Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Poesias, de Ernani Rosas


Texto-fonte:

Ernani Salomão Rosas, Poesias, org. de Iaponan Soares e Danila Luz Varella,

Florianópolis: FCC, 1989.

ÍNDICE

Certa lenda numa tarde

Sombra idílica I

Sombra idílica II

Sombra idílica III

Sombra idílica IV

As ninfas I

As ninfas II

Narciso

Poema do ópio  

Elegia

A luz que sobre si  

A glória a constelar  

O meu ruivo destino  

Não serás tu, a sombra

Alucina-te a cor

Quem és tu, loba  

O Sonho-Interior 

Depois de te sonhar 

Outubro, o sol

À tarde o poente desfia

Contam que o teu olhar urde

Silêncios

Silêncios

Poemas avulsos 

Quimera

Soneto

Lúcifer

Tísica

Trago de Hamleto a dúvida

Para que, alma, o esforço

Lágrima

Languidez outonal 

Pérfida

Ao poente

Misticismo do outono

Ó noites de luar  

Espiritualismo 

Salomé I

Salomé II

Salomé III

Boêmia

Elogio dos vitrais 

Casuarina

Musa

Versos

Ânsia das névoas

Contam que o teu olhar urde a fatalidade (Salmo I)

Ópio — poemas ilusionistas

Balada

Balada d'ausência e da saudade 

Tristeza da lâmpada

Melancolia

À distância

Ao poente

Insônia à lâmpada

Ângelus

Aparição

Transcendentalismo I  

Transcendentalismo II

A sombra dolorida do sossego  

Exílio

O amor no irreal

Distante

O segredo das rosas I  

O segredo das rosas II

Sibaris

Lâmpada dormente

A alma da água

Ideal quimera

Fim do dia

Canção à alma

Tudo que eu fui

Sugestões

Choupos à tarde

Reino desejado

Elegias do sol e da sombra 

Elegias do sol e da doçura  

Outros poemas avulsos  

Crepúsculo

Como uma flor tombas morta

Lilases, violetas, memórias do outono  

Outubro. O sol

Uma noite morria de saudade 

Excêntrico singrar

Noite egípcia

Alma ansiosa

Carta pr'além túmulo

Elegia

Manuscritos

Soneto

Paisagem da sombra

Canção das pedras

Velhice interior

Lá!

 

Certa lenda numa tarde

 

Sombra idílica

 

I

Amplo mistério, abraça meu segredo,

floresce num delírio de inconsciente

e a alma, que envelheceu pelo degredo,

alheia-se a sonhar convalescente.

Para mim, tudo num Luar se estagnou,

como um adeus de cinza esmorecendo

em tarde que minh'alma se evolua...

num crepúsculo em seda amortecendo.

A luz é uma ante-sombra, pela tarde

na envolvência dum sonho de acordar...

embalada na voz que se oira e arde...

Ó Alma, que és sol pálido de Lua!

sou o idílico irmão do teu cismar...

que é meu rastro de branca Ofélia nua.

 

II

Ó Ninfas ao Luar da noite ainda

abraçando a ansiedade da minh'alma...

idílica e lunar, que em flor se alinda

no abismo d'água clara da voss’alma...

A hora trespassando antiguidade,

faz-se ausência, etereal melancolia...

canção d'aroma as formas da saudade

que passa lenta como a luz do dia...

Inquietação de tarde sibilina

acorda-te, ó Luar adolescente. .

pela noite imperial da minha sina!

Adormeci... pela manhã amiga

despertei sombra vã de antigamente,

vi-me passar no Espelho d'hora antiga...

 

III

"Perdi-me... toda uma ânsia me revela

sombra de Luz em corpo de olor vago,

a saudade é um passado que cinzela

em presente, a legenda desse orago"

"Errasse em densa noite de beleza,

pisasse incerto, um falso solo de umbra...

sonho-me Orfeu... o Luar que me deslumbra...

é marulho de Luz na profundeza!..."

Toda a alma do azul esvai-se em lua...

nimba-lhe a face um crepe de Elegia...

É alvor do dia numa rosa nua,

que as minhas mãos cruéis sonham colher...

mas ao tocar desfolha-se mais fria,

que a sombra de meus dedos a tremer...

 

IV

Sinto meu ser tremer como a água fria

ao Luar num jardim — sonho de Ninfas...

e a sombra a agonizar n'áurea agonia

iriado lírio de luar nas linfas..

Cismo singrar-me lírio nessas tranças

aureoladas das fontes que nasciam...

a deslizar saudades e lembranças

que vão nascer pra além como morriam...

Pensei retê-las, ser o rastro d'Elas...

ser a canção saudosa, que desliza

bebendo a luz dos olhos das estrelas...

Correr em vão e ter seu mesmo fim,

ser o irreal espelho onde agoniza

esparso olor, idílico jardim!...

                                                    

 

As ninfas

 

I

Ó cabelos das ninfas — oiro a arder-me!

chorando à noite em lua no arvoredo...

desgrenhadas visões do meu segredo,

que a essa hora anseiam entrever-me.

Ó suplicantes formas de Beleza,

todas de rastos, de aneladas tranças..

Eleitas vidas, que alimentam esperanças

e erram de tarde em tarde na tristeza!

Ó tântalos de carne! Sonhos do Sol Poente.

corpos vagos de Incenso... Horas rezadas

jardim lilás de orquídeas do ocidente!...

Ó Imperdurável encarnação de Ninfas!...

Lá! se vão, sobre as nuvens reclinadas...

Como sobre corcéis que cortem Linfas!...

                                                    

II

Ninfas de loiras tranças, já desfeitas,

sobre a infusa demência dos ocasos,

Já olhares azuis, Ninfas eleitas,

que eram formosas, como curtos prazos...

Alucinadas fontes que correram...

saudosa voz de sombra num jardim...

Linfa, a chorar as Ninfas que morreram

e a tarde bizantina desse fim...

Sombra do seu cabelo, a tarde em lume...

que se deliu no meu olhar assim...

e ondeia em doida forma de perfume...

Ó ritmos de seus dedos, que são fumo...

esgarçada saudade de um jardim,

desnastradas chorando em vário rumo.

                                                    

 

Narciso

Para Eugênio de Castro

Vislumbro esse jardim, onde a demência erra?

Sonho de infância em cor na cinza doiro extinto.

Que tarde essa de anseio a perder-se em meus Olhos,

como por mim se ausenta esse luar, que sinto?...

Vislumbro esse jardim, em que órbita se encerra?

distante a sepultar-se em névoa nos meus olhos...

Tarde de encantamento e transfiguração!

idílica na cor da fonte, que desliza...

silêncio, mansamente à boca do mistério!...

há mãos de musa a urdir a minha inquietação.

Acalenta-me o berço — embalsamada brisa...

onde irá ter o seu suspiro de oiro aéreo?...

Tarde de encantamento e transfiguração!

em que eu cismo Existência — hierático perfume...

que oloriza e adormece a tarde em áureo lume,

no seu vago fulgor e azul palpitação!...

Eu sinto sepultar-me a noite d’além fim!

espelho-me a sonhar à sombra do jardim...

meu cabelo a cair como um clarão velado

ilumina-se à luz como um cristal dolente

em ausência de sol num reflexo alado,

sou a idílica voz da fonte, tristemente!...

Sobre mim desce a noite estática e divina

em hausto de neblina a transcender de Olor!

meu contemplo deliu-se lindo a oiro pálido...

sou todo anel de Lua em linfa cristalina,

onde todo esse amor é um sonho vago e esquálido!...

