LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Poesias, de Ernani Rosas
Texto-fonte:
Ernani Salomão Rosas, Poesias, org. de Iaponan Soares e Danila Luz Varella,
Florianópolis: FCC, 1989.
ÍNDICE
Contam que o teu olhar urde a fatalidade (Salmo I)
Balada d'ausência e da saudade
Lilases, violetas, memórias do outono
Certa lenda numa tarde
Sombra idílica
I
Amplo mistério, abraça meu segredo,
floresce num delírio de inconsciente
e a alma, que envelheceu pelo degredo,
alheia-se a sonhar convalescente.
Para mim, tudo num Luar se estagnou,
como um adeus de cinza esmorecendo
em tarde que minh'alma se evolua...
num crepúsculo em seda amortecendo.
A luz é uma ante-sombra, pela tarde
na envolvência dum sonho de acordar...
embalada na voz que se oira e arde...
Ó Alma, que és sol pálido de Lua!
sou o idílico irmão do teu cismar...
que é meu rastro de branca Ofélia nua.
II
Ó Ninfas ao Luar da noite ainda
abraçando a ansiedade da minh'alma...
idílica e lunar, que em flor se alinda
no abismo d'água clara da voss’alma...
A hora trespassando antiguidade,
faz-se ausência, etereal melancolia...
canção d'aroma as formas da saudade
que passa lenta como a luz do dia...
Inquietação de tarde sibilina
acorda-te, ó Luar adolescente. .
pela noite imperial da minha sina!
Adormeci... pela manhã amiga
despertei sombra vã de antigamente,
vi-me passar no Espelho d'hora antiga...
III
"Perdi-me... toda uma ânsia me revela
sombra de Luz em corpo de olor vago,
a saudade é um passado que cinzela
em presente, a legenda desse orago"
"Errasse em densa noite de beleza,
pisasse incerto, um falso solo de umbra...
sonho-me Orfeu... o Luar que me deslumbra...
é marulho de Luz na profundeza!..."
Toda a alma do azul esvai-se em lua...
nimba-lhe a face um crepe de Elegia...
É alvor do dia numa rosa nua,
que as minhas mãos cruéis sonham colher...
mas ao tocar desfolha-se mais fria,
que a sombra de meus dedos a tremer...
IV
Sinto meu ser tremer como a água fria
ao Luar num jardim — sonho de Ninfas...
e a sombra a agonizar n'áurea agonia
iriado lírio de luar nas linfas..
Cismo singrar-me lírio nessas tranças
aureoladas das fontes que nasciam...
a deslizar saudades e lembranças
que vão nascer pra além como morriam...
Pensei retê-las, ser o rastro d'Elas...
ser a canção saudosa, que desliza
bebendo a luz dos olhos das estrelas...
Correr em vão e ter seu mesmo fim,
ser o irreal espelho onde agoniza
esparso olor, idílico jardim!...
As ninfas
I
Ó cabelos das ninfas — oiro a arder-me!
chorando à noite em lua no arvoredo...
desgrenhadas visões do meu segredo,
que a essa hora anseiam entrever-me.
Ó suplicantes formas de Beleza,
todas de rastos, de aneladas tranças..
Eleitas vidas, que alimentam esperanças
e erram de tarde em tarde na tristeza!
Ó tântalos de carne! Sonhos do Sol Poente.
corpos vagos de Incenso... Horas rezadas
jardim lilás de orquídeas do ocidente!...
Ó Imperdurável encarnação de Ninfas!...
Lá! se vão, sobre as nuvens reclinadas...
Como sobre corcéis que cortem Linfas!...
II
Ninfas de loiras tranças, já desfeitas,
sobre a infusa demência dos ocasos,
Já olhares azuis, Ninfas eleitas,
que eram formosas, como curtos prazos...
Alucinadas fontes que correram...
saudosa voz de sombra num jardim...
Linfa, a chorar as Ninfas que morreram
e a tarde bizantina desse fim...
Sombra do seu cabelo, a tarde em lume...
que se deliu no meu olhar assim...
e ondeia em doida forma de perfume...
Ó ritmos de seus dedos, que são fumo...
esgarçada saudade de um jardim,
desnastradas chorando em vário rumo.
Narciso
Para Eugênio de Castro
Vislumbro esse jardim, onde a demência erra?
Sonho de infância em cor na cinza doiro extinto.
Que tarde essa de anseio a perder-se em meus Olhos,
como por mim se ausenta esse luar, que sinto?...
Vislumbro esse jardim, em que órbita se encerra?
distante a sepultar-se em névoa nos meus olhos...
Tarde de encantamento e transfiguração!
idílica na cor da fonte, que desliza...
silêncio, mansamente à boca do mistério!...
há mãos de musa a urdir a minha inquietação.
Acalenta-me o berço — embalsamada brisa...
onde irá ter o seu suspiro de oiro aéreo?...
Tarde de encantamento e transfiguração!
em que eu cismo Existência — hierático perfume...
que oloriza e adormece a tarde em áureo lume,
no seu vago fulgor e azul palpitação!...
Eu sinto sepultar-me a noite d’além fim!
espelho-me a sonhar à sombra do jardim...
meu cabelo a cair como um clarão velado
ilumina-se à luz como um cristal dolente
em ausência de sol num reflexo alado,
sou a idílica voz da fonte, tristemente!...
Sobre mim desce a noite estática e divina
em hausto de neblina a transcender de Olor!
meu contemplo deliu-se lindo a oiro pálido...
sou todo anel de Lua em linfa cristalina,
onde todo esse amor é um sonho vago e esquálido!...
O outono a fenecer em meus gestos de seda,
esmaiou no dossel d’alguma tarde antiga,
por mim passou com o tempo a legenda inimiga
e a alma idílica em oiro de um cisne e de uma leda!...
passaram entre canções do meu idílio em seda!...
Perdi-me. O meu olhar era o mais lindo abismo,
em que eu flor divaguei demência, num aroma...
quebrou-se a gesto d'Alma... à beira dele cismo
e sonho essa ilusão de ser olor, que assoma...
através do meu ser — vago espelho sem fim!
aclaro-me a cismar no meu místico-Fim..
Tarde de encantamento e transfiguração!
Tu’alma erra dentro da minha em ecos de outras tardes...
Eu sou — Narciso! — Ó Ninfas, minha meditação
inquieta-se em ser a irmã das vossas tardes!
vós sois o Poente irreal e idílico e est’alma...
Ó Ninfas — a tentar a minha maldição!...
Poema do ópio
Elegia
Triste esmorece o dia, e a tarde
vive em cristais e pedraria!
E a Alma, que anseia, se retarde,
no olhar do Além em nostalgia...
Amei! vivi em certa aurora!
Fui sombra aérea do meu ser...
como um perfume se evapora,
jardim do azul que vai morrer.
Outono em névoa de Horas-mortas,
Poente de sonho que deslumbra:
diáfana luz, cerrando as portas,
que dão pro mundo da penumbra...
Eu fui perfume de um jardim
em Hora d'oiro a transcender!
passou por Ele o Outono e assim
vivo na morte a florescer!...
A luz que sobre si...
A luz que sobre si orquestra em doido hinário.
Ébria de sonho e cor, na dança a prosseguir,
É toda etéreo luar, que a vela num sudário,
Sortílega no anseio, heráldica a florir...
Insônia a macerar-lhe a carne enlanguescente,
Suscita-me a lascívia o seio virginal!
Aclara-lhe o esplendor... O corpo, ópio-indolente,
Oscila, desfalece ao meu desejo irreal...
Angelizada voz numa noite em que os lises
floriam pelo azul... na lenda humanizou-se,
na insídia dum amor a distender raízes...
Lúgubre agonizava à sombra da cisterna:
E uma voz de perdão, mais rude do que doce,
Parecia falar pela ilusão eterna!...
A glória a constelar...
A glória a constelar de vitória em vitória,
Como um poente, que à luz anoiteceu mais cedo.
E fora a cravejar de rubis a memória
Do teu cio sangrento às lajes dum degredo...
Sinto-me a errar n’alguém, da sombra indefinida,
No esquecer dos teus pés, assim como um segredo,
A bailar como o olor na névoa adormecida,
Duma dança que tem espasmos como o medo!
No interlúnio da noite, incompreendido e lindo,
Como um sonho febril, pela carne perdido,
Que pelo olhar sem fim vai friamente ungindo...
Pelo fluido lilás dessa penumbra intensa
A silhueta de alguém, num gesto adormecido,
Caminha pelo azul que as estrelas incensa...
O meu ruivo destino
“O meu ruivo destino às mãos da lenda enleio”,
“E noite que caiu sobre os meus olhos, louca!'
