Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Nós e o mundo, de Maura de Senna


Texto-fonte:

Maura de Senna Pereira, Nós e o mundo: crônicas, resenhas, artigos,

Rio de Janeiro: Livraria São José, 1976.

ÍNDICE

Quadros e temas

As novas amazonas    

As noites recentes     

Mãos de nora em flor  

O poema "Apocalipse" e sua intérprete  

Nós e o tempo

Morus e a Utopia        

Geração do deserto    

Museu Guimarães Rosa          

Fleming

Mundos de Aldous Huxley      

O enigma de João Ramalho     

A marcha e o salmo    

Laguna, cidade histórica        

Passeio poético pela botânica

Pele contra pele         

Duas poetisas de Moçambique          

A planta d'água          

Uma feira do livro       

Pinheiro preto  

Divagações sobre uma peça   

Um livro de Marcuse    

Mães modernas          

A psiquiatria e os atropelamentos     

História de Blumenau   

Livro de Zora   

A nova mulher  

Cortes e súmulas

Estórias que eu não inventei

Os visitantes da noite

A herança       

Isabel das Crespo       

Silk, a consciência e o anjo    

O sorvete e o doido    

Nesta casa tem um bosque    

O drama do tempo      

Fantasia         

O fidalgo

Aquelas crianças        

O sonho e a realidade

Saia azul e blusa branca        

A bela adormecida      

Do perigo de contrariar a pedicura    

O trocador e o junquilho        

Passe adiante, minha senhora

Retratos

Uma data, dois cultos

Durval e sua madona

A filha dos deuses      

Tu-Chin-Fang  

Menino dormindo        

Senhora Dona Romana

Minhas avós    

Nísia Floresta   

O poeta de "Esboços"  

Lou Andreas-Salomé   

As mil e uma noites     

Festas tchecas          

Para

ALMEIDA COUSIN

meu amor

ILKA

RUTH

SAMUEL

ZAURINHA

irmãos amados

como filhos

OCTAVIO DUPONT

cunhado irmão amigo

e

em homenagem ao centenário

de Gazeta de Notícias

 

Quadros e temas

 

As novas amazonas

A Sociedade das Novas Amazonas, ou Iluminadas, existiu no Pará há quase um século e meio, pois seus es­tatutos datam de 16 de abril de 1833. Era constituída de três classes de sócias: "a primeira abrangia as irmãs de­signadas com o título de Educandas; a segunda se com­punha das irmãs mais adiantadas na prática das virtudes e ações heroicas, as quais tinham o tratamento de Mes­tras; a terceira compreendia as irmãs que tinham chegado ao maior auge de virtudes civis, políticas e morais, dando provas não equívocas de um decidido amor à Pátria e adesão à Liberdade".

Quem tal nos informa é Domingos Antônio Raiol, Barão de Guajará, no seu grande livro documental "Mo­tins Políticos", cuja segunda edição, em três volumes, vem prefaciada pelo professor Arthur Cezar Ferreira Reis.

Assim é que, no meio daquele copioso registro de lutas que se processaram na Província do Pará entre 1821 e 1835, encontramos o do aparecimento das Novas Ama­zonas. Precisamente nas vésperas da epopeia de tantas faces e etapas e que teve como figura maior, pelo que de­preendo da exposição de Raiol, um jovem de vinte anos: Eduardo Angelim, estadista cabano.

Espontaneamente ou orientadas pelos pais e maridos (chi lo sá?) surgiram elas. Mas as conotações políticas estão bem claras nas finalidades estatutárias, chegando as amazonas a comemorar com um hino próprio a data da nossa independência em estrofes assim: "Raiou de se­tembro o dia / Mais solene e portentoso / O dia da liber­dade / No Ipiranga majestoso. / Defender a liberdade / É de Amazonas guerreiras / Pela Pátria morreremos / Nas falan­ges brasileiras".

O historiador não diz quais influências geraram a agremiação, mas, de acordo com o seu relato, concluo que foram: a selva brasileira, a mitologia grega, a Revo­lução Francesa. E a Maçonaria. As reuniões se realizavam "na primeira dominga de cada mês" e a casa em que funcionava a sociedade tinha três salas que se chamavam Jardim, Bosque e Floresta. O tratamento mais simples usado entre as irmãs era o de vós. A presidente sentava-se sobre um trono e trazia à cabeça durante as sessões uma coroa de rosas brancas. Sobre a mesa quadrada à sua frente havia "um livro dos Santos Evangelhos e sobre ele um arco e flecha". Todo um decorativo e por vezes pitoresco cerimonial presidia os atos associativos — desde a adoção de novas sócias, que prestavam juramen­to e ganhavam por fim da presidente uma rosa em botão com uma só folha e estas palavras: "Amável irmã, recebei esta flor, dela usareis sempre entre os vossos ornatos como um emblema ou símbolo, na sua figura, da virgin­dade; na cor, da formosura passageira; na cor da folha, da virtude constante; e nos espinhos, dos costumes seve­ros". (Aliás, rígida era a hierarquia e severa a disciplina.) Havia ainda a solenidade das promoções, as homenagens, os banquetes, as imposições de insígnias. Uma das con­decorações mais importantes era constituída de medalha de ouro em forma de sol e atravessada pela inscrição "Honra e glória à mulher forte". Só podiam recebê-la as sócias que tivessem atingido o grau máximo de Sublimes Mestras e "dado à pátria dez cidadãos por meio legítimo".

Percebe-se logo uma associação estruturalmente con­servadora e sem nenhuma finalidade reivindicatória. Mas foi, sem dúvida, uma revelação de personalidade e atua­ção — espantosas na época — e viveu muitos momentos de beleza, como, além do mencionado ardor patriótico, a celebração das estações e o ósculo da paz com que se cumprimentavam as irmãs iluminadas.

 

As noites recentes

O sono é belo, mas vale a pena interrompê-lo pela madrugada alta quando se trata de contemplar o que o céu apenas nos proporciona de oitocentos em oitocentos anos. Ver o longo Escorpião estender-se com todas as suas voltas de diamantes e junto dele postarem-se a min­guante Lua e uma porção de planetas: Júpiter, Marte, Ne­tuno, Mercúrio e Vênus, que é sempre um esplendor — quer seja Vésper ou estrela da manhã. O espetáculo re­petir-se por várias madrugadas e compor figuras várias, culminando na mais estupenda joia que já enfeitou a noi­te: aquela cruz formada de Júpiter e da estrela Antares, a maior da constelação, e da Lua lá em cima e de Vênus cá em baixo. Outro quadro portentoso foi quando todo o conjunto brilhava, menos a Lua, que tardou a surgir na sua véspera de lua nova e, quando surgiu, parecia uma esguia rede de ouro suspensa e destinada a aparar aque­les brilhantes todos. Aqueles mundos. Os quais foram mis­teriosamente desaparecendo — e com eles a Lua e seu vazio regaço. Desaparecendo, sua luz como que tragada pelo Sol que foi chegando. E o Sol é rei. O astro rei, como o chamavam os poetas de antanho.

31/01/1971

 

Mãos de nora em flor

Asas? Açucenas? Feitas de cetim, de pétalas? Breves e brancas, elas deslumbravam. Quando recitava nas fes­tas da escola, todos ficavam presos aos gestos que fa­ziam até esquecer as inflexões harmoniosas de sua voz. Porque os gestos eram aquelas mãos em movimento, que pareciam flores se abrindo na haste nua dos braços. Quando os mestres a mandavam ao quadro-negro, os dedos alvos gizavam cálculos, traçavam figuras. E aquela móvel beleza branca enfeitiçava até as não amigas. En­tretanto, Nora, te lembras de que choravas porque nos teus dedos não havia um anel? Um leve aro, uma simples pedra, uma turmalina que fosse — nas tuas mãos lindís­simas e novas como rebentos? Nora possuindo a prima­vera. Nora vendo passar os anos e só chegarem as joias quando já partia a carruagem do outono. A pérola mag­nífica entre brilhantes sem jaça, a grande esmeralda, a pura água-marinha, rubis, diamantes. Pobre Nora de mãos fanadas, de dedos carregados de anéis e de invernos. Veias grossas enfeando, rugas cortando os lírios lisos de outrora. Os quais se transformaram em garras quase es­curas, ora cintilando porque vão a uma festa. Mas não! A que tanto sonhara com todas aquelas gotas de estrelas e auroras achou melhor reparti-las desde já entre as netas em flor. Depois escondeu as velhas mãos em luvas novas. Só então saiu. Tão leve e apaziguada. Ah. Nora!

 

O poema "Apocalipse" e sua intérprete

Almeida Cousin estreou em 1932 com a epopeia "Ita­monte", "livro que empolga como os grandes blocos de arte", como disse o crítico Carlos Chiacchio, e sobre o qual Fábio Luz escreveu: "A história do Brasil e a história da Civilização aí estão cantando e bem assim a força da raça em formação".

A Sétima Parte do livro, toda profética, denomina-se "Apocalipse" e, no poema "In Alto", encontramos estes versos, límpida e brava antevisão de Brasília e das suas estradas unificadoras: "Porém de artérias de metal, de macadame e de água / latejantes, rolantes, trepidantes, / ligando tudo ao coração — posto no centro / donde nas­cem as águas da Amazônia / e águas do São Francisco / e águas que vão, cachoantes, para o Prata".

E foi já em Brasília, nos primeiros dias do ano de 1958, que Almeida Cousin lançou a segunda edição de "Itamonte", tornado assim, simbolicamente, o primeiro livro na futura metrópole brasileira. Em certa altura do prefácio que escreveu para esta edição, depois de refe­rir-se à unificação do Brasil, conseguida pela conquista bandeirante do interior, e à necessidade — ostensivamen­te reconhecida desde a Constituição de 1891 — de cen­tralizar a nação ao redor do planalto, "colocando no pei­to do gigante o coração vitalizador do Brasil", o autor conclui: "Hoje, esse planalto — já além das Minas Gerais — oferece condições de viabilidade. ao empreendimento unificador e um grande esforço, decisivo, está sendo realizado. Quero saudar aqui a geração dos que erguem esse marco da unidade brasileira e ao Presidente que tem a coragem de realizá-lo".

O primeiro poema de "Apocalipse" encontrou uma intérprete à altura do seu vigor e da sua beleza: a jovem declamadora Nina Costa, que tem com ele encerrado re­citais, encantado auditórios.

Ei-la agora solicitada, mais uma vez, a apresentar o grande poema. Será quinta-feira próxima, num almoço que se realizará no salão nobre do Automóvel Clube do Brasil, promovido pelo novel e dinâmico Instituto Brasileiro de Inventores, em homenagem às autoridades que vão para Brasília. Antes do ágape, Nina Costa (*) declamará "Apo­calipse". Di-lo-á com sua voz quente, com a profunda integração de sua alma de artista no espírito do poema, com a poderosa linguagem de suas mãos e de sua más­cara, com a ajuda das raras estrelas verde-negras dos seus olhos e com aquele gesto final — que sugere gêne­se, glória, descoberta — e que ela foi buscar na postura do bandeirante em marcha do monumento do Ibirapuera, para ressaltar a força e o garbo triunfante do último verso:

"Levantou-se o gigante, e trabalha, e caminha!" (27/3/1960)

(*) Hoje Nina Costa Dantas.

 

Nós e o tempo

Quando ouvirem uma criança, um adolescente, uma criatura muito nova dizer que o ano passou depressa, des­confiem. Não pode sentir que o tempo corre quem está crescendo, desabrochando, em plena faixa da expansão. Fala assim numa inconsciente insinceridade, por um na­tural espírito de imitação, para impressionar, porque ouve os mais velhos dizerem.

Estes, sim, estão sendo sinceros, pois sentem real­mente que os natais e anos novos se sucedem com rapi­dez. E essa sensação é um sinal (do grupo dos que che­gam na hora devida) de que já não é mais primavera, embora em muitos pontos — o rosto jovem, o corpo es­belto, o coração arrebatado possa prolongar-se o seu brilho. Assim, o tempo é implacável, as belas estações passam e, após terem chegado e desaparecido as cores ainda soberbas do outono, virá o inverno, o declínio, o fim.

Há um sentido dramático em tudo isso, marcado, porém, de uma tal equidade — o efêmero atingindo a todos inexoravelmente — que a atitude sábia será a acei­tação. Equidade sem dúvida, porque não tem cabimento, por exemplo, alguém dizer que não teve juventude. Cor­rendo a vida, todo ser humano tem, teve ou terá juventu­de. Agora, se esta é triste ou alegre, apagada ou glorio­sa, dura ou feliz — isso não é com o tempo: é com o homem.

 

Morus e a Utopia

Eis-nos de novo diante de um livro de Ivan Lins que se originou de conferências pronunciadas por esse impor­tante vulto das nossas letras. Trata-se de lançamento da Civilização Brasileira apresentando, na sua coleção Te­mas, Problemas e Debates, a segunda edição de "Tomás Morus e a Utopia". Reproduz o volume, que "resultou de três conferências comemorativas do 4° centenário da de­capitação de Morus", o prefácio da primeira edição, da­tado de janeiro de 1936 e de autoria de Miguel Ozorio de Almeida. O ilustre e saudoso acadêmico bem assina­lou a amplitude do ensaio, que não se restringiu à vida e à obra do humanista, mas abrangeu todo o contexto das ideias que ele professava. Diz, por exemplo e com muito acerto, o prefaciador: "Ivan Lins possui ideias e convic­ções definidas e assentadas sobre a maior parte dessas questões. Discípulo de Augusto Comte, convencido do progresso que representaria para a humanidade a adoção dos princípios do grande mestre que lançou as bases de uma política positiva e procurou construir uma Sociolo­gia fundada na razão e em dados objetivos, Ivan Lins faz o confronto entre muitas das ideias de Morus e alguns dos conceitos de Comte".

Ressalte-se que o livro há pouco reeditado foi escri­to quando Ivan Lins era muito moço. E, se o texto, agora, vem "em edição corrigida e melhorada", o arcabouço todo — estilo, ideias, interpretação — permaneceu into­cável, o que vem demonstrar ter o hoje acadêmico e mi­nistro Ivan Lins iniciado sua carreira literária já dono de altíssima cultura.

Compõe-se o volume de duas partes, além das muitas notas: "A curiosa e contraditória vida de Tomás Morus" e "A Utopia". Sem o intuito de descrevê-las, quero acen­tuar que se trata de uma exegese tão honesta que não oculta a nódoa inapagável: ter Morus, "apesar da doçura de seu caráter e da pureza de sua virtude" e principal­mente depois de haver plantado na "Utopia" rosas de ternura humana e postulados de respeito à liberdade de consciência — atuado como inquisidor, ateado fogueiras. Estava então longe, e havia muito, a grande figura de Erasmo, o humanista que escrevera na casa de Morus o "Elogio da Loucura" e influenciara as ideias liberais da "Utopia". E o eminente ensaísta chega mesmo a observar que "à medida que as relações de Morus com Erasmo deixam de ser tão intensas pelo afastamento deste últi­mo da Inglaterra, o fundo teológico tende a predominar no autor da "Utopia".

Assim, o amigo e chanceler de Henrique VIII abebe­rara-se de novo das fontes católicas, sedento de ortodo­xia e intransigência. Aí vai encontrá-lo o rompimento do rei com o papa e, de acordo com sua têmpera e sua fé, não aceita Morus o "Act" nem a fascinante Ana Bolena. É quando uma integridade é posta a prova e obtém pelos séculos o respeito das gentes, porquanto ameaças e ten­tadoras promessas não conseguem quebrar a fidelidade a seus princípios, sendo em 1535 decapitado — e quatro séculos depois canonizado — "o homem que não ven­deu a alma".

"A Utopia" é de 1516, época do apogeu da Renas­cença, era dos Descobrimentos. E, de repente, a geogra­fia se alargou, "o mapa do mundo cresceu" com o apare­cimento da "ilha bem-aventurada". Não importa que ja­mais tivesse existido porque existirá sempre. Nenhuma literatura semelhante — Platão antes, Campanella depois, além dos demais, grandes ou pequenos, até nossos dias — significa inócua fantasia, mero escapismo: pelo con­trário, é inspiradora e construtiva, pois traz o que vale acima de tudo — a vida bela, o homem feliz. E quão formosa é a ilha de Tomás Morus na apresentação eru­dita de Ivan Lins!

 

Geração do deserto

Só Guido Wilmar Sassi nos poderia dar, em termos de ficção, o livro que estava faltando em nossa literatura: a história, desde a gênese, da vida, luta e morte dos re­dutos de jagunços no país do Contestado. Não só porque ali nasceu, mas principalmente porque, nos seus primeiros livros, já soube o grande escritor catarinense fixar a exis­tência daqueles que labutam nos pinheirais e para quem, no entanto, escasseia o pinhão, que não é para eles, apenas, um fruto, um repasto nos serões do inverno, mas o trigo, o pão de cada dia.

Agora, a saga do Contestado. Naquela vasta região de quarenta mil quilômetros quadrados, marcada já de lutas e violências ocasionadas pela velha questão de limi­tes entre Santa Catarina e Paraná, começou a grassar o movimento dos "fanáticos", fenômeno que oferecia ca­racterísticas semelhantes às de Canudos. O reduto co­munal, o líder iluminado, o misticismo e o sebastianismo (todos odiavam a República e sonhavam com a volta do Imperador) pontificando, o insulamento, a luta pela sobre­vivência, o código primário infringindo as leis circundan­tes, o bando em armas esperando o ataque tudo ge­rando as investidas legais e, em consequência, a guerra, a conflagração.

No Contestado, começaram os colonos, os futuros jagunços, a suspirar pelo retorno de São João Maria de Agostinho, profeta que já estivera entre eles, curara os doentes, plantara cruzes que reverdeciam, dera ânimo aos humildes, aquecera os corações com a chama de sua santidade. Ele voltaria. Mas quem voltou foi José Maria, "irmão" do monge autêntico. Em torno do sagaz aventu­reiro, foram-se aglomerando os famintos de justiça, com suas fitas brancas de um metro e setenta, medida exata de São João Maria de Agostinho. Além da Bíblia, o livro diariamente folheado por São José Maria era a "História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França". Pois bem, foram constituídos os "Pares de França". De­pois, as "virgens" foram chamadas. Traçou-se o "Quadro Santo". O reduto crescia e se armava em Taquaruçu, nas terras catarinenses de Curitibanos. Tempos após, a mu­dança para Irani, no Paraná. As forças estaduais atacaram e foram rechaçadas, morrendo seu chefe em luta com José Maria, que também sucumbiu. Voltaram os jagunços para Taquaruçu, organizando-se depois em Caraguatá e, por fim, em Santa Maria, onde foram totalmente batidos.

São José Maria, o monge de contrafação, era um anjo ao lado de seus sucessores, especialmente o último deles. Adeodato, misto de despotismo e marginalidade, indivíduo repelente que ordenava a flagelação das mu­lheres em público e que, nos últimos combates entre os defensores do arraial de Santa Maria e os "pelados", fria­mente as matava, a começar pelas grávidas.

"Geração do Deserto" (editora Civilização Brasileira — 1964) reconstitui os episódios do Contestado num grande mural. O estilo forte, sem derramamentos, de Guido Wilmar Sassi, e sua consumada capacidade de ta­bulação — contam-nos a história de esperança e sangue, que durou quatro anos. Sem, no entanto, confundir causa com efeito e apontando as verdadeiras raízes do movi­mento, o que torna este vigoroso romance, do qual espe­ro que saiam filmes (*) e ensaios — também importante obra de interpretação.

(*) Anos após, o livro de Sassi inspirou o filme “A Guerra dos pelados”.

 

Museu Guimarães Rosa

Ainda se encontra na faixa do sonho o que já poderia estar se encaminhando para uma realidade: a aquisição e tombamento da casa onde nasceu o gigante de "Grande Sertão: Veredas" e sua transformação em museu. Aliás, se venho falar em tal assunto é porque recebi uma hon­rosa carta que me confere autoridade para abordá-lo; mas, aproveitando a deixa de intermediária, quero também falar por mim mesma, como simples avaliadora do que o nome e a obra do grande escritor representam para nossa cultura e para nossa era.

A carta é do ministro Mellilo Moreira de Mello, por três laços unido a Guimarães Rosa: como amigo, como colega do Itamarati e como escritor que muito se aproxi­ma do gênio roseano pela autenticidade, vigor e temática de sua obra. Lembrarei que o sertão, em Mellilo Moreira de Mello, é o das Alagoas em tempo de Lampião — e che­ga a assombrar sua integração no assunto, pois que de lá não é filho, integração resultante de uma profunda pesquisa da história, da geografia, do homem, da terra, da linguística, de conflitos e amores, de superstições e cos­tumes. Aquela evidente aproximação — embora Mellilo me pareça muito ele mesmo e de certa maneira mais se­dutor que o nosso ídolo — fez com que eu, ao ler "Anhan­guara" e, depois, "Muquirama", que em verdade o prece­de, logo perguntasse: um novo Guimarães Rosa?

Ninguém, pois, está mais credenciado do que ele para denunciar o que presenciou e apontar a justa home­nagem que ainda não foi prestada a GR em sua terra. Tudo isso se encontra no trecho de sua carta que passo a transcrever ipsis litteris:

"Estive em Brasília no mês de janeiro e, de regresso, fui com minha mulher visitar a casa onde nasceu o grande Guimarães Rosa, em Cordisburgo, e que fica entre Sete Lagoas e Belo Horizonte. Como jornalista e como admira­dora de Guimarães Rosa, estou certo de que a entristece­rá, como me entristeceu, o estado de abandono e ruína, em que se encontra a casa onde nasceu o maior escritor brasileiro dos tempos contemporâneos. A casa, que hoje pertence ao gerente do Banco do Brasil em Belo Horizon­te, Sr. Ildefonso Rodrigues Rocha, está alugada a um ho­mem rústico, Sr. Martinho de Faria, que nela instalou um "Bar e Café Guimarães Rosa", com vexatória tabuleta enorme onde o grande autor de "Grande Sertão: Veredas" é o patrono de copinhos de aguardente e tacinhas de café... Além disso, o inquilino transformou o antigo salão de visitas da casa em depósito de caixotes de garrafas e, na cozinha, faz alentada criação de pintos! O quintal é um matagal e é por ele que se entra na casa-tapera, hoje ninho de dezenas de morcegos, porque um turista, a quem fora confiada a chave da porta principal de entrada, que­brou-a na fechadura! A casa se acha numa avenida im­portante da cidade e que deveria chamar-se Guimarães Rosa, em vez de denominar-se Avenida Padre João, que ninguém sabe quem foi. O nome de Guimarães Rosa, em vez disso, foi dado a uma insignificante, estreita e curta Travessa, com a qual faz esquina o "Bar e Café". Nenhu­ma placa da Academia Brasileira de Letras, da Academia Mineira de Letras ou de qualquer sociedade literária ali existe, a não ser uma minúscula plaquinha negra, de qua­se impossível leitura e 10x12 centímetros de dimensão, ali posta pelo Clube de Letras de Sete Lagoas! Ora, maior abandono e esquecimento são impossíveis. Ajude-me, pois, pela sua coluna a divulgar esse desrespeito à me­mória de Guimarães Rosa e a fazer um apelo veemente ao presidente da Academia Brasileira de Letras, Dr. Austregésilo de Athayde, e ao futuro governador de Minas Gerais, Dr. Rondon Pacheco, para que, unidos, obtenham a aquisição e o tombamento da casa (antes que o assoa­lho acabe de apodrecer completamente e as paredes caiam) e sua transformação em Museu Guimarães Rosa. (*).