O outono a fenecer em meus gestos de seda,

esmaiou no dossel d’alguma tarde antiga,

por mim passou com o tempo a legenda inimiga

e a alma idílica em oiro de um cisne e de uma leda!...

passaram entre canções do meu idílio em seda!...

Perdi-me. O meu olhar era o mais lindo abismo,

em que eu flor divaguei demência, num aroma...

quebrou-se a gesto d'Alma... à beira dele cismo

e sonho essa ilusão de ser olor, que assoma...

através do meu ser — vago espelho sem fim!

aclaro-me a cismar no meu místico-Fim..

Tarde de encantamento e transfiguração!

Tu’alma erra dentro da minha em ecos de outras tardes...

Eu sou — Narciso! — Ó Ninfas, minha meditação

inquieta-se em ser a irmã das vossas tardes!

vós sois o Poente irreal e idílico e est’alma...

Ó Ninfas — a tentar a minha maldição!...

 

Poema do ópio

 

Elegia

Triste esmorece o dia, e a tarde

vive em cristais e pedraria!

E a Alma, que anseia, se retarde,

no olhar do Além em nostalgia...

Amei! vivi em certa aurora!

Fui sombra aérea do meu ser...

como um perfume se evapora,

jardim do azul que vai morrer.

Outono em névoa de Horas-mortas,

Poente de sonho que deslumbra:

diáfana luz, cerrando as portas,

que dão pro mundo da penumbra...

Eu fui perfume de um jardim

em Hora d'oiro a transcender!

passou por Ele o Outono e assim

vivo na morte a florescer!...

 

 

A luz que sobre si...

A luz que sobre si orquestra em doido hinário.

Ébria de sonho e cor, na dança a prosseguir,

É toda etéreo luar, que a vela num sudário,

Sortílega no anseio, heráldica a florir...

Insônia a macerar-lhe a carne enlanguescente,

Suscita-me a lascívia o seio virginal!

Aclara-lhe o esplendor... O corpo, ópio-indolente,

Oscila, desfalece ao meu desejo irreal...

Angelizada voz numa noite em que os lises

floriam pelo azul... na lenda humanizou-se,

na insídia dum amor a distender raízes...

Lúgubre agonizava à sombra da cisterna:

E uma voz de perdão, mais rude do que doce,

Parecia falar pela ilusão eterna!...

 

A glória a constelar...

A glória a constelar de vitória em vitória,

Como um poente, que à luz anoiteceu mais cedo.

E fora a cravejar de rubis a memória

Do teu cio sangrento às lajes dum degredo...

Sinto-me a errar n’alguém, da sombra indefinida,

No esquecer dos teus pés, assim como um segredo,

A bailar como o olor na névoa adormecida,

Duma dança que tem espasmos como o medo!

No interlúnio da noite, incompreendido e lindo,

Como um sonho febril, pela carne perdido,

Que pelo olhar sem fim vai friamente ungindo...

Pelo fluido lilás dessa penumbra intensa

A silhueta de alguém, num gesto adormecido,

Caminha pelo azul que as estrelas incensa...

 

O meu ruivo destino

“O meu ruivo destino às mãos da lenda enleio”,

“E noite que caiu sobre os meus olhos, louca!'

“Incinerou-se, ardeu... nas asas de um anseio...

como ilusão perdeu-se um nome à minha boca”.

“Floresci, como a cor de um Poente de escarlata!”

“Acordei como a luz piscina num jardim...”

“Vesti-me dum luar que um escrínio desbarata

Todo o império estelar do azul que não tem fim!...”

“Sonhando, possuiu-me o encanto que eu plasmava,

Amara-me o bailado à lua na alameda

e supunha-me ver no sonho que eu tentava...”

“Uma tarde me ergui dos meus ócios gentis...

Do parque atravessando a transparente seda

Fui deitar sombra e luz a um Poente de rubis!...”

  

Não serás tu, a sombra...

Não serás tu, a sombra exígua do remorso,

nem dum arcano a luz através do destino?

o acaso ensanguentando um dia, as mãos, no dorso

de um cisne que surgiu sobre o lago opalino!...

Esse cisne era a alma empírica de um santo;

cuja egrégia cabeça era um lis azulado,

que n'água refletia, a um poente de amaranto,

todo um zainfe lunar em névoa, constelado...

Salomé, teu perfil, no meu olhar, se esconde...

é gelo a tua carne... teu sangue ao sol caindo

é uma rosa outonal num mar de fogo, aonde...

Teu imperial frenesi irá cair, exausto!

no delírio espectral, a tu alma florindo...

Teu ser constelará a arena do holocausto!...

 

Alucina-te a cor

Alucina-te a cor e a calmaria

desse oceano fulgente em que demoras

o olhar em sonho a germinar auroras...

entre a quimera e a líquida ardentia...

Pareces caminhar magnetizada,

sob um chover de estrelas e de rosas...

pelo florir da Luz quimerizada

surges de um mar de nuances misteriosas...

Como ilha d'aromas e de gases,

esparsa, no silêncio, que desperta...

o lírio de teu gesto, entre lilases!

Acenando do azul do meu assomo...

ou d'aérea visão que à luz deserta,

ao mágico poder que vem dum gnomo!...

 

 

Quem és tu, loba...

Quem és tu, loba ingente? que me buscas

e atalhas meu sofrer incerto a Luz...

e a estrela, que eu ideei no céu, me ofuscas...

no entanto, est’alma triste inda reluz...

Nuvem extinta do sol... já, na alvorada...

foste a morte, que as horas escurece

aguardando de lâmina doirada,

o precursor do Sonho que floresce...

Inesperadamente, entardeci!

como um castelo à sombra de um cedral,

pelo meu coração tu'ânsia ergui.

Senti-me arrebatar por teus segredos,

escravo do teu Elo imaterial...

Coluna envolta à vida dos teus dedos...

 

 

O Sonho-Interior...

O Sonho-Interior que renasceste

era o Poema dum Lírio do Deserto,

o vinho d'Outras-Almas que bebeste

fatalizou o meu destino incerto...

Depois por Ti em Sombras de degredo

encerrei a minh'alma desolada,

tive a tua visão crepusculada

na Beleza fugaz do meu segredo...

Perdeu-se-me ao Sol-Pôr teu rastro amado!

qual Cipreste, no Poente agonizado —

na demência autunal duma Alameda...

Velaram-se Sudários teus Espelhos...

ante o cerrar do teu Olhar de seda,

que era um descer de lua em cedros velhos...

 

Depois de te sonhar...

Depois de Te sonhar Mistério ido

e de seguir-Te e ouvir-Te em Hora leda,

vesti teu Ser a raios d'Astro e Olvido,

de Antiguidade o teu perfil de Moeda.

Parei depois de haver corrido tanto

e amado e urdido Horas de Sonho-Asa?

constelada de azul fulgor de brasa

por Tardes enlaivadas de quebranto...

Sonho em Cristal teu corpo de Champanhe?

mansa luz que morrendo sem alarde,

não há sol de crepúsculo, que a estranhe...

Acordas do teu Sono, para Mim!

nos meus olhos à sombra, para a Tarde...

por que surges em Sonhos num jardim?

  

 

Outubro, o sol...

Outubro. O sol em fuga d’oiro parte!

E a paisagem parece que morreu.

Todo um temor procura-me afastar-te...

Dentro de mim tu'alma floresceu.

Cerrou-se te palácio em brônzeas portas.