“Incinerou-se, ardeu... nas asas de um anseio...
como ilusão perdeu-se um nome à minha boca”.
“Floresci, como a cor de um Poente de escarlata!”
“Acordei como a luz piscina num jardim...”
“Vesti-me dum luar que um escrínio desbarata
Todo o império estelar do azul que não tem fim!...”
“Sonhando, possuiu-me o encanto que eu plasmava,
Amara-me o bailado à lua na alameda
e supunha-me ver no sonho que eu tentava...”
“Uma tarde me ergui dos meus ócios gentis...
Do parque atravessando a transparente seda
Fui deitar sombra e luz a um Poente de rubis!...”
Não serás tu, a sombra...
Não serás tu, a sombra exígua do remorso,
nem dum arcano a luz através do destino?
o acaso ensanguentando um dia, as mãos, no dorso
de um cisne que surgiu sobre o lago opalino!...
Esse cisne era a alma empírica de um santo;
cuja egrégia cabeça era um lis azulado,
que n'água refletia, a um poente de amaranto,
todo um zainfe lunar em névoa, constelado...
Salomé, teu perfil, no meu olhar, se esconde...
é gelo a tua carne... teu sangue ao sol caindo
é uma rosa outonal num mar de fogo, aonde...
Teu imperial frenesi irá cair, exausto!
no delírio espectral, a tu alma florindo...
Teu ser constelará a arena do holocausto!...
Alucina-te a cor
Alucina-te a cor e a calmaria
desse oceano fulgente em que demoras
o olhar em sonho a germinar auroras...
entre a quimera e a líquida ardentia...
Pareces caminhar magnetizada,
sob um chover de estrelas e de rosas...
pelo florir da Luz quimerizada
surges de um mar de nuances misteriosas...
Como ilha d'aromas e de gases,
esparsa, no silêncio, que desperta...
o lírio de teu gesto, entre lilases!
Acenando do azul do meu assomo...
ou d'aérea visão que à luz deserta,
ao mágico poder que vem dum gnomo!...
Quem és tu, loba...
Quem és tu, loba ingente? que me buscas
e atalhas meu sofrer incerto a Luz...
e a estrela, que eu ideei no céu, me ofuscas...
no entanto, est’alma triste inda reluz...
Nuvem extinta do sol... já, na alvorada...
foste a morte, que as horas escurece
aguardando de lâmina doirada,
o precursor do Sonho que floresce...
Inesperadamente, entardeci!
como um castelo à sombra de um cedral,
pelo meu coração tu'ânsia ergui.
Senti-me arrebatar por teus segredos,
escravo do teu Elo imaterial...
Coluna envolta à vida dos teus dedos...
O Sonho-Interior...
O Sonho-Interior que renasceste
era o Poema dum Lírio do Deserto,
o vinho d'Outras-Almas que bebeste
fatalizou o meu destino incerto...
Depois por Ti em Sombras de degredo
encerrei a minh'alma desolada,
tive a tua visão crepusculada
na Beleza fugaz do meu segredo...
Perdeu-se-me ao Sol-Pôr teu rastro amado!
qual Cipreste, no Poente agonizado —
na demência autunal duma Alameda...
Velaram-se Sudários teus Espelhos...
ante o cerrar do teu Olhar de seda,
que era um descer de lua em cedros velhos...
Depois de te sonhar...
Depois de Te sonhar Mistério ido
e de seguir-Te e ouvir-Te em Hora leda,
vesti teu Ser a raios d'Astro e Olvido,
de Antiguidade o teu perfil de Moeda.
Parei depois de haver corrido tanto
e amado e urdido Horas de Sonho-Asa?
constelada de azul fulgor de brasa
por Tardes enlaivadas de quebranto...
Sonho em Cristal teu corpo de Champanhe?
mansa luz que morrendo sem alarde,
não há sol de crepúsculo, que a estranhe...
Acordas do teu Sono, para Mim!
nos meus olhos à sombra, para a Tarde...
por que surges em Sonhos num jardim?
Outubro, o sol...
Outubro. O sol em fuga d’oiro parte!
E a paisagem parece que morreu.
Todo um temor procura-me afastar-te...
Dentro de mim tu'alma floresceu.
Cerrou-se te palácio em brônzeas portas.
Teus repuxos cessaram de se erguer...
Há um estranho rumor a coisas mortas,
Já as fontes pararam de correr.
Guardo um rumor de folhas na alameda,
Gela-me a paz da tarde pelo outono...
Anda um tecer de luz a oiro em seda!
Sonho-te ausente... ou antes recolhida,
Vejo teu ser passar pelo abandono:
Como uma sombra errante em minha Vida.
À tarde o poente desfia...
À Tarde o Poente desfia
Topázios com filigrana,
Vindo ouvir a melodia
Dos vasos de porcelana!
Castelos do ocaso, esfinge,
Em cinza d’oiro, penumbra!
A Tarde em lírios nos cinge
Para o longe que a deslumbra...
Fulgores de rubra seda
Na dolência carmesim
Que vai do poente à alameda...
Cintilos d'Astros, Poema!
Diluir d'Opalas, Jardim...
De Salomé: o Diadema!
Contam que o teu olhar urde...
Contam que o teu olhar urde a fatalidade
em leda renda de oiro...
aos destinos e às c'roas...
que possuis o condão de uma magia rara!
Teimosa, oculta mão Te impele para o crime,
fascinas, fascinada...
És toda encantamento e tentação sublime...
Vens d'alma constelada...
Tudo Te encanta e tenta em torno de teus pés...
cavam-se abismos...
a própria tentação por Ti é fascinada;
te arruivam de topázio os olhos de ametista,
o assombro e o paroxismo...
Enferma-Te as olheiras a espiritual nuance
que há no oculto poder que Te personaliza!
O silêncio e o jardim são aquários velados,
a noite é um mar êxul sob estrelas profundas
extáticas d'amor calando a voz do céu...
Despertam do palácio os jardins e as piscinas...
Há rondas de faisões na soturna alameda...
Acorda a escuridão: como que desabrocham
florentes, orquestrais as franças dos repuxos,
como flores sensuais feitas de pedrarias...
E ao som d'harpas ideais, de citaras e liras
de profanos Poetas...
a tua silhueta rompe da escuridão,
como uma borboleta
quimérica e irreal...
tendo o corpo colmado a lúcido brocado,
traz lírios à cintura...
E os dedos a bater são remos a brilhar...
Como que a lassidão do ambiente se constela
e os crótalos vibrando adejam em torno dela,
parecem ter anseios...
São asas de falena ao sol a cintilar;
metálico florir em torno a dissonar ―
Azul esplende a chama em carícias de serpe
que se enrosca em seu braço.
Incansável nos gestos,
vestida a oiro-luz de um sol que não brilhou
e encobriu-se no azul da aurora que o beijou...
Como que adormecida ela avança a dançar,
ébria de perversão,
inquieta de surpresa,
como cega a passar à beira de um abismo,
tendo os olhos vendados,
como magnetizada
por uma oculta força...
Quase desfalecida
suplicam-lhe os anéis...
Ao som dos burcelins e crótalos, tentada,
Salomé traz às mãos egrégio prato de oiro!...
Silêncios
Silêncios
Ondulação da cor, teoria das horas,
cristalina garganta, irmã dos rouxinóis:
com que ânsia colores as cármicas auroras?...
crepúsculo eterial de acordes e bemóis!...
Os raios d'astros são ritos,
sangrando em rubis noturnos,
euclásias e crisóprasos
ardendo em brilhos soturnos
de crepúsculo e ocasos...
Descem os últimos reflexos
num vislumbre cristalino,
cálice d'oiro e hialino,
que a minha sede aguardasse,
água fria que passasse!...
Iniciam-se de seda
uns idílios em prelúdio:
sonha o cisne de uma Leda,
mais o sentido de um mudo!
Uma princesa descansa
à sombra de uma alameda:
todo longe é uma esperança
e a hora fenece em seda...
Pelas charnecas a Lua
constela de diamantes a vereda...
E a hora é Salomé sob esplausos de Luz.
Esmorece o vesperal,
cristaliza-se o som
num ritmo de espetral...
Delírio de opalino,
que as coisas embalava!
quando à luz irial
sonâmbulo evolava,
como um lírio outonal
pendente no Abandono...
Agonizava uma vez... é talvez a princesa?.. .
parece, que morreu:
vai pela tarde um laivo de Tristeza,
num'asa adeja agora para o Céu!...
As cisternas, ao fundo, notiluzem Luar...