Como vê, meu ilustre amigo, em divulgando sua carta, estou ajudando, estou apelando. E oxalá esta palavra nossa não seja vã nem só, mas outras venham, venham miríades erguer o Museu Guimarães Rosa, pois, como bem frisou em sua carta, "é preciso reconhecer-se que o grande escritor mineiro — muito mais que a Gruta de Maquiné — pôs Cordisburgo no mapa".

(*) Este apelo foi publicado a 7 de março de 1971, em Gazeta de Notícias, e amplamente divulgado. “Agora, que a ideia pertinaz de Mellilo Moreira de Mello se tornou vitoriosa, é justo que não seja esquecido quem a lançou, estruturou e defendeu” — como declaro no artigo “Rosa e Mellilo”, de 15 de agosto do mesmo ano.

 

Fleming

Não foi Sir Alexander Fleming quem os viu pela pri­meira vez, a esses cogumelos, cujas sementes, ou espó­rios, flutuam, em quantidade, no ar. Eles deviam datar do primeiro laboratório de microbiologia. Bastava o descuido de deixar um tubo ou balãozinho mal fechado, para que os danados cogumelos surgissem na gelatina, na gelose, no soro sanguíneo, ou no caldo contido neles, cobrindo (e matando, como se verificou depois) as colônias de mi­cróbios de diversas doenças, que os sábios ali isolavam e cultivavam com infinito cuidado.

Mas o que era o desespero dos microbiologistas transformou-se, um dia, em salvação, vida, saúde. Foi no dia abençoado em que Sir Alexander Fleming explicou o fenômeno e teve e genialidade de extrair de determinado gênero desses cogumelos (o Penicillum Notatum) uma substância que, injetada no próprio organismo vivo, com­bate, nele, a proliferação de certos micróbios. Estava des­coberta a penicilina e aberto o caminho: era, daí em diante, extrair dos outros cogumelos que matam culturas microbianas — o seu princípio ativo e aplicá-lo. E, assim, após a penicilina, foram surgindo a estreptomicina, a au­reomicina, a terramicina, a cloromicetina, iniciando a era dos antibióticos, graças aos quais milhões de seres hu­manos têm sido salvos da infecção e da morte.

Esta nova era da ciência médica foi, pois, inaugurada com a descoberta genial de Fleming, o sábio que acaba de desaparecer e cujo nome, imenso e curto salmo de duas sílabas, toda a humanidade devia saber de cor.

 

Mundos de Aldous Huxley

O autor de "Admirável Mundo Novo" não só criou uma técnica na apresentação dos seus romances como também criou mundos. Tendo surgido na literatura uni­versal entre as duas guerras, aquele inglês alto que co­nheci alguns anos antes de sua morte, quando visitou o PEN Clube do Brasil, provocou admirações desde "Contraponto" — tanto pelo aspecto formal como pelas auda­ciosas experiências, pelo conteúdo. Pode-se mesmo dizer que nenhum ângulo da inquietação contemporânea es­capou ao autor de "Sem Olhos em Gaza" e deixou de estar presente no universo huxleyano.

Tendo, agora, sobre a mesa dois romances de Aldous Huxley em novas edições, ambos lançados pela Civiliza­ção Brasileira, o que desejo nesta nota focalizar é o por­tentoso forjador de "novelas do futuro".

Peguemos o primeiro, "O Macaco e a Essência", tra­duzido e prefaciado por João Guilherme Linke, que muito acertadamente o considera um sucessor de "Admirável Mundo Novo", e escrito (1957) sob o impacto das explo­sões de Hiroxima e Nagasaki — e veremos que nele o oti­mismo não ancorou. A narrativa, riquíssima de aspectos, adota uma técnica cinematográfica — com dissolvências, cortes, shots, travellings, fundos musicais e poéticos. A época: três gerações depois da Coisa (a terceira guerra, que destrói tudo, deixando um núcleo poupado na Nova Zelândia, de onde partem novos descobrimentos). No resto devastado e hediondo (a ação é em Los Angeles) de mentalidade simiesca, instalou-se o reino de Belial en­tre seres geneticamente deformados pelas radiações atô­micas, cavando nos cemitérios os bens que podem achar da civilização perdida. Mas o pessimismo do autor não é total, surgindo o elemento de libertação no encontro do doutor Poole, botanista perdido da expedição de Nova Zelândia, e Loola, a moça de três seios de Los Angeles devastada, libertação que ocorre quando ambos entram na "ordem das coisas" pelo amor, fugindo ao reino de Belial.

O outro volume (tradução de Gisela Brigitte Laub) é "A Ilha", Pala. Pala, um reino paradisíaco dos mares do sul, em que vive uma sociedade fraterna e livre e que recebe o náufrago Will Farnaby, jornalista inglês, diante de cujos olhos se desdobram as perfeições do viver ilhéu. Acontece, porém, que a deslumbrante Pala estava cer­cada de ameaças por todos os lados. E o pessimismo, aqui, chega no fim, quando a ilha é conquistada com os seus tesouros — e os felizes poloneses veem "todo o trabalho de cem anos destruído em uma noite".

 

O enigma de João Ramalho

Quando aproveita tradições da história e da lenda, que é a história poetizada do povo, o grande escritor Afon­so Schmidt não se afasta dos seus lineamentos consagra­dos e aceitos. Não se afasta, mas vai deixando a fantasia compor, forjar os detalhes, dando-nos, em linguagem mo­derna, livros que são, ao mesmo tempo, romances pitores­cos e história verdadeira, como os deliciosos relatos saí­dos da pena medieval de um Fernão Lopes.

Afonso Schmidt versa outros assuntos — atuais e an­tigos — chegando a fazer, em "Zangalás", o romance-crônica do futuro. No entanto, a sua preferência pelos assuntos históricos é marcada, procurando a base do fato para as construções da fantasia. Chega a revelar — e friso que estou apreciando, apenas, uma face da prosa schmidtiana — aspectos inéditos, que os historiadores ignoraram, como a "Colônia Cecília", (*) fundada por imi­grantes anarquistas, tendo à frente o Dr. Giovanni Rossi, e que vingou e floresceu durante quatro anos em terras do Paraná.

Como paulista, não deixaria de perceber e aproveitar João Ramalho — a figura mais importante e enigmática do povoamento de São Paulo — onde Martim Afonso de Souza já o encontrou e que estaria naquelas plagas desde 1490 — antes de Colombos e de Cabrais — em costas que os portugueses já teriam abordado nas secretas navegações de D. João II.

A figura de João Ramalho o primeiro calcanhar branco que pisou o planalto de Piratininga, onde fundou, com sua prole de mamelucos, o primeiro arraial civilizado: Santo André da Borda do Campo — uma figura assim, rodeada de tantas seduções de aventura e mistério, a que não faltou sequer uma excomunhão dos padres, não po­deria escapar ao escritor merecidamente chamado "cro­nista-mor de São Paulo". E Schmidt aproveitou-o esplen­didamente. Em "O Enigma de João Ramalho", (**) dá-nos a lenda, a crônica, a história, o romance e a biografia verossímil do primeiro patriarca aventureiro e povoador branco do Brasil.

(*) Editora Anchieta — São Paulo (1942).

(**) Clube do Livro — São Paulo (1963).

 

A marcha e o salmo

Por ocasião da Marcha sobre Washington, eu me perguntei como veria Lincoln — se a altíssima figura de Lincoln pudesse ressuscitar — aquela emocionante luta dos negros de sua pátria pelos direitos que, há um sé­culo, deveriam usufruir. Como veria as insígnias exibidas pelos partidários da integração racial (brancos também marchando ao lado dos negros, lutando por eles como outrora na Guerra de Secessão) e os cartazes clamando por "escolas integradas, melhor residência, emprego para todos, igualdade de oportunidades". Como ouviria a voz dos oradores, ardente como o verão de Washington e en­tremeada de cantos negros, pelos coros dos spirituais, soando em torno mesmo do Lincoln Memorial — enquan­to, no Capitólio e na Casa Branca, os líderes do movi­mento apresentavam reivindicações que significam, em última análise, o elementar direito à vida.

Sim: à vida. Pois, enquanto reinar a discriminação racial, a vida está ameaçada. Lembro que, por uma asso­ciação lógica, a marcha me levou a um poema de Afonso Romano de Sant'Anna, inspirado no martírio do negro norte-americano Medgard Evers e publicado recentemen­te no "Correio da Manhã". Nele, a beleza da forma e a grandeza de conteúdo se igualam. Embora não seja longo, não vou transcrevê-lo; mas quero salientar a transfigura­ção patética do Salmo XXIII na segunda parte do poema, em que o autor põe na boca do negro morto de Alabama — cada um deles seguido de "Halleluia! Halleluia!" — os seguintes versos:

O Senhor é o meu pastor / mas um lobo me atacou / no vale da escura morte / meu corpo se amortalhou / sobre as taças do inimigo / o meu sangue transbordou / O Senhor é o meu pastor / mas um branco me matou.

E a matar continua, verificando-se mesmo, depois dessa primeira grande arrancada pela justiça e pela liber­dade, que foi a Marcha sobre Washington, uma exacerba­ção do racismo na inominável crueldade dos dez anjos negros imolados agora, quatro dos quais dentro de uma igreja. Mas, em consequência, recrudesce a luta dos negros contra o desumano segregacionismo e, segundo os últimos despachos, projetam eles novas marchas: so­bre Nova York, sobre Montgomery. Que as realizem, to­mem seu lugar ao sol, conquistem seu direito à vida — e cada negro (se o quiser) possa recitar o Salmo XXIII com as mesmas doces e jubilosas palavras escritas pelo rei David. Amém.

(20/9/1963)

 

Laguna, cidade histórica

Merece a cidade catarinense da Laguna ser preser­vada como Ouro Preto. Dali partiram as expedições que conquistaram o Rio Grande. E, em 1721, quando Francis­co, filho do bandeirante Domingos de Brito Peixoto, fun­dador de Santo Antônio dos Anjos da Laguna — foi no­meado capitão-mor, tornou-se a então vila importante centro de mando, com jurisdição sobre a Ilha de Santa. Catarina e o Continente de São Pedro. Mais tarde, em 1839, ali foi proclamada a República Catarinense, que trazia o mesmo lema da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Cidade juliana, metrópole de uma república, cidade vanguardeira. A voz de Canabarro ali ressoou, ardeu ali o verbo dos rebeldes lagunenses, dos republicanos pioneiros, e numa daquelas casas sussurrou Garibaldi: Tu devi esser mia. (Anita trazia então os pés morenos descalços e vestido de ganga azul, numa visão comovedora de pobreza e de poesia).

A cidade batida de ventos, as ruas, as esquinas, as pedras, as rótulas, as velhas casas coloniais — estão im­pregnadas de passado. Assim, o Museu Anita Garibaldi, com suas grossas paredes restauradas e a opulência de suas coleções e seus arquivos, estes guardando a histó­ria, tantas vezes gloriosa, de quase três séculos. Assim, a igreja barroca de Santo Antônio dos Anjos, a Matriz, com suas formosas santas de nítidas feições portuguesas e aquele quadro estupendo de Victor Meireles, no qual ve­mos Nossa Senhora da Conceição envolta num vestido esvoaçante e num fluido véu, parecendo, toda, uma pri­mavera. E eis, há dois lustros, completo o painel históri­co: Anita erguida sobre um pedestal, jovem e bela após uma ausência de mais de cem anos, numa das mãos a arma que usou quando foi mister e a outra alevantada num gesto de aceno e de comando. Anita em pé, viva e em movimento na escultura soberba de Antônio Caringi, tal como em 1839, quando partiu para a luta e para o amor. Os ventos da Laguna cantam para ela, que tem, conchas em redor. Conchas lembrando o mar ali perto e o barco farroupilha onde a singela, a rústica Ana de Jesus Ribeiro se transformou na Musa da Liberdade. Sim, Lagu­na deve ser preservada como Ouro Preto.

1974

 

Passeio poético pela botânica

A escondida e rósea Casa dos Pilões, localizada no Jardim Botânico, é hoje o Museu Kuhlmann, magistral­mente dirigido pela professora Odette Travassos. Nela residiu até sua morte o cientista João Geraldo Kuhlmann e, em homenagem à grande vida do sábio que tanto esti­mei, quero recordar a visita que lhe fiz quando ele acaba­va de representar o Brasil no VIII Congresso Internacional de Botânica, realizado em 1954 nos conspícuos anfitea­tros da Sorbonne.

Apesar de diretor aposentado do Jardim Botânico — escrevi eu então — o professor Kuhlmann não deixa um só dia de ali trabalhar. Encontrei-o no seu gabinete, es­tudando com amor, com esse austero e concentrado amor do cientista, uma das plantas que encontrou no vale do Rio Doce, designando-a como emmotum faia. Olho o de­senho perfeito de uma fração da árvore capixaba, que tem quase vinte metros de altura. Contemplo as folhas reco­lhidas e conservadas como relíquias e devo revelar muita ignorância nas minhas perguntas, pois percebo um sor­riso vagamente irônico nos olhos claros de Linneu, que assiste à conversa pendurado na parede.

Do seu gabinete, vamos à Casa dos Pilões, onde re­side o professor Kuhlmann, velho prédio colonial encra­vado no Jardim Botânico. Atravesso de novo o Herbário, onde está o retrato do cientista catarinense, (Kuhlmann nasceu em Blumenau) e a Sala Barbosa Rodrigues, do­mínio da carpologia, onde meus olhos vão precisamente deter-se na rosa e no botão feitos de sementes pelas mãos de fada de uma artista anônima.

Parece um sábio europeu este que caminha ao meu lado, mostrando-me os seres vegetais e designando-os com difíceis nomes de famílias, que não guardei. Mas oh, não esquecerei a rosa da montanha. Nem as aleias de bambus com seus amplos leques de sombra. As es­cadas de pedra, os córregos, a estufa de plantas carní­voras. Não esquecerei a Lagoa Frei Leandro, com suas flores róseas subindo dos aguapés deitados. Nem o mais alto jequitibá do Jardim, nem as folhas do velho pau-brasil, lembrando graúdas avencas. As árvores da Ama­zônia e o cedro do México. A palmeira moça plantada por Getúlio e a palmeira plantada por D. João VI. Nem, finalmente, o pé de jambo em plena floração, que me es­perava em frente à Casa dos Pilões, com a surpresa das suas alegres flores cor de aurora, carregadas de néctar.

Em todo o trajeto, o professor Kuhlmann ensina. Marcando plantas, vejo placas com o seu nome universalmente conhecido. Seu nome quer dizer quase dez lus­tros dedicados à Botânica Sistemática. As três vezes que atravessou Mato Grosso as suas pesquisas em mais de trinta tributários do Amazonas, os seus estudos no vale do Rio Doce. As copiosas colheitas que trouxe dessas viagens de sábio e o labor de cada dia que, desde 1919, tem desenvolvido no Jardim Botânico. As suas numero­sas publicações, algumas das quais constituíram a con­tribuição brasileira ao VIII Congresso Internacional de Bo­tânica.

Na residência do naturalista, tive oportunidade de apreciar as lembranças que trouxe do conclave, do qual foi um dos presidentes. A bela medalha de bronze e o pergaminho que lhe conferiram são uma honra para o Brasil, como o são as separatas que levou para aquele encontro universal de botanistas, contendo estudos so­bre famílias, gêneros e espécies novas de vegetais bra­sileiros e despertando o mais vivo interesse entre os con­gressistas dos países europeus, "onde não há mais um musgo, uma alga, um cogumelo que não seja conhecido".

 

Pele contra pele

Quem leu "Tempo de Fiar", livro de estreia de Myr­tes Campello — que, em registro de 1965, chamei de livro maduro e que obteve o Prêmio Cidade de Belo Ho­rizonte daquele ano — não se surpreenderá com a força, a solidez, o poder criativo de "Pele Contra Pele", lau­reado com menção honrosa no III Concurso Nacional Wal­map*. A temática, no entanto, produzirá um impacto, principalmente pelas nuances novas de que vem carre­gada.

Há ficcionistas que podem ser dominados, arrasta­dos pelo personagem — e temos lances e episódios de­correntes do temperamento da criatura e que não esta­vam antes na mente do criador. Tal não poderia ocorrer com a romancista Myrtes Campello. O edifício deve estar construído, pronto o enredo, tudo plasmado até às míni­mas pulsações quando ela começa a escrever. Mesmo porque "Pele Contra Pele" nada tem de linear. A narra­ção é contraponteada, os personagens vão aos poucos surgindo nítidos e inteiros a despeito das épocas alter­nadas, fragmentos aglutinam-se compondo ambientes e almas e tornando claro o drama desde as suas raízes.

Drama, caso freudiano: menina violada por um ne­gro dentro de um parque ensombrado, gerando a ambivalência (repulsa-atração) relativamente à cor da pele e ao lugar sombrarborizado. ("Eu queria que todos enten­dessem aquilo que me atirou para Daniel"). Assim, Ca­cilda torna-se, um dia, amante de Daniel, preto, econo­mista de valor, que salvara a fábrica do marido, reben­tando, porém, espetacularmente a neurose (fuga, escân­dalo) quando os dois se encontram dentro de sombria mata ("bosque maldito?").

Livro notável pela técnica e pela tremenda lógica da narrativa, pelos diálogos monologados que mais parecem vozes emergindo do fundo de um poço, pela intercorrên­cia de personagens vários que falam na primeira pessoa, pela presença, na neurose, de sons-figuras-natureza (sím­bolos). Um vultinho trágico é elo nos acontecimentos: o filho semiparalítico e surdo-mudo, que acompanha Ca­cilda nos seus encontros com o preto que tinha "estatura de rei".

"Pele Contra Pele" reafirma a existência, em Minas e no Brasil, de uma romancista de enorme talento e traz capa de autoria de Nora Fonseca (bastante sugestiva: o rosto branco da mulher, o vulto negro do homem).

(*) Obteve no mesmo ano (1972) o Prêmio Coelho Netto da Academia Brasileira de Letras.

 

Duas poetisas de Moçambique

Em palestra no PEN Clube, Margarida Lopes de Almeida dilatou o nosso conhecimento dos valores líricos da língua portuguesa, apresentando poetas que ela co­nheceu em sua visita às terras africanas de Moçambique e de Angola. Com aquela arte consumada, Margarida leu e declamou a grande e desconhecida poesia portuguesa da África. Vozes de Luanda, visões do Índico, frêmitos de palmas e de revoltas, cantos à terra e à raça, loas às "moças lindas da cor da noite escura". Um poema imen­so e patético: "Os Mortos Perguntam". E, em quase to­dos os versos, o testemunho de uma surpreendente re­novação.

Dos poemas recitados pela gloriosa artista — obser­vei que o mais longo e o mais curto eram de autoria fe­minina: "Poema da Infância Distante", de Noêmia de Souza, e "Amor", de Bertina Lopes, ambas filhas de Mo­çambique. O primeiro se estende nas páginas quarta e quinta deste fabuloso caderno amarelo (com letras e ilus­trações negras) que Margarida posteriormente me ofer­tou e que mostra como são os poetas de Lourenço Mar­ques: modernos na forma, no conteúdo e na apresenta­ção gráfica.

O poema de Noêmia de Souza, de ritmos largos e vigorosos, é uma evocação da infância e dos seus "he­terogêneos companheiros":

"meninos negros e mulatos, brancos e indianos,

filhos de mainape, do padeiro,

do negro do bote, do carpinteiro,

vindos da miséria do Guachene

ou das casas CIO madeira dos pescadores,

meninos mimados do posto".

Contém ricos e estranhos elementos folclóricos:

"Ah, meus companheiros acocorados na roda maravilhada

e boquiaberta do Karingana wa Karingana"

das histórias da cocuana do Maputo (*)

em crepúsculos negros e terríveis de tempestade

(o vento uivando no telhado de zinco,

e mar ameaçando derrubar as escadas de madeira da varanda

e casuarinas gemendo, gemendo,

acordando medos estranhos, inexplicáveis

nas nossas almas cheias de xitucumulucumbas desdentadas

e reis Massingas virados giboias ...)

Depois, a lembrança da lição poderosa que lhe de­ram:

"Ensinaram-me que "fraternidade" é um sentimento belo

E possível,

mesmo quando as epidermes e a paisagem circundante são tão diferentes."

E eia, que começara cantando: "Quando eu nasci na grande casa à beira-mar / era meio-dia e o sol brilhava sobre o indico /" transforma o final do seu poema em fra­terna e corajosa mensagem:

"Por isso eu creio que um dia

o sol voltará a brilhar, calmo, sobre o Índico.

Gaivotas pairarão, brancas, doidas de azul

e os pescadoras voltarão cantando,

navegando sobre a tarde tênue.

E este veneno de lua que a dor me injetou nas veias

em noites de tambor e batuque

deixará para sempre de me inquietar.

Um dia,

o sol inundará a vida.

E terá como que nova instância raiando para todos..."

Quanto ao poema de Bertina Lopes, é um primor de síntese, são cinco linhas apenas, contendo todo um mun­do de verdade e de beleza:

"Humano e intenso

na sua forma divina

tão natural e puro

tão dentro de mim

o amor".

(*) Nome atual de Lourenço Marques.

 

A planta d'água

Eu conhecia de Vera de Vives alguns artigos em jornal fluminense que a singularizam pela coragem e pela cultura. Lembro mesmo um deles, que parece um dardo e, também, um hino, escrito num Dia do Mestre, e aquele com que assinalou o aparecimento, em volume de bolso, da tradução (diretamente do grego) das "Odes de Ana­creonte" por Almeida Cousin. Mas não conhecia a Vera de Vives contando às crianças — histórias como devem ser os contos de fadas de nossos dias. É o que nos proporciona a Editora Vozes ao incluir, na coleção "Feliz idade" copiosamente ilustrados, alguns dos seus contos.