Teus repuxos cessaram de se erguer...

Há um estranho rumor a coisas mortas,

Já as fontes pararam de correr.

Guardo um rumor de folhas na alameda,

Gela-me a paz da tarde pelo outono...

Anda um tecer de luz a oiro em seda!

Sonho-te ausente... ou antes recolhida,

Vejo teu ser passar pelo abandono:

Como uma sombra errante em minha Vida.

 

 

À tarde o poente desfia...

À Tarde o Poente desfia

Topázios com filigrana,

Vindo ouvir a melodia

Dos vasos de porcelana!

Castelos do ocaso, esfinge,

Em cinza d’oiro, penumbra!

A Tarde em lírios nos cinge

Para o longe que a deslumbra...

Fulgores de rubra seda

Na dolência carmesim

Que vai do poente à alameda...

Cintilos d'Astros, Poema!

Diluir d'Opalas, Jardim...

De Salomé: o Diadema!

 

Contam que o teu olhar urde...

Contam que o teu olhar urde a fatalidade

em leda renda de oiro...

aos destinos e às c'roas...

que possuis o condão de uma magia rara!

Teimosa, oculta mão Te impele para o crime,

fascinas, fascinada...

És toda encantamento e tentação sublime...

Vens d'alma constelada...

Tudo Te encanta e tenta em torno de teus pés...

cavam-se abismos...

a própria tentação por Ti é fascinada;

te arruivam de topázio os olhos de ametista,

o assombro e o paroxismo...

Enferma-Te as olheiras a espiritual nuance

que há no oculto poder que Te personaliza!

O silêncio e o jardim são aquários velados,

a noite é um mar êxul sob estrelas profundas

extáticas d'amor calando a voz do céu...

Despertam do palácio os jardins e as piscinas...

Há rondas de faisões na soturna alameda...

Acorda a escuridão: como que desabrocham

florentes, orquestrais as franças dos repuxos,

como flores sensuais feitas de pedrarias...

E ao som d'harpas ideais, de citaras e liras

de profanos Poetas...

a tua silhueta rompe da escuridão,

como uma borboleta

quimérica e irreal...

tendo o corpo colmado a lúcido brocado,

traz lírios à cintura...

E os dedos a bater são remos a brilhar...

Como que a lassidão do ambiente se constela

e os crótalos vibrando adejam em torno dela,

parecem ter anseios...

São asas de falena ao sol a cintilar;

metálico florir em torno a dissonar ―

Azul esplende a chama em carícias de serpe

que se enrosca em seu braço.

Incansável nos gestos,

vestida a oiro-luz de um sol que não brilhou

e encobriu-se no azul da aurora que o beijou...

Como que adormecida ela avança a dançar,

ébria de perversão,

inquieta de surpresa,

como cega a passar à beira de um abismo,

tendo os olhos vendados,

como magnetizada

por uma oculta força...

Quase desfalecida

suplicam-lhe os anéis...

Ao som dos burcelins e crótalos, tentada,

Salomé traz às mãos egrégio prato de oiro!...

 

Silêncios

 

Silêncios

Ondulação da cor, teoria das horas,

cristalina garganta, irmã dos rouxinóis:

com que ânsia colores as cármicas auroras?...

crepúsculo eterial de acordes e bemóis!...

Os raios d'astros são ritos,

sangrando em rubis noturnos,

euclásias e crisóprasos

ardendo em brilhos soturnos

de crepúsculo e ocasos...

Descem os últimos reflexos

num vislumbre cristalino,

cálice d'oiro e hialino,

que a minha sede aguardasse,

água fria que passasse!...

Iniciam-se de seda

uns idílios em prelúdio:

sonha o cisne de uma Leda,

mais o sentido de um mudo!

Uma princesa descansa

à sombra de uma alameda:

todo longe é uma esperança

e a hora fenece em seda...

Pelas charnecas a Lua

constela de diamantes a vereda...

E a hora é Salomé sob esplausos de Luz.

Esmorece o vesperal,

cristaliza-se o som

num ritmo de espetral...

Delírio de opalino,

que as coisas embalava!

quando à luz irial

sonâmbulo evolava,

como um lírio outonal

pendente no Abandono...

Agonizava uma vez... é talvez a princesa?.. .

parece, que morreu:

vai pela tarde um laivo de Tristeza,

num'asa adeja agora para o Céu!...

As cisternas, ao fundo, notiluzem Luar...

O jardim adormece...

de anseio e de cismar...

uma fonte ao correr

amortece,

Sou Deus a conceber!...

Oram as flores por mim,

destilam essência e olor...

Sou a boca do Sol-pôr!

que esparze aflux jardim

em forma de saudade e súplicas de Amor!...

Sombra de Aparição, que dorida te inclinas,

qualquer coisa possuis de hierática no Amor:

beijando a ara azul da hora, que ajardinas...

És o pintor irreal das telas do Sol-pôr!...

 

Poemas avulsos

 

Quimera

Nossa cabeça é uma divina furna,

Onde sonhos edênicos adejam

Antes que os olhos da nossa alma vejam

Abandonar do nosso corpo a urna.

Ela é a falena do irreal casulo

Da nossa carne enferma de beleza...

Voltando à realidade com tristeza,

Dá do seu sonho para a vida um pulo...

Mas, o mocho do tédio, que negreja

A curva azul da noite que nos beija

A afastada paisagem da ilusão...

Faz a alma voltar à realidade,

E olhar o paraíso com saudade...

Da nossa astral, cruel decepção!...

1944

 

Soneto

Divagar, que ilusão! O mundo é estreito

Para contar as minhas sensações...

Qual saudades não moram no meu peito,

São tantas, quantas são desilusões...

E as lembranças que trago do seu leito,

Mais que versos, que todas as paixões?

E os beijos com que há tanto me deleito,

Olvidei-os por mil decepções!

E a vida, o desalento que me traz?

Para esquecê-la fixo-me em supô-la

Numa viagem que o destino faz!...

Volto a cismar, ao cais de onde parti...

— e do naufrágio a lenda a recompô-la...

Num poeta em que há anos pereci!...

1918.

 

Lúcifer

No espelho encantado do destino

Mais de uma vez me vi transfigurado:

As horas tinham timbre cristalino

E erravam opalizadas no passado...

Não me farto de olhá-las, no mistério

Tênues e loiras como a corda flébil

Do violino outonal do poente aéreo,

Que amortece em lilás num corpo débil...

Não me farto de olhar, erro inconsciente...

O solo é de diamante e o espaço um astro...

Vivem mármores d'alma no poente!

Foge-me a luz e se antecipam as horas,

No lago azul há cisnes de alabastro,

E o espelho em que me vi é tudo auroras!...

1936.

 

Tísica

A saúde falhou... Desiludida,

Em seu jardim de além concebe o olor...

P'la inércia de uma tarde indefinida

A custo segue para o umbral transpor!

Não maldigas a sós meu doce amor,

Não maldigas da carne e do sentir...

A vida é vã, como delgada flor!

Tem espasmos de aroma no florir...

Passou metade-luz por noite escura,

Presença espiritual dando-se a deus...

Requeimando-se às chamas das alturas...

A própria natureza lhe mentira

Era sombra da vida que surgira...

Sua alma triste pertencia a deus!

1947.

 

Trago de Hamleto a dúvida

A Andrade Muricy

Trago de Hamleto a dúvida sombria,

De Orfeu o canto e a lira melodiosa

Que animavam e tocavam a pedra fria

Duma imobilidade misteriosa.