O jardim adormece...
de anseio e de cismar...
uma fonte ao correr
amortece,
Sou Deus a conceber!...
Oram as flores por mim,
destilam essência e olor...
Sou a boca do Sol-pôr!
que esparze aflux jardim
em forma de saudade e súplicas de Amor!...
Sombra de Aparição, que dorida te inclinas,
qualquer coisa possuis de hierática no Amor:
beijando a ara azul da hora, que ajardinas...
És o pintor irreal das telas do Sol-pôr!...
Poemas avulsos
Quimera
Nossa cabeça é uma divina furna,
Onde sonhos edênicos adejam
Antes que os olhos da nossa alma vejam
Abandonar do nosso corpo a urna.
Ela é a falena do irreal casulo
Da nossa carne enferma de beleza...
Voltando à realidade com tristeza,
Dá do seu sonho para a vida um pulo...
Mas, o mocho do tédio, que negreja
A curva azul da noite que nos beija
A afastada paisagem da ilusão...
Faz a alma voltar à realidade,
E olhar o paraíso com saudade...
Da nossa astral, cruel decepção!...
1944
Soneto
Divagar, que ilusão! O mundo é estreito
Para contar as minhas sensações...
Qual saudades não moram no meu peito,
São tantas, quantas são desilusões...
E as lembranças que trago do seu leito,
Mais que versos, que todas as paixões?
E os beijos com que há tanto me deleito,
Olvidei-os por mil decepções!
E a vida, o desalento que me traz?
Para esquecê-la fixo-me em supô-la
Numa viagem que o destino faz!...
Volto a cismar, ao cais de onde parti...
— e do naufrágio a lenda a recompô-la...
Num poeta em que há anos pereci!...
1918.
Lúcifer
No espelho encantado do destino
Mais de uma vez me vi transfigurado:
As horas tinham timbre cristalino
E erravam opalizadas no passado...
Não me farto de olhá-las, no mistério
Tênues e loiras como a corda flébil
Do violino outonal do poente aéreo,
Que amortece em lilás num corpo débil...
Não me farto de olhar, erro inconsciente...
O solo é de diamante e o espaço um astro...
Vivem mármores d'alma no poente!
Foge-me a luz e se antecipam as horas,
No lago azul há cisnes de alabastro,
E o espelho em que me vi é tudo auroras!...
1936.
Tísica
A saúde falhou... Desiludida,
Em seu jardim de além concebe o olor...
P'la inércia de uma tarde indefinida
A custo segue para o umbral transpor!
Não maldigas a sós meu doce amor,
Não maldigas da carne e do sentir...
A vida é vã, como delgada flor!
Tem espasmos de aroma no florir...
Passou metade-luz por noite escura,
Presença espiritual dando-se a deus...
Requeimando-se às chamas das alturas...
A própria natureza lhe mentira
Era sombra da vida que surgira...
Sua alma triste pertencia a deus!
1947.
Trago de Hamleto a dúvida
A Andrade Muricy
Trago de Hamleto a dúvida sombria,
De Orfeu o canto e a lira melodiosa
Que animavam e tocavam a pedra fria
Duma imobilidade misteriosa.
Na minha dor sonâmbula, morosa,
Como funda e longínqua sinfonia
Vagueei, como uma sombra vaporosa
Para não ver-lhe a face à luz do dia!
E discreto passei anos e anos,
Sem que essa força estranha me exaltasse...
E fosse todo o mal de meus enganos!
Mas um dia encarei sua aspereza;
Deixei que seu humor me despertasse,
E vi na dor cantando a natureza!
16-12-1913
Lágrima!...
Ó lágrima nitente de Maria
Estrela d'alva a cintilar tremente,
És a divina lágrima d'um crente
Na fervorosa prece da agonia.
Rolas dos olhos trêmula e fremente
Celestial, misteriosa e fria,
Caías talvez na pétala sombria
Dum olímpico lírio alvinitente.
É tão divina, mística e singela...
Parece feita de luar ou neve
Ou do estilhaço duma branca estrela,
Na flor silvestre de celeste alvura
A pequenina lágrima tão breve
Se congelara para sempre pura!...
1-5-1907
Para que, alma, o esforço...
Para que, alma, o esforço extra-humano,
Peregrinando assim pelo infinito
Das estrelas sem rumo, qual precito
Por entre as vagas do noturno oceano...
Para que esse teu-tantalizar
Do sonho, em louvor de quem não sabe
Medir a altura imensa que nos cabe
Para adejar no inter-azul-sonhar...
Dorme. Deixa florir para mais tarde
Talvez à noite para o além a lua
Saiba curar seus males sem alarde...
Ela é uma santa; sua influência atua
Sobre as coisas da terra onde não arde
A chama da volúpia, que tressua!...
Languidez outonal
Minha volúpia é como uma moléstia estranha...
— inverno. Vento forte, névoa no entardecer;
Eu sei que um mal qualquer dentro de mim se entranha,
Embora sinta, enfim, desejo de viver.
Já invejei, senhor! O cimo da montanha.
Um coração, que parte, outro logo a sofrer;
Tudo quanto se esvai nessa horrenda campanha,
Nesse estéril lutar, nesse aziago prever.
A dolência abateu-me! Em mim, o que ainda existe
De apagado e sublime, unicamente, é a sombra
De um sol crepuscular ou de um espírito triste!
De mim há de nascer o sonho de amanhã...
Nesse prolongamento hibernal, que me aguenta
De um outono vermelho, aos beijos de Satã.
Rio, 1911
Pérfida
Ela foi-se-me a rir ao branquejar do dia,
Quando mal despontava a rósea claridade,
Além, na extrema azul, alguém de mim fugia...
Era um louco ideal de efêmera vaidade.
Ela deixou-me então no peito esta saudade,
Que fere e que devora em torpe covardia;
Ela, quando voltar, há de encontrar já fria
A quimérica flor da louca mocidade.
Esta loira mulher, mais lúbrica que um sol,
deixou-me a soluçar em lúgubre incerteza,
A implorar, seu carinho, à luz d'um arrebol.
Remédio onde buscar para estancar o mal?...
Só com a presença dela a trágica tristeza
Tornar-se-á como o sol d'uma manhã floral.
Ao poente
Gosto de ver na síncope do dia
A mistura de tintas do poente,
O sangue vivo, violento e quente
Do sol, n'uma medonha hemorragia.
A claridade extingue-se na enchente
Da noite, de uma atroz melancolia,
Mas, na curva rosada inda sorria
A luz do fim da tarde no ocidente.
Pirilampos azuis, misteriosos
Saem das moitas frescas, perfumadas,
Como os astros por céus silenciosos...
E, por entre o salgueiro de uma cava,
Surgia além, das fúnebres moradas,
A cimitarra de uma lua nova.
5-4-1904
Misticismo do outono
Ó meu jardim de flores e quimeras,
Porcelana, que à luz é carne acesa...
Ó sol d'oiro fluido das esferas,
Doces cismas d'além para a tristeza...
Bosque, onde a quimérica beleza
Passeia, à luz cerâmica das eras:
Cuidando ver nos astros a luz presa,
O moribundo encanto — as primaveras!
Vaso de eucaristia... Ó bizantino
Castelo, onde a graça d'ela habita,
Furtando-se aos desejos vespertinos!...
Ó silêncio da noite erma no Eufrates...
A florir arcangélica e infinita
Num pôr-de-sol de flores escarlates!...
Rio, 07-01-1912
Ó noites de luar
Ó noites de luar! Prenúncios d'além vida...
Ó céu espiritual! Ó cósmico viver!...
Quem nunca viajou e, num dia lá for ter,
Dirá que não viveu a vida já vivida...
Ó força natural! Ó mágico poder!
Que fazes rebentar da terra ressequida
A florida expressão de rosa estremecida
Num'haste que começa agora a florescer...
E tu vida, que já antes de seres minha,
Te consumiste em chama, espírito de graça,
Transformação genial de fera em andorinha...
És a essência que anima esta figura airosa!
Assim como o perfume, a cor que a alma adelgaça
O crepúsculo em flor dum astro ou duma rosa!
22-07-1910
Espiritualismo
A Miguel Monteiro
Carne que foste aroma e primavera
Impregnada de volúpia e dor;
Onde as lavas quiméricas do amor
Transformaram-te em alma de pantera
Foste corpo de rosa doutra era,
Infância embalsamada n'um sol-pôr:
Teclas violando música sem cor,
Beijos frios que são pura quimera!...
Misticismo de graça e de abandono.
És o dia a findar-se e a mágoa vence-o:
Num desconforto d’horas pelo outono!...
És o arcanjo do bem revelador!