"A Planta d'Água", o meu preferido, nos mostra o menino Luizinho — que não gostava de plantas, porque as achava "tolas, caladas, sempre pregadas ao chão", e ficava muito contrariado quando o pai ordenava que re­gasse a horta — surpreendido ao ouvir a fina voz da cou­ve e recebendo dela a primeira revelação da linguagem vegetal. Depois, o pé de abacate contou ao nosso meni­no a história da planta d'água. História narrada na pri­mavera, quando todas as plantas estavam festejando o aniversário de casamento da fada Florestan, filha da Terra, com, o Grande Gênio das Águas. Interrompido pelo lírio, pela violeta, pelo amor-perfeito (e a gente vê páginas e páginas cheias de coloridas flores) o abacateiro contou algo que, no que diz respeito ao maravilhoso, nada fica a dever às antigas histórias de príncipes encantados e formosas filhas de rei: contou a história de amor da fada Florestan, cuja missão "é proteger as plantas e os animais da floresta". Pedida em casamento à Grande Mãe Terra por vários pretendentes à sua verde mão (o Vento, o Sol, o Gênio do Fogo, o Luar, o Gênio das Águas) foi por este que se decidiu. Ao saber, porém, de uma objeção da Terra ("não há planta que possa crescer na água") o ansioso Gênio rogou à noiva três dias de espera, prometendo fazer brotar a planta d'água na Lagoa Encantada, a qual surgiu muito bela, saudando a fada e pedindo que dis­sesse à Senhora Dona Terra "que é da água que toda vida se sustenta". Veio, em seguida, o consentimento e as bodas foram celebradas na radiosa primavera.

 

Uma feira do livro

Andei pela minha cidade natal participando de uma Feira do Livro, a segunda que promove na capital cata­rinense a Câmara Júnior de Florianópolis.

Não creio que, em nenhuma parte do Brasil, em ne­nhuma parte do mundo, livros se vendam num cenário mais estonteante. As barracas foram armadas no ângulo do Jardim Oliveira Belo — fronteiro ao Palácio Rosado, de cujas sacadas já falei (Maura em flor, em que vereda te escondeste?). E o Jardim Oliveira Belo é um bosque. É ali que vive e dá sombra, amada como um ser humano, a nossa grande figueira centenária. Gladíolos se cobrem de ouro, jacarandás de flor, fidalgas parasitas viçam no tronco dos flamboyants, palmeiras de várias idades e gêneros ali moram, bem como vetustas nogueiras, árvo­res majestosas, flores de Vênus da cor mais rubra dos poentes ilhéus. E a deusa Flora, no seu quadrilátero de orquídeas, é como um símbolo de todo aquele inexce­dível esplendor.

Num recanto assim, livros. Livros nas barracas em semicírculo, armadas pelas jovens mãos da Câmara Jú­nior, associação internacional baseada nos fascinantes postulados das relações humanas e cuja meta, em Flo­rianópolis, é a educação.

Recordo aqueles primeiros dias de chuvas inimigas — que não impediram, no entanto, o comparecimento do público — e o céu de veludo, com o broche de Saturno cintilando, que coroou a noite do encerramento. Recordo o carinho com que os inquietos juniors cercaram a con­terrânea convidada e as perguntas que fizeram para co­lherem e irradiarem as minhas impressões. Recordo ter afirmado que, através das feiras, se consolidava o sim­pático processo de levar o livro ao comprador e que era assim que eu as via — com o significado que elas real­mente têm: a valorização do livro como mercadoria. A propósito dos Festivais de Escritores, frisei que o resul­tado é a compra do livro — e isso é sempre bom. Mas não pude deixar de dizer que, pelo menos os que se têm realizado aqui no Rio, para mim valem menos do que as mais singelas feiras de livros. Estas são sempre muito mais autênticas, pois apresentam a mercadoria, o livro — sem as muletas dos ases e estrelas, a intercessão so­fisticada dos padrinhos e madrinhas dos escritores par­ticipantes. Tais considerações envolviam uma autocrítica que eles souberam receber com um sorriso — pois eu também tenho tido patronesses...

Quanto à Feira do Livro em Florianópolis, marcada de lançamentos de escritores catarinenses e de uma pro­cura incessante de autores nacionais, pode-se dizer que se realizou sob o signo da juventude. Porquanto até mes­mo o busto de Ruy Barbosa — deslocado naquele am­biente floral, mas muito bem plantado entre barracas de livros — parecia revestir-se de um halo de permanência e verdor.

 

Pinheiro preto

Para saudá-los, meus paraninfados, no dia em que terminam o seu Curso Ginasial, falarei de um mútuo ca­rinho e de uma dupla alegria. Realmente, bem avalio a agradável surpresa que vocês tiveram ao saber que o nome de sua Escola é o de alguém vivo, atuante e que desejou logo estabelecer com mestres e discípulos — la­ços que, estou certa, perdurarão. Quanto a mim, fiquei igualmente emocionada com a homenagem que os ex-governadores Celso Ramos e Ivo Silveira prestaram ao magistério que exerci na capital do nosso Estado, quando fui chamada de jovem professora da juventude, dando meu nome a esse branco educandário de Pinheiro Preto. Tudo isso forjou elos caros e gestos enternecedores, como o que vocês tiveram agora: convidar-me para madrinha de sua festa de formatura.

Acreditem que muito me sensibilizou a carta gentil que me enviaram e que, ao ler as catorze assinaturas, nome por nome, constatei logo que a maioria brotou do mesmo tronco racial de que são oriundos os descenden­tes de Anita Garibaldi. E ela — a Heroína de Dois Mun­dos — é a mais bela figura da história catarinense.

Sentindo não poder comparecer, estarei, no entanto, presente, porque representada pela querida diretora Iria Randon. Dar-lhes-á ela o abraço com que a todos envol­vo e que leva meus agradecimentos renovados, minhas cálidas esperanças. E meus votos. Votos para que não esqueçam jamais a Escola a que devem a sua formação e, se possível, continuem a estudar. Votos para que amem sempre o trabalho, o dever, a terra natal e assu­mam com orgulho a sua idade, certos de que pertencem a maravilhosa geração que governará o mundo quando o século vinte e um estiver surgindo.

Sejam felizes, jovens amigos de Pinheiro Preto.

 

Divagações sobre uma peça

— Segui o seu conselho, minha amiga. Esqueci minha angústia, desenrolei-me de meus pensamentos e fui mergulhar em outros, indo ao teatro.

— Bem, sair de si mesma era uma necessidade vital. Carregar coisas fora do seu mundo — não a deixou mais leve?

— Mais leve? Fui ver "As Criadas", de Jean Genet.

— Então você viu algo com o qual nosso teatro deu um passo à frente, passo constituído de muitos fatores: a boa tradução de Francisco de Paula Lima, a direção se­gura de Martim Gonçalves, o fabuloso desempenho.

— Realmente, Érico de Freitas e Carlos Vereza, nos difíceis papéis de Claire e de Solange, mostraram-se intér­pretes inteligentíssimos. Quanto ao ator Labanca, é nome consagrado.

— Ora, Labanca é um monstro. Conheci-o no seu es­critório de advogado, já mordido, porém, pela paixão do teatro. Tão grande que um dia largou tudo para se consa­grar inteiramente à ribalta. Além de ser um dos mais cul­tos atores brasileiros, tem tido atuações magistrais e inesquecíveis como ao representar o major Vidigal na tea­tralização de "Memórias de um Sargento da Milícias". E, agora, temos de reconhecer que lhe enriqueceu a carreira o papel de Madame na sua passagem tempestuosa pela peça "As Criadas".

— Cuja densidade me atordoou e enlevou. Credo! Jean Genet é mesmo o último poeta maldito como o cha­mou Sartre. E aquelas cerimônias celebradas pelas servas irmãs, numa ambivalência de ritos de amor e ódio inspirados pela patroa, parecem de fato Missa Negra como assinalou o mesmo Sartre.

— Sim, mas a peça lembra igualmente uma tragédia grega. Personagens femininos representados por homens, aquelas máscaras, os mitos...

— E as situações levadas ao paroxismo? Você sabe no que estou pensando? Se, em "As Criadas", trabalhas­sem mulheres e a peça fosse despojada de sua proposital irrealidade, retornaria quase à fronteira do romântico.

— Do romântico?

 

Um livro de Marcuse

De Herbert Marcuse — filósofo alemão que leciona na Universidade da Califórnia — pode-se dizer não ape­nas que é um dos mais lúcidos pensadores do nosso tempo, mas também que seu pensamento está influen­ciando as aspirações juvenis no sentido de um mundo melhor. Começamos a ter a versão brasileira dos seus livros: "A Ideologia da Sociedade Industrial", seu mais recente ensaio, e "Eros e Civilização", seu livro mais di­fundido e, talvez, mais apaixonante, ambos com o selo de Zahar Editores.

"Eros e Civilização" é "uma interpretação filosófica do pensamento de Freud". De acordo com as teorias do criador da psicanálise, os instintos do id, principalmente o sexual, exigem contenção (e, portanto, repressão) para que sejam possíveis as civilizações. Continuando a sua interpretação, acha, entretanto, Marcuse que nestas exis­te mais-repressão, a qual não corresponde a uma necessidade de conservação da estrutura social, mas a uma vontade de domínio, a uma tirania que a torna excessiva e odiosa. Dispondo a civilização moderna de uma tecno­logia cada vez mais adiantada e permitindo mais produção em menos tempo — exigindo, pois, menos trabalho alienado e deixando lazeres para o prazer — pode evoluir para outro tipo, em que a sociedade tenha bases não re­pressivas. Assim, o livro palpitante de Marcuse analisa o pensamento freudiano aplicado à nossa civilização indus­trial, que, segundo o pensador, é irracional, embora sob forma racional. É contra essa irracionalidade, que a torna autodestrutiva (domínio de Thanatos) que o domínio de Eros se insurge, exigindo outras formas de relações e de vida.

(4-8-68)

 

Mães modernas

Não vou falar (como cinema) a respeito de "Le Cas du Docteur Laurent", filme francês que saiu do cartaz há umas três semanas e que bem merecia uma exibição mais prolongada. Direi, no entanto, que muitos amigos pediram minha opinião sobre a excelente película de Jean-Paul Le Chanoi e, como agora recebo uma carta no mesmo sentido, aqui estou, dando a estas linhas o título português do filme.

Quero frisar que não se trata de crítica de cinema, pois tal seria invadir a seara do meu fraterno colega Paulo Porto, mas de emitir minha opinião sobre a história basea­da na corajosa tese do parto sem dor.

As solicitações em apreço prendem-se naturalmente ao fato de a Organização Simões Editora ter reunido em livro as reportagens que escrevi, no desaparecido vesper­tino "A Noite", sobre as primeiras aplicações do método psicoprofilático no Rio de Janeiro. Livro que um repór­ter chamou de "volume cor de violeta, mais parecendo um livro de poemas". No entanto, bem que ele contém um poema, o qual fez o brilhante Miranda Neto, no artigo "Pavlov e a Poetisa", publicado naquele jornal, afirmar: "Sei, pelo livro de Maura, que a gente pode nascer como um botão de flor". Esse desabrochar lá está belamente no filme, apresentando um parto verdadeiro, como se fosse o da própria Francine, a heroína.

Muitos são, no entanto, os espinhos que ferem os pioneiros. Dr. Laurent é o veterano Jean Gabin, que está bem convincente no papel de médico e mestre incom­preendido de futuras mães numa pequena cidade france­sa. Direi que toda a doutrinação que desenvolve está per­feita, fiel ao método divulgado por Lamaze, tanto na parte fisiológica como na psíquica. A reação, as superstições, os preconceitos, o amor à maldição bíblica do parieris in dolore — também estão muito bem apanhados. Eis que surge, porém, a jovem mãe solteira (Nicole Courcel) pron­ta para submeter-se ao método revolucionário e humanís­simo, revelando-se, dessa forma, duplamente heroica.

Quero, por isso mesmo, salientar um dos pontos altos do filme: a resposta que a rapariga enganada deu ao pai da criança (filho dos ex-patrões), quando este, que a abandonara — apresenta-se inesperadamente, pronto para casar-se, a fim de que o menino tivesse um nome. Tenho que ela pensou que só o amor justifica o casamento, por­que respondeu maravilhosamente:

— Não é preciso. Ele terá o meu.

(22-5-60)

 

A psiquiatria e os atropelamentos

A psiquiatria, "a mais nebulosa, a mais difícil e sedu­tora das especialidades", segundo mestre Antônio Aus­tregésilo, tornou-se um dos mais procurados e ativos ter­ritórios da medicina nos tempos modernos. De Charcot a Freud, de Freud ao momento atual, a relevante ciência se enriquece dia a dia, impelida em grande parte pelo número sempre crescente de doentes da alma. Realmen­te, não há negar que são as enfermidades nervosas que sobrelevam em nosso tempo; que se observa, hoje, uma exacerbação das psicopatias, nascidas sobretudo de fa­tores econômicos e que é muito mais grave e dramática do que pode parecer em superfície, abalando, não raro, a tranquilidade doméstica, o mundo afetivo, a vida social. Besta pensar nos problemas que cria para si próprio e para os outros o doente da alma solto na vida.

Em face dessas realidades impressivas e para que dissesse algo sobre a posição e a atividade da psiquiatria na nossa conturbada vida contemporânea, entrevistei, há pouco, uma das maiores autoridades brasileiras, o pro­fessor Neves-Manta. A conversa foi no seu consultório, conjunto de salas claras, onde há muita coisa a admirar — as estantes, os quadros, os belos jarros chineses, as raras obras de arte — e que parecem ter sido destinadas e o foram, sem dúvida, pelo patologista do espírito e pelo homem de fino gosto — a proporcionar um ambiente re­pousante, desatado e propício ao nevrótico, ao psicopata.

O autor de "A Alma do Homem" não só domina com­pletamente a densa região do neuropsiquismo como é um mestre habituado a transmitir os seus conhecimentos. Não pretendo recapitular aqui as coisas palpitantes que então me disse o ensaísta de "A Arte e a Neurose de João do Rio" sobre os aspectos modernos da terapêutica psiquiá­trica. Meu propósito é reproduzir, tão somente, as afirma­ções do professor Neves-Manta quando a entrevista che­gou ao cotidiano da nossa ex-metrópole e, principalmen­te, aos atropelamentos verificados cada vez em maior nú­mero nesta sempre mui amada cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Disse ele:

— O Rio de Janeiro é, sem dúvida, a cidade do mundo em que se assinalam, diariamente, mais atropela­mentos por veículos motorizados. Examinem-se, psiquia­tricamente, os motoristas apressados e examinem-se tam­bém os transeuntes distraídos, irritados e vociferantes — e os resultados saltarão estarrecedores. Muitos motoristas serão, então, afastados de suas funções e inúmeros pedes­tres terão que ser assistidos psiquiatricamente. Esta a rea­lidade. Enquanto isso, repetem-se os trágicos acidentes de rua, as discussões, os palavrões, os gestos exaltados à beira das calçadas e os crimes passionais multiplicam-se assustadoramente. Evidentemente, o mundo enlouque­ce e os psiquiatras não chegam sequer para as necessi­dades domésticas.

 

História de Blumenau

Porque sou uma enraizada ("Santa Catarina, minha terra, em que estou presa como uma planta" e "abraçada ao universo tendo as raízes em ti" — disse eu em dis­curso e em poema) admiro, respeito, aclamo os que o são. Aponto, pois, no registro de hoje, o nome de alguém que ama estremecidamente o seu berço; que o estuda com uma obsessão de amoroso e de erudito; que o devas­sa desde as origens de sua história; que traça a sua evo­lução com a direiteza de um geômetra e o expõe na sua estupenda atualidade. É ele o eminente historiador José Ferreira da Silva. Sua mais recente obra e, ao mesmo tempo, sua obra máxima — é esta História de Blumenau, que ele acaba de me enviar. Como envia, periodicamente, "Blumenau em Cadernos", órgão destinado ao estudo e divulgação da história de Santa Catarina, e "O Leitor", órgão da Biblioteca Púbica Municipal Dr. Fritz Müller, de que é diretor. Como enviou, há pouco, a "Cronografia do Dr. Blumenau" e "Entre a Enxada e o Microscópio", em que narra episódios da vida de Fritz Müller, o colono e o sábio a quem Darwin chamou de "príncipe dos observa­dores". Como, há tantos anos, me ofereceu sua preciosa e completa biografia do Doutor Blumenau.

No presente volume, todo o contexto. Lendo-o, vibrei­ — pois tenho a paixão do pioneirismo — com a pertiná­cia, o labor, a teimosia, a coragem, a visão de rasgador de caminhos do Dr. Hermann Bruno Otto Blumenau. Ven­do chegar os dezessete primeiros imigrantes que ele trouxe; a colônia crescer à margem do Itajai-Açu; nascerem cabecinhas douradas; veredas se abrirem; louras mãos trabalharem a terra morena, gerando hortas, pomares, as primeiros culturas, e as primeiras casas rústicas serem construídas com o inigualável gosto alemão, as cortinas tremulando, os jardins florindo. Depois, a escola e a igreja. Mais tarde, as fábricas semeando o imenso parque indus­trial dos nossos dias. Antes, porém, o destemor pioneiro enfrentando a região desconhecida e os ataques dos ín­dios, que eram, afinal, os donos da terra.

Na minuciosa e fiel narrativa do historiador, as déca­das passam carregadas de realizações; estruturam-se a cidade e o município e vão surgindo os grande nomes de lideres e de clãs e alguns hábitos que até os não descen­dentes de alemães incorporaram. Entre estes: os delicio­sos "kraenzschen", reuniões semanais femininas em casa de cada uma das componentes do círculo, com lanche, papo e trabalhos de agulha. (Lembro-me de um, de que participei na Ilha de Santa Catarina: eu fingindo que bor­dava margaridas, antes de serem servidos os divinos mo­rangos com nata e "strudel" de maçã com chá e sim­patia.)

Livro de quase 400 páginas, com o selo da Edemi, de Florianópolis, compõe-se de quatro partes e um anexo, abarcando, em termos definitivos, os 122 anos da histó­ria de Blumenau; que é aberta com um retrato em cores do seu preclaro fundador. Obrigada, mestre

3-7-72

 

Livro de Zora

Um dos lançamentos mais originais e, ao mesmo tempo, mais apropriados — foi o que ocorreu com "Ie­manjá e suas Lendas", de Zora A. O. Seljan: numa travessia marítima Rio-Santos-Rio, com danças e cantos ao som de atabaques e uma profusão de ramalhetes jogados ao mar em honra da rainha das águas. O novo livro da vito­riosa escritora de "Três Mulheres de Xangô" tornou-se logo um dos mais procurados e, menos de quinze dias depois daquela ruidosa festa em alto mar — Zora tra­zendo no vestido brilhos de prata e escama — saía a se­gunda edição.

Era ela, sem dúvida, o escritor indicado para nos dar "Iemanjá e suas Lendas". Lúcida estudiosa do sincretis­mo religioso afro-brasileiro, inaugurou-o Zora em nossa dramaturgia. Mais tarde, na África, ela viu as fontes da cultura em que se especializou. Foi quando publicou "Educação na Nigéria", que, sobre significar um canto de amor à jovem África, é um relato claro das suas pes­quisas e das atividades que desenvolveu como Leitora de Estudos Brasileiros na Universidade de Lagos. Cresceu em consequência o seu renome e Jorge Amado agiu acer­tadamente quando lhe solicitou escrevesse ela o livro que milhares reclamavam: "Iemanjá e suas Lendas". Prefaciado pelo autor de "Mar Morto" e entremeado de ilustra­ções, entre as quais as de autoria da nossa grande Sílvia, o livro de Zora A. O. Seljan é antologia, é compêndio, é a exegese de Iemanjá — apresentando, nas suas várias e sedutoras formas aquela que é a rainha do mar, sereia, Iara, Nossa Senhora, "mãe de todos os orixás".

 

A nova mulher

"Trabalhe, peça ao homem o amor e não o pão co­tidiano" — aconselhava Eleonora Duse. E, quer queira ou não, a mulher moderna estuda, trabalha, luta. Há que firmar-se como pessoa humana, tornar-se uma unidade econômica, um ser participante. Quantas vezes, porém, a mais áspera de suas lutas não é a que trava pela so­brevivência, por um lugar ao sol, um posto, um diploma, uma carreira: é a que se processa dentro de si mesma. Este apelo atávico, este coro das avós-rainhas-do-lar, esta fala de sereia que vem dos recessos do seu próprio coração, este drama de não estar desatada do passado e ter de jogar-se na luta áspera dos dias presentes — conflito que ninguém analisou melhor do que Alexandra Kolontai em seu livro "A Nova Mulher e a Moral Sexual". Nessa abordagem e dentro da faixa do meu conhecimento, penso que nem mesmo a alcança Maria Lacerda de Mou­ra, que tanto marcou, empolgou, tumultuou com seus livros a minha adolescência (ao ponto de eu levar para o culto, em desafio, a "Religião do Amor e da Beleza" em vez da Bíblia) e que foi, afinal, embora injustamente esquecida, a mais corajosa escritora brasileira a tratar, até hoje, da condição feminina.

Já li que a expressão nova mulher nasceu dos movi­mentos do Women's Lib. Não. Ela é talvez contemporânea do término da Primeira Guerra Mundial, época de que me parece datar o livro da Kolontai, que somente duas déca­das depois chegou ao Brasil. Foi quando o li.

Quanto àquelas vozes ancestrais, chamando para o comodismo e a dependência, não há dúvida que de mãe para filha se vão atenuando e que a geração atual, a esse respeito, já se encontra quase ou totalmente liber­tada. Agora, a menina-e-moça já pode curtir o seu prepa­ro para a vida com a mesma naturalidade de um rapaz. Adquirir o "fluido imponderável que nutre o espírito e se chama cultura" (segundo Rose Marie Muraro, em vinte anos, a partir da década de cinquenta, o número de uni­versitárias cresceu dez vezes no Brasil) e saber que nas­ceu também para exercer uma profissão — tal como o companheiro homem. Poderá encontrar contestações fora, mas não dentro de si mesma. Nova mulher? Novíssima.