Na minha dor sonâmbula, morosa,

Como funda e longínqua sinfonia

Vagueei, como uma sombra vaporosa

Para não ver-lhe a face à luz do dia!

E discreto passei anos e anos,

Sem que essa força estranha me exaltasse...

E fosse todo o mal de meus enganos!

Mas um dia encarei sua aspereza;

Deixei que seu humor me despertasse,

E vi na dor cantando a natureza!

16-12-1913

 

Lágrima!...

Ó lágrima nitente de Maria

Estrela d'alva a cintilar tremente,

És a divina lágrima d'um crente

Na fervorosa prece da agonia.

Rolas dos olhos trêmula e fremente

Celestial, misteriosa e fria,

Caías talvez na pétala sombria

Dum olímpico lírio alvinitente.

É tão divina, mística e singela...

Parece feita de luar ou neve

Ou do estilhaço duma branca estrela,

Na flor silvestre de celeste alvura

A pequenina lágrima tão breve

Se congelara para sempre pura!...

1-5-1907

 

Para que, alma, o esforço...

Para que, alma, o esforço extra-humano,

Peregrinando assim pelo infinito

Das estrelas sem rumo, qual precito

Por entre as vagas do noturno oceano...

Para que esse teu-tantalizar

Do sonho, em louvor de quem não sabe

Medir a altura imensa que nos cabe

Para adejar no inter-azul-sonhar...

Dorme. Deixa florir para mais tarde

Talvez à noite para o além a lua

Saiba curar seus males sem alarde...

Ela é uma santa; sua influência atua

Sobre as coisas da terra onde não arde

A chama da volúpia, que tressua!...

 

Languidez outonal

Minha volúpia é como uma moléstia estranha...

— inverno. Vento forte, névoa no entardecer;

Eu sei que um mal qualquer dentro de mim se entranha,

Embora sinta, enfim, desejo de viver.

Já invejei, senhor! O cimo da montanha.

Um coração, que parte, outro logo a sofrer;

Tudo quanto se esvai nessa horrenda campanha,

Nesse estéril lutar, nesse aziago prever.

A dolência abateu-me! Em mim, o que ainda existe

De apagado e sublime, unicamente, é a sombra

De um sol crepuscular ou de um espírito triste!

De mim há de nascer o sonho de amanhã...

Nesse prolongamento hibernal, que me aguenta

De um outono vermelho, aos beijos de Satã.

Rio, 1911

 

Pérfida

Ela foi-se-me a rir ao branquejar do dia,

Quando mal despontava a rósea claridade,

Além, na extrema azul, alguém de mim fugia...

Era um louco ideal de efêmera vaidade.

Ela deixou-me então no peito esta saudade,

Que fere e que devora em torpe covardia;

Ela, quando voltar, há de encontrar já fria

A quimérica flor da louca mocidade.

Esta loira mulher, mais lúbrica que um sol,

deixou-me a soluçar em lúgubre incerteza,

A implorar, seu carinho, à luz d'um arrebol.

Remédio onde buscar para estancar o mal?...

Só com a presença dela a trágica tristeza

Tornar-se-á como o sol d'uma manhã floral.

Ao poente

Gosto de ver na síncope do dia

A mistura de tintas do poente,

O sangue vivo, violento e quente

Do sol, n'uma medonha hemorragia.

A claridade extingue-se na enchente

Da noite, de uma atroz melancolia,

Mas, na curva rosada inda sorria

A luz do fim da tarde no ocidente.

Pirilampos azuis, misteriosos

Saem das moitas frescas, perfumadas,

Como os astros por céus silenciosos...

E, por entre o salgueiro de uma cava,

Surgia além, das fúnebres moradas,

A cimitarra de uma lua nova.

5-4-1904

 

Misticismo do outono

Ó meu jardim de flores e quimeras,

Porcelana, que à luz é carne acesa...

Ó sol d'oiro fluido das esferas,

Doces cismas d'além para a tristeza...

Bosque, onde a quimérica beleza

Passeia, à luz cerâmica das eras:

Cuidando ver nos astros a luz presa,

O moribundo encanto — as primaveras!

Vaso de eucaristia... Ó bizantino

Castelo, onde a graça d'ela habita,

Furtando-se aos desejos vespertinos!...

Ó silêncio da noite erma no Eufrates...

A florir arcangélica e infinita

Num pôr-de-sol de flores escarlates!...

Rio, 07-01-1912

 

Ó noites de luar

Ó noites de luar! Prenúncios d'além vida...

Ó céu espiritual! Ó cósmico viver!...

Quem nunca viajou e, num dia lá for ter,

Dirá que não viveu a vida já vivida...

Ó força natural! Ó mágico poder!

Que fazes rebentar da terra ressequida

A florida expressão de rosa estremecida

Num'haste que começa agora a florescer...

E tu vida, que já antes de seres minha,

Te consumiste em chama, espírito de graça,

Transformação genial de fera em andorinha...

És a essência que anima esta figura airosa!

Assim como o perfume, a cor que a alma adelgaça

O crepúsculo em flor dum astro ou duma rosa!

22-07-1910

 

Espiritualismo

A Miguel Monteiro

Carne que foste aroma e primavera

Impregnada de volúpia e dor;

Onde as lavas quiméricas do amor

Transformaram-te em alma de pantera

Foste corpo de rosa doutra era,

Infância embalsamada n'um sol-pôr:

Teclas violando música sem cor,

Beijos frios que são pura quimera!...

Misticismo de graça e de abandono.

És o dia a findar-se e a mágoa vence-o:

Num desconforto d’horas pelo outono!...

És o arcanjo do bem revelador!

Névoa a dormir nos braços do silêncio:

Como adormece no meu peito a dor!...

16-01-1913

 

Salomé

Para Ronald de Carvalho

A luz que sobre si resvala em ciclo vário

Num anseio de sombra e encanto a prosseguir...

É toda etéreo luar que a gela num sudário

À cor dum sortilégio, heráldica a florir...

Insônia a macerar-lhe a carne enlanguescente...

Suscita-me a lascívia um outro ser mortal

Seu rastro espectro olor... O corpo ópio indolente

Oscila... Desfalece ao meu desejo irreal!

Angelizada voz nessa tarde de lises

Perdeu-se... Em outro-azul espiritualizou-se!

Na insídia desse amor a distender raízes!...

Sobre ela a florir junto a cisterna, louca!

O disco singular da lua estagnou-se

Em raios que eram alma, e um lírio a sua boca...

1914

 

Salomé II

O Sonho-Interior...

O Sonho-Interior que renasceste

Era o poema dum lírio do deserto,

O vinho d'outras-almas que bebeste

Fatalizou o meu destino incerto...

Depois por ti em sombras de degredo

Encerrei a minh'alma desolada,

Tive a tua visão crepusculada

Na beleza fugaz do meu segredo...

Perdeu-se-me ao Sol-pôr teu rastro amado!

Qual cipreste, no poente agonizado

Na demência autunal duma alameda...

Velaram-se sudários teus espelhos...

Ante o cerrar de teu olhar de seda,

Que era um descer de lua em cedros velhos...

1914

 

Salomé III

Depois de te sonhar...

Depois de te sonhar mistério ido

E de seguir-te e ouvir-te em hora leda,

Vesti teu ser a raios d'astros e olvido,

De antiguidade teu perfil de moeda.

Parei depois de haver corrido tanto

E amado e urdido horas de sonho-asa!

Constelada de azul fulgor de brasa

Por tardes enlaivadas de quebranto...