Névoa a dormir nos braços do silêncio:
Como adormece no meu peito a dor!...
16-01-1913
Salomé
Para Ronald de Carvalho
A luz que sobre si resvala em ciclo vário
Num anseio de sombra e encanto a prosseguir...
É toda etéreo luar que a gela num sudário
À cor dum sortilégio, heráldica a florir...
Insônia a macerar-lhe a carne enlanguescente...
Suscita-me a lascívia um outro ser mortal
Seu rastro espectro olor... O corpo ópio indolente
Oscila... Desfalece ao meu desejo irreal!
Angelizada voz nessa tarde de lises
Perdeu-se... Em outro-azul espiritualizou-se!
Na insídia desse amor a distender raízes!...
Sobre ela a florir junto a cisterna, louca!
O disco singular da lua estagnou-se
Em raios que eram alma, e um lírio a sua boca...
1914
Salomé II
O Sonho-Interior...
O Sonho-Interior que renasceste
Era o poema dum lírio do deserto,
O vinho d'outras-almas que bebeste
Fatalizou o meu destino incerto...
Depois por ti em sombras de degredo
Encerrei a minh'alma desolada,
Tive a tua visão crepusculada
Na beleza fugaz do meu segredo...
Perdeu-se-me ao Sol-pôr teu rastro amado!
Qual cipreste, no poente agonizado
Na demência autunal duma alameda...
Velaram-se sudários teus espelhos...
Ante o cerrar de teu olhar de seda,
Que era um descer de lua em cedros velhos...
1914
Salomé III
Depois de te sonhar...
Depois de te sonhar mistério ido
E de seguir-te e ouvir-te em hora leda,
Vesti teu ser a raios d'astros e olvido,
De antiguidade teu perfil de moeda.
Parei depois de haver corrido tanto
E amado e urdido horas de sonho-asa!
Constelada de azul fulgor de brasa
Por tardes enlaivadas de quebranto...
Sonho em cristal teu corpo de champanhe!
Meu anseio velado som de alarde...
É luz cegando espelhos em champanhe.
Acordas de teu sono, para mim!
Nos meus olhos à sombra, para a tarde...
Que me sepulta em sonho de além-fim!
1914
Boêmia
Adeus, flor da boêmia! Adeus ó minha amante!
Eu tenho a sensação da queda em pleno abismo!
A minha vida foi, toda ela, em romantismo
Presa à taça do vício e o amor d'uma bacante.
Adeus ó natureza eterna e fascinante!
Foi-se me a vida um sonho, à luz do idealismo...
Eu sinto-me afogar no horror do paroxismo!...
Hoje sigo devasso um coração constante.
Meus amigos, adeus! Adeus, minhas tabernas!
Adeus, taça de vinho! Adeus, magos cantares!...
E a guitarra a chorar nas melodias ternas
Traz-me recordações das noites do passado...
— noites que em pleno azul lascívias estelares
Cantavam ao meu amor a luta do meu fado!...
XVIII — XI — MCIX
Elogio dos vitrais
Corpo de som e cor, forma velada.
Todo de sombra e sonho e vago anseio
Elegia das cismas e do segredo,
Tonalidades d'olhos encantados
Pela primeira vez à luz do dia...
Harmonias secretas na carícia...
Da sombra erguendo as mãos n'uma oração.
Ó conjunto secreto da beleza.
Ó íntima emoção das cousas vivas,
Ó rio por sonâmbulos cismares,
Toda em névoa e luar: como o meu ser...
Ó mistério do além feito penumbra
Ó melindre quimérico do outono...
Diluindo-se em místicas figuras
Na miragem dos líquidos efeitos!...
Ó espírito sutil do sentimento,
Que só o meu sentido pressentiu:
Como um vento de morte e de segredo:
Que passasse entre as folhas sem movê-las!...
Como a graça infinita do imprevisto
No espírito errante de Cibeles!...
Ó pintalgar das folhas, na volúpia
De satânicos beijos malfazejos...
Ó paisagem beijada pelo Outono.
Assim, quando beijamos quem amamos,
Em volutuoso ardor sexual!...
Maculando-lhe a carne delicada
E o horizonte do Amor e do Desejo
Alongando-se em beijos e abraços...
Ó além dos desejos sem limites!
De quem descesse ao fundo do Oceano...
Olhando-o visse acima: deslumbrado,
O sol abrindo a Alma em forma d'Íris...
Ó além das quimeras, na Elegia
De teu beijo de Arcanjo misterioso
Amor vivo de Tísico, com beijos...
Já na febre do anêmico sem forças!...
Ó bemol com avantesmas e Duendes,
Ó pôr-do-sol da Vida nos Olhares,
Olha! O Além é o eleito de Almas brancas...
Com as mãos tangendo Harpas no Passado...
Ó mistério da cor e das vidências...
Onda de som e claras harmonias,
Sois o sonho das horas sem limites,
O descanso da mágoa e do indizível,
O segredo das vidas e dos Vitrais!...
Ó desejo de ser névoa e Silêncio!...
Almas a olhar do Além com Olhos tristes.
As Estrelas são os Olhos da Tristeza
Com a saudade do brilho da Ametista!...
Ó Tristeza infinita da Tristeza,
Ó íntima beleza misteriosa...
Tão recôndita e mística e imprevista
Espírito vidente do meu ser!
Desvenda-me essa Dúvida suprema
Astros! Olhos sombrios do mistério!...
18-02-1913
Casuarina
A Diniz Júnior
Onde encontrar a Perfeição na vida,
Seja sol ou horizonte esbraseado,
Pôr-de-sol ou crepúsculo magoado,
Seja sombra ou luz morta, transfundida
É, porventura, esta Árvore perdida,
No meio deste vale, pernoitado
Pela sombra da noite inda esquecida
Do sol e do seu beijo alcandorado?
É, porventura, uma Árvore ou o indizível
Visionista ambulante da paisagem,
No mistério das coisas, transfundível?
Não! É liga singular de Dor e Sono,
A Vida perscrutar-se na miragem,
No silêncio das horas pelo outono!...
29-10-1912
Musa
A Levi Autran
Ânsia das névoas, asas dos invernos,
Madrugadas boreais para o sol-posto...
Que alvoreceis na mágoa e no desgosto
Da lua cheia, lá nos céus eternos!
Sois vislumbres de luz, névoas de agosto!
Bruma que a lua e sonhos sempiternos,
Consumindo-se às chamas dos avernos,
Para em volúpia incendiar seu rosto.
Ser névoa é ser surdina, é ser perfume,
É revestir-se d'oiro num lampejo,
É ser essência d'um divino lume...
Navegar pelo além — nave sem mastros,
Por isso, deus deu asa a seu desejo...
Para enublar num beijo a luz dos astros!
Versos
Ó capitosos, delirantes beijos!...
De aromáticos lábios macerados;
Mornos beijos de meigos namorados,
Em lúbricos, harmônicos harpejos.
Voluptuosos lábios encarnados,
Na febre intensa de carnes e desejos;
Beijos de amor em lôbregos solfejos
Belos, sutis aromas abrasados.
Perfumosas romãs de rubros lábios
Em fogo, em gelo, d'um supremo gozo,
Furtando, às vezes, beijos em ressaibos.
Beijos, lembrando todo um céu aberto,
Abrasam-se no riso luminoso
Dum lúcido verão, que vem tão perto!...
17-3-1908
Ânsia das névoas
A uma inglesa
Ânsia das névoas, asas dos invernos,
Madrugada ânsia para o sol-posto,
Que alvoreceis na mágoa e no desgosto
Da lua cheia, lá nos céus eternos!...
Sois vislumbre de luz, névoas d'agosto,
Bruma que é lua e sonhos sempiternos,
Consumindo-se às chamas dos avernos,
Para em volúpia colorir seu rosto.
Ser névoa é ser surdina, é ser perfume,
É revestir-se d'oiro, num lampejo...
É ser essência d'um divino lume.
Apagar um farol em cada mastro!...
Por isso deus deu asa ao seu desejo,
Para enublar num beijo a luz dos astros!
Salmo I
Contam que o teu olhar urde a fatalidade
Contam que o teu olhar urde a fatalidade
Em leda renda de oiro...
Aos destinos e às coroas...
Que possuis o condão de uma magia rara!
Teimosa, oculta mão te impele para o crime,
Fascinas, fascinada...
És toda encantamento e tentação sublime...
Vens d'alma constelada...
Tudo te encanta e tenta em torno dos teus pés...
Cavam-se abismos...
A própria tentação por ti é fascinada,
Te arruiva de topázio os olhos de ametista,
O assombro e o paroxismo...