 

Cortes e súmulas

 

Os degraus do paraíso

Com a mesma estrutura sólida de "A Décima Noite" e trazendo de novo a cidade de São Luís com o sol baten­do nos azulejos, seus ventos, sobrados e ladeiras — Jo­sué Montello dá-nos, agora, "Os Degraus do Paraíso". E, como acontece naquele romance, desdobra este uma tese inteiramente nova. Creio mesmo que, pela primeira vez, os conflitos entre protestantes e católicos entraram na ficção brasileira, valorizada ainda a temática pela narra­tiva e testemunho do extraordinário romancista. Nestes dias ecumênicos, em que vemos as igrejas cristãs busca­rem a unidade, principalmente os moradores dos centros maiores devem espantar-se com a violência daquelas lutas entre os "crentes" e os seguidores da igreja de Roma. No interior, porém, eram sem dúvida notórias e mesmo exacerbadas na década recuada de vinte, quando começa a história. Esta gravita em torno dos habitantes daquele amplo sobrado da Rua do Sol, com D. Mariana convertida ao protestantismo e comportando-se de acordo com sua têmpera ríspida e a inflexível e agressiva ortodoxia dos seus irmãos na fé — centralizando os acontecimentos. Registre-se que a grande figura humana do livro é um agnóstico: o Dr. Luna, médico da família, médico da ci­dade. E que a heroína, a bela e verdadeira heroína, não é Cristina, que se torna freira, realizando seu sonho: é Morena, que apenas queria viver e amar e que foi, sem saber, ao encontro da morte.

D. Pedro I, jornalista

Em "D. Pedro I, Jornalista", o professor Hélio Viana, um dos mais respeitados pesquisadores de nosso país, apresenta o fundador do Império Brasileiro como panfle­tário na imprensa de sua época, o que até hoje perma­necia praticamente irrevelado. Figura das mais singulares da história do Brasil, passível de múltiplos e contraditó­rios julgamentos, o fascinante príncipe continua a des­pertar a curiosidade dos estudiosos. Na obra em apreço, valiosa contribuição para o conhecimento de um dos nossos períodos mais agitados, temos a revelação copio­samente documentada de mais uma faceta da personali­dade de Pedro I, que assinava seus artigos com pseudô­nimos vários. Eis alguns dos mais pitorescos, usados pelo nosso imperial colega: "O Inimigo dos Marotos", "Sim­plício Maria das Necessidades", "Sacristão da Freguesia de São João de Itaboraí", "O Anglomaníaco e, por isso, Constitucional Puro", "O Espreita", "O Derrete-Chumbo-­a-Cacete".

 

Na selva de São Paulo

"Caminhou para a mãe com a solenidade de uma gestante e fundiu-se no abraço que lhe deu e derra­mou-se toda no orvalho das lágrimas. Renascia depois da longa noite e deixava o continente do Nada".

No Teatro Santa Rosa, antes do encontro semanal promovido pela Civilização Brasileira, possivelmente o de mais conteúdo (seu tema foi "Literatura e Realidade So­cial"), Helena Silveira autografou "Na Selva de São Pau­lo" (1966). É seu primeiro romance e nele temos o retrato de uma sociedade aparentemente sem salvação, os perso­nagens mostrados no seu exterior e dissecados nas suas mais íntimas reações, as feridas, as deformidades, as con­tradições, os desesperos e, sobretudo, a dolorosa primazia do negativo e do vazio. É a "dolce vita" em termos de romance, captada e descrita por alguém que, durante quinze anos, foi a colunista social da "Folha de São Pau­lo" e que é uma das melhores contistas brasileiras.

Falando a um repórter, disse Helena Silveira que de tal forma acreditava num mundo melhor para todos que "o via e quase o tocava". Deve ser por isso que, no "con­tinente do Nada", de repente se abrem veredas de ter­nura e redenção. Há um clarão de esperança na cami­nhada final de Sofia e seu encontro com a figura materna simboliza, de fato, um renascer.

 

A dona da cantão

Fecharam-se aqueles grandes olhos verdes, extin­guiu-se a voz melodiosa, cessou aquela vida marcada de beleza. Mas a fonte que ela era continua a cantar.

Tendo estreado ainda adolescente, foi logo recebida como um poeta. Um poeta que, mais tarde, em "Viagem" conquistaria definitivo renome. Livres e livros vieram — até "Solombra" e "Ou Isto ou Aquilo", os últimos — com sua poesia de renda e música, fixando instantes e misté­rios da vida humana, o inexorável, o efêmero, o amor, o sonho, a solidão, a morte.

A morte veio, mas a fonte ficará cantando com a sua graça eterna e a consciência que tinha Cecília Meireles do próprio destino:

"Vou pelo braço da noite

levando tudo o que é meu:

a dor que os homens me deram e a canção que Deus me deu"

Dante em Copacabana

Quando cheguei, já Venturelli Sobrinho havia inicia­do a leitura de parte da tradução que está elaborando da Divina Comédia. Já o maestro Salvatore Ruberti havia pronunciado a sua oração. Já repleta estava a sala estrei­ta em que funciona a "Associazione Amici d'Italia". Mas ainda pude apreciar alguns cantos do "Inferno" soando na admirável tradução do poeta Venturelli. À direita dele, estava Agrippino Grieco, cujos oitenta anos vai o Brasil inteiro festejar este mês e cura vibratilidade o levou a entremear a leitura, no sentido de um cotejo emocionado, com a recitação das grandiosas estrofes italianas de Dante Alighieri. Finalmente, Agrippino falou, aclamado pela sala toda. O que quer dizer: falou com aquela ento­nação inimitável, que tem graduações para toda a esca­la dos sentimentos, e aquelas metáforas que só ele é capaz de criar. E o maior poeta de todos os tempos — o florentino que teve, há três anos, seus sete séculos cele­brados com ensaios, cantos e cursos — teve agora, na tarde de Copacabana, a mais viva síntese em antíteses bri­lhantes assim: "Daquela boca morta saem palavras vi­víssimas" e "Sempre que desejarmos progredir, teremos de retornar a Dante Alighieri".

(6-10-68)

 

Roteiro da agonia

"Mas para onde vão? Tentar nas fazendas perto, bobagem. Tudo terra dos gringos".

Mesmo num ano de grandes romances brasileiros o último livro de Macedo Miranda se distingue como um dos melhores lançamentos de 65. Com "Roteiro da Agonia", (égide da Civilização Brasileira, orelha de Édison Carnei­ro) coloca-se o autor entre os ficcionistas que mais vi­gorosamente têm retratado a realidade brasileira. No caso, trechos do vale do Paraíba, vindo a história até os diais atuais.

O roteiro de uma agonia, as transformações da fa­zenda paternalista centralizada pela Casa (onde "seu Co­ronel era bom, dava bala de alcaçuz, doce de gergelim", e as moças mimavam o menino Luiz) em parte da gleba sem fim da Administração, com seus donos estrangeiros, a violência de seus métodos e a incógnita de suas fina­lidades. Ao caboclo Luiz Pacuera, o herói do romance, cumpre, contudo, obedecer e servir sempre, seu drama se estendendo pelas duas partes magistrais do livro: "A Es­trada" e "A Rua". Brutalmente expulso de seu rancho em Bom Destino, enceta uma dolorosa peregrinação, perde e enterra a mulher, enjeita o filho recém-nascido, aquele Ricardo Mariano de Jesus, na porta de uma mansão da cidade do Vale, onde prosseguem as suas provações, sau­dades, humilhações, perguntas, às vezes revoltas, às vezes quase um acordar.

 

Qual o primeiro romance mineiro?

Leio notícia de que entidades e escritores de Minas Gerais estão realizando pesquisas no sentido de deter­minar qual o primeiro romance de autor mineiro. E uma outra de que a indagação diz respeito ao primeiro roman­ce publicado em Minas Gerais. Ora, se a questão é posta nestes termos, tratar-se-á então, antes, de saber qual a editora (ou tipografia) mineira que primeiro teve condições de realizar tal publicação. Se, porém, a busca — e deve ser esse o caso — visa a apontar o primeiro romance de autor mineiro, creio ser ele "Statira e Zoroastes", que ocupa o terceiro lugar entre os romances — conhecidos e publicados — de autor brasileiro, vindo depois do "Pe­regrino da América", de Nuno Marques Pereira (1728) e das "Aventuras de Diáfanas", de Teresa Margarida da Silva Orta, a primeira romancista brasileira (1752). "Statira e Zoroastes" foi publicado no Rio de Janeiro, em 1826, na Imperial Tipografia de Plancher, e seu autor é Lucas José d'Alvarenga, natural de Sabará, conforme es­tabeleceu Martins de Oliveira na sua primorosa "História da Literatura Mineira". (1969).

 

Gagarin, autor

Lançou a Gráfica Record Editora o volume "Psico­logia e Cosmos", de Yuri Gagárin, explicando na ore­lha: "Este é um livro sobre o Homem e o Cosmos. Teve ele o destino de tornar-se o testamento do primeiro cos­monauta do mundo. No dia 25 de março de 1968, Yuri Gagárin pôs sua assinatura de autor nesta obra No dia seguinte desapareceu para sempre". Desaparecimento, quero acrescentar, que a todos emocionou — justamente pelo pioneirismo espacial que lhe imortaliza o nome, pela sua mocidade e por ter ele descoberto (oh, poesia!) que a Terra é azul. O volume compõe-se de sete capítulos subdivididos em tópicos todos com minuciosos ensina­mentos e atraentes títulos. Eis um deles: "A Andorinha que faz verão". (A Andorinha é a nave cósmica Vostok, onde realizou sua inaugural façanha o simpático rapaz que conheci na Associação Brasileira de Imprensa ainda presidida por Herbert Moses, e cuja entrevista coletiva resumi num comentário).

O pão dos anjos jovens

"Desde o meio-dia, desde a chegada de Hedwig, o tempo era outro, era um tempo diferente".

Um dos maiores acontecimentos do ano editorial é a versão brasileira de "Das Brot der Frühen Jahre" de Heinrich Böll, Prêmio Nobel de 1972, realizada pela Arte-nova. O livro conta uma estória de amor, narrando o encontro de dois jovens que se haviam conhecido na infân­cia. Relato direto, na primeira pessoa, mas tão interiori­zado que a realidade presente terá apenas a dimensão de uma curta rua, enquanto longos caminhos marcam as distâncias que a lembrança percorreu. Linear e denso, simples e carregado dos sumos do cotidiano, "O Pão dos Anos Jovens" traz, na capa expressiva, passos de par entre sóbrios azuis.

(21-8-73)

 

Triângulo

"Não saberia dizer como, nem quando, mas, com sur­presa, viu que a sua mão pousava sobre a leve mão de dedos finos, como se fossem mãos que se houvessem pro­curado toda a vida".

Chega "Balbino, Homem do Mar", contendo, em se­gunda edição, 21 contos de Orígenes Lessa, um mestre no gênero e um dos maiores e mais fecundos escritores brasileiros. Recentemente laureado pelo PEN Clube do Brasil com o Prêmio Luiza Cláudio de Souza pelo seu romance "O Evangelho de Lázaro", que chegou em tempo de Natal (1972), leva-nos agora Orígenes a uma releitura de quase duas dúzias de suas histórias curtas, sendo de "Triângulo", a primeira do volume, o trecho no alto trans­crito. Talvez porque dois dos personagens, criações per­feitas, são de ascendência germânica, é este o conto de Orígenes que mais fala à minha sensibilidade de filha do sul. E eu me sinto premiada ao reler "Triângulo", que, pela contenção do enredo, pintura dos caracteres, inevitabilidade dos comportamentos e ainda pela pungência não descrita, é obra-prima em qualquer literatura.

 

Itinerário da Independência

Deixo para registro posterior numerosos livros che­gados antes deste que hoje saúdo e que aparece no opor­tuno momento: "Itinerário da Independência", de Eduar­do Canabrava Barreiros, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, cartógrafo eminente e o ficcionis­ta de "O segredo de Sinhá Ernestina", que obteve o Prê­mio Afonso Arinos, em 1969, da Academia Brasileira de Letras. (É ele, ainda, um poeta profundo, um causeur ar­rebatador.) Traz o volume de agora, como o livro laurea­do, que fascinou Guimarães Rosa e em que existem con­tos de nível altíssimo (entre eles, "O Coronel") a marca editorial da José Olympio. E é todo um espantoso e minu­cioso trabalho de reconstituição histórica e geográfica da viagem empreendida, entre a manhã de 14 de agosto e a tarde de 07 de setembro de 1822, do Paço Real de São Cristóvão às decantadas margens do (Ipiranga, pelo prín­cipe D. Pedro e sua guarda de honra. No texto e nos mapas, oriundos de suas pesquisas e de sua excepcional capacidade, faz-nos o autor ilustre acompanhar a caval­gada de que resultaria a independência política do Brasil. É trabalho, pois, para saudar porque forjado com "sabe­doria inexcedível", como o diploma Pedro Calmon no pre­fácio.

(Este livro obteve o Prêmio Joaquim Nabuco, da Academia Brasileira de Letras.)

(17-9-72)

 

Nélida

Outro dia, em entrevista ao "Jornal de Letras", sobre problemas do escritor e rumos da ficção contemporânea, a romancista Nélida Piñon, cujos livros e !áureas se su­cedem, parecia falar não apenas para a sua, mas também para as gerações em torno. Pelo menos, eu desejei que todos a lessem, a ouvissem. Foi, por certo, com o mesmo tom objetivo e lúcido que participou ela, no mês passado, em Nova York, do Seminário de Tradução e Literatura Latino-Americana, ao lado de altas figuras do continente. No encontro, pronunciou Nélida uma conferência denun­ciando "o isolamento do escritor brasileiro dentro do boom da literatura latino-americana", segundo comunica­ção que acabo de receber.

(29-7-74)

 

Menino Jorge de Lima

A segunda edição da "Antologia Poética de Jorge de Lima" (José Olympio — 1974) traz uma seleção dos vá­rios livros do autor de "A Túnica Inconsútil" — desde "Poemas da Infância" até "Invenção de Orfeu".

Jorge de Lima é poeta maior, é culminância. Dele só diria que foi meu amigo e me deu a honra de figurar, a meu lado, na "Coleção de Poesia Moderna", originalida­de editorial de Victor Brumlik, ilustrando ele mesmo os poemas do seu caderno. Direi, no entanto, algo mais, mostrando versos do pequeno Jorge de Lima, que bem denunciam o poeta imenso que ele viria a ser. Vejam, por exemplo, como poetava Jorge aos sete anos: "Eu queria saber versos / como meu amigo Lau. / Nunca vi versos mais belos / como ele sabe lá. / Trocava até meu carneiro / meu velocípede sim / sem saber os seus versos / meu pai que será de mim? / Meu pai me bote na escola / de meu velho amigo Lau. / Quero aprender com ele / versos e não b, a, bá!" E, aos nove, forjou ele este grande poeminha:

"Tenho pena dos pobres, dos aleijados, dos velhos.

Tenho pena do louco Neco Vicente

E da lua sozinha no céu."

 

Rachel, Rachel

O diretor da Biblioteca Nacional e o presidente do Conselho Federal de Cultura convidaram para a inaugu­ração, a 25 de setembro, no saguão da BN, da Exposição Rachel de Queiroz, comemorativa do 40º aniversário da primeira edição de "O Quinze", romance de estreia da grande escritora cearense. Foi a importante mostra orga­nizada pela bibliotecária Esmeralda Ribeiro de Mesquita e apresentou não só exemplares das edições todas do romance escrito por uma jovem de dezenove anos, mas das demais obras da autora de "As Três Marias", além de manuscritos, retratos, documentos, originais, Rachel traduzida, Rachel tradutora, a trajetória de Rachel em quatro decênios de produção e de glória.

1970

 

Intermezzo

"A gente pensa que a Vida está na extensão do mun­do e, no fim, descobre que ela possa conter-se, inteira, em um vale limitado, fechado por montanhas..."

Palavras de Rosália, vale que Maria Jacintha, a gran­de dramaturga, criou em sua nova peça, editada pelo Serviço Nacional de Teatro: "Intermezzo da Imortal Es­perança". Falar no nome da autora é citar uma das altas expressões da nossa cultura — como escritora, mestra, tradutora, jornalista. Suas numerosas peças, que se ini­ciaram com "O Gosto da Vida", premiada pela Academia Brasileira de Letras e encenada pela Companhia Jayme Costa, e cujo ponto alto é a extraordinária "Já é Manhã no Mar", encenada pelo Teatro de Arte do Rio de Janeiro e publicada pela Editora Vozes — aliam ao bem urdir e ao bem escrever o trato dos problemas contemporâneos. Uma perfeita comunhão de forma e conteúdo, o texto ma­gistral e o tema profundo e humano, levando o expectador — ou leitor — a pensar, a participar.

Em "Intermezzo da Imortal Esperança", além dos dons sucintamente lembrados, temos inaugurações. En­tra na dramaturgia a tese apaixonante de uma comunida­de fraterna — e o vale torna a peça um cimo. A gênese de tudo é outra originalidade de Maria Jacintha, por­quanto são de sobreviventes de exterminadoras bombas, de um "mundo que explodiu e se desagregou", as mãos que plasmaram aquele reino de amor. E os salvos cantam ao final, enquanto a luminosa Isabel exclama: "Temos sobre os ombros toda a responsabilidade deste mundo que acaba de nascer".

 

Eros Volúsia

Rebento de poetas, filha do cantor do "Divino Infer­no" e de Gilka Machado, uma das maiores vozes da poe­sia brasileira, Eros Volúsia "traçou, com o corpo, no es­paço, as palavras profundas do silêncio", plasmou os seus primeiros versos de passos e de gestos no inesquecível terreiro de João da Luz. Filha da poetisa de "Miséria", menina que se criou no morro, entre as gentes paupérri­mas da capoeira e da macumba, com elas aprendeu os primeiros volteios. E estreou em plena noite clara, du­rante as negras cerimônias. Sagrou-a Babalaô.

Não cessou, daí em diante, o seu deslumbramento ante os motivos virgens da folk-dance brasileira — que ela descobriu e, mais tarde, estilizou e enriqueceu, pre­senteando com uma coreografia nova, estuante de força telúrica, a coreografia universal.

Encontrando-se a si mesma ainda dentro da infân­cia, com mil ritmos na alma, compreendeu que era dan­çando que os derramaria pela terra. Seu destino estava traçado. Começou a estudar dança clássica. Foi aluna de Nemainof durante quatro anos. Em todo esse tempo, não deixou, porém, de ter o mais íntimo contato com a nossa coreografia popular. Conheceu todas as danças regionais do país, debruçou-se enamorada para elas, des­cobrindo suas fontes afro-europeias ou suas firmes raí­zes ameríndias e vendo, em todas, a presença do Brasil, as características da raça. Viu dançar tribos selvagens, leu a nossa história, estudou o nosso folclore. E, ao mes­mo tempo que seu leve corpo flexível ia ficando senhor de todas as severas regras acadêmicas, a dançarina-crian­ça ia estilizando e opulentando as diversas manifestações coreográficas do nosso povo.

Nascia a dança brasileira — com seu estranho co­lorido, sua graça ardente, sua magnífica unidade.

(Fragmento de uma reportagem)

 

Teresinka

Filha de Minas Gerais, onde publicou os seus pri­meiros trabalhos, Teresinka Pereira reside desde 1960 nos Estados Unidos, onde divulga incessantemente livros e valores nossos. Poeta, contista, teatróloga, jornalista, mestra, crítica e ensaísta, a jovem brasileira se derrama pelo mundo em vários gêneros e línguas, porque traduzida em vários países. Por sua vez, ela traduz, promove, congrega, edita. É atualmente professora na Universida­de de Colorado e dirige a revista trimestral "Poema Con­vidado" — mensagem nova, texto de confraternização — onde aparecem (em português) criações de poetas de vá­rias latitudes e resenhas que demonstram um intercâmbio anulador de fronteiras. Grande Teresinka!

 

Postal para Hilda

Não terei, cada manhã, de renovar a água no jarrão escuro. Mesmo assim, as flores que nele estão mergulha­das — não murcham, não secam, não morrem. São vivas e frescas, primaveris e amanhecidas como quando foram cortadas. Pode, também, estar fechada a janela, cerrada a cortina. O sol estará batendo sempre no jarrão florido: nos malmequeres abertos, nos botões e nas folhas, na grande margarida voltada de costas, nos cachos tomba­dos, nas flores amarelas, vermelhas, fulvas. O sol estará batendo mesmo que seja noite — e as flores continuam vivas como eram quando foram colhidas no jardim da montanha. Vivas e refulgentes, espalhadas no jarrão es­curo, suspensas na parede clara. Harmonia de contrastes, fauvisme, graça e brilho — no quadro de Hilda Campofio­rito. "Flores" é o nome simples e breve do ramo de ma­gas. Muito obrigada, Hilda, pela dádiva destas flores eter­nas, que derramam alegria no meu lar sem crianças, que me saúdam no meu cansado regresso cotidiano, que me ajudam, me inspiram e fazem crescer o meu amor à vida, ao universo, à beleza.

 

Mulheres no transplante

Falarei, em seguida, de Aurora, a doutora que se dis­tinguiu no primeiro transplante de pâncreas realizado no mundo. Esposa do médico que, no Hospital Silvestre, che­fiou a equipe capaz de tal feito, o Dr. Édison Teixeira, Au­rora atuou como anestesista e, pela segurança do seu trabalho, pela juvenil beleza do seu rosto e, ainda, pelo seu prenome, ela significa realmente uma aurora. E fa­larei numa jovem mulher morta: aquela de quem saiu o pâncreas redivivo. Parece que se chamava Helena e mor­reu do coração. Que todos gostavam dela, da sua graça envolvente, da sua simpatia irradiante — li algures. Mas o que me comoveu, sobretudo, foi saber que, durante os dias em que esteve hospitalizada, escrevia versos. A moça enterrada no Caju, despojada da glândula enorme que é função e vida no corpo de outro ser humano, escrevia versos. Como seriam eles? Sombrios, líricos, revoltados, sublimados, leves como papoulas ou vincados pela asa da morte? Um punhado de sementes que pretendeu jo­gar na terra? Oh, eu gostaria de lê-los e acho mesmo que devem ser conhecidos os versos escritos in extremis pela jovem doadora que entrou para a história dos transplan­tes no Brasil.

9-6-68

Angra & Reis

Conheci Brasil dos Reis — o poeta de Angra dos Reis, que pôs a sua terra dentro do próprio nome — num congresso de escritores, realizado há muitos anos em Porto Alegre. E tive uma tremenda admiração pelo con­gressista maduro (e seguro) que soube defender com dig­nidade e panache, às vezes num tom magoado, outras atrevido, a sua esplêndida tese sobre "A Luta do Escritor no seu Próprio Meio". Voltando à sua terra, nunca deixou de me enviar notícias, versos e "O Litoral", a folha de Angra que Reis dirige. Fui revê-lo outro dia — quando, com Alípio Mendes, o conhecido historiador angrense, veio para uma tarde de autógrafos na Livraria São José. Brasil dos Reis logo se viu rodeado pelo carinho que nem sempre recebem os poetas e os santos. Autor de mais de vinte volumes de poesia impregnada dos ares e húmus da Angra natal, desde "Lugares Comuns" (1923) até "Be­nedito Noite" (1971) — ele autografou para numerosos amigos, em que predominavam personalidades fluminen­ses, seus recentes opúsculos: Olhando os Astros, Desper­tar, Na Rota do Infinito, Súplica e Velho Convento. Com uma palavra terna para cada um e sentindo que ali está­vamos principalmente homenageando sua fidelidade à terra e à poesia, o bravo ser humano, o pássaro de Angra.