Sonho em cristal teu corpo de champanhe!

Meu anseio velado som de alarde...

É luz cegando espelhos em champanhe.

Acordas de teu sono, para mim!

Nos meus olhos à sombra, para a tarde...

Que me sepulta em sonho de além-fim!

1914

 

Boêmia

Adeus, flor da boêmia! Adeus ó minha amante!

Eu tenho a sensação da queda em pleno abismo!

A minha vida foi, toda ela, em romantismo

Presa à taça do vício e o amor d'uma bacante.

Adeus ó natureza eterna e fascinante!

Foi-se me a vida um sonho, à luz do idealismo...

Eu sinto-me afogar no horror do paroxismo!...

Hoje sigo devasso um coração constante.

Meus amigos, adeus! Adeus, minhas tabernas!

Adeus, taça de vinho! Adeus, magos cantares!...

E a guitarra a chorar nas melodias ternas

Traz-me recordações das noites do passado...

— noites que em pleno azul lascívias estelares

Cantavam ao meu amor a luta do meu fado!...

XVIII — XI — MCIX

 

Elogio dos vitrais

Corpo de som e cor, forma velada.

Todo de sombra e sonho e vago anseio

Elegia das cismas e do segredo,

Tonalidades d'olhos encantados

Pela primeira vez à luz do dia...

Harmonias secretas na carícia...

Da sombra erguendo as mãos n'uma oração.

Ó conjunto secreto da beleza.

Ó íntima emoção das cousas vivas,

Ó rio por sonâmbulos cismares,

Toda em névoa e luar: como o meu ser...

Ó mistério do além feito penumbra

Ó melindre quimérico do outono...

Diluindo-se em místicas figuras

Na miragem dos líquidos efeitos!...

Ó espírito sutil do sentimento,

Que só o meu sentido pressentiu:

Como um vento de morte e de segredo:

Que passasse entre as folhas sem movê-las!...

Como a graça infinita do imprevisto

No espírito errante de Cibeles!...

Ó pintalgar das folhas, na volúpia

De satânicos beijos malfazejos...

Ó paisagem beijada pelo Outono.

Assim, quando beijamos quem amamos,

Em volutuoso ardor sexual!...

Maculando-lhe a carne delicada

E o horizonte do Amor e do Desejo

Alongando-se em beijos e abraços...

Ó além dos desejos sem limites!

De quem descesse ao fundo do Oceano...

Olhando-o visse acima: deslumbrado,

O sol abrindo a Alma em forma d'Íris...

Ó além das quimeras, na Elegia

De teu beijo de Arcanjo misterioso

Amor vivo de Tísico, com beijos...

Já na febre do anêmico sem forças!...

Ó bemol com avantesmas e Duendes,

Ó pôr-do-sol da Vida nos Olhares,

Olha! O Além é o eleito de Almas brancas...

Com as mãos tangendo Harpas no Passado...

Ó mistério da cor e das vidências...

Onda de som e claras harmonias,

Sois o sonho das horas sem limites,

O descanso da mágoa e do indizível,

O segredo das vidas e dos Vitrais!...

Ó desejo de ser névoa e Silêncio!...

Almas a olhar do Além com Olhos tristes.

As Estrelas são os Olhos da Tristeza

Com a saudade do brilho da Ametista!...

Ó Tristeza infinita da Tristeza,

Ó íntima beleza misteriosa...

Tão recôndita e mística e imprevista

Espírito vidente do meu ser!

Desvenda-me essa Dúvida suprema

Astros! Olhos sombrios do mistério!...

18-02-1913

 

Casuarina

A Diniz Júnior

Onde encontrar a Perfeição na vida,

Seja sol ou horizonte esbraseado,

Pôr-de-sol ou crepúsculo magoado,

Seja sombra ou luz morta, transfundida

É, porventura, esta Árvore perdida,

No meio deste vale, pernoitado

Pela sombra da noite inda esquecida

Do sol e do seu beijo alcandorado?

É, porventura, uma Árvore ou o indizível

Visionista ambulante da paisagem,

No mistério das coisas, transfundível?

Não! É liga singular de Dor e Sono,

A Vida perscrutar-se na miragem,

No silêncio das horas pelo outono!...

29-10-1912

 

Musa

A Levi Autran

Ânsia das névoas, asas dos invernos,

Madrugadas boreais para o sol-posto...

Que alvoreceis na mágoa e no desgosto

Da lua cheia, lá nos céus eternos!

Sois vislumbres de luz, névoas de agosto!

Bruma que a lua e sonhos sempiternos,

Consumindo-se às chamas dos avernos,

Para em volúpia incendiar seu rosto.

Ser névoa é ser surdina, é ser perfume,

É revestir-se d'oiro num lampejo,

É ser essência d'um divino lume...

Navegar pelo além — nave sem mastros,

Por isso, deus deu asa a seu desejo...

Para enublar num beijo a luz dos astros!

 

Versos

Ó capitosos, delirantes beijos!...

De aromáticos lábios macerados;

Mornos beijos de meigos namorados,

Em lúbricos, harmônicos harpejos.

Voluptuosos lábios encarnados,

Na febre intensa de carnes e desejos;

Beijos de amor em lôbregos solfejos

Belos, sutis aromas abrasados.

Perfumosas romãs de rubros lábios

Em fogo, em gelo, d'um supremo gozo,

Furtando, às vezes, beijos em ressaibos.

Beijos, lembrando todo um céu aberto,

Abrasam-se no riso luminoso

Dum lúcido verão, que vem tão perto!...

17-3-1908

 

Ânsia das névoas

A uma inglesa

Ânsia das névoas, asas dos invernos,

Madrugada ânsia para o sol-posto,

Que alvoreceis na mágoa e no desgosto

Da lua cheia, lá nos céus eternos!...

Sois vislumbre de luz, névoas d'agosto,

Bruma que é lua e sonhos sempiternos,

Consumindo-se às chamas dos avernos,

Para em volúpia colorir seu rosto.

Ser névoa é ser surdina, é ser perfume,

É revestir-se d'oiro, num lampejo...

É ser essência d'um divino lume.

Apagar um farol em cada mastro!...

Por isso deus deu asa ao seu desejo,

Para enublar num beijo a luz dos astros!

 

Salmo I

Contam que o teu olhar urde a fatalidade

Contam que o teu olhar urde a fatalidade

Em leda renda de oiro...

Aos destinos e às coroas...

Que possuis o condão de uma magia rara!

Teimosa, oculta mão te impele para o crime,

Fascinas, fascinada...

És toda encantamento e tentação sublime...

Vens d'alma constelada...

Tudo te encanta e tenta em torno dos teus pés...

Cavam-se abismos...

A própria tentação por ti é fascinada,

Te arruiva de topázio os olhos de ametista,

O assombro e o paroxismo...

Enferma-te as olheiras a espiritual nuance

Que há no oculto poder que te personaliza!...

O silêncio e o jardim são velados,

A noite é um mar êxul sob as estrelas profundas

Estáticas d'amor calando a voz do céu...

Despertam do palácio os jardins e as piscinas...

Há rondas de faisões na soturna alameda...

Acorda a escuridão: como que desabrocham

Florestas, orquestrais as franças dos repuxos,

Como flores sensuais feitas de pedrarias...

E ao som das harpas ideais das cítaras e liras

De profanos poetas...

A tua silhueta rompe, da escuridão,

Como uma borboleta

Quimérica e irreal...

Tendo o corpo colmado a lúcido brocado,

Traz lírios à cintura...

