estou onde sempre estive:

no meio da praça

Estou no meio da praça

e canto

enviando

amor

às sarjetas aos bordéis às prisões

aos que trazem grilhetas e mordaças

aos oprimidos de todas as raças

aos famintos de pão e de justiça

aos que nascem em manjedoura

aos que morrem na cruz

E aos que já desmascararam a tola hipocrisia

e arrebentaram todos os grilhões

eu mando ainda "uma rosa branca"

Estou no meio da praça

e canto

 

Confiteor

A Flávio José Cardozo

Para me livrar das malhas sutis da catequese

para frustrá-las

eu disse a meus irmãos e a amigos meus

com uma firmeza de tese

que era uma pedra consolidada

por não poder crer

que sobre algo do meu corpo morto

de qualquer corpo em que o cérebro parou

Aí se entristeceram — e isso me magoou

Hoje porém é mais intensa ainda

a força vital que me habita e me anima

(a que eles dizem não poder cessar... )

Será?

Vou então alegrar meus irmãos

convocar meus amigos

e dizer-lhes o que sei pueril e passageiro

dizer-lhes logo

que encontrei fendas na pedra

e ainda interrogo

 

Canto natural

Liberdade, igualdade — retornarão depois

não agora sobre estes lençóis desfeitos

em que entregue estou inteira ao teu querer

a carne rendida penetrada

a língua sugada como um favo

o lábio mordido como um figo

sou fêmea ou fruta sobre o leito

mas subo até o teto e as estrelas

e é possível que apedrejem o meu canto

algum juiz severo ou varonil matrona

esquecidos de que de um ato assim eles vieram

de que um ato assim é que povoa a terra

                       

nem sempre porém com esta chama

(de igual deveria nascer cada menino)

que não se apaga no orgasmo findo

e me fará até ainda amassada

ancila radiante levantar-me

e oferecer-te vinho

 

Revoada

Aos meus pássaros

Menina

como sem de mim teres saído

tanto saíste a mim?

Não tens sequer o meu sangue

não te aninhei em meus braços

não te dei bem-querer

não te dei lição de vida

nem sequer te vi crescer

— e, crescida, me buscaste

com teus versos e teus laços

pelas tuas ruas nuas

me buscaste e eu te achei

Menina

não és a única: e o preso

outros chegaram também

da mesma fonte nascidos

São todos poetas — e cantam

todos são bravos — e lutam

(nunca mais vou lamentar

ter sido estéril meu útero)

Pássaros amanhecendo

ainda na escura noite

com eles vou continuar

Verão por mim o sol nascer

eles que se dizem meus irmãos

pois se as estações pesam muito

os elos fortes pesam mais

quando as senhas quando as asas

e as consignas são iguais

 

Evolução

Em que estágio — tento descobrir —

começou na espécie humana

o ato ignóbil de bater num corpo:

na idade ainda animalesca?

nas etapas do homem primitivo?

ou já na fase do ântropos

em toda a plenitude?

Seja onde surgiu o fato é que evoluiu

em requintes de crueldade o processo covarde

no qual o flagelador tem sempre como vítima

um ser inerme, atado, indefeso:

a criança o servo o pobre o preso

 

Grumixamas

Para Holdemar Menezes

Ao saber que das doces frutas

só o nome conhecias

quis vencer tempo e distância

e chegar ao quintal da minha infância

que era um poema de ecologia

Passei pela casa sem olhar

pelo varandão com folhagens e gloxínias

rajadas que minha mãe criava (ela era fada)

pelos caramanchões e trepadeiras

pelos manacás girassóis pelas roseiras

Cheguei depois à área de meu pai

que além de douto em números

amava e conhecia a terra

Área assimétrica

e de repente dentro dela

a figura geométrica

quadrilátera da horta

em que era difícil apontar

canteiro de maior realce:

dos tomateiros carregados?

o das grandes rosas verdes das alfaces?