 

Puro sangue é best-seller

Encontra-se quase totalmente esgotada e, em conse­quência, marchando para nova tiragem — a segunda edi­ção atualizada de "O Cavalo de Corrida", do Prof. Dr. Octavio Dupont. Verdadeiro tratado sobre a criação, a patologia e a terapêutica do Puro-Sangue, o volumoso livro do cientista belgo-brasileiro é copiosamente ilustra­do de fotografias e vem prefaciado pelo ilustre mestre Paulo Dacorso Filho, que assim define compêndio e autor: "livro obrigatório para quantos se dedicam à clínica espe­cializada" e "o maior clínico veterinário do Brasil em todos os tempos".

 

Telas espaciais

Ely Braga pertence a uma família de intelectuais, é médico e pianista — e pianista que chegou a apresentar inovações na sua técnica de interpretação. Mas o que importa agora é o alto pintor abstracionista e a simpática figura humana, que amanhã inaugurará, com suas novas telas, a mais nova galeria de Ipanema: a Real Galeria de Arte. Pintor merecidamente louvado pelas suas mostras vanguardistas, o artista partiu para outras pesquisas e des­cobertas, atingindo em seus quadros, numa espécie de sintonização de todos os seus dons, ao que ele chama de "minha fase superespacial". Pois são as novas cria­ções de Ely Braga que amanhã admiraremos em noite de festa. Quanto a mim, já estou pensando nos traços, nas manchas, nos cortes, nas cores que me perturbarão — e nos novos mundos em que me vou perder.

1970

 

A viúva branca

Neste Ano Internacional do Livro — que dará mar­gem a levantamentos, pesquisas, balanços, trabalhos no­vos, esperadas reedições — impõe sua presença a edi­ção comemorativa do 20º aniversário do aparecimento de "A Viúva Branca", de Ascendino Leite. Tal promoção é uma iniciativa da Livraria São José, estando, pois, sob a égide de Carlos Ribeiro. Este não é só o "mercador-de-­livros", como gosta de rotular-se, nem apenas o amigo dos livros e dos que os escrevem, mas também ele pró­prio um escritor, como prova, mais uma vez, com a nota crítica em que reafirma o significado do romance de As­cendino e sua "inquestionável importância no quadro da moderna ficção brasileira".

Assim é de fato, pois a releitura de "A Viúva Branca" não nos traz nada de ultrapassado ou demitido. Permane­ce o livro com aquela aura de renovação que nos comu­nicou há quatro lustros e obriga-nos a reconhecer todos os seus valores, dos quais mencionarei a alta qualidade literária e a originalidade no tratamento do velho tema do adultério. Avulta, em suas páginas, a "brancura lunar" do rosto de Ângela, "rosto de lírio machucado", bem como seu fascínio e seu mistério (mistério ou "desdobramento de personalidades"?) que a colocam na galeria das defi­nitivas criaturas da nossa ficção.

1972

Marcos em prosa e verso

Marcos Konder Reis, poeta que é dos mais significa­tivos de sua geração (a de 45), mesmo quando se põe a escrever em prosa, mantém-se poeta. É o que observo no "Caminho de Pandorgas", conjunto de crônicas ("di­vagações líricas") em que flui sempre a poesia e surgem imagens (invejáveis) como aquele "pombo cor de noiva" ou o grupo juvenil chegando "como um punhado de ara­çás mordidos e atirados na estrada". Recebo também sua "Antologia Poética". Esta contém poemas de livro inédito e dos vários publicados desde "Tempo e Milagre", cada um merecendo a transcrição que vou fazer do so­berbo achado que é Vinho Perdido: "Eu cravo teu lado esquerdo / Com flecha desesperada; / Não sei se devo ou não devo / Às vezes penso... e mais nada. / No es­tribo quebrando galhos / Do bonde da madrugada / Do lado esquerdo é setembro / Daqui a pouco, alvorada. / Teus passos batendo, noivos, / Despertam sobre a cal­çada / Um bando de pombos, goivos / Que amarro con­tra a enseada".

1973

 

"Sexo e vida social na Suécia"

Este livro de Brigitta Linner, lançado pela Editora Laudes, lembra-me o capítulo "A Mulher Sueca" de um livro de Álvaro Valle, que eu já comentei. Ele soube apre­sentar uma síntese das realidades que a grande especia­lista sueca analisa agora com o seu vasto conhecimento de mestra e médica. Registrando aqui o aparecimento da obra, quero assinalar estes dois aspectos: 1.0 — A eman­cipação da mulher sueca tem como fundamento a edu­cação sexual, aliás explicada no mais longo capítulo do livro, e não é nem poderia ser algo de solto, de excep­cional, porquanto faz parte do contexto da existência do grande país nórdico. 2.0 — A autora, frequentemente, se refere a falhas (e deve havê-las). No entanto, como seria bom que muito adulto intelectualizado que anda por aí — conhecesse anatomia como os pequenos suecos!

 

"Não estamos sós"

Este apaixonante livro, lançado pela Editora Cultrix, tem como subtítulo "a busca de vida inteligente em ou­tros mundos" e é de autoria de Walter Sullivan, editor de Ciência do "The New York Times". No ângulo inferior da capa, o esquema de grande radiotelescópio captando o mistério dourado das galáxias. De lá chegaram (e con­tinuam) as pulsações no rádio — talvez mensagens in­tencionais de outros seres e mundos. Nas páginas de dentro, em linguagem clara e acessível, todos os conhe­cimentos que a Matemática, a Astronomia, a Física e a Biologia adquiriram sobre a imensidade dos espaços. E a conclusão sedutora a que já chegaram Flammarion, as­trônomo, e Maeterlinck, poeta: Não estamos sós entre os bilhões de esferas e nebulosas nos universos possíveis.

 

Neila dos muitos talentos

Neila Tavares, recém-chegada de uma viagem de es­tudos pela Europa, além de atriz de teatro, cinema e tele­visão e além de poeta (sim, poeta) — é uma estudiosa, uma pesquisadora. Nas "Notas do Fim do Ano", publiquei carta que me mandou de Roma e agora, com toda a sua graça, mas também com aquele tom sério com que en­cara os assuntos da cultura, me diz — tão radiosa e res­ponsável — em vários pontos da nossa palestra: "Via­gem proveitosa. Encontro comigo. Distanciei um pouco mais os meus horizontes. E voltei com mais vontade para o trabalho. O material de pesquisa sobre Brecht, de que falei na carta, me será enviado pelo correio. Enquanto espero os recursos audiovisuais, vou trabalhando o texto. De volta, revi também o material da minha pesquisa bi­bliográfica sobre Di Cavalcanti. É um trabalho que de­sejo publicar. Tenho ainda outros (uma pesquisa sobre literatura de cordel, outra sobre as origens do teatro bra­sileiro) que vou tentar desengavetar agora. Imagine: além de todos os novos planos, ainda resolvi desentocar os velhos. Já viu a força com que voltei?"

27-3-72

Tempo permitido

"A mim me pertence o meu tempo permitido. Aquele que me foi dado."

Parece que Lausimar Laus pôs a funcionar todos os dons revelados em outros gêneros e searas — para es­crever seu primeiro romance. Para fixar vivências, relem­branças, confidências (e inconfidências), vida fluindo num "campus" de estudantes em Madrid e estendendo-se em viagens (de "auto-stop" ou não). Luisa, a figura cen­tral, é madura, lúcida, equilibrada. Ela e os demais per­sonagens põem no livro a marca do testemunho. Do tes­temunho do nosso tempo, tornando o romance digno de ser estudado por muitos ângulos. O passado, por exem­plo, vem à tona através da evocação permanente de Celina, filha do sul, compondo uma interpretação altamente valiosa de aspectos da comunidade alemã de Santa Ca­tarina. Aliás, o tempo, que já foi chamado de "tecido mais íntimo da própria vida", tem, neste novo livro de Lausi­mar, como que pegada sua sutil presença. Principalmente ao forjar-se o raro e rápido amor entre a mulher quase mãe e o homem quase criança (egresso de um seminário, virgem e viril): Luisa e Antoine. Seu primeiro encontro carnal, irremediável "como terra recebendo", é contado em uma das páginas mais admiráveis de "Tempo Permiti­do", que tem prefácio consagrador de Rachel de Queiroz.

Crônicas de bolso

Com introduções, em verso e prosa, dos intelectuais capixabas Carlos de Campos e José Ignácio Ferreira e a transcrição de uma carta do inesquecível historiador Carlos Xavier Paes Barreto — tio da autora, meu amigo, mestre de todos nós — Nilge Limeira, colunista de "A Gazeta", da capital espírito-santense, lançou, em noite festiva de maio, "Crônicas de Bolso". Livro de quase 200 páginas, reproduz, em graciosas minicrônicas, o cotidia­no da cidade nestes últimos tempos. Nenhum aconteci­mento é olvidado, nenhum gesto ou data, nenhum fato marcante para a comunidade ou importante apenas para o coração. E aquela rosa orvalhada na brancura da capa — é bem símbolo e síntese. Da homenagem diária à terra e à gente, das ternuras derramadas. A noite de autógra­fos, realizada no Edifício Aldebaran, foi um acontecimen­to na "cidadezinha azul" de Haydée Nicolussi (hoje a grande Vitória) e nela estive representada pela escultora Ely, a dos belos anjos barrocos.

1974

 

As fadas de Ruth

Ruth Bueno, autora que acompanho desde sua estreia ("Diário das Máscaras"), que tem algumas páginas que lembram Joyce ("Corredeira"), inovações e audácias em "Encontro Antecipado" — está publicando, pela Record, "As Fadas da Árvore Iluminada". Ninguém pense que o voltar-se para os pequenos leitores significa escrever brincando, arte menor. Trata-se de seara difícil, que mui­tos cultivam e onde poucos logram colher um êxito per­durável. Mas "Ruth Bueno fez obra de fada, pondo uma luz importante na árvore da nossa literatura infanto-ju­venil original" — como escreveu Antônio Houaiss.

 

Um pioneiro

O suplemento literário de "O Estado de São Paulo", de 25 de novembro de 1973, publicou o conto "Bocó­-de-Mola", de Valdomiro Silveira, em homenagem ao cen­tenário do iniciador da literatura regionalista no Brasil, ocorrido a 11 daquele mês e ano. Havia uma nota fri­sando ter o conto, inédito em livro, aparecido em "O Filhote", edição da tarde de Gazeta de Noticias, a 31 de maio de 1897. Lembro o fato como primeira home­nagem minha ao centenário de nosso jornal, que, entre suas glórias, conta a presença de grandes nomes da lite­ratura brasileira e da portuguesa. E o paulista Valdomiro Silveira é um deles. Lembro-o também para assinalar a chegada de "O Mundo Caboclo", resultante da seleção de contos dos quatro livros de Valdomiro, realizada pelo escritor Miroel Silveira, seu filho.

De "Livros do Sertão" (5/5/75)

 

Estórias que eu não inventei

 

Os visitantes da noite

— Não, não fale agora do que lhe parece a solução para os nossos tormentos e diga por que, nesta hora inteira do corte de luz, quando seu marido não está, vem para o meu apartamento ou convida-me para ir ao seu. Será medo.

— Não nego.

— Mas de que? Não diga que é de fantasmas, pois conheço a sua integral descrença na sobrevivência da alma.

— Pois digo. É que sofro de uma espécie de complexo que data da infância. Tão da infância que o temor, que se foi cristalizando com o tempo, é sempre das coisas arrepiantes ouvidas naquela fase-raiz da existência. Assim, a verdade — contraditória reconheço — é que não creio e tenho medo.

— Da infância? Mas sua formação não foi protestante?

— E bem ortodoxa. O que não impediu que, aos vinte anos, eu largasse o fardo da religião, embora permanecendo protestante ao meu modo...

— Contra as injustiças sociais, eu sei. Mas o que desejo saber, agora, é a razão do seu medo. Como e porque surgiu ele em ambiente completamente impermeável à aceitação de manifestações sobrenaturais?

— Aí é que está. Tudo começou quando prima Salomé se tornou kardecista. Foi um bouleversement em nossa casa. Papai considerava tentações do demônio os fenômenos espíritas e na sua presença não se falava do assunto; mas mamãe era fascinada: E, por mais que afas­tassem as crianças, comecei a ouvir, aos pedaços, histó­rias de coisas que haviam acontecido muito antes de eu nascer. As que mais me impressionaram, além daqueles assoprões (ai, nunca acendo uma vela quando estou so­zinha), no sobrado onde vovó morou com as filhas ainda solteiras, foram as assombrações no casarão de uns pa­rentes afastados.

— Quer contá-las? Coleciono assombrações.

— Para ter uma ideia, descreverei o que aconteceu certa noite. As mulheres já estavam recolhidas; os ho­mens, porém, ainda conversavam em torno da mesa da sala de jantar, quando, por volta das onze horas, uma das janelas subitamente se abre e surgem três cabeças perguntando ao mesmo tempo: Ainda não terminaram? Os interrogados se entreolham, erguem-se, dizem-se boa-noite e recolhem-se aos seus quartos.

— Que horror!

— Bem sabiam que estava na hora de os fantasmas tomarem conta da mansão, quebrarem cristais (que apa­reciam inteirinhos no dia seguinte), reunirem-se em ani­mados repastos em torno daquela mesma comprida mesa. E ouviam-se gargalhadas, arrastar de sedas, diálogos em que eram pronunciados os nomes das pessoas da famí­lia às vezes, o piano se abria e alguém tocava. Alegria. Barulho. Os que ainda não tinham conseguido dormir — percebiam, também, que o salão estava fortemente iluminado. O pior era quando a claridade se estendia pela casa toda. A claridade e, não raro, o movimento. Ah, os passos nos corredores, os empurrões nas camas, as mãos invisíveis abrindo armários, as vozes soando dentro dos quartos, ciciando perto dos ouvidos, repre­endendo os namorados despertos. Ouviam, ainda, pal­mas e entrarem novos convivas e trocarem saudações, beijos, perguntas. Mas os habitantes da casa mal-assom­brada não ouviam apenas: viam também, como haviam visto aquelas três cabeças. Vultos pequeninos irem crescendo à beira da cama, sombras deslizarem, o leque antigo sair da caixa e vir abanar a moça que estava com calor, a mão-sem-dono trazer um copo d'água para o doente que estava com sede.

— Eram, então, espíritos galhofeiros, fantasmas gen­tis?

— Nem sempre. Houve uma noite de quase tragé­dia. Foi quando eles responderam ao desafio de um ir­mão da dona da casa, que deixara a sua longínqua fa­zenda e viera ver para crer, que não era homem de fan­tasias. Viera com sua bravura e fora dormir. Dormir? Mal se deitara o varão e sentira logo aquelas cócegas. Deixem de brincadeiras, meninos. Dedos frios sobre os lábios, zangadas vozes em torno. Já trêmulo, conseguiu sentar-se, mas o deitaram de novo. Começou então uma cantoria fúnebre e sentiu que o estavam carregando com a cama pelos longos corredores. Quando todos acorre­ram aos gritos do parente encontraram, no mesmo quar­to de hóspedes onde o haviam deixado tão sereno, um homem em pranto e em pânico. Foi transportado como uma criança para a cama do casal, tomou calmante, veio médico. E o bravo senhor quase morreu.

— Jesus! Mas será que eles adoravam aquela coe­xistência noturna? Por que não se mudavam?

— Diziam que... Oh, chegou a luz. Tenho que ir. Muito e muito obrigada.

— Não. Sou eu quem agradece, pois acabo de ga­nhar o melhor castelo inglês.

 

A herança

A moça ouviu a voz do irmão perguntando por ela. Deixou a máquina e caminhou até à porta, o lindo rosto quase aflito, uma pergunta lhe rasgando ainda mais os olhos. Nada! Apenas ele fora levar um cabograma e o funcionário do Tribunal lhe entregara a papeleta que tra­zia na mão, dizendo-lhe que havia uma comunicação ur­gente a fazer à locatária do endereço ali consignado. Achava que era alguma coisa boa, porque o homem sor­ria com ar de mistério. Viera, então, buscá-la para irem até lá.

O homem sorria com ar de mistério? Realmente só poderia ser algo bom. Eram gente pacata: só iam à igreja, à escola dominical, raramente a um cinema e a uma festa familiar. Gente muito nova, a mãe com menos de quarenta anos, sempre com seu vestido preto de viúva, trabalhando o dia todo, dirigindo modelarmente a família. A irmã lecionava no outro lado da Ponte, ela era datilógrafa, aquele garoto de quinze anos trabalhava no Cabo Submarino, os dois pequenos estavam na escola. Coisa má não podia ser, portanto, que não transgrediam nenhuma lei. E o homem não sorria com ar de mistério? Fechou a máquina, retocou-se, pediu para sair mais cedo e lá se foi com o irmão pelas ruas da cidade de Ondina.


Ah, já estava entendendo tudo: eram aqueles arrozais e aqueles engenhos que os ingleses, tios de seu pai, haviam deixado lá por São Miguel e Alto Biguaçu. Sempre ouvira falar naquelas terras — ligadas às palavras de­manda, direito, herança. E comunicou ao irmão a sua descoberta, resolvendo ambos prolongar o caminho para fazer planos. Pois, naquela altura, não havia mais dúvida: estavam ricos. Ele pensou logo no seu grande sonho: comprar um carro. E quase houve briga.

— Não, primeiro mamãe. Mãe não é para viver no tanque e no fogão. Mãe é para preparar sobremesa quan­do quiser, ter empregada, descansar em cadeira de ba­lanço. Vamos dar-lhe tudo isso e, antes de tudo, uma casa, uma casa magnífica. Nosso chalé está caindo de velho e o aluguel nos leva a metade dos nossos salários. Agora vamos ter casa, senhor co-proprietário. Para nossa irmã então, será um paraíso. Deseja tanto dar aulas par­ticulares, fundar um curso. Mas como anunciar? Quem vai aparecer em nossa choupana? No entanto, outras, que não têm a metade da cultura dela, estão por aí cheias de alunos ricos, porque moram em casas alinhadas.

— Mas, depois, ganho o meu Gordini cor de vinho, não é?

— Claro.

A moça olhou o sol, prestes a transformar-se num "grande nenúfar de ouro". (Os extraordinários crepús­culos da cidade de Ondina eram cantados em prosa e verso). Ao recordar a imagem, pensou em que, até então, todo o ouro que possuíra — fora aquele mesmo acumu­lado no pôr do sol de sua terra. De agora em diante, po­rém... E entrou, altaneira, ao lado do irmão, no vetusto edifício.

O funcionário olhou a papeleta e, de fato com um misterioso sorriso, começou a consultar morosamente, mui morosamente, um folhudo livro de capa negra. Er­gueu, depois, os olhos para a face ansiosa (e resplande­cente) da jovem e informou:

— Senhorita, trata-se do pagamento — atrasado há já vários meses — de uma torneira...

 

Isabel das Crespo

— Aí vem a Isabel das Crespo — disse a dona da casa, voltando da janela, aonde chegava de quando em quando, à espera do móvel encomendado.

Conversávamos em sua minúscula sala de estar, de­corada com engenho e arte e uma sábia planificação geo­métrica para que várias coisas úteis e belas bem ocupas­sem o espaço exíguo. Agora, num retângulo da parede principal, ia ficar, suspenso, pequeno armário de jacaran­dá, destinado a guardar a porcelana KPM.

— Isabel das Crespo?

Não houve tempo para resposta. Foi abrindo a por­ta e entrando — seu irmão mais moço, atraente e varonil, que ela beijou com o maior carinho maternal. Logo em seguida, as batidas dos carregadores que traziam a delicada peça e fizeram seu trabalho sob o comando do charmoso irmão da dona da casa.

— Mas a Isabel das Crespo não veio...

— Não? Ela veio, sim.

E, depois de tudo pronto, contou que sua mãe, do­tada de fino espírito crítico, descobrira, nos primeiros tempos do casamento, uma personagem que iria incor­porar-se ao anedotário da família. Naquela época, suas vizinhas mais próximas eram umas senhoras Crespo. Ti­nham elas uma criada, como era chamada antes a "se­cretária" dos nossos tempos, meio atoleimada, que, ao receber uma ordem, primeiro respondia que não e, de­pois, cumpria direitinho. Elas diziam:

— Isabel, vai ao armazém e traz um quilo de café, uma garrafa de vinagre, um pacotinho de cominho, ou­tro de pimenta e uma lata de goiabada. É para botar tudo na conta.

— Não vou, não vou, não vou.

Elas nem se incomodavam. Dali a momentos, pas­sava Isabel em direção ao armazém da esquina, resmun­gando sempre e dizendo que não ia, que não ia, enquan­to a jovial recém-casada, entreabrindo a cortina, captava o pitoresco da cena, cena que iria gerar isabéis no ca­minho dos que ainda iam nascer.

— Ora — prosseguiu — como meu marido teve de viajar, pedi a presença do caçula aqui. Ele disse que não podia e eu já me preparava para dar uma de super­visora quando ele chegou. Aliás — arrematou, beijando de novo o irmão, que sorria sem ligar para o epíteto — não é a primeira vez, nem será a última, que ele é a Isa­bel das Crespo...

 

Silk, a consciência e o anjo

Numa roda em que a maioria era constituída de agnósticos, falava-se sobre a imortalidade da alma. Foi quando alguém declarou que, embora não admitisse a so­brevivência individual e acreditasse, apenas, na imorta­lidade cósmica, a realidade da consciência humana o dei­xava, por vezes, perturbado.

— Mas o cão, por exemplo — contraditou um cien­tista que conhece profundamente os animais — também possui consciência.

A conversa prosseguiu, mas daí em diante o meu pensamento se voltou inteiro para Silk.

Contarei, nesta altura, que um par desajustado foi passar o verão numa ilha. A mãe e o irmão mais novo da jovem, belo garoto de nove anos, acompanhavam o casal. E havia, ainda, Silk, o lindo palie que um amigo da família emprestara para participar do veraneio.