Enferma-te as olheiras a espiritual nuance
Que há no oculto poder que te personaliza!...
O silêncio e o jardim são velados,
A noite é um mar êxul sob as estrelas profundas
Estáticas d'amor calando a voz do céu...
Despertam do palácio os jardins e as piscinas...
Há rondas de faisões na soturna alameda...
Acorda a escuridão: como que desabrocham
Florestas, orquestrais as franças dos repuxos,
Como flores sensuais feitas de pedrarias...
E ao som das harpas ideais das cítaras e liras
De profanos poetas...
A tua silhueta rompe, da escuridão,
Como uma borboleta
Quimérica e irreal...
Tendo o corpo colmado a lúcido brocado,
Traz lírios à cintura...
E os dedos ao bater são remos a brilhar...
Como que a lassidão do ambiente se constela,
E os crótalos vibrando adejam em torno dela,
Parecem ter anseios...
São asas de falena ao sol a cintilar,
Metálico florir, em torno a dissonar
Azul esplende a chama em carícias de serpe...
Que se enrosca em seu braço.
Incansável nos gestos,
Vestida a oiro — luz de um sol que não brilhou
E encobriu-se no azul da aurora que o beijou...
Como que adormecida ela avança a dançar,
Ébria de perversão,
Inquieta de surpresa,
Como cega, a passar, à beira de um abismo,
Tendo os olhos vendados,
Como magnetizada
Por uma oculta força...
Quase desfalecida
Suplicam-lhe os anéis...
Ao som dos burcelins e crótalos, tentando,
Salomé traz às mãos egrégio prato de oiro!...
(Das Ruínas Misteriosas)
1907
Ópio — poemas ilusionistas
Balada
Espalto de sombra à escada
Do sonho pra alma tua...
É penumbra olorizada,
Que sobe do outono à lua!
Penumbra loira de sons
Pelos mouriscos vitrais,
Há crepúsculos de tons,
Morrentes sob canais...
Cisnes de fogo ao poente,
De asas de fumo a voar:
Tombam feridos, dormentes,
Como quimeras do olhar...
Fulgem rubis e alvoradas,
Dentro dos olhos magoados:
E ao longe das serenadas,
São como cristais gelados...
Jardim, com lagos dormindo,
À lua branca e outonal:
Tem o longe dos sentidos,
Duma volúpia irreal...
Adormecida visão,
Da lua clara e lilás:
Receio à noite os chorões,
Ossificados na paz!
Luar de lírios, dorido,
Luar dum ópio irreal:
Que a sombra deste sentido...
E à noite o sono ideal!
Veludo de mãos na sombra
Do meu jardim a colher:
Uma rosa, um lírio, à sombra
Do que há de florescer...
Da lua a penumbra loira,
Adormecida e magoada:
Recorda-me a lenda moira
Duma princesa encantada!
1915
Balada d'ausência e da saudade
Sou a sombra da saudade,
Existo em tempo falaz:
Sou ansiedade — memória!
D'outra idade mais lilás...
Existo nas noites brancas,
Sou um sono no jazigo:
Tenho saudade de mim
Pela cisma, que te sigo!...
Moro e vivo na saudade,
São todas de sonho as horas...
Que fingiram, que finaram,
Espectrais como as auroras...
Ó ido-tempo ceguinho,
Que te fostes em horas vãs:
C'roadas de pedrarias,
Como a alma das manhãs!
Hoje sou um triste, um cego,
Tenho olhos e não vejo:
Só por olhar o passado...
Na sombra do meu desejo!...
Choro e as lágrimas não correm,
Sofro e o coração não para:
Só por morrer de saudade,
Na tarde mais erma e clara...
Vou de saudade em saudade,
Noivo de recordações...
A memória é a eternidade
Para um jardim de canções!
Amigo sou-te a presença,
N'ausência por não estar
Nunca de mim recordado...
Sou a noite sem luar!
Amo a luz do entardecer!
Mais o luar das estrelas,
Que pelas noites são velas...
Olhos tristes do não-ser!
Tristeza da lâmpada
Toda velha tristeza duma luz, no outono,
Envelheceu de azul o meu quarto deserto:
Vaga por ele toda uma inércia: Abandono!
E a luz que tomba êxul, traja um luto encoberto.
A tristeza do azul anoiteceu com a Lua!
E mais escureceu a luz da minha vida,
Quando acreditei vê-la duma outra lua
Mais triste, se espargiu na sombra dolorida!
1915
Melancolia
Oh! Falso cais por mim avistado de longe,
Calado à transparência e dolorosa luz.
Tenho ânsia de lançar a ti louco de abstrato,
E como tu, fugir aos seus olhos sem luz.
Parece que o jardim anoiteceu em lagos,
E os teus olhos sem luz entardeceu jardim;
Fere-me um ar dormente a epiderme do rosto.
Há dormência na luz em seda carmesim!
Sonolência da cor! Cai indolência verde.
Penumbra transparente a brilhar em teares.
Dormem insetos na sombra: Vespas de fluidas Asas,
Que se agitam no ar: Linfa a filtrar luares!
1915
À distância
Vai-te visão de luz — minha tristeza!
Pela boca da noite... Abre a janela!
Debruça-te de lá: COMO UMA ESTRELA...
Na tarde soluçando a minha Reza.
Tua memória a dispersar-se incenso,
Era uma tarde ao fundo, aureolada!
Minha saudade é como um branco lenço,
Para acenar a tua frota armada.
1915
Ao poente
Para Santos Junior
Gosto de ver na síncope do dia
A mistura de tintas do sol-poente,
O sangue vivo, lúcido e fervente
Do sol, numa avernal catalepsia;
A claridade extingue-se na enchente
Da noite duma ideal melancolia,
Mas, na curva florente fenecia
A luz da tarde em lírios, no Ocidente.
À noite fogos-fátuos misteriosos
Constelam as solidões mais desoladas,
Como longínquos astros lacrimosos.
Do mais alto cipreste duma cova
Se erguia, além, das fúnebres moradas,
A cimitarra duma lua nova
1905
Insônia à lâmpada
Para Luiz De Montalvor
Noite imensa, hora-morta, o meu delírio!
Unge-me o aroma de teu livre ser...
Erro no olor vernal d'alma dum lírio
E sou memória d'algo a transcender...
Sinto-lhe a ausência, a carne é o meu martírio...
Ressurjo. Amo o luar do meu não-ser...
Todo meu corpo é etérea chama, círio...
Volúpia dum perfume a se perder.
Divago à luz da lâmpada em penumbra.
Incerto de memória e encantamento,
Como névoa que lúcida vislumbra.
Sou o amor. Amo as horas dum jardim.
Sou uma vaga sonora em pensamento,
O sonho e a morte a reviver em mim.
1914
Ângelus
É a cor, o som, a luz que em si revive;
A corola que ângelus desfolha,
Todo encanto seráfico que vive
D'algum jardim, n'alma d'alguma folha!
Penso, a folha da árvore ter alma;
Ao repousar das folhas do arvoredo,
E ,como que perscruta o seu segredo
E fala-me a tremer à escura calma
Comunica-lhe a minha íntima ânsia,
Que exala olor dorido de beleza
E ao longe faz-se asas à distância...
Creio-o luar! Visão! Desconhecido...
Que um segredo de luz pela incerteza,
Acordou a ilusão do meu sentido...
1911
Aparição
Eu sou aquela sombra aérea e antiga
— aparição das horas vesperais,
Que um perfume ideal de rosa amiga
Divinizou-a para vós mortais.
Eu sou aquela sombra aparecida
Num crepúsculo lívido e outonal
E fui divina luz amanhecida
Num ser de carne etérea e espiritual!...
Sentinela do luar numa alameda
Dei-lhe meu corpo aéreo de penumbra,
Fui a alma dum cisne amando leda...
Fui essa Ofélia de jardins irreais
E como névoa iriada que se alumbra,
Sangra o espectro de sol dentre vitrais!...
1914
Transcendentalismo I
Evocar o irreal é ser divino:
Idealizando a noite que não vi!
Orfeu cantou o sonho peregrino
E eu choro tudo quanto já perdi...
Minh'alma é como as cordas dum violino!
Que na emoção, frenético as parti
E desde então esse instrumento fino
Emudeceu e triste enlouqueci.
De romagens titânicas da vida
Regresso à minha paz — sonho doirado,
Que um mistério d'amor fê-lo suicida!
Saudade! É minha mística paisagem,
Que a hora dum crepúsculo sonhado,
Fala e canta na sua própria imagem.