A parreira longa era uma sólida armação

de que pendiam pelos dezembros

negros cachos de uvas presas

sobremesas

Passei pelo balanço, a gangorra e pelo

caminho aberto

onde Roberto e Carlos, meus irmãos,

jogavam bola

Pelos pêssegos amoras cajás carambolas

frutas de conde romãs e pelo espaço onde

entre pitangueiras

minhas irmãs e eu cantávamos

às vezes com as vizinhas alemãs

"à mão direita tem uma roseira..."

Afinal, no fundo do quintal,

a taça que era o pé de grumixama

redonda e cheia de graça

na sua forma e nas suas dádivas

para mim uma criatura humana

como para todos nós a Figueira da praça

Além de me dar a melhor merenda

com suas frutas retintas e pequenas

era companheira e testemunha

À sua sombra fiz deveres para a escola

es-cre-vi, dis-cur-sei

e li a bíblia, dever de cada dia,

até que me indispus com lave

(Mais tarde tal seria um escândalo até)

Mas, naqueles idos, só ela soube

da minha rebeldia. Também só ela e eu

vimos, surpresas, o meu primeiro sangue

mudando meu tempo e minha vida

Assim, não só me deu repasto: deu guarida

Soou por fim a hora do regresso

e vou colher todas as frutas que puder

para as conheceres, para te regalar

Mas a máquina chamada progresso

abriu uma rua nova em meu quintal

Volto pois machucada de lembranças

E sem as grumixamas no avental

 

Festa e fome

A vida é uma festa

Para poucos convidados

Francisco Carvalho

Não, não foi um banquete:

foi, sim, um jantar de finas iguarias

quase íntimo

servido todo pelas anfitriãs

três irmãs

que ora pareciam princesas

ora ciganas

deslizando com bandejas e manjares

e sacudindo as pulseiras e as voltas

dos colares

Após o ágape uma hora de arte: piano

canto poesia. Noite bela — com naturezas mortas

na parede e begônias vivas na janela

noite em que também corria

o vinho da simpatia humana

e que se encerraria

com os versos "tem gente com fome"

do poeta negro Solano Trindade

(Noite bela que trouxe procela

ao meu coração)

Ah meu amigo Solano Trindade

um dia terás busto terás rua terás praça

para lembrar tua fidelidade

à classe à raça ao verso à arte?

Terás teus poemas reunidos, tuas onomatopeias,

teu teatro, teus cantos afros?

Naquela noite ainda vivias e pois sofrias

te desfolhavas em poesia

em saber que teu gemido e teu protesto

estavam ressoando entre taças vazias

pratos e pratas

sobras nos pratos

convivas fartos

mas também ante vinte rostos comovidos

e afinal inculpados

de que há fome, amigo

"tem gente com fome", irmão

 

A chave

Para Neila Tavares

Ah, vou devolver-te a chave. A oferta amável

servirá a outrem. A mim só serviria

se esta chave abrisse

as portas de uma cidade

onde todos morem em paz

Não tem este dom a chave que me dás

Há unção no sono (repara

qualquer ser adormecido)

O sono não deve ser turbado

e na cidade do meu sonho

todos saudarão a manhã nova

com a alegria de ter bem dormido

O pão é a festa simples

de cada dia — e todos rodearão

a copiosa mesa posta

O trabalho é direito de cada um

e após o desjejum

tomarão seus instrumentos:

livros arados pincéis machados

Quando o crepúsculo chegar

pintado de mênstruo e violeta

todos voltarão livres ao lar

A chave que me dás — dizes — é para

decifrar o além

para abrir o que — segundo crês — vem após o fim

E o meu tema não é o além: é o bem da vida

Vou devolvê-la

ou devolver-te a chave em seguida

 

Balada contra a tormenta

Para Enéas Athanázio

a tempestade passou

ou apenas amainou?

tantos são os destroços

tantos foram os mortos

as colheitas que engoliu

as pontes que desabou!

e os meninos não nascidos?

e os rebentos não crescidos?

e os verdes que assassinou?