Os cinco se instalaram numa casa rodeada de ver­des varandas, tendo à frente um grande plátano, salguei­ros, bambuzais. E o rio. O plátano, ao cair da tarde, virava árvore de lenda: as folhas ficavam todas cor de ouro. Era um cenário edênico, mas no peito da moça havia amargor e desencanto. Pés nus, cabelos soltos, refugiava-se na leitura. O lar era um destroço; não sabia como resolver o problema do seu coração logrado e, no entanto, devorava livros sérios e profundos, buscando soluções para os problemas da humanidade. De vez em quando, interrompia a leitura para olhar o irmãozinho que passava remando no seu pequeno caíque. Temia os pe­raus e chamava o menino. Este colhia nos aguapés uma flor roxa, ia entregá-la gentilmente à irmã, afirmava que não havia perigo e voltava ao seu passeio. Pois o rio era o seu refúgio. Sentia o ambiente carregado da casa e procurava a beleza e a alegria das águas que atraves­sava no seu caíque Rosa e das quais gostava de arran­car dúzias de lambaris de prata. E nenhum dos dois se preocupava com Silk.

Quanto ao homem, o seu primeiro cuidado foi cortar as bastas meadas de cetim branco que revestiam o ani­mal. Não havia dúvida de que procurava vingar-se dos seus fracassos, torturando aquele ser inerme, que se tor­nara minguado e tristonho, parecendo um cordeirinho pronto para o sacrifício. Às vezes batia em Silk e, aos domingos, comprazia-se em levá-lo para o banho no rio. Depois do mergulho cruel, Silk emergia, sacudindo as patinhas, quase morrendo de aflição e de susto.

Ele encontrara, porém, um anjo: a senhora. Esta vi­nha logo buscá-lo, enxugava-o, afagava-o. Era a única pessoa que lhe fazia carinhos. Matava-lhe a fome e a sede, cuidava do seu sono e da sua saúde. E, quando ia à cidade — ele, que tanto temia o rio, de onde vinha o seu maior sofrimento, postava-se à sua margem horas e horas, até o desejado regresso da amiga.

Findo o veraneio, o cão foi entregue ao dono e, al­gum tempo depois, mãe e filha foram visitá-lo. Ninguém o chamara ainda. Mas, ao ouvir, lá dentro, a voz idola­trada, eis que Silk corre como um louco para a sala. Es­tava maior, bonito, feliz, os pelos sedosos crescidos, uma fita azul brilhando na coleira. Precipitou-se para o colo do anjo, carinhoso, festivo, com seus latidos que eram hinos de ternura e gratidão. Havia lágrimas nos olhos dos presentes, porque todos sentiam que existia ali um drama e compreendiam que os sentimentos que demons­trava aquele animal comovido — nem sempre os pos­suem os homens.

 

O sorvete e o doido

Comove-se toda vez que vê alguém com fome e não espera que o faminto lhe estenda a mão: leva-lhe espon­taneamente a sua dádiva. Essa sensibilidade multiplica-se quando o necessitado é velho, doente ou criança. No último caso então, parece que toda a sua paternidade frustrada transborda. E basta-lhe ver uma criança olhan­do, como se fosse um reino encantado, um simples bom­bom, uma fruta, um sorvete. Precipita-se logo, compra, oferece. As reações são, via de regra, as mesmas: sur­presa primeiro, aceitação em seguida.

Nem sempre, no entanto. Certa vez foi pelo Natal, numa cidade europeia, quando viu aquele pequenino lou­ro espiando, da calçada, sua mesa repleta, sua árvore pejada de estrelas, sinos, bolas. Ao descobrir o menino, ficou profundamente comovido: era paupérrimo e tinha lágrimas naqueles pedaços do céu que contemplavam e cobiçavam. Correu para ele, todo sorrisos, e convidou-o a entrar para o lanche de castanhas, pão de mel, torta de frutas. Mas o menino recusou orgulhosamente, o ar repentinamente adulto, e afastou-se.

Outro dia, porém, foi um grande dia percebeu três crianças rondando uma carrocinha mágica, a olharem se­quiosamente os que se deliciavam com a massa gelada de morangos, creme, chocolate. Não teve dúvida. Com­prou três sorvetes e ofereceu-os aos pequenos atônitos. Enquanto estes devoravam o inesperado presente, outros meninos apareceram. Vários, muitos copinhos foram lo­go comprados e oferecidos. Um dos garotos, porém, nem podia acreditar e ficou por um momento indeciso. Foi quando um daqueles três primeiramente aquinhoados, ainda com os cantos da boca cheios de creme, aconse­lhou:

— Aceita. Ele é doido.

 

Nesta casa tem um bosque

— Oh, mas estas folhas de antúrios são naturais...

— Parecem realmente: o tamanho, a cor, as nervu­ras, a disposição, a forma têm iludido a muitos. No en­tanto, é como lhe disse: naturais tenho apenas estas tre­padeiras, oriundas de batatas.

— Pois as orquídeas, aqui, entre os verdes, deixam-nos em dúvida: serão naturais ou artificiais? Tal como aconteceu com as campânulas que Françoise ganhou — em "L'Invitée", de Simone de Beauvoir.

— Aliás, torna-me feliz a ilusão que elas causam, pois foi para me iludir também que plantei este bosque. Sabe? Criei-me entre árvores, noivei sob caramanchão de jasmins. Minha mãe parecia uma fada cuidando das flores que ladeavam nossa casa — brincos-de-princesa, botões-de-ouro, resedás, girassóis, begônias — e de sua varanda de folhagens e gloxínias, descoberta e que, pe­las manhãs de chuva, íamos encontrar salpicada de co­gumelos. Meu pai amava igualmente as dádivas da terra e até maçã, minúscula é verdade, colhemos na nossa pe­quena chácara...

— Maçã... Então era na serra?

— Não, no litoral. Ah, tínhamos uvas negras, cor-de­-mel, translúcidas — nas longas parreiras armadas. Tí­nhamos figos e grumixamas, pêssegos e bergamotas, ro­mãs e anonas. E, quantas vezes, não contentes, ainda pulávamos a cerca de framboesas — eu, meus irmãos, vizinhos, primos — para invadir o reino das pitangas na terra de ninguém!

— Isso para mim soa como lenda, para mim que morei sempre em apartamento.

— Certo. E como poderia eu conformar-me, moran­do também agora em apartamento e tendo apenas de meu o escasso jardim coletivo do edifício? A princípio, tentei plantas em vaso, mas todas morriam, exceto as batatas. Então, comprei esta grande jarra vermelha com desenhos de floresta, armei-a no tripé e dei início à mi­nha cantoneira vegetal. O antúrio trepador na sua ascen­são pela parede — foi o começo. Vieram as plantas com­panheiras. (Só compro as que me parecem naturais). Os jasmins, sozinhos, não valem muito, mas, caindo do co­quetel do jarro, veja!

— Um encanto.

— Quanto às orquídeas, "orquídeas silvestres", fo­ram um presente querido. Intercalei-as nas sombras e nos verdes e o efeito é realmente deslumbrante. Enterrei, depois, uma batata com brotos, de que resultou este lin­do emaranhado. Botei dois jarros aqui no alto da parede, de onde trepadeiras descem, suas folhas se enroscando, como está vendo, nas dos antúrios. Molho-as diariamente — e é como se todas sentissem o contato da água. Com a terra úmida e as folhas e flores orvalhadas e brilhantes, todo o conjunto parece vivo e a ilusão é tal que chego a esquecer os meus quintais perdidos...

 

O drama do tempo

— Acho que devíamos prestar mais atenção a cer­tos pormenores ligados à passagem inelutável do tempo. Ora, este passa, deixando marcas em nosso corpo e em nossa alma.

— Ou nós é que passamos?

— O fato é que, apesar de todas as atribulações con­temporâneas e desta sensação de instabilidade que ex­perimentamos cada vez com mais força em nossos dias, muitas vezes aquelas marcas não marcam fundo ou o fazem lentamente. Em consequência, a idade cronológica da criatura assim privilegiada é maior do que a idade do seu rosto, do seu corpo, dos seus olhos, dos seus ca­belos.

— Belo, não é mesmo?

— Não, porém, para alguns amigos e, principalmen­te, para algumas amigas, que se irritam terrivelmente com tal constatação. Quer um exemplo? Não é que, nesta cidade grande, vieram morar, no mesmo bairro em que moro, duas amigas de infância, nascidas, criadas e ca­sadas como eu na mesma cidadezinha do interior? Para comemorar o encontro, convidei-as para uma reunião em minha casa. Elas vieram, trazendo os seus trabalhos de agulha, para dar uns pontos depois do lanche, como nos antigos tempos. Ambas engordaram, uma oxigenou os cabelos e a outra deixa aparecer os fios brancos. Sem­pre pensei que as recordações fossem o primeiro capítulo da conversa...

— E não foram?

— Não, foram os meus pobres cabelos. Elas, pri­meiro, perguntaram o que eu usava. Nada, ou melhor: água e sabão como sempre, além das cem escovadelas diárias. Eram os mesmos cabelos lisos e castanhos que elas haviam conhecido. Mas uma achava que, antes, eram mais escuros; a outra, que eram mais claros. Então des­fiz o penteado e espalhei meus cabelos, para que elas os abrissem e olhassem os fios desde a raiz até a extre­midade: nem vestígios de tintura nem de loção rejuvenes­cedora.

— Ficaram então satisfeitas?

— Qual! Acho que, quando os prendi de novo, elas tiveram uma vontade furiosa de puxá-los. Seguiu-se o lanche, para o qual eu havia preparado os canapés e o pudim de laranja de que elas tanto gostavam. Eu mesma arrumei a mesa e servi, enquanto meus gestos e minha silhueta eram observados com dureza. O que eu fizera para não engordar? Ginástica? Regime? Oh, não. Tal­vez muito movimento, compras, filas, lida com as crian­ças, trabalho. O pior, porém, foi quando, após o lanche, estenderam no colo seus bordados e tiraram os óculos da bolsa. Eu fui buscar a minha toalha e comecei a bordar o primeiro botão de ouro de um ramalhete muito delicado. Pois não sei como não piquei o dedo, assustada com o clamor da pergunta: Cadê os óculos? Não usava? Não era possível. Queriam ver a flor minúscula concluída, queriam ver. Ficaram olhando e eu nunca fiz um exame com tanta aflição. Em todo caso, tremendo embora dian­te dos dois rostos maus fixos nos inocentes fios de seda que passavam pelos meus dedos, apresentei-lhes o botão — não perfeito como poderia ter sido, se eu não esti­vesse contendo as lágrimas, mas bordado na graça de Deus.

— Está claro que não nos perdoam quando tarda­mos a envelhecer.

— Mas não haverá um modo de preservar destas e iguais misérias pelo menos as futuras gerações?

— Haverá?

 

Fantasia

Não era fantasia aquele vestido claro de jeune-fille, com babados e fitas, festivo e decotado. Não era fanta­sia? A mulher que o ostentava, usara, durante anos a fio, severas cores escuras, os braços secos cobertos, co­berto o colo sem viço. De repente, aquele luminoso ves­tido de debutante, enquanto a boca murcha, que só fa­lava no morto e na morte, começou a gritar que era do samba.

Não era tarde, não. O fim do outono parecia o co­meço da primavera e alguém chegaria ainda, vindo não se sabe de onde, entre confetes e serpentinas, em busca da dançarina azul.

É verdade que ele está tardando. Não faz mal. A esperança é bela. Mais uma volta pelo salão. Quem sabe?

Quem sabe sabe

Conhece bem

Como é gostoso

Gostar de alguém.

No entanto, o alguém não chega. Agora, quem che­ga é a borboleta real abrindo, na passarela, as grandes asas resplandecentes. Depois, é a madrugada, fechan­do o baile. Então, a pobre jeune-fille desperta e anuncia, envergonhada, que vai para casa chorar o morto (o mor­to?) a quem não conseguia esquecer nem mesmo naque­le turbilhão.

 

O fidalgo

Quando tenho notícia de marido sustentado pela mulher — sem ser por involuntário desemprego, doença ou outro motivo justo, está claro — lembro o arrogante senhor Antônio Maria Valentim de Aguilar. Diziam que descendia de grandes da Espanha e possuíra fabulosa for­tuna. Esta, no entanto, fora toda por água abaixo e dela só restava aquela imensa casa da esquina, que seria mais tarde hipotecada, leiloada, perdida, mas que ainda ali es­tava com seus austeros reposteiros, seus jacarandás an­tigos, seu velho piano de cauda, abrigando a mui nobre família empobrecida: o casal e seus quatro filhos.

O senhor Antônio Maria Valentim de Aguilar, embora não tivesse um tostão de renda, não trabalhava. Estava sempre à espera de que amigos dos áureos tempos, mui­tos dos quais se encontravam em altos postos políticos e administrativos, o chamassem, conforme prometiam, para ocupar um cargo à altura do seu nome. Não tra­balhava, mas se impunha pelo arrogante porte o chômeur fidalgo. Olhava sempre do alto e era seco, retraído, or­gulhoso como um mortal à parte. Lia muito, recostado sempre na ampla cadeira de balanço, sobre macias al­mofadas; e, quando Miúda, a empregada única, antiga escrava e que diziam ter cem anos, o chamava para as refeições, a voz da serva se tornava ainda mais tímida e respeitosa, como se estivesse diante de um potentado. Ele, então, tirava os óculos, guardava-os devagar e, com suas passadas fortes, dirigia-se para a cabeceira da mesa e presidia como um grão-senhor a refeição que dona Si­nhazinha comprara com o suor do seu rosto.

De modo que era a senhora Aguilar — em plena vi­gência do capitis diminutio, a que o nosso Código Civil ainda reduzia inteiramente o cônjuge do sexo feminino — a mantenedora da família. Mais moça vinte anos que o marido, parecia, contudo, sua contemporânea. Alta, magra, nervosa, com um sorriso permanente nos lábios sem alegria, não recusava trabalho: fazia doces e salga­dos para vender, costurava para fora e dava lições de piano. Sussurravam até que, às escondidas, era profes­sora da elegante francesa que um capitalista da terra ins­talara na vivenda cor-de-rosa do morro.

O chefe da família, que acabava de recusar um em­prego de quinhentos mil réis (que afronta!) assistia frio e abúlico ao sacrifício cotidiano da mulher e, cada dia mais altivo, saía para as suas caminhadas, de chapéu e bengala, o terno impecável, o charuto na boca.

Eu conversava, certa manhã, com sua filha Juanita, que era da minha idade, quando o senhor Valentim de Aguilar passou por nós, pisando as calçadas como se fosse dono da rua. A menina olhou-o embevecida e, de­pois, como uma fidalga arruinada exibindo, em desafio, o    brasão da família, me disse:

— Está vendo? Oh, ninguém pisa melhor do que pa­pai...

 

Aquelas crianças

Sim, era hospitaleira e receberia na sua casa grande, tão grande que todos chamavam de mansão, os parentes que não tardariam a chegar. Teria prazer em acolhê-los, mas teria prazer em acolher o casal, pois a sua casa es­tava habituada a só receber adultos. Quando alguma de suas amigas tinha a infeliz ideia de vir acompanhada de uma criança, por ocasião de uma visita, ela sentia que acontecera algo como uma subversão da ordem. A crian­ça pretendia monopolizar as atenções, queria mimos, cho­rava, deixava cair farelos de bolo no tapete persa, der­ramava chocolate na toalha de linho. Que ia fazer? Se dissesse alguma coisa, a mãe da criança jamais perdoa­ria. Tinha até de achar bonito aquilo tudo e sorrir para o pequeno revolucionário. O marido, então, era como se tivesse alergia aos visitantes mirins, esses vândalos. Fora bom mesmo não terem tido filhos. A vida podia ser aque­le céu aberto: viagens, boates, recepções.

E, no entanto, agora vão chegar aquelas crianças. Nossa! Podiam até ser causa de um desquite, ela como a parte culpada pois eram parentes seus. O que pode­ria fazer era não negligenciar e ir procurando, desde já, um apartamento, a fim de abreviar a desgraça e perma­necerem em sua casa, no máximo alguns dias, os hós­pedes indesejáveis.

Mas quem sonhara com tal milagre? Não é que a menina, com cinco anos, lindo rostinho oval, louros cabelos crespos, estendeu logo os braços ao saltar no ae­roporto para o homem atônito e, com as margaridas ten­ras das mãozinhas, acariciou o duro colarinho entretela­do? Quando quis passar-se para o colo da mulher, ele sentiu um quase ciúme. Quanto ao menino, que era mais velho do que a irmã, beijou, como um pequeno cavalhei­ro, a mão dos parentes e os olhos do rapazinho sorriam o mesmo sorriso aberto e meigo dos lábios. Já estava na escola e, ainda no carro, tirou de sua pasta alguns cadernos e mostrou-os à anfitriã. E, logo nos primeiros dias, o menino encantador pediu que ela lhe passasse problemas, pois não queria esquecer, durante as férias, o que aprendera nas aulas. A princípio não gostou mui­to; mas, depois, achou adorável. De tal maneira que dei­xava de ir a uma festa para contar as suas viagens e dar lições ao menino sequioso de saber.

Por esse tempo, os verdadeiros donos da casa eram a boneca e o estudante: suas vontades eram leis, seus sorrisos eram prêmios. Ganhavam presentes caros e pas­seavam diariamente com os cônjuges enlevados, que pa­reciam ter uma ilusão fervendo nas cabeças.

Quando, finalmente, os hóspedes comunicaram que iam mudar-se, foi um dia de juízo no palacete. Ela cho­rava, desolada, revoltada, e ele era como se lhe tivessem arrombado o cofre. Que haviam feito para serem tratados com tamanha ingratidão? Seria possível que aquela gen­te sem entranhas tinha mesmo coragem de lhes arreba­tar as crianças? Por que os pais não iam sozinhos? Por quê?

 

O sonho e a realidade

Seria maio? Só lembro aquele tamanho de lua cheia, aquele deslumbramento que tomou conta de mim no ins­tante em que eu ia atravessar a rua. Detive-me a con­templar a maravilha suspensa, buscando a imagem ade­quada para o decantado "astro da noite" naquele momen­to. Ah, não seria um redondo pão luminoso e inacessível? (Inacessível, pois a lua ainda não recebera a rosa e a visita do homem).

Acontece, porém, que eu tinha uma bolsa na mão, com dinheiro, chaves, documentos, pedaços de poesia e prosa, objetos de vaidade feminina. A grande lua de ouro encravada no céu do Leblon, tão inteira, tão bela, me fez esquecer aquela realidade, pelo que aconselho, hoje, às minhas amigas: quando virem a lua, agarrem a bolsa. Pois quem agarrou a minha foi um rapaz que pas­sava de bicicleta. Devia ser um entregador e o apossar-se do alheio — penso que só, utilizava como biscate. Aproveitava as oportunidades e aquela era excelente: uma gorda bolsa de verniz preto, insegura sem dúvida, na mão de uma dona que olhava bobamente o céu, ali na beira da calçada.

Tudo foi muito rápido e, quando deixei de mirar a lua, acordada de súbito pela tentativa de assalto, segurei a alça com todas as minhas forças — bem poucas. A bolsa não me foi tomada, mas atribuo a vitória ao fato de estar pouco firme uma das argolas em que estava presa a alça, precisamente a do lado atacado; com o vio­lento puxão, desprendeu-se e, desse modo, a alça — e com ela a bolsa — deslizou dos dedos do assaltante e ficou na minha mão. Durou apenas segundos a tremenda batalha e acho que ambos nos surpreendemos de ter sido eu o vencedor. Vencedor que devia ter um ar lastimável, pois o rapaz me disse antes de desaparecer na bicicleta:

— Desculpe moça.

Ora, ora. Desculpar o que, se a culpada foi a lua?

 

Saia azul e blusa branca

Botou de novo o rol de roupa na caixa de madeira trabalhada e ficou pensando nos preços irrisórios daque­les tempos. Um lençol de casal — dez tostões! Parecia mentira, mas lá estava no rol conservado como lembrança.

Dez tostões! Passou a escova nos cabelos fulvos e não viu no espelho a figura atual, o rosto cheio, os flo­rões do quimono. Viu a jovem de saia azul e blusa bran­ca, ligeira e magra, saindo para o trabalho. Ah, aqueles dez tostões eram uma importância.

Naquele tempo, morava com o marido numa pensão e os salários de ambos, somados, mal chegavam a no­vecentos mil réis. A pensão levava quinhentos e quaren­ta, sem que tivessem direito a roupa de cama e, como é comum, sem jantar aos domingos e feriados. O resto era para a condução, lavadeira, lanches, extraordinários. Quer dizer: não havia dinheiro para roupa. Ela tinha de contentar-se com a invariável saia azul e duas blusas que se revezavam. Trabalhava numa casa comercial, sendo a única empregada de uniforme, que não era e era obri­gatório, pois aquelas eram as únicas peças de roupa que possuía para sair.

A dona da pensão, megera de grandes enxúndias e ralos cabelos pintados e duros, olhava com inveja para aquela juventude que lutava e sofria, mas que, apesar de tudo, resplandecia primavera e amor. E a sua mesquinha vingança era multiplicar as proibições, requintar as per­versidades. A moça não tinha direito de lavar um simples lenço e, quando se atrasava um pouco ao voltar do trabalho no fim do dia, não encontrava mais comida. Nes­sas ocasiões, o mais doloroso não era ir deitar-se com fome: era presenciar a fome do marido. Este trabalhava até mais tarde, não podia estar em casa à hora do jantar. Era servida, contudo, a refeição para um só e dali ela tirava o que havia de melhor e guardava para seu amado exausto e faminto.

O lanche que levava para o trabalho consistia em um pequeno pão sem manteiga. Pedia um copo d'água e        fazia a triste merenda dos condenados. Vinha um me­nino com o cafezinho, o líquido quente era uma tentação, mas não podia dar-se ao luxo de gastar duzentos réis. Barato o lençol? Era bem do seu sangue que saíam aque­les dez tostões.

Certo dia, em dezembro, aproximou-se um colega da moça comerciária e comunicou-lhe que estava sendo pro­jetada uma homenagem ao patrão, que a festa seria ali mesmo. E, depois de muitas reticências, criou coragem e disse-lhe que deveria comparecer com outro vestido. — Outro vestido? — repetiu, corada, mas resoluta. — É impossível. Não tenho outro.

Então o rapaz acrescentou que ela poderia dar um jeito, porquanto iam todos receber gratificação.

Drama. Vestido novo, quando faltavam coisas bem mais urgentes? Impossível esquecer que a alimentação era insuficiente, que as privações eram tantas que nem tinham um relógio. (Como a deixava humilhada aquele "faz favor de dizer que horas são?"). O acertado era, no entanto, considerar não recebido para tudo o mais o di­nheiro inesperado, já que não poderia faltar à festa do patrão, nem comparecer com seu traje único. Animou-se e comprou um vestido de linho, sapatos, fantasias e, na manhã do grande dia, foi ao cabeleireiro e à manicura.

Lembrava-se tão bem: quando, elegante e feliz, che­gou ao ponto do bonde em que fora vista de saia azul e blusa branca, dia após dia, durante o longo ano de lutas, por certo causou surpresa aos que, habitualmente, esperavam condução àquela hora. Houve mesmo um que não se conteve e sussurrou ao companheiro:

— Eu não te dizia? Faltava era trato...