E os dedos ao bater são remos a brilhar...

Como que a lassidão do ambiente se constela,

E os crótalos vibrando adejam em torno dela,

Parecem ter anseios...

São asas de falena ao sol a cintilar,

Metálico florir, em torno a dissonar

Azul esplende a chama em carícias de serpe...

Que se enrosca em seu braço.

Incansável nos gestos,

Vestida a oiro — luz de um sol que não brilhou

E encobriu-se no azul da aurora que o beijou...

Como que adormecida ela avança a dançar,

Ébria de perversão,

Inquieta de surpresa,

Como cega, a passar, à beira de um abismo,

Tendo os olhos vendados,

Como magnetizada

Por uma oculta força...

Quase desfalecida

Suplicam-lhe os anéis...

Ao som dos burcelins e crótalos, tentando,

Salomé traz às mãos egrégio prato de oiro!...

(Das Ruínas Misteriosas)

1907

 

Ópio — poemas ilusionistas

 

Balada

Espalto de sombra à escada

Do sonho pra alma tua...

É penumbra olorizada,

Que sobe do outono à lua!

Penumbra loira de sons

Pelos mouriscos vitrais,

Há crepúsculos de tons,

Morrentes sob canais...

Cisnes de fogo ao poente,

De asas de fumo a voar:

Tombam feridos, dormentes,

Como quimeras do olhar...

Fulgem rubis e alvoradas,

Dentro dos olhos magoados:

E ao longe das serenadas,

São como cristais gelados...

Jardim, com lagos dormindo,

À lua branca e outonal:

Tem o longe dos sentidos,

Duma volúpia irreal...

Adormecida visão,

Da lua clara e lilás:

Receio à noite os chorões,

Ossificados na paz!

Luar de lírios, dorido,

Luar dum ópio irreal:

Que a sombra deste sentido...

E à noite o sono ideal!

Veludo de mãos na sombra

Do meu jardim a colher:

Uma rosa, um lírio, à sombra

Do que há de florescer...

Da lua a penumbra loira,

Adormecida e magoada:

Recorda-me a lenda moira

Duma princesa encantada!

1915

 

Balada d'ausência e da saudade

Sou a sombra da saudade,

Existo em tempo falaz:

Sou ansiedade — memória!

D'outra idade mais lilás...

Existo nas noites brancas,

Sou um sono no jazigo:

Tenho saudade de mim

Pela cisma, que te sigo!...

Moro e vivo na saudade,

São todas de sonho as horas...

Que fingiram, que finaram,

Espectrais como as auroras...

Ó ido-tempo ceguinho,

Que te fostes em horas vãs:

C'roadas de pedrarias,

Como a alma das manhãs!

Hoje sou um triste, um cego,

Tenho olhos e não vejo:

Só por olhar o passado...

Na sombra do meu desejo!...

Choro e as lágrimas não correm,

Sofro e o coração não para:

Só por morrer de saudade,

Na tarde mais erma e clara...

Vou de saudade em saudade,

Noivo de recordações...

A memória é a eternidade

Para um jardim de canções!

Amigo sou-te a presença,

N'ausência por não estar

Nunca de mim recordado...

Sou a noite sem luar!

Amo a luz do entardecer!

Mais o luar das estrelas,

Que pelas noites são velas...

Olhos tristes do não-ser!

 

Tristeza da lâmpada

Toda velha tristeza duma luz, no outono,

Envelheceu de azul o meu quarto deserto:

Vaga por ele toda uma inércia: Abandono!

E a luz que tomba êxul, traja um luto encoberto.

A tristeza do azul anoiteceu com a Lua!

E mais escureceu a luz da minha vida,

Quando acreditei vê-la duma outra lua

Mais triste, se espargiu na sombra dolorida!

1915

 

Melancolia

Oh! Falso cais por mim avistado de longe,

Calado à transparência e dolorosa luz.

Tenho ânsia de lançar a ti louco de abstrato,

E como tu, fugir aos seus olhos sem luz.

Parece que o jardim anoiteceu em lagos,

E os teus olhos sem luz entardeceu jardim;

Fere-me um ar dormente a epiderme do rosto.

Há dormência na luz em seda carmesim!

Sonolência da cor! Cai indolência verde.

Penumbra transparente a brilhar em teares.

Dormem insetos na sombra: Vespas de fluidas Asas,

Que se agitam no ar: Linfa a filtrar luares!

1915

 

À distância

Vai-te visão de luz — minha tristeza!

Pela boca da noite... Abre a janela!

Debruça-te de lá: COMO UMA ESTRELA...

Na tarde soluçando a minha Reza.

Tua memória a dispersar-se incenso,

Era uma tarde ao fundo, aureolada!

Minha saudade é como um branco lenço,

Para acenar a tua frota armada.

1915

 

Ao poente

Para Santos Junior

Gosto de ver na síncope do dia

A mistura de tintas do sol-poente,

O sangue vivo, lúcido e fervente

Do sol, numa avernal catalepsia;

A claridade extingue-se na enchente

Da noite duma ideal melancolia,

Mas, na curva florente fenecia

A luz da tarde em lírios, no Ocidente.

À noite fogos-fátuos misteriosos

Constelam as solidões mais desoladas,

Como longínquos astros lacrimosos.

Do mais alto cipreste duma cova

Se erguia, além, das fúnebres moradas,

A cimitarra duma lua nova

1905

 

Insônia à lâmpada

Para Luiz De Montalvor

Noite imensa, hora-morta, o meu delírio!

Unge-me o aroma de teu livre ser...

Erro no olor vernal d'alma dum lírio

E sou memória d'algo a transcender...

Sinto-lhe a ausência, a carne é o meu martírio...

Ressurjo. Amo o luar do meu não-ser...

Todo meu corpo é etérea chama, círio...

Volúpia dum perfume a se perder.

Divago à luz da lâmpada em penumbra.

Incerto de memória e encantamento,

Como névoa que lúcida vislumbra.

Sou o amor. Amo as horas dum jardim.

Sou uma vaga sonora em pensamento,

O sonho e a morte a reviver em mim.

1914

 

Ângelus

É a cor, o som, a luz que em si revive;

A corola que ângelus desfolha,

Todo encanto seráfico que vive

D'algum jardim, n'alma d'alguma folha!

Penso, a folha da árvore ter alma;

Ao repousar das folhas do arvoredo,

E ,como que perscruta o seu segredo

E fala-me a tremer à escura calma

Comunica-lhe a minha íntima ânsia,

Que exala olor dorido de beleza

E ao longe faz-se asas à distância...

Creio-o luar! Visão! Desconhecido...

Que um segredo de luz pela incerteza,

Acordou a ilusão do meu sentido...

1911

 

Aparição

Eu sou aquela sombra aérea e antiga

— aparição das horas vesperais,

Que um perfume ideal de rosa amiga

Divinizou-a para vós mortais.

Eu sou aquela sombra aparecida

Num crepúsculo lívido e outonal

E fui divina luz amanhecida

Num ser de carne etérea e espiritual!...

Sentinela do luar numa alameda

Dei-lhe meu corpo aéreo de penumbra,

Fui a alma dum cisne amando leda...

Fui essa Ofélia de jardins irreais

E como névoa iriada que se alumbra,

Sangra o espectro de sol dentre vitrais!...

1914

 

Transcendentalismo I

Evocar o irreal é ser divino:

Idealizando a noite que não vi!

Orfeu cantou o sonho peregrino

E eu choro tudo quanto já perdi...