16-12-1913
Transcendentalismo II
Trago de Hamleto a dúvida sombria,
De Orfeu o canto e a lira melodiosa
Que animavam e tocavam a pedra fria
Duma sensibilidade misteriosa.
Na minha dor sonâmbula, morosa,
Como funda e longínqua sinfonia:
Vaguei, como uma sombra vaporosa,
Para não ver-lhe a face à luz do dia!
E discreto passei anos e anos,
Sem que essa força estranha me exaltasse...
E fosse todo o mal dos meus enganos!
Mas um dia encarei sua aspereza:
Deixei que seu horror me despertasse,
E vim na dor cantando a natureza!
16-12-1913
A sombra dolorida do sossego
A sombra dolorida do sossego
Passou d'olhos cerrados, no crepúsculo...
Em reza a mudas bocas meu segredo
Era lábios orando no silêncio!
Seu rastro de anilado era neblina...
Perdia cor de sombra sob arcadas...
Choupos em seda, as formas recortadas
Em orla d'oiro, se velavam em cinza...
Seus dedos abismavam-se de espanto,
Diluindo-me anímico desejo...
Aclarando-se anéis, eram jacintos...
Que feneciam sob lábios-beijo!
Em salas de penumbra se perderam
Em cismas d'outras salas misteriosas,
Com o ar vago de lustres e de espelhos,
Que sonham amar princesas e amar rosas...
Ó espanto das horas silenciosas,
Que morreste mistério no meu pânico!
E nem deram por ti as minhas rosas,
Que morreram saudade na minh'alma...
Ó arrepio da noite do meu medo!
Que te evolaste aroma num jardim;
Que fugiste visão, entre o arvoredo
De longas vestes sem tocar em mim...
Eu, que teu corpo busco em meus abraços
Indolentes de éter e morfina,
Estagnei-me sob teus passos
Em lago astral de estrelas e neblina...
Um desejo apossou-se de minh'alma!
Buscando dela ver-te eu te avistar
Ao crepúsculo em lôbrega alameda,
Onde ao raio da luz, fosses luar...
1915
Exílio
Para os ignorados
Pressinto em meu exílio esse degredo, à vida,
Poucos tristes percebem a ânsia do meu não-ser!
Vislumbres tive à luz — veludosa descida,
Desconheço esse humor que assim me faz nascer.
Eu era como o musgo à sombra dumas heras;
Não conheci a aurora e tinha o olhar escuro,
Via no sol ao poente o meu fim, meu futuro,
Ficar-se num Sol-pôr, longe das primaveras...
Disperse-me em saudade? E sou a sombra dela,
A minh'alma é um jardim de flébeis nostalgias
Onde fontes murmuram e a morta sombra vela,
As horas que incriei são flavas como os dias!...
Que dirão? Que tortura infinita — sentirei deste tédio a anímica grandeza,
Gozarei o sonho que o enlaçou!...
A ânsia do não-ser e o além-fim da beleza,
Que o incêndio do meu ser o fogo devorou...
Que dirão. Sonharei a visão de fim de luz em mim?
Anseio de tocar que os olhos não alcançam,
O desejo tem mãos com garras de marfim...
Há posse de meu sonho em asas, que descansam...
Tudo que o pensamento anseia a mão retém!
O desejo é um capricho, o pensamento é um doente...
Oscila de prazer no sonho que em si tem,
O gozo é indeciso, a dor convalescente...
Que dirão dessa Circe — o tóxico. Sorverei esse olor dum oriental veneno
Que um roxo fim de luz verteu sobre estas flores,
Que exalam a agonia outonal dos olores,
Que cura como o bem o mal grande ou pequeno!...
Que dirão? Repudiarei minh'arte a imperfeição divina,
Vestida de rubis e mantearias raras...
Ela é todo um segredo, a essência sibilina,
Que há de sem rescalar morrer em rosas claras!...
Pressinto em meu exílio esse degredo, à vida!
Não culpo a um só sequer, pura fatalidade...
Descendo de mim mesmo em sombra amanhecida,
Que anoiteceu ao sol e despertou saudade!...
1916
O amor no irreal
Irrealizei-me luz de teus baços vislumbres
Morrente d'oiro à tarde em ânforas, olência...
E como realizar-se em sonho ou aparência
Em doido sortilégio a iluminar vislumbres
Nunca realizar-me, ao menos voz na noite...
Olor que feneceu na sombra do que fui!
Acordo-me saudade em nostálgico açoite
De incerta em tentação no encanto que possui
Abre-se dentro em mim, como em falso ambiente
Água sinistra e azul ofelizada em lua!
Todo eu, alma e temor por jardins d'oriente...
Minh'alma se evolou em gestos de odorar-te!
Teu corpo convalesce na minha dor mais crua
No inexo da cor por nunca realizar-te.
1916
Distante
Acorda o dia num sol-posto
Vive a memória dum jardim,
Vejo passar o último agosto
Florir em horas para mim!
Vejo morrer a última tarde
Arder a última quimera
Na transparência do céu arde
Lâmpada azul que se incinera
As curvas têm volúpia e ausência
De eterna carne de penumbra
Têm a volúpia da demência
Por tudo quanto é vago e olente,
Olhar de sono que se alumbra
A luz dum luar convalescente!
1914
O segredo das rosas
I
As rosas que sonhei fenecem agora
Diluídas em cor e suavidade...
O outono é um jardineiro junto à aurora
Que nos dá a colher uma saudade!
As flores que ajardinei se despetalaram
Pela ausência da luz que se velou
Soluços que pela noite se calaram
Ao cerrar duma porta que fechou...
Ó segredo das rosas ao sol-posto
Alma de deus ungida de perfume,
Que tarde as transcendeu no mês de agosto!...
A mão de deus manchou-as na alvorada...
Ó noite olorizada no seu lume,
Que tens asas de arcanjo e voz de fada!...
O segredo das rosas
II
As rosas são de mística memória,
Foram neblina, olor, jardim de deus...
Diluíram-se alvor n'alma marmórea
Da tarde a despedir-se em branco adeus...
Há crepúsculos lânguidos em rosas
Com heráldicos ângelus de túnicas
Que se esfolham a bailar e misteriosas
Salomés d'alma lôbrega, mas únicas!
Há rosas que se perdem num contemplo
Íntimo e langue, que ao quebrar deslumbram
Todo zimbório em coro do meu templo...
O sonho dessa aurora que as beijou
Era o luar dos olhos que vislumbram,
Segredo dessa mão que as decorou!
1913
Sibaris
Para a alma das noites sem luar
Ó noite-virgem-mãe de luz aflita
Ó noite-alada. Ó noite-redentora
Ó redenção pros loucos... Ressuscita
Contigo o luar e a solidão finita
Ó virgem-mãe-original-do-amor
Ergo-me em ti a rastros de princesa
Alma nua da noite a me tentar
Teu ser é o mar à lua da incerteza
Frio e núbil por mim a resvalar...
Ó corpo-virgem-original da noite
Carne-alada d'além cheia d'anseio
Ida-sombra esvaída no desejo
E na teia da lenda em que me enleio
Ó noite-original-religiosa
Das noites o missal pela noite lendo
Era tu'alma o meu desejo tonto
Em carne fria, lívida no anseio...
Trago-te em mim, ó noite-religiosa
A falar pela boca d'ermo vento
Aparição-êxul-vitoriosa!
Inquieta de luz e pensamento
Ó sibaris das horas consteladas,
Alma da Salomé bailando à luz dos astros
Ó noites que não têm madrugadas
Ronda de bruxas ao luar num rastro
Ó noite-sideral, silenciosa
A embalar-me no sonho-d'além-túmulo!...
Longínqua de saudosa,
Teus astros fugirão à estrada do meu-túmulo!...
Ó virgem-original-do-sonho-e-da-incerteza
Funesta-Salomé semi-ébria de beleza
Descendo sobre mim em noite constelada
És o incesto a tentar a minh'alma finada!
1914
Lâmpada dormente
Pra Eduardo Guimaraens
Velha noite acordando-me o passado
Enferma-se. Convida-me a sonhar
O silêncio! Dum tom maresiado
Gela-se agonizante a luz no ar
Envolve o meu desejo um louco anseio,
O ser acorda!... A dor abraça a vida!...
Clarão de sol, que beija e doira o seio
Da livre encarnação arrefecida...
Cerro os olhos! Em mim como que apago
A lâmpada que em crepúsculo irreal,
Mais me anoitece o alpendre das olheiras...
A noite para mim é a irmã do afago...
Ao estertorar da luz em raio astral...
Nimbando em sonho as cismas derradeiras.