 

A bela adormecida

Recebo carta de Lina, uma leitora, contando a sua história de amor. Uma história narrada em muitas folhas e que lembra algo de "Desencanto", o mais belo filme inglês que já vi ("uma história sem história" aquele "Brief Encounter").

Ela conheceu o bem-amado num ônibus repleto. Ao entrar no mesmo, cedeu-lhe ele o lugar. E, sem olhá-lo, ela sentia em si o olhar do homem. Quando ele ia saltar, atreveu-se então a fixar o desconhecido. Era mais novo do que ela, alto, atraente. Mas... ele não saltou. E ai, ela estremeceu. Céus! Que fizera? Era olhada e requestada por muitos, porém jamais correspondera. Um ínti­mo de sua casa, apaixonado sem esperanças, quando, um dia, ela falava na doce figura de Soeur Desirée-des­-Anges, do livro de Marguerite Audoux, chegara a dizer-lhe: pois você é a desirée-des-hommes. Dedicava uma afeição profunda ao marido e sentia a sua vida tranquila, sólida, realizada. A pena que carregara até então era a de não ter filhos.

Agora, a mudança, o tumulto. O fascínio do primei­ro encontro ao descerem do ônibus: a magia da voz insistente, a quase promessa que ela murmurou na despe­dida. Parecia a dama misteriosa: era apenas uma mulher assustada com o que acontecera e decidida a pôr um ponto final na aventura. Mas, no fundo da bolsa, lá estava o   cartão dele, em quem ela começou a pensar dia e noite.

E telefonou-lhe. No segundo encontro, estavam ainda mais fortemente atraídos um pelo outro. E aí termina o roman­ce. Ela não diz por que.

Começa a história do seu grande amor unilateral e obsediante, feito de paixão e de saudade. "É impossível sentir uma saudade maior de alguém que está vivo". A perder o interesse pelas coisas que a encantavam antes, a achar que, quando o conheceu, foi que despertou. "Oh, eu queria conhecê-lo assim: ele, como é agora e eu com a juventude radiosa que tinha quando me casei". A pensar nele sempre, de tal forma que, um dia, a empregada lhe disse: "Madame, a senhora está doente? Me desculpe, mas já vi o doutor olhar muito sério para a senhora. A madame parece que estava longe..."

Então, ela viu que precisava dominar-se, acautelar-se. Voltou às atividades habituais, que lhe têm feito um grande bem. Mas ele continua no seu coração, "porque este amor aconteceu. Acho mesmo que, em iguais circunstâncias, é impossível alguém ser mais desejado, mais adorado, do que esse homem sempre ausente e quase desconhecido".

Aí termina a carta. Termina sem pedir um conselho, (e ainda bem) uma opinião, uma ajuda. Como ninguém conhece o seu segredo, parece que ela se compraz em narrá-lo por uma necessidade de desabafo e desejosa talvez de vê-lo descrito. Pois, se assim é, está feita a sua vontade.

 

Do perigo de contrariar a pedicura

— Como? Então foi aquela profissional competente quem fez isso?

Eu olhava os pés pequenos estendidos em almofadas, o esparadrapo num dos polegares, os dedos fantasiados de mercurocromo.

— Ela mesma, por incrível que pareça. Mas oh, não pense que foi barbeiragem, incompetência. Eu sempre não disse que ela era a pedicura perfeita, que me amputava as feias calosidades, que massageava tão bem meus po­bres pés de arcos caídos? Quando terminava o seu tra­balho, eu me sentia restaurada, eufórica. Onde estavam os pés doloridos se os sentia leves e ligeiros como se fossem plumas?

— Mas como se explica, então, esse desastre?

— Minha filha, a moça é política. E fanática. Eu já sabia disso, é verdade. Como via que a criatura pensa diferente de mim, ia sempre, jeitosamente, evitando o as­sunto que ela insistia em levantar. Chegou, porém, o dia em que não adiantou falar no tempo, concursos de bele­za, receitas de pudins. Não adiantou tampouco elogiar o milagre que se operava em meus pés graças à sua pro­ficiência. A moça queria era o seu assunto. E nele entrou como se nós duas rezássemos pela mesma cartilha. Você bem sabe que tenho os meus seguros pontos de vista.

De modo que, em dado momento, disse qualquer coisa que lhe demonstrou a minha falta de apoio às suas opi­niões. E — ai! — senti logo uma dor aguda na cutícula. Gemi e ela passou no lugar machucado um algodão em­bebido em não sei que liquido. E continuou falando. No momento em que cuidava deste polegar, atacou violenta­mente uma figura política que eu estimo. Sem refletir, disse a minha palavra de defesa. E gemi de novo porque de novo a torturadora me machucou. Meu Deus, onde se escondera a fada que, sem que eu sentisse a mais leve dor, me transformava os pés em magnólias? Para sinte­tizar, dir-lhe-ei que, terminado o trabalho, vi que estes pés (oh, das outras vezes, eles ficavam lisos como os de um recém-nascido) apresentavam montículos de peles, aspe­rezas, pontos duros que o bisturi não tocara. Mas por que não deixei tudo como estava? Ousei reclamar e a mal-amada voltou à sua faina, tendo eu de gemer várias vezes, pois várias vezes ela me feriu. Compreende agora? O re­sultado é esta beleza que você está vendo...

 

O trocador e o junquilho

— Quem é você? — perguntou o homem imponente, no coletivo repleto, ao pequeno trocador.

Este parece, lhe havia chamado a atenção para al­guma exigência da empresa. Qual não importa. Se não era o empregado, mas o passageiro quem estava com a razão — também não importa. Se a observação era des­cabida, ninguém negaria ao homem imponente o direito de replicar, mesmo com aspereza. O inadmissível é bra­dar que alguém é inferior pelo fato de exercer modesta profissão; ofender a quem assegura que está cumprindo ordens; esbofetear com a interpelação insolente: "Quem é você?"

Em ocasiões semelhantes, tenho visto o interpelado corar como se tivesse sido pegado numa falta grave. Aquelas palavras curtas e cruéis vibram como uma chi­cotada que cai, de repente, sobre a sua pobreza sem culpa. E ele fica reduzido, esmagado, sem voz, sem de­fesa. Há também, é verdade, os que respondem com a cólera mais solta, um palavrão, um desafio.

O pequeno trocador — não. Ele ouviu a pergunta afrontosa diante de dezenas de testemunhas em silêncio. Ouviu-a de cabeça erguida e, depois, com impressionante dignidade, respondeu:

Eu sou gente.

Tenho outra história verídica para contar e esta se­gunda não se baseia em nenhuma afronta e, sim, no mais arrebatado louvor.

Era numa reunião de alta cultura e, à longa mesa que presidia os trabalhos, ao lado de homens conspícuos, sentava-se uma mulher. Não procurava brilhar, mas tra­balhava. Jovem, esguia, um ar de colegial que lhe davam os cachos pretos, aquela gola branca, os olhos atentos de discípula, a mão ligeira que tomava notas. Dir-se-ia uma secretária, uma assessora — não uma igual de todos aqueles maduros mestres.

Então, na assistência, certo cavalheiro sentiu-se des­lumbrado e, num intervalo da assembleia, pediu que o apresentassem à moça ilustre. Realizado o seu desejo, desmandou-se em louvores e comparou-a a uma flor. No auge da admiração, chegou mesmo, se bem me lembro, a especificar, chamando-a de junquilho moreno.

Quando todos pensavam que fosse agradecer e sor­rir, o junquilho protestou, enquanto estendia a mão num gesto de despedida:

— Flor? Não, eu sou gente.

 

Passe adiante, minha senhora

O desapontamento de Urânia, ao receber de Anita, no dia do seu aniversário, o presente que ela havia dado a Helena (aqueles mesmos brincos feios e azuis, que lhe dera uma prima) fez-me recordar o pregador torrencial da tese do antipresente.

Eu ganhara uma caixa de pó de arroz ocre. Como não é a cor que uso, dirigi-me a uma perfumaria com a vaga esperança de uma troca. O caixeiro tomou conheci­mento do caso, saiu para procurar a cor desejada e voltou dizendo que sentia não havê-la encontrado. Foi aí que o pregador começou o discurso. Era um senhor idoso que fazia as suas compras no mesmo balcão e ouvira as mi­nhas palavras e as do vendedor. Desatou, então, a sua terrível teoria contra o amável processo de dar presentes:

— E por isso, minha senhora, que sou contra os pre­sentes. A senhora está tendo um trabalhão com o pre­sente que lhe deram e, como essa história não existe só de um lado, a senhora, por sua vez, teve de retribuir. De modo que se trata é de uma simples troca. E, talvez, a esta hora, o presente que a senhora deu esteja tendo o mesmo destino dessa pobre caixa de pó de arroz. Quer saber? Eu não dou nem recebo presentes, exceto quando se trata de pessoas da família. Assim mesmo, às vezes é para me aborrecer, como é o caso da gravata que estou usando. Deu-ma uma sobrinha, que a acha linda e pede que eu a use. E, com esta idade, estou fazendo um triste papel: usar esta gravata espalhafatosa.

Mirei-a então, pensando que ia encontrar, talvez, o galo de Portinari ou — quem sabe? — cavalinhos de cor­rida ou glamorosas em biquíni. Nada disso: o que vi fo­ram elipses de cor grená entrelaçadas sobre um severo fundo marrom. E a torrente continuou:

— Agora, quanto ao seu caso, vou dar-lhe um conse­lho, minha senhora. Ninguém vai aceitar a sua caixa de pó de arroz e dar-lhe outra com a cor que a senhora usa. Ora, repito, como essa história de presentes não passa mesmo de uma simples troca, talvez breve a senhora tenha de comprar alguma inutilidade para pagar uma outra que vai receber de uma amiga. Pois não compre nada. Apro­veite essa caixa. Passe adiante, minha senhora, passe adiante!

 

Retratos

 

Uma data, dois cultos

Como poderia eu, nesta data, não evocar aqueles de cujo amor nasci? Ele, que desapareceu com a metade da idade que completaria hoje. Ela, que há cinco anos partiu neste mesmo dia outrora festivo, como se tivesse sido fe­chado um ciclo. Assim, de ambos falarei com a saudade e o orgulho de filha. Do homem belo, íntegro e humano, que teve sempre a palavra acatada mesmo petos mais velhos — desde os seus verdes anos até à aurora da maturidade, quando morreu. Do erudito e modesto autodidata e do mestre que tem seu nome numa escoa técnica, homena­gem que ex-discípulos prestaram à sua memória. Daquele que jamais mentiu que nos deu toda a sua ternura e oh, a quem não tive tempo de dizer as cálidas palavras da mi­nha gratidão. Muito cedo o perdemos; mas havia a pre­sença daquela que fora a sua bem-amada — como que em parte suprindo a ausência dele. Lembrando-o desde os tempos em que nasceu o lindo amor que durar ia sempre e apontando todos os dias seu exemplo como um legado, a mãe heroica realizava o milagre de não parecer ele ja­mais um pai morto. Mãe heroica — e de uma grandeza que culminou na luta áspera da viuvez, diante da perda trágica de dois filhos em flor e mais tarde, Quando não mais puderam ver os olhos mais belos que já vi (ó heroína, ó estrela, como pedias não enxergar se iluminavas?)

30-4-67

 

Durval e sua madona

Na Galeria Dezon, em Copacabana, Durval Serra vai inaugurar, com festa e coquetel, seus novos trabalhos. O convite reproduz palavras que, sobre o pintor, escreveu Marques Rebelo: "Durval Serra tem-se mantido exemplar­mente fiel ao seu caminho plástico, que já é longo e todo feito de sensibilidade e instinto — instinto puro e sensi­bilidade puríssima. Sem se deixar contaminar pelo carrei­rismo, que enodoa, sem se iludir pelos modismos, que diminuem, fortalecido pela modéstia ante os propósitos e pela humildade diante dos temas — caminha marcado por singular sobriedade e singular ternura, como se em cada pincelada angélica e naturalmente misturasse à tinta o óleo da bondade do seu coração, que o tempo não endu­receu nem as vicissitudes deformaram".

É isso mesmo. E eu lembro o artista e o colega que, juntamente comigo, Sílvia de Leon Chalréo e Dias da Costa, integrava a redação de "Esfera", a revista que rodou vários anos com sua mensagem de cultura e arte. Naquela época — de conflagração mundial e de após-guerra — Durval enchia suas telas de máscaras pungen­tes, tristes palhaços, figuras e vincos, estudos e traços de angústia contida. Foi quando me ofereceu sua menina de vestido azul e boneca no colo, os soltos cabelos os olhos caídos (a menina embalando, a madona sofrendo).

Estou certa de que, na mostra de agora, vamos en­contrar o mesmo Durval Serra, apenas com o pincel mais sábio e amoroso na forma e na cor, como diz ainda mestre Marques Rebelo na apresentação. Mas também estou certa de que nela não estará o mais belo trabalho de Dur­val, precisamente porque está comigo: a pequena mado­na azul, a tela que escolhi para estar sempre ao lado do retrato de minha mãe.

8-11-66

 

A filha dos deuses

Entrevistando, há muitos anos Magdalena Tagliaferro — e sei que ela permanece fiel aos princípios então ex­postos — ouvi "a fada do piano" afirmar que só "os filhos dos deuses" devem ser os mensageiros da beleza, porém todos os homens devem participar do banquete. Que as criações da arte e da cultura cheguem ao seio das massas amplamente, aos lugares mais longínquos e aos lares mais pobres, mas que os condutores sejam, apenas, os eleitos, os verdadeiros artistas. A beleza é uma coisa sagrada e, para transmiti-la, só o ungido, o sumo sacerdote. Que as rosas sejam, no entanto, derramadas profusamente, encham as ruas e alegrem o povo.

Lembro que a pequena repórter ouvia deslumbrada. Deslumbramento que culminou quando, para ilustrar sua tese, Magda recorda o concerto realizado, certa vez, em Porto Negra, para mais de trinta mil presenças, naquele Auditório Araújo Viana, que eu tanto amei. Ela insistira com o prefeito no sentido de ser ao ar livre o terceiro concerto do contrato. Não fizera concessões ao organi­zar o programa e ali estavam moleques descalços ouvin­do Beethoven, Bach, Chopin. Uma assistência, que era quase toda ela o povo que não podia ir ao Teatro São Pedro, ouvindo em absoluto silêncio e, ao final de cada número, explodindo em frenéticas ovações, pois com­preendia que as mães que estavam tocando eram marca­das, ferreteadas pelo gênio. Quase todos de pé, naquele ambiente helênico, diante da figura majestosa da filha dos deuses que ia até eles proporcionar aos operários suados aquele salário luminoso e inesperado, aos homens can­sados e famintos de repouso e de evasão — aquele mila­groso repasto, aquele banquete de harmonias. Quiseram, depois, que ficasse com eles para sempre a que não to­cava apenas, para os grandes da terra e, após o concerto, seguiram-na arrebatados e agradecidos, pedindo um au­tógrafo e um retrato e chamando-a pelo nome — Magdalena! Magdalena! — como a uma amiga, a uma irmã.

 

Tu-Chin-Fang

Vi "a dança das fitas vermelhas", as jovens mãos amarelas erguendo faixas rubras (eram labaredas? estan­dartes? línguas?), a glória de um bailado que parecia re­presentar gritos de júbilo, primavera, campos em flor. Vi "a dança da flor de lótus", da flor que é um símbolo oriental de juventude. E oito botões de mulher, e mais a estrela do lótus branco (eram pétalas? eram ninfas?) bai­lando, deslizando sobre as águas. Vi batalhas e romances, trajes suntuosos, adornos e símbolos, harmoniosas cores. Vi acrobacias incríveis e não vi cenários, pois a Ópera de Pequim, apresentando o teatro clássico da China — dra­ma, comédia, pantomima, dança e música — o que apre­senta é o elemento humano, o ator, e a este "cabe evo­car ilusórios rios, árvores, portas, etc., através do seu canto, da sua dança, da sua mímica". Ouvi aquela música estranha, oriunda principalmente de instrumentos de percussão, e ouvi alguns cantos populares chineses, tão belos e tão puros — a moça pensando no amado, a moça que ouviu a canção e sorriu — e o grande soprano que os executou aquela bonequinha de vestido de veludo, cantar também, a cantiga que têm cantado todas as me­ninas do Brasil: "Esta rua, esta rua tem um bosque". Re­cebi a mensagem de uma arte secular portentosa, mar­cada de pureza e de equilíbrio, de um tal equilíbrio que cada gesto parece ter um sentido, sem haver um a mais nem a menos, somando todos o número rigorosamente exato e necessário à representação.

Mas o que sobretudo me deslumbrou foi "a dança das espadas", realizada pela jovem Tu-Chin-Fang. Faz parte de "O Adeus da Favorita", que revive a seguinte histó­ria: "Cerca de dois séculos antes de Cristo, duas podero­sas casas imperiais, os Chu e os Han, disputavam a hege­monia da China. O príncipe dos Chu, em combate contra os Han, cai numa emboscada e é cercado pelos inimigos. A cena passa-se na tenda de campanha do príncipe, que vê aproximar-se o seu fim e acaricia o seu corcel. Ao mes­mo tempo, a sua favorita, a princesa Yuki, executa a dan­ça das espadas, expressando sua dor em um canto emo­cionante. O cerco inimigo estreita-se; em face disso, Yuki suicida-se, para deixar ao príncipe liberdade de ação. Mas o herdeiro dos Chu resolve seguir-lhe o destino."

Pois foi a dança perfeita da princesa Yuki (ela veio de uma página da história ou de uma taça de porcelana?) que me pareceu a coisa maior do espetáculo no Muni­cipal. As breves mãos maravilhosas empunharam as terríveis espadas e eis a pequena figura de Tu-Chin-Fang, delicada e vibrante. bailando na tenda do bem-amado a sua dor e a sua paixão.

 

Menino dormindo

Contemplo o teu sono, Jorge, e interrogo: este arcan­jo é aquele pequeno leopardo branco que devora bocados de carne mal passada e bebe com prazer o molho verme­lho? O menino inquieto e há muito conhecedor de todos os nomes e procedências de carros, aviões e navios ­é esse pássaro contido no ritmo (ou gorjeio?) adorável da respiração? Contemplo o teu sono, Jorge, e lembro a sú­bita gravidade, a nuvem de preocupação que cobre o rosto do menino acordado quando o jovem pai — pai e ídolo — demora a chegar, ou está doente, ou parece triste. Agora não és apenas uma criança dormindo. Apenas? Porque, se já eras o mais belo dos meninos, que direi agora? Estou em êxtase e pergunto se sonhas e se é por acaso o sonho que te aumenta assim a beleza. As pálpebras descidas adejam. Os lábios róseos e pequenos — fruta e seda — palpitam. Ondula o tórax branco. Jasmins e infância marcam teu rosto e oh, eu sinto, de repente, que neste momento dos teus sete anos o fascínio maior em toda a terra — sim, em toda a terra — é o que trazes, menino, no desamparo maravilhoso do sono.

 

Senhora Dona Romana

Para Zora e Antônio O'into que, em missão diplomática na Nigéria, promoveram a vinda de Romana ao Brasil (1963).

E salve Dona Romana, Romana da Conceição. Em abril de noventa e nove, lá se foi com seu avô para Lagos, na Nigéria, terra do negro nagô. Da Bahia para a África por seis meses navegou: era o patacho "Aliança" o velei­ro que a levou. Levou Romana menina para a terra do avô. Levou menina baiana que na África se casou. Teve filhos, teve netos e eis agora ela voltou. (Voltou para rever a terra onde Romana nasceu.) Quando foi levou seis meses, quando veio foi a jato e sorrindo ela desceu. Romana tão enfeitada, Romana tão elegante, de broche, coar, turban­te e capa de pele na mão. Romana tornada laço entre a África e o Brasil. Filha, neta de escravos, de escravos e de reis, Dona Romana rainha, diplomata, grande dama, Ro­mana da Conceição.

 

Minhas avós

Mal conheci minha bisavó Maria Inês, a quem sempre chamei de avó da Praia de Fora, pois era naquele bairro florianopolitano que tinha ela a sua mansão. Dirigida já então pelas netas que criara, primas-irmãs de minha mãe. Fora uma matriarca, cuja autoridade não se discutia, mas que não se manifestava, no entanto, senão por meios sutis. Lembro suas batas brancas, suas feições eclesiásticas, seus olhos fechados pelas cataratas. E quando acariciava minha mão e, nela segura, me levava para os manjares de sua mesa.

Angélica, a avó que tinha nome de flor, morreu aos vinte e poucos anos. Meu pai jamais a esqueceu. Além de a idolatrar, aquela morte arrebatou-lhe a infância. Cer­to dia — andava eu pelos treze anos — o surpreendi me fixando imensamente comovido. Ao ver meu rosto interro­gativo, disse logo: Eu estou achando minha filha muito parecida com a mãe do papai. (Era como a denomináva­mos). Carrego, pois, Angélica, a avó que tinha nome de flor.

Mas eis vovó, a que sempre assim foi chamada e que era mais doce que os sumos do seu pomar biguaçuense. Filha de donos de escravos, donos cruéis, tinha o apelido de Yayá e os negros a chamavam de anjo. Que anjo ela foi sempre. Nunca admitiu a violência e era toda mansue­tude e perdão. Conheci-a ainda com fios de ouro nos ca­belos e os grandes olhos azuis na plenitude do outono. (Aqueles olhos que tanto choraram). Viu morrer tísico o amado marido de trinta e sete anos, enviuvou grávida e criou os filhos em Florianópolis e depois em Biguaçu. Quando missionários americanos estiveram por lá, foi um dos que se converteram ao protestantismo. E membro da Igreja Presbiteriana permaneceu até morrer, indo aos cul­tos sempre de preto, chapéu e saltos altos, mui cuidada sempre, dando a todos uma agradável impressão de trato e finura. Lia a Bíblia todos os dias e quando eu, que en­tre aqueles versículos me criei, mas que cedo comecei a rebelar-me, quando eu lhe dizia qualquer palavra irreligio­sa, sua máxima reação era olhar-me com aquelas puras safiras atravessadas, exclamando: ô Maura!

Sofreu tremendos golpes vendo morrer filhos e netos, mas a lâmpada de sua fé jamais deixou de arder. ("O Se­nhor o deu, o Senhor o tirou. Bendito seja o nome do Senhor".) Fazia tudo com perfeição e milagres fazia com sua pequenina renda para nos alegrar. Nunca esquecerei minha aflição adolescente por não ter vestido novo para dizer meu discurso de oradora da turma na cerimônia de formatura da Escola Normal. Foi quando uma fada chamada Vovó me entregou aquele divino corte cor-de-rosa. Nos últimos anos parecia uma velhinha alemã a mãe de minha mãe. Que se chamava Benvinda — tão condi­zente com as ternas auras que derramava — de Azevedo Régis. Óh, quantas vezes a vi colocar os óculos para assinar seu nome querido. E inesquecível. Porque sua lembrança será sempre bem vinda.