Minh'alma é como as cordas dum violino!

Que na emoção, frenético as parti

E desde então esse instrumento fino

Emudeceu e triste enlouqueci.

De romagens titânicas da vida

Regresso à minha paz — sonho doirado,

Que um mistério d'amor fê-lo suicida!

Saudade! É minha mística paisagem,

Que a hora dum crepúsculo sonhado,

Fala e canta na sua própria imagem.

16-12-1913

 

Transcendentalismo II

Trago de Hamleto a dúvida sombria,

De Orfeu o canto e a lira melodiosa

Que animavam e tocavam a pedra fria

Duma sensibilidade misteriosa.

Na minha dor sonâmbula, morosa,

Como funda e longínqua sinfonia:

Vaguei, como uma sombra vaporosa,

Para não ver-lhe a face à luz do dia!

E discreto passei anos e anos,

Sem que essa força estranha me exaltasse...

E fosse todo o mal dos meus enganos!

Mas um dia encarei sua aspereza:

Deixei que seu horror me despertasse,

E vim na dor cantando a natureza!

16-12-1913

 

A sombra dolorida do sossego

A sombra dolorida do sossego

Passou d'olhos cerrados, no crepúsculo...

Em reza a mudas bocas meu segredo

Era lábios orando no silêncio!

Seu rastro de anilado era neblina...

Perdia cor de sombra sob arcadas...

Choupos em seda, as formas recortadas

Em orla d'oiro, se velavam em cinza...

Seus dedos abismavam-se de espanto,

Diluindo-me anímico desejo...

Aclarando-se anéis, eram jacintos...

Que feneciam sob lábios-beijo!

Em salas de penumbra se perderam

Em cismas d'outras salas misteriosas,

Com o ar vago de lustres e de espelhos,

Que sonham amar princesas e amar rosas...

Ó espanto das horas silenciosas,

Que morreste mistério no meu pânico!

E nem deram por ti as minhas rosas,

Que morreram saudade na minh'alma...

Ó arrepio da noite do meu medo!

Que te evolaste aroma num jardim;

Que fugiste visão, entre o arvoredo

De longas vestes sem tocar em mim...

Eu, que teu corpo busco em meus abraços

Indolentes de éter e morfina,

Estagnei-me sob teus passos

Em lago astral de estrelas e neblina...

Um desejo apossou-se de minh'alma!

Buscando dela ver-te eu te avistar

Ao crepúsculo em lôbrega alameda,

Onde ao raio da luz, fosses luar...

1915

 

Exílio

Para os ignorados

Pressinto em meu exílio esse degredo, à vida,

Poucos tristes percebem a ânsia do meu não-ser!

Vislumbres tive à luz — veludosa descida,

Desconheço esse humor que assim me faz nascer.

Eu era como o musgo à sombra dumas heras;

Não conheci a aurora e tinha o olhar escuro,

Via no sol ao poente o meu fim, meu futuro,

Ficar-se num Sol-pôr, longe das primaveras...

Disperse-me em saudade? E sou a sombra dela,

A minh'alma é um jardim de flébeis nostalgias

Onde fontes murmuram e a morta sombra vela,

As horas que incriei são flavas como os dias!...

Que dirão? Que tortura infinita — sentirei deste tédio a anímica grandeza,

Gozarei o sonho que o enlaçou!...

A ânsia do não-ser e o além-fim da beleza,

Que o incêndio do meu ser o fogo devorou...

Que dirão. Sonharei a visão de fim de luz em mim?

Anseio de tocar que os olhos não alcançam,

O desejo tem mãos com garras de marfim...

Há posse de meu sonho em asas, que descansam...

Tudo que o pensamento anseia a mão retém!

O desejo é um capricho, o pensamento é um doente...

Oscila de prazer no sonho que em si tem,

O gozo é indeciso, a dor convalescente...

Que dirão dessa Circe — o tóxico. Sorverei esse olor dum oriental veneno

Que um roxo fim de luz verteu sobre estas flores,

Que exalam a agonia outonal dos olores,

Que cura como o bem o mal grande ou pequeno!...

Que dirão? Repudiarei minh'arte a imperfeição divina,

Vestida de rubis e mantearias raras...

Ela é todo um segredo, a essência sibilina,

Que há de sem rescalar morrer em rosas claras!...

Pressinto em meu exílio esse degredo, à vida!

Não culpo a um só sequer, pura fatalidade...

Descendo de mim mesmo em sombra amanhecida,

Que anoiteceu ao sol e despertou saudade!...

1916

 

O amor no irreal

Irrealizei-me luz de teus baços vislumbres

Morrente d'oiro à tarde em ânforas, olência...

E como realizar-se em sonho ou aparência

Em doido sortilégio a iluminar vislumbres

Nunca realizar-me, ao menos voz na noite...

Olor que feneceu na sombra do que fui!

Acordo-me saudade em nostálgico açoite

De incerta em tentação no encanto que possui

Abre-se dentro em mim, como em falso ambiente

Água sinistra e azul ofelizada em lua!

Todo eu, alma e temor por jardins d'oriente...

Minh'alma se evolou em gestos de odorar-te!

Teu corpo convalesce na minha dor mais crua

No inexo da cor por nunca realizar-te.

1916

 

Distante

Acorda o dia num sol-posto

Vive a memória dum jardim,

Vejo passar o último agosto

Florir em horas para mim!

Vejo morrer a última tarde

Arder a última quimera

Na transparência do céu arde

Lâmpada azul que se incinera

As curvas têm volúpia e ausência

De eterna carne de penumbra

Têm a volúpia da demência

Por tudo quanto é vago e olente,

Olhar de sono que se alumbra

A luz dum luar convalescente!

1914

 

O segredo das rosas

I

As rosas que sonhei fenecem agora

Diluídas em cor e suavidade...

O outono é um jardineiro junto à aurora

Que nos dá a colher uma saudade!

As flores que ajardinei se despetalaram

Pela ausência da luz que se velou

Soluços que pela noite se calaram

Ao cerrar duma porta que fechou...

Ó segredo das rosas ao sol-posto

Alma de deus ungida de perfume,

Que tarde as transcendeu no mês de agosto!...

A mão de deus manchou-as na alvorada...

Ó noite olorizada no seu lume,

Que tens asas de arcanjo e voz de fada!...

 

O segredo das rosas

II

As rosas são de mística memória,

Foram neblina, olor, jardim de deus...

Diluíram-se alvor n'alma marmórea

Da tarde a despedir-se em branco adeus...

Há crepúsculos lânguidos em rosas

Com heráldicos ângelus de túnicas

Que se esfolham a bailar e misteriosas

Salomés d'alma lôbrega, mas únicas!

Há rosas que se perdem num contemplo

Íntimo e langue, que ao quebrar deslumbram

Todo zimbório em coro do meu templo...

O sonho dessa aurora que as beijou

Era o luar dos olhos que vislumbram,

Segredo dessa mão que as decorou!

1913

 

Sibaris

Para a alma das noites sem luar

Ó noite-virgem-mãe de luz aflita

Ó noite-alada. Ó noite-redentora

Ó redenção pros loucos... Ressuscita

Contigo o luar e a solidão finita

Ó virgem-mãe-original-do-amor

Ergo-me em ti a rastros de princesa

Alma nua da noite a me tentar

Teu ser é o mar à lua da incerteza

Frio e núbil por mim a resvalar...