A alma da água
Cerraram em mim todas as fontes d'alma,
Fontes que eram tristeza murmurando:
Anoiteceram sombra linda e calma
Num jardim, onde há ninfas se banhando...
Água crepuscular, que era um filete
Que em suspiro d'amor correu da fonte,
Filigrana, platina num corpete
Negro, a descer, como o luar dum monte.
De outono, um terço místico a rezar,
Bocas que escaldaram pela sombra
E hão de acordar, quando acordar o luar.
Pensamento que a noite é luz hialina!
Que viveu pra um crepúsculo e da sombra
Há de se erguer em asa de neblina!...
1915
Ideal quimera
Onde ele mora?... A dúvida me açoita.
Há na noite profética a brilha
O mistério da lua que se anoita...
Mourinha que aos destinos vem falar!
Inexiste... Embora a clara fonte
Da su'alma deslize dentre em mim
E um cismar anoiteça minha frente
E passe em adoração n'algum jardim...
Em que aurora ascendeu todo seu gesto
De humilde ou de senhor?... Só pelo espaço
A noite errará e o luar flutuava mesto...
Que tarde misteriosa o revelou,
Fora de certo o adeus d'oiro, mais baço,
Que sob o olhar do céu ao mar baixou!...
1916
Fim do dia
O dia se exalou
Há hálitos de bruma
A luz é oiro e névoa
Em lago azul de espuma
Encanto singular
De folhas a tecer
Penumbra nos jardins
A tarde a rescender
Aroma de jasmins!
À sombra, na indolência
De túrbidas miragens,
Há frêmitos de olência,
O adeus pelas paisagens
Do dia pela ausência...
Na sombra dos jardins
A meia hora do dia
Há sonho e nostalgia,
A aragem que perpassa
Tem o ar de arcanjo e graça
E encanto nos jardins
Jardins do dia em meio
A hora me alucina
Visão de luz e anseio
Aroma vão, que ondeia
Irmão da minha sina!...
A luz prende no chão
A asa da folhagem:
Ó almas que não dão,
O olor de si a aragem...
1913
Canção à alma
Outono d'oiro
O ar aloirece
Num imaculado
Cair alado
De prece d'oiro
Ao longe o céu
Triste se alumbra,
Tarde caindo
Dentro a penumbra
Descida em véu!
A luz é vida
Pupila ardendo
D’hora descendo,
Lâmpada d'oiro
Que vai morrendo
Flébil de prece...
Tomba o crepúsculo
Tudo é vislumbre
Duma hora d'asas
Pelo ar flébil
Os bronzes dos jardins
A luz do entardecer
Tem êxtase e vislumbre
Desejo de perder-se
Fúlgea penumbra,
Flor que se alumbra
Perfume em ser-me
Ânsia fingida
Em velas presas!
E a lua é triste
E a noite é imensa
Noite sem fim,
Luar dorido!
No olhar da noite
Há uma doença,
Loucura de desconhecido!...
Ó ideação da luz urdida
Em raios d'oiro de ilusão
Fátua quimera d'alta vida
Plasmada em névoa de emoções!...
1916
Tudo que eu fui
Adormeço a sonhar! Que fui outrora...
Som místico das harpas no abandono...
O cogitar das coisas a certa hora...
Colher lírios à lua pelo outono!
Sou noite exterior, soturna a fora...
Letargia, silêncio... Me visiono...
Sonho viver interiormente, aurora...
Nos meus sentidos lúcidos, num sono...
Sou ansiedade à boca da meia-noite!
a rosa que se esfolha ao duro açoite
Do vento, à voz das fontes a ascender...
Amo as tardes idílicas do norte!
As palavras que nascem sem viver...
Mais um dia que passa e a minha morte!
1915
Sugestões
Qual a causa augural dessa tristeza,
Que te fenece a esplêndida alegria,
Destes olhos que vivem noite e dia...
Numa constante prece à natureza?
Tão branca e tão discreta, alguém diria...
Que eras a luz de espiritual pureza,
Concebida na etérea sutileza
Dum bem, que o nosso amor amar faria...
Ouve! Olha! Não andes triste, porque a vida...
Não é, só, furtiva e cor-de-rosa aurora,
Também se faz na lágrima, sentida...
Pressinto, que é fatal: uma partida!
Um de nós que se vá da vida em fora...
Pra que nos saiba, a amarga despedida!
1911
Choupos à tarde
É chegado o mistério para a vida!
A vida — sol, que finda ruivamente...
Por lajes avernais na indefinida
Nebulosa de êxtase latente...
Astro! De alpestre luz amanhecida
No sonho celestial, aereamente...
Como sírios à flor do azul, urdida
Por teares de estrelas, astralmente...
Dor vaga por divino encantamento,
Quando a alma em ilusão do pensamento
Afasta-se da gente por instantes...
Quando a luz em soluço anda sustida,
Quando as choupas são almas de estudantes...
Cantando loas para além da vida!
1907
Reino desejado
Peregrino do sonho errei caminhos
Que iam ter às portas da alegria,
Poeta e marujo naufraguei sozinho
E a minha nau fora a melancolia.
Meus olhos não beijaram a luz da glória
Nem meus lábios chegaram a balbuciar,
Quero encerrar-me em vós portas de inglória
Noite, que é mar sem-fim a serenar!
Onde as almas na febre de seus lábios
Nunca chegam a tocar para matá-la
Na insaciável ebriez dos lábios
A olhar amortecendo, sonha e cala
E como solitário a tempos-idos
Nosso frescor de lábio sossegado
Os antigos — caminhos percorridos
Peregrino! Da morte no vencer!
1916
Elegias do sol e da sombra
Tua memória delicada
A oiro pálido, outonal
Tem a beleza suavizada
Da luz iriada num cristal
O teu sorriso de violetas
Cristalizou-se em meu olhar
Mais triste que as noites pretas
Que desbaratam-se ao luar
Correndo em horas hialinas
A um luar de ânsias e de ais
Minha saudade — turmalinas
Por ti em joias irreais
Tua presença enferma e débil
Convalescendo em nosso amor
Tem a doçura d’hora flébil
Da minha ausência num sol-pôr.
1916
Elegias do sol e da doçura
No mês de outono dolorido
Suave num lírio a fenecer
Minh'alma é ausência pelo olvido
D'alguém que vai convalescer...
O mês de outono minh'alma
Saudoso adeus de roxo em ti
Espiritual violeta d'alma
Que a luz do dia não sorri
Adeus da hora que não parte
Que só revive dentre em mim
Porta que o sol cerra escarlate
À nostalgia dum jardim
Quisera assim fixar-te a oiro
Ó minha azul melancolia
Toda a luar na estrada a oiro
A lua fonte d'alma fria...
Amortalhada à nostalgia
Vais a sangrar os pés d'aurora
Num roxo fim que o dia chora
De mim murmura a pedraria
No mês do outono dolorido
Triste num lívido jasmim
Su'alma exala um olor a olvido
De teu piano de marfim
1916
Outros poemas avulsos
Crepúsculo
A sombra é deus — penumbra d'ópio ascensa!
A esmorecer num sol de ocaso exangue;
Diluências de luz, que ungindo incensa
Em mãos de espectro úmidas de sangue.
Noite d'alma que avulta em sombra densa
As árvores à beira d'algum mangue,
Num dilúvio de cinzas, na descrença
Dessa tarde de túnicas em sangue...
Dá-lhe um ar roxo à anímica miragem,
É monges d'água errante de nascente
Sonhando com carenas em paisagem!
Soturno em luzes tristes a cismar
Sobre o azul adriático ao sol-poente,
Que sonha ver palácios sob o mar!...
1912
Como uma flor tombas morta...
Como uma flor tombas morta
Dentro de mim, meu jardim...
Bate a chuva a minha porta
E o vento do outono, spleen!
A morte é certa velhinha
Aparição do senhor,
Cruz à boca da noitinha
Descanso da nossa dor
Sinto longe da minh'alma
Os olhos meus se enublar,
É a névoa ao longe, na calma
Da noite aflita a rezar
De incerto erro no acaso
Vão acender meus turíbulos
É a terra toda um vaso
Ardem os góticos vestíbulos!
Sonho com a mística noite
Da minha sombra no amor,
A tristeza dum crepúsculo
Num lírio morto ao sol-pôr,
Cerra ó lírio da tristeza
O teu cálice ao Sol-pôr!
1914
Lilases, violetas, memórias do outono...
Lilases, violetas, memórias do outono
Que morrem ao poente...
Qual lume dolores diáfano e absono,
Que ondula ao crescente;
Memórias d'outono, cintilos de opala
De tons a morrer...