somos os sobreviventes

de desatadas torrentes

vou pegar vamos pegar punhados de sementes

e jogá-las pelas terras boas e poupadas

plantando um campo de pão e de jasmins

para o caldo em nossas xícaras quebradas

somos os sobreviventes

vamos para frente

 

Culto mutilado

A congregação reunida celebrava o Dia das Mães

Sobre a tocante gênese

— o amor filial de miss Ana Jarvis —

falaram

pastor presbítero alunos e mentores

da Escola Dominical

desde os cordeirinhos de Jesus

até os anciãos as dorcas os sumortodoxos

Era edificante ouvir aquele coro

de justas loas ao amor materno:

as mães eram as heroínas, o terno centro

Todas? Oh não!

Devia haver uma cadeira vazia

a em que não podia estar sentada

a pobre moça expurgada

"a linda mãe solteira"

Entremeando discursos e orações

os cânticos enchiam o templo

ao som do órgão bem tocado

E uma das vozes mais altas era

a do pai impune e negador do seu ato

de lábios grossos e cravo no peito

entre os amigos que diabos! -

cantando hinos ao Senhor

 

Anacreôntica

Em Frigia, a filha de Tântalo,

Niobe, petrificou-se

E Progne, a filha de Pândion,

Em nova andorinha alou-se.

Ah! Eu, se poder tivera

De ter mil formas e faces*

Quisera tornar-me aragem

puros ares naturais

lufada vinda do sul

para do verão possesso

inumano deste ano

poder te aliviar

Quisera ser a paisagem

que no momento não tens:

leque, sucessão de quadros

que se abrem pela estrada

e descobres nas viagens

que te enriquecem o viver

Que eu fosse por uma hora

um dia uma semana

tua irmã amada e única

sozinha nos araxás

sem poder de lá sair

E, nesta fase de cura,

sem a poderes ir ver

que eu fosse a sua figura

Quisera ser toda a glória

que tanto mereces ter

láureas para os teus méritos

e louros ao teu saber

Que eu fosse a primavera

que era ao te conhecer

para veres a teu lado

a primavera renascer

Quisera ser a ilusão

que eu não tenho e tu não tens

mas bem sei que, em a tendo,

terias também prazer:

terminadas nossas vidas

juntos e pelos espaços

continuarmos a viver...

(* Início de uma das odes de Anacreonte, traduzidas do grego por Almeida Cousin.)

 

Carnaval

Entre as ruidosas mesas do bar

menininha circulava

Será que ela reparava

nas havaianas nas baianas

ou nas de alças de strass

pulando perto dos pais?

E os fortes animais quase pelados

que vinham do banho de mar

e as bronzeadas náiades

de cabelos ainda molhados

— será que reparavam nela

na sua figura curta

no seu vestido de chita

na sua expressão adulta?

Entre as ruidosas mesas do bar

menininha circulava

Mas à muda súplica

do seu rosto — botão murcho -

só duas mesas responderam

Foi o bastante para que as mãos pequenas

aumentassem

sustentando guardanapos de papel

com comidinhas que ela não comeu

E — como se levasse tochas acesas

com cuidado — atravessou a rua

e desapareceu

— Amor, é filha ou é mãe

essa menininha velha?

Me entontece: chama o garçom

e pede mais cerveja

 

Busco a palavra

A Ascendino Leite

Não a que vem de mitos nem de lendas

e que traz resquícios do passado

nem mesmo dos bosques frescos do porvir

em que por vezes me hei refugiado

A palavra que decerto jamais escreverei

pois a que tenho escrito — tenho rasgado

por imprecisa, inócua, ataviada

Breve ou não, quero a brava e exata

espelhando o homem do meu tempo

Busco a palavra em que lateje o presente

a hora que o relógio marca

fim de centúria e de milênio

era superapocalíptica

Nem o transato nem o amanhã

só esta hora mesma e conflagrada

de agora

na palavra em que meu semelhante veja

a sua face

nosso tempo em meu texto

diga: está certo, irmã