 

Nísia Floresta

Apesar de oficialmente encerrada, permanecerá, no Centro Norte-Rio-Grandense, a exposição sobre a vida e a obra de Nísia Floresta Brasileira Augusta. Não descerão aqueles cartazes que estampam o retrato oficial de Nísia Floresta, nem o quadro com o fac-símile da correspon­dência que manteve com o fundador do Positivismo "a mais notável mulher de letras do Brasil". (Os originais se encontram em Paris no Museu Augusto Comte). Em qualquer época, o visitante poderá contemplar o belo medalhão de Nísia, feito em Paris no ano de 1851 e que aparece ladeado pelos títulos e datas das obras que dei­xou, numerosas e esgotadas; por um conceito de Oliveira Lima sobre a ilustre mulher e pelo seguinte período la­pidar de Nísia Floresta, publicado em seu "Opúsculo Humanitário": "Um dia raiará mais propício para nós, em que os escolhidos da nação brasileira se dignem de achar a educação da mulher um objeto importante para dele se ocuparem com a circunspecção que merece."

Em outro painel, fotografias e legendas sobre o ber­ço e o túmulo. Papari (hoje Nísia Floresta), onde nasceu em 1810 e onde residiu até 1829. Era no coração de Papari que se localizava o sítio natal, denominado Floresta, que "infelicidades de família e o vendaval das revoluções fizeram decair e soçobrar", mas que, em verdade, não soçobrou, porque subsiste no grande nome de Nísia Floresta Brasileira Augusta. Ainda em Papari, uma fotografia do monumento inaugurado em 1909 e para onde serão trasladados os restes mortais da escritora. Depois, Rouen, onde faleceu em 1885. O túmulo em Bonsecours e um trabalho vigoroso de Pissarro, mostrando a fisionomia de Rouen no fim do século.

Mais abaixo, o mostruário de obras sobre Nísia, entre as quais as de Oliveira Lima, Roberto Seidl, Joaquim Gri­lo e a "História de Nísia Floresta", de Adauto da Câmara. Veem-se, ainda, um opúsculo contendo as cartas trocadas entre Augusto Comte e "Madame Nísia Brasileira"; uma antologia de poetas potiguares exibindo um poema de Nísia, traduzido por Palmira Wanderley, e um exemplar da primeira edição de "Trois Ans en Italie", uma das obras de sua bibliografia, publicada na Inglaterra em 1864.

Finalmente, o álbum suspenso, o painel dos retratos: Nísia e sua filha Lívia, em 1851; retrato de 1870; retrato de 1831 (o oficial); Lívia; Augusto Américo de Faria Ro­cha, o filho de Nísia, diretor do Colégio Augusto, fundado (em Porto Alegre e, mais tarde, no Rio de Janeiro) pela educadora que superou o seu tempo e por ela dirigido até sua mudança para a Europa; professor e advogado Joaquim Pinto Brasil, seu irmão; e os grandes devotos de Nísia os intelectuais norte-rio-grandenses O. R. Dantas, saudoso diretor do "Diário da Notícias", Adauto da Câ­mara e Henrique Castriciano. Este, irmão da poetisa Auta de Souza foi quem em 1908, iniciou o trabalho de pes­quisas sobre Nísia Floresta e, três anos mais tarde, criou, em Natal, a Escola Doméstica, concretizando, assim, um dos pontos altos da pregação da educadora.

Todas estas preciosas coisas continuam expostas na associação potiguar, que tem a profunda marca da terra e é presidida pelo Dr. Marciano Freire. Lá se veem os retrates de Amaro Cavalcanti, Padre João Maria, Augusto Severo; mapas do Estado e a planta de Natal; um enor­me painel mostrando o sertão — o gado, a vegetação, os açudes, o cenário das secas — e o litoral com a riqueza das salinas e da pescaria: a vasta biblioteca sobre a gen­te e a terra potiguares; mostruários, gráficos, indicações estatísticas, óleos, fotografias, os nomes dos municípios estampados nas paredes e várias manifestações típicas de arte popular em cerâmica e madeira.

Agora, Nísia Floresta, o gênio da terra. Aquela que "causa pasmo", como escreveu Gilberto Freyre. O espí­rito independente que recusou suprimir algumas determi­nações a respeito da confissão — no volume que publi­cou em 1842, "Conselhos à Minha Filha", o qual, não obstante, foi adotado nas escolas católicas italianas. A revolucionária, a humanista, a polígrafa, a republicana, a abolicionista ("A escravidão é uma obra maldita" — afir­mou ela), a discípula de Comte, a brasileira que privou da amizade de grandes vultos europeus e defendeu até à morte a liberdade de cultos, a igualdade das raças, os direitos humanos.

 

O poeta de "Esboços"

Lacerda Coutinho (1842-1900), poeta, médico, latinista, dramaturgo e político, um dos maiores intelectuais ca­tarinenses de todos os tempos, deixou "Ovidianas", "Len­das Escandinavas" e "Páginas Soltas". As suas obras e os seus discursos (estes pronunciados na Constituinte de 91) revelam um dos nossos espíritos mais altos do fim do século.

Os mais belos poemas de Lacerda Coutinho, na mi­nha opinião, são os "Esboços", que fazem parte de "Pá­ginas Soltas". Esboços parece-me um título modesto, já que se trata de desenhos nítidos e acabados, alguns com fortes traços eternos. No entanto, denuncia a consciên­cia que tinha o autor dos seus dons plásticos. Realmente, Lacerda Coutinho é poeta de aguda sensibilidade visual, de notáveis qualidades pictóricas. Assim dotado, não se compraz em traçar quadros estáticos, como seriam, por exemplo, quase todos os "Cromos" de B. Lopes. É uma pintura de movimento a sua: pintura dinâmica, cinemá­tica, encerrando, às vezes, num sonetilho, séries de qua­dros objetivos e psicológicos. Por vezes o seu poder de síntese é tamanho que lhe basta o soneto de seis sílabas, dispensando até a redondilha popular, como no poeminha que começa com esta pequena tela dourada de sol e de infância: "Vozeiam no terreiro / alegres as crianças. / Descamba o sol — e as franças / mal doira sobre o ou­teiro. / O rancho galhofeiro / alterna jogos, danças / flu­tuam roupas, tranças / no voltear ligeiro."

Como pintor, conhece todas as modalidades das emo­ções ligadas à paisagem ou às sensações do colorido e da forma, desde a placidez virgiliana de "A Fazenda", com seu enquadramento verde e seu ambiente de traba­lho sossegado, "as senzalas, o engenho, as roças, os currais / e os gados que apascenta a ubérrima campina" — até o humorismo de pesadelo, o realismo fantasmagó­rico da sombra móvel, pequenina ou gigantesca, do vulto que, à luz mortiça dos velhos lampiões, caminha embria­gado pela "Noite Chuvosa".

Lacerda Coutinho não se contenta em poetizar os dramas e as comédias da humanidade. Chega, também, ao mundo dos bichos, interpretando-lhes as reações psi­cológicas com a sua ironia e a sua compreensão. Des­ceu aos terreiros antes de Edmond Rostand e sintetizou, em plásticos alexandrinos, todo um drama da tribo ga­linácea em que aparecem quase todos os personagens do "Chantecler".

Falei, há pouco, em realismo e, ante os "Esboços", pelo menos, não se pode, em verdade, classificá-lo um romântico. E há, ainda, corroborando, aquela preferên­cia pelos cenários e personagens da classe média e das camadas populares, que vamos encontrar na obra dos realistas da prosa. Os quadros da vida proletária são abundantes na coletânea — e mostra, por exemplo, da vida pequeno-burguesa é este recorte pitoresco de serão laborioso e modesto:

"A mesa do trabalho, às voltas co'o Razão,

risca, escreve, calcula, à luz duma candeia,

na mão pousada a fronte, o marido, o patrão.

Sentada ali ao pé a esposa cabeceia

e, ao afrouxar o braço, ao distender a mão,

solta o novelo, a agulha e a esburacada meia,"

Em "Rendeira", contudo, há quase um remanescente de fidalguia. Não é a conhecida rendeira catarinense, a pobre artesã ilhoa, que dos bilros tira rendas, que das rendas tira pão. Que tece margaridas, guirlandas, estre­las para vender. É a rendeira que mais parece dona e senhora de sua casa — fazenda tranquila ou urbana man­são — e se tece é que tem lazeres e que só tece para entreter-se. É a rendeira "sentada na marquesa, as per­nas encruzadas", mas que, tal como as suas irmãs sen­tadas no portal das míseras choupanas, forja as mesmas brancas maravilhas que as avós açorianas ensinaram. Vamos acompanhá-la:

"Sentada na marquesa, as pernas encruzadas,

óculos no nariz, uma almofada em frente,

vai os bilros trocando a velha diligente

e aproveita da tarde as horas avançadas.

Num prado papel as linhas entrançadas

com alfinetes prende; e, com mão já fremente,

logo outros fios tece. Estalam brandamente

os pequeninos paus de formas torneadas.

Coa, enfim, dúbia luz a aberta gelosia;

já o morcego esvoaça; a ave se empoleira;

canta a estiva cigarra ao despedir-se o dia.

Guarda, então, o labor a próvida rendeira

e, ao badalar o sino, ao longe, a Ave Maria,

persigna-se, sacando as contas da algibeira."

 

Lou Andreas-Salomé

Devo a Eno Stein Ferreira, médico ilustre e uma das maiores culturas ecléticas que conheço, a leitura de "Ma Soeur, Mon Épouse", tradução (com o selo da Gallimard) do texto inglês de H. F. Peters. Contém o volume a bio­grafia — desde seu nascimento na Rússia dos czares, em 1861, até sua morte na Alemanha de Hitler, em 1937 — de uma das mulheres mais importantes de todos os tem­pos: Lou Andreas-Salomé. Desejo frisar que nasceu ela quinze anos antes da morte de George Sand e, como a genial amante de Chopin, Musset, Jules Sandeau, foi tam­bém Lou amada por homens de extraordinária celebra­ção, entre os quais Friedrich Nietzsche, Paul Rée, Rainer Maria Rilke. E não pode deixar de ser mencionado o no­me do sábio que foi seu marido, mas que jamais parti­lhou seu leito: Friedrich Karl Andreas.

Foi no livro em apreço que pude compreender a mo­tivação daquela pergunta e daquela resposta em "Assim Falou Zaratustra": "Ides ver as mulheres? Não esqueçais o látego". É que, na estranha fotografia reproduzida no volume, em que Lou aparece com Nietzsche e Paul Rée — estes atrelados a uma carreta — é ela quem empunha o látego. (Com a face mais doce e feminina do mundo, acrescente-se). Formavam então a "santa trindade", logo transformada em duo, pois a nossa biografada e Paul Rée começaram a viver juntos (como irmãos, a despeito do amor sempre esperançoso do parceiro) até o aparecimen­to de Andreas. Quanto a Nietzsche, que a considerava "a mais inteligente das mulheres", nunca se conformou em não corresponder a jovem russa à sua paixão. Es­creveria, depois, o Zaratustra. E Lou Salomé — vários estudos e todo um livro sobre o filósofo.

Parece, no entanto, que foi Rainer Maria Rilke quem afinal, em 1897, a despertou para o amor. Aliás, o frag­mento que sobreviveu de um dos poemas a ela dedica­dos, em que a chama de "minha brisa de primavera", "mi­nha chuva de verão", "minha noite de junho", não deixa dúvida. Pois nele há aquele sutil detalhe revelador: ...Que nul initié n'a jamais foulés encore: / je suis en toi.

A obra de Lou Andreas-Salomé compreende, além de mais de cem artigos-ensaios, vinte volumes, em que se incluem os três publicados após sua morte por Ernst Pfeiffer, a quem a admirável mulher legou seus manuscritos: Memórias, Correspondência Rilke-Salomé e Na Escola de Freud. É bom lembrar aqui haver Lou dedicado seus últimos anos à psicanálise, tendo escrito um livro sobre o descobridor do subconsciente, estudado psica­naliticamente os "anjos" de Rilke e exercido ela mesma a psicoterapia. Sua obra de ficção é igualmente notável, compreendendo romances e novelas em que entram, des­de aquele primeiro "Uma Luta por Deus", nítidos elemen­tos autobiográficos, argutas sondagens psicológicas, conflitos entre a fé e a razão, ah, "uma angústia quase kier­kegaardiana".

Tenho a lamentar este registro tão superficial sobre uma personalidade que merece profundo estudo. (E nem me referi à sua "infância de contos de fadas" no lar dos von Salomé em São Petersburgo, nem à explosão de sua consciência e do primeiro amor da então Louise — ex­plosão que a faria deixar a terra natal, ir estudar em Zu­rich e tornar-se, depois, escritora em língua alemã.) La­mento, no entanto, mais ainda ser tão pouco ou quase nada conhecida no Brasil* a pensadora que influenciou grandes homens e escreveu grandes livros; a bela e alta mulher que parece uma esguia monja nos retratos; a que viveu corajosamente a vida que programara; a de tal for­ma fascinante que "o sol se levantava ao entrar ela numa sala" e os homens tocados pelo seu poderoso encanto "nove meses mais tarde davam nascimento a um livro".

(*) Pela primeira vez é a pensadora traduzida no Brasil: a Imago Editora está lançando (1975) "Freud / Lou Andreas-Salomé" (Corres­pondência Completa).

                         

As mil e uma noites

Minha mãe foi uma Sheherazade. Tinha ela o dom de inventar atraentes enredos, que deveriam ter sido coli­gidos e onde apareciam bichos e plantas, pessoas e sím­bolos, suas geniais criações de Anabela e Micaela, suas fadas boas e más, a realidade e a fantasia numa sábia combinação. Além da capacidade de transmitir as coisas mais vivas do nosso folclore, incluindo jogos e cantigas, e de narrar como ninguém os contos de Grimm, Ander­sen, Perrault, deixando os pequenos ouvintes presos ao fascínio da voz e do gesto e, ainda, ao movimento dos rasgados e lindíssimos olhos. Minha mãe foi uma Shehe­razade.

A magia do Oriente, no entanto, quem a trouxe para meu coração, para nossa casa, voando no "cavalo en­cantado" por todos aqueles misteriosos reinos da verten­te do índico, foi a italiana Felícia. Cozinheira, pajem, acompanhante, enfermeira, amiga, era sobretudo amada pelas maravilhas que nos servia com os pinhões cozidos nas geladas noites ilhoas. Pequena, grisalha, forte, uma alegria irônica nos olhos claros, as faces lembrando ma­çãs maduras, dizia-se filha de conde, roubada por ciga­nos — e tinha logo início um desfiar de aventuras (e des­venturas) que mais deviam pertencer ao baú das suas fan­tasias. Quanto às histórias que nos contava, eram quase todas saídas de "as mil e uma noites". Os nomes dos personagens, segundo verifiquei mais tarde, bem como os dos lugares onde se desenrolavam os episódios — chegavam sempre intatos. Mas oh, a narrativa era fre­quentemente enriquecida com os toques e suspenses da sua fabulosa co-autoria.

O volume intitulado "Joias das 1001 Noites" é que me fez abrir todo este leque de recordações. Joias en­cerradas em bela capa azul e ouro, revestida de uma ou­tra, móvel e ilustrada, assim como o texto, com os qua­dros e as cores do pintor polonês Janusz Grabianski. O sinete é o da Melhoramentos e, entre os contos apresen­tados, estão os três mais famosos: Sindbad, o Marujo, Aladim e a Lâmpada Maravilhosa e Ali-Babá e os Quaren­ta Ladrões. É a seleção precedida de uma síntese da gênese de todo o fabulário: Sheherazade, filha do grão-vizir e casada com o sultão, desenrola os seus novelos de contos na noite de núpcias, com os fios mágicos pren­de o bárbaro e real senhor, para pela madrugada no mo­mento mais empolgante (assim escapa de morrer naquele dia, como vinha acontecendo com as suas antecessoras, rainhas de uma só noite, desde que descoberta fora a infidelidade da primeira sultana) e continua na noite se­guinte — e assim vai até completar as mil e uma.

Se tal foi o preço com que salvou a vida e conseguiu amor e glória, os contos portentosos da rainha Shehera­zade não apenas arrebataram o sultão, seu marido, mas a todo o universo. Neles, "espíritos e gênios intervêm no destino de príncipes e reis, de mercadores e mendi­gos, e sempre a sua força mágica se anula diante de um puro e inocente coração". Contos que, afinal, têm um ou mais autores e onde mesmo estão fincadas as suas raí­zes? A essas indagações responde Almeida Cousin quan­do, no seu curso de História da Literatura (que ministrou na Escola de Serviço Público do DASP e publicará em livro), ensina: "... englobam, em formas arábicas, histó­rias e lendas da Babilônia, Pérsia, Turquestão, Índia, Chi­na, Egito e até Grécia e mundo clássico".

Outro ponto importante é a fonte de inspiração que elas significam. Fonte que tem jorrado belezas e, entre elas, os últimos versos — dedicados à esposa e musa Walkyria — de Jorge Salis Goulart, alto poeta e pensa­dor gaúcho, desaparecido na década de 30:

Conta-me histórias lindas, Sheherazade,

Como um cofre de jóias reluzente,

Que a fantasia é mais do que a verdade

Quando ilumina o coração da gente.

Deixa cair da tua mocidade

No meu triste regaço de descrente

As pedras preciosas da piedade

Que brilham mais que as pérolas do Oriente.

Quando a noite chegar, coalhada de astros,

Mostrar-me-ás deslumbradas ilhas.

Rendilhadas de velas e de mastros.

E eu serei mais feliz que Sindbad,

Rico de lendas e de maravilhas

Na pátria dos teus contos, Sheherazade,

 

Festas tchecas

A Tchecoslováquia possui um dos grandes nomes da literatura universal: Bozena Nemcová. É ela a autora do traduzidíssimo "Babicka" (A Avó), livro escrito em 1855* e "que representa um marco miliário importante na evo­lução e caracterização da prosa tcheca", como salientou Antônio Houaiss no prefácio da edição brasileira. Classi­ficado como romance, contém vários romances — e é biografia, são memórias, tendo como cenário um vale poético do norte da Boêmia, onde a autora passou a in­fância e parte da juventude. Muitos personagens nele se movem, mas a figura central é uma velha camponesa analfabeta e sábia, Magdalena Novotná, sua avó materna. Dona de segredos, rica de dons, pura, jovial e terna, sa­bia amar e entender o semelhante, atrair o bem-querer da comunidade, cumprir com humilde grandeza o difícil exercício de viver.

"A Avó", descrevendo os costumes de toda uma re­gião através de uma série de quadros que pingam vida e poesia, apresenta inúmeras facetas para serem estuda­das: os profusos diálogos, a vida familiar, as peregrinações, as visitas, a exuberante flora, as estórias de amor, as danças, as lendas, as bodas, as múltiplas intervenções da avó para as soluções felizes dentro e fora do clã e tantas outras, entre as quais a que me parece tudo re­presentar: as festas, não as singulares, mas as coletivas e periódicas.

Elas intercalam-se por todo o volume e, reunidas, po­deriam oferecer o próprio sumo do livro. Revestidas sem­pre pela magia das cores locais, abrangem o calendário de ponta a ponta, algumas parecendo coincidir com os equinócios e solstícios, numa comunhão da religião com a terra, da terra com o mito solar. Seu conteúdo mais fascinante está nas comemorações do inverno, que se ini­ciam quando a avó desperta os netos (e há aquele alvo­roço) para anunciar a chegada de São Martinho, montado no seu cavalo branco. (A neve já cobria com o seu manto o vale todo.) As estações são marcadas e recebidas ri­tualmente. Mudam os hábitos, as comidas. No inverno, desce a roca do sótão, chegam as limpadoras de penas à Velha Lavanderia (morada da família) e, enquanto "na lareira crepitava a lenha resinosa", estendem-se os anima­dos serões das fiandeiras — com ervilhas assadas, peras cozidas, ameixas, risos claros, estórias de assombrações.

Erguem-se pela manhã os cânticos do Advento, en­toados pela avó, e seguem-se as copiosas celebrações do Natal — onde não podia faltar o hóspede à mesa, nem a trombeta do pastor — e as dos Reis Magos, estas su­cedidas pelo "serão longo" e pela representação de San­ta Doroteia. Os festejos do carnaval — com trenós e gui­zos — terminam com uma grande mascarada e são o epílogo do inverno. Novamente os cânticos da avó, na sua roca e vestida de luto, agora assinalando a Quares­ma. E chega-se ao domingo florido de Ramos, à quinta-feira santa, único dia do ano em que eram feitos os de­liciosos judas-com-mel, ao sábado branco (Aleluia) e ao domingo da festa de Deus — com ovos tintos, o carneiro imolado e as rondas da Páscoa entoadas pelas crianças. Já as andorinhas tinham regressado, já os dias se alon­gavam e, no limite de primavera e verão, vêm as festas de Pentecostes, que a avó chama de "festas verdes", pois enfeita a casa toda de galhos de bétulas. A noite de São João é uma das mais significativas, porque é também comemoração onomástica, banquete doméstico. Mas o ponto romântico é quando a avó surpreende a jovem Kristla com as nove flores do ramo da sorte — e lembra-se de Magdalena em flor jogando a coroa, de costas, no alto de uma árvore. Depois vem agosto e começa a co­lheita na rural região. A festa dos segadores marcará o final da colheita do trigo.

O trigo é o pão. Para a avó o pão é algo sagrado. Sua feitura é um rito, seu modo de cortar deve ser certo. Com o sal simbólico, oferece-o às visitas. Dele nada é jogado fora: junta as migalhas e leva-as com fervor às aves, às formigas, aos peixes. E, quando prepara a me­renda para os netos, põe na cestinha de junco e nas sacolas de couro, ao lado dos frutos secos, uma verda­deira torta de pão, pois ocou, antes, um farto pedaço, revestiu-o de creme e adicionou toda a polpa do miolo. Para a avó, o pão é festa de cada dia, é bênção, é "dom de Deus".

(*) No PEN Clube do Brasil (Centro Brasileiro da Associação Mundial de Escritores, sob os auspícios da UNESCO) e ainda no Ano Internacional da Mulher (11-11-75), a autora pronunciou uma pales­tra sobre "Os 120 anos de Babicka, de Bozena Nemcová", parte da qual foi publicada na revista "Convivência", órgão do PEN.