A tarde é um anjo com lírios na fala
Quase a endoidecer
Silêncio, penumbra... É tudo memória
As folhas que tombam, parecem dormir
As flores são saudade à luz merencória
A uma dessa quem dera partir!...
Memoriado outono! Quedou-se de neve...
Já pelo silêncio parece pregar
Num ritmo dorido caixões, para breve...
À lua a rezar!
Eu sou a memória de tudo que é lindo
Beleza e ilusão;
Divinas palavras de outono menino,
Rezadas em vão...
Memórias d'outono de cisma e tragédia
À sombra a sagrar!
Eu sou a saudade parque medievo
À boca da noite lusíada a orar!
1913
Outubro. O sol...
Outubro. O sol em fuga d'oiro parte!
E a paisagem parece que morreu.
Todo um temor procura-me afastar-te...
Dentro de mim tu'alma floresceu.
Cerrou-se teu palácio em brônzeas portas,
Teus repuxos cessaram de se erguer...
Há um estranho rumor a coisas mortas,
Já as fontes pararam de correr.
Guardo um rumor de folhas pela alameda,
Gela-me o ar da tarde pelo outono...
Anda um fiar de luz a oiro em seda!
Sonho-te morta... Ou antes recolhida,
Vejo teu ser passar pelo abandono
Como uma sombra errante em minha vida.
1915
Uma noite morria de saudade...
Uma noite morria de saudade
E a lua pelo azul, de nostalgia...
Quando lembrei-me que num'outra idade
A tu'alma sem corpo amado havia.
E no mundo esse amor era um segredo,
Um perfume de rosa fenecida,
Dessa noite em que sibaris a medo
Deixei em sombras e cinzas, resolvida.
Pensei meus olhar serem teu olhar,
A tua sombra mística minh'alma,
Caravelas de fumo sobre o mar!
Teu corpo para mim velou-se a véus
De roxa languidez, a lises d'alma,
Que eram a saudade pelo olhar de deus.
1915
Noite egípcia
Noite egípcia caiu a cor de casebre
A manchas roxas que se evola à lua...
Fumo de incenso, que oscilar reflua...
Fugindo aparição d’horas de febre.
Palor de lua... Levantina rosa,
Sonho sem rumo... A noite em aparição!
Que tristeza a da luz? Tão dolorosa...
Esvaída penumbra de visão!
Sonho-te aroma louco, fugidio...
Pelos meus dedos, fluido de quimera,
Tal como a lua, pelo céu, no estio!
Rei exilei-me em teu ruivo cismar!
Desde essa noite, que o luar tivera...
Em teu palácio a ronda dum olhar.
1915
Excêntrico singrar
Quem me dera partir certo, que longe
Lavarei os meus olhos tresloucados,
Na tua luz beatíssima de monge...
Oh! Sonho, ó meu crepúsculo fluente!
Parti! Mas o mar era fingido,
Proas, carenas em quilhas d'oiro e azul
Oravam...
Vi mundos através dum sonho ido,
Galeras a singrar à luz da tarde em Thul...
Por flébeis, musicais
Vislumbres d'áureos timbres,
Que eram as minhas taças iriais
E as minhas horas — flores de timbres hialinos
Que fugiram ao sol-pôr banhadas de luar
Tocadas de rubis — fatídicos destinos...
Pedraria aflitiva em rastro sibilino
Murmura com alma de violinos
Sonhei a tua voz água que deslisava
E luz crepuscular, morrente teu olhar...
Fixando loucamente a saudade dest'alma
Doida e rica de sonho, e triste como a calma
De flébeis fins de dias outonais!
1916
Alma ansiosa
Sonho-me perfume que fugisse um dia
Pelos teus dedinhos sem poder tocar
Como te namoro branca e fugidia
Como noite velha pelo azul a orar
Porque minh'ânsia busca-te de longe
Meu luar dorido, donde morto estais...
Amo-te branquinha pela fé veemente,
Que me inspira mansa como a ti meus ais!...
Se meus olhos buscam-te, tentam-me afastar-te
Dessa noite etérea que rezaram bocas,
Oh, que louco anseio pra da lua olhar-te
Quando a hora é morta, como as almas loucas!...
Todo meu intento pálida quimera
É de possuir-se sem teu ser tocar!
Príncipe e poeta num palácio antigo
Qual a lua fria por jardins a errar!
11-11-1915
Carta pr'além túmulo
Eu tive a conclusão de que isto é o nada,
E a alma é uma flor que mesmo murcha odora!
Partir nada adianta, o mundo é a estrada,
Onde já tateei e sigo agora...
Todos os males aqui vou sofrendo,
Partirei o mais breve que puder...
A mágoa que alimento, ela assim quer
Crepúsculo profundo anoitecendo...
Partir, é uma ilusão de quem não sonha!...
Amo a tu'alma por sofrer comigo,
É uma alquimia as horas que não tive...
Visão leda do sol à cor extinta...
Ausente-me! É a tu'alma e meu jazigo,
Erro no oiro astral que tarde pinta!
1916
Elegia
Para Ronald de Carvalho
Doce cantor duma saudade,
Rouxinol do passado
Conta a legenda duma idade
A história êxul dum principado...
Passou num sonho a tua infância
Por encantado e irreal jardim,
Foi como névoa de fragrância
Cristalizada num jasmim.
Cantor, que a alma dolorosa
Doutro poeta te exaltou;
Pra que vivesses numa rosa,
Para que morresses num Sol-pôr...
E o mesmo vento, que o levou...
Levasse ao acaso o seu amor...
1913
Manuscritos
Soneto
Olhas que és céu e mágico infinito
Orando sempre e sempre a recordar
Essa visão de amor que amei aflito
Antes da sombra errante do luar
Hora em a luz orando, eu vou contrito
Galgar além para também orar,
Para que a luz do luar beije o granito
E beije o rastro azul de seu andar!
E morrerei orando neste monte
Com o olhar para a baixa-mar,
Para que as ondas meu amor vos conte
Cantando essa elegia de oceano...
E são as sete-estrelas a brilhar
As sete chagas do meu puro engano!...
Rio, 1913
Paisagem da sombra
Oh! Almas que habitais entristecidas
O luar de uma noite d'além-céu
Vindes ouvir estranhas comovidas
Canções a idealizar um novo Orfeu
Cada árvore é corpo de luz viva
Sombra que em alma mística s'alumbra,
E antes do dia é forma primitiva
Do espírito selvático em penumbra
A penumbra é paisagem em névoa oculta,
Lume de ignoto espírito divino,
Que uma aragem da luz mágica avulta...
Como as coisas ao vir da lua cheia
Pelo silêncio como um violino...
Que se afastasse para alguém que anseia!...
5-11-1913
Canção das pedras
Embrandecei pedras duras
À luz da lua, no outono,
Quando tudo é só saudade
D'um coração ao abandono!...
Quando tudo é só doçura
E noite peninsular,
Quando ao longe, muito longe,
Choram guitarras ao mar.
E noites, onde marujos
Cantaram à luz do luar:
Saudosos da sua terra
Nas plagas além do mar.
Embrandecei pedras duras!
Abri os olhos ceguinhos...
Com que alegria as verei.
Estrelas, na noite escura!
A luz da lua no outono,
Quando alguém canta magoado
Cantigas de amor passado
Alta noite... Ao abandono!...
8-9-1913
Velhice interior
Minha ledice é como uma moléstia estranha,
Inverno, vento norte, vozes do entardecer;
Eu sei que um mal qualquer dentro de mim se entranha
Embora eu sinta, enfim, vontade de viver.
Já ensejei senhor o cimo da montanha,
Um coração que parte outro logo a sofrer,
Tudo quanto se vai nesta horrenda campanha,
Neste estéril lutar, neste aziago viver...
A fadiga abateu-me e em névoa o que ainda existe
De divino e sublime é unicamente a sombra
D'um sol crepuscular ou d'um espírito triste...
De mim há de nascer o sonho do amanhã,
Neste prolongamento hibernal, que me assombra
D'um outono vermelho aos beijos de Satã!...
21-11-1911
Lá!
Lá é onde toda alma se acentua
E se difundem espirituais quimeras,
E se transmudam as almas de panteras
Em estrelas de amor por branca lua!
Lá, tem alguém! Que assim nos insinua
Para amar e viver nessas esferas...
Onde temos visões de primaveras
E galeras de amor para a alma sua.
Lá viverás feliz, tranquilamente
Amanhece a existência num poente
De sombras e emoções a vida estranha!
Viverás nesta luz calma e erradia,
Onde nada se sente e o próprio dia
Faz-se sentir nas sombras da montanha!