Ó corpo-virgem-original da noite

Carne-alada d'além cheia d'anseio

Ida-sombra esvaída no desejo

E na teia da lenda em que me enleio

Ó noite-original-religiosa

Das noites o missal pela noite lendo

Era tu'alma o meu desejo tonto

Em carne fria, lívida no anseio...

Trago-te em mim, ó noite-religiosa

A falar pela boca d'ermo vento

Aparição-êxul-vitoriosa!

Inquieta de luz e pensamento

Ó sibaris das horas consteladas,

Alma da Salomé bailando à luz dos astros

Ó noites que não têm madrugadas

Ronda de bruxas ao luar num rastro

Ó noite-sideral, silenciosa

A embalar-me no sonho-d'além-túmulo!...

Longínqua de saudosa,

Teus astros fugirão à estrada do meu-túmulo!...

Ó virgem-original-do-sonho-e-da-incerteza

Funesta-Salomé semi-ébria de beleza

Descendo sobre mim em noite constelada

És o incesto a tentar a minh'alma finada!

1914

 

Lâmpada dormente

Pra Eduardo Guimaraens

Velha noite acordando-me o passado

Enferma-se. Convida-me a sonhar

O silêncio! Dum tom maresiado

Gela-se agonizante a luz no ar

Envolve o meu desejo um louco anseio,

O ser acorda!... A dor abraça a vida!...

Clarão de sol, que beija e doira o seio

Da livre encarnação arrefecida...

Cerro os olhos! Em mim como que apago

A lâmpada que em crepúsculo irreal,

Mais me anoitece o alpendre das olheiras...

A noite para mim é a irmã do afago...

Ao estertorar da luz em raio astral...

Nimbando em sonho as cismas derradeiras.

 

A alma da água

Cerraram em mim todas as fontes d'alma,

Fontes que eram tristeza murmurando:

Anoiteceram sombra linda e calma

Num jardim, onde há ninfas se banhando...

Água crepuscular, que era um filete

Que em suspiro d'amor correu da fonte,

Filigrana, platina num corpete

Negro, a descer, como o luar dum monte.

De outono, um terço místico a rezar,

Bocas que escaldaram pela sombra

E hão de acordar, quando acordar o luar.

Pensamento que a noite é luz hialina!

Que viveu pra um crepúsculo e da sombra

Há de se erguer em asa de neblina!...

1915

 

Ideal quimera

Onde ele mora?... A dúvida me açoita.

Há na noite profética a brilha

O mistério da lua que se anoita...

Mourinha que aos destinos vem falar!

Inexiste... Embora a clara fonte

Da su'alma deslize dentre em mim

E um cismar anoiteça minha frente

E passe em adoração n'algum jardim...

Em que aurora ascendeu todo seu gesto

De humilde ou de senhor?... Só pelo espaço

A noite errará e o luar flutuava mesto...

Que tarde misteriosa o revelou,

Fora de certo o adeus d'oiro, mais baço,

Que sob o olhar do céu ao mar baixou!...

1916

 

Fim do dia

O dia se exalou

Há hálitos de bruma

A luz é oiro e névoa

Em lago azul de espuma

Encanto singular

De folhas a tecer

Penumbra nos jardins

A tarde a rescender

Aroma de jasmins!

À sombra, na indolência

De túrbidas miragens,

Há frêmitos de olência,

O adeus pelas paisagens

Do dia pela ausência...

Na sombra dos jardins

A meia hora do dia

Há sonho e nostalgia,

A aragem que perpassa

Tem o ar de arcanjo e graça

E encanto nos jardins

Jardins do dia em meio

A hora me alucina

Visão de luz e anseio

Aroma vão, que ondeia

Irmão da minha sina!...

A luz prende no chão

A asa da folhagem:

Ó almas que não dão,

O olor de si a aragem...

1913

 

Canção à alma

Outono d'oiro

O ar aloirece

Num imaculado

Cair alado

De prece d'oiro

Ao longe o céu

Triste se alumbra,

Tarde caindo

Dentro a penumbra

Descida em véu!

A luz é vida

Pupila ardendo

D’hora descendo,

Lâmpada d'oiro

Que vai morrendo

Flébil de prece...

Tomba o crepúsculo

Tudo é vislumbre

Duma hora d'asas

Pelo ar flébil

Os bronzes dos jardins

A luz do entardecer

Tem êxtase e vislumbre

Desejo de perder-se

Fúlgea penumbra,

Flor que se alumbra

Perfume em ser-me

Ânsia fingida

Em velas presas!

E a lua é triste

E a noite é imensa

Noite sem fim,

Luar dorido!

No olhar da noite

Há uma doença,

Loucura de desconhecido!...

Ó ideação da luz urdida

Em raios d'oiro de ilusão

Fátua quimera d'alta vida

Plasmada em névoa de emoções!...

1916

 

Tudo que eu fui

Adormeço a sonhar! Que fui outrora...

Som místico das harpas no abandono...

O cogitar das coisas a certa hora...

Colher lírios à lua pelo outono!

Sou noite exterior, soturna a fora...

Letargia, silêncio... Me visiono...

Sonho viver interiormente, aurora...

Nos meus sentidos lúcidos, num sono...

Sou ansiedade à boca da meia-noite!

a rosa que se esfolha ao duro açoite

Do vento, à voz das fontes a ascender...

Amo as tardes idílicas do norte!

As palavras que nascem sem viver...

Mais um dia que passa e a minha morte!

1915

 

Sugestões

Qual a causa augural dessa tristeza,

Que te fenece a esplêndida alegria,

Destes olhos que vivem noite e dia...

Numa constante prece à natureza?

Tão branca e tão discreta, alguém diria...

Que eras a luz de espiritual pureza,

Concebida na etérea sutileza

Dum bem, que o nosso amor amar faria...

Ouve! Olha! Não andes triste, porque a vida...

Não é, só, furtiva e cor-de-rosa aurora,

Também se faz na lágrima, sentida...

Pressinto, que é fatal: uma partida!

Um de nós que se vá da vida em fora...

Pra que nos saiba, a amarga despedida!

1911

 

Choupos à tarde

É chegado o mistério para a vida!

A vida — sol, que finda ruivamente...

Por lajes avernais na indefinida

Nebulosa de êxtase latente...

Astro! De alpestre luz amanhecida

No sonho celestial, aereamente...

Como sírios à flor do azul, urdida

Por teares de estrelas, astralmente...

Dor vaga por divino encantamento,

Quando a alma em ilusão do pensamento

Afasta-se da gente por instantes...

Quando a luz em soluço anda sustida,

Quando as choupas são almas de estudantes...

Cantando loas para além da vida!

1907

 

Reino desejado

Peregrino do sonho errei caminhos

Que iam ter às portas da alegria,

Poeta e marujo naufraguei sozinho

E a minha nau fora a melancolia.

Meus olhos não beijaram a luz da glória

Nem meus lábios chegaram a balbuciar,

Quero encerrar-me em vós portas de inglória

Noite, que é mar sem-fim a serenar!

Onde as almas na febre de seus lábios

Nunca chegam a tocar para matá-la

Na insaciável ebriez dos lábios

A olhar amortecendo, sonha e cala

E como solitário a tempos-idos

Nosso frescor de lábio sossegado

Os antigos — caminhos percorridos

Peregrino! Da morte no vencer!

1916

 

Elegias do sol e da sombra

Tua memória delicada

A oiro pálido, outonal

Tem a beleza suavizada

Da luz iriada num cristal

O teu sorriso de violetas

Cristalizou-se em meu olhar

Mais triste que as noites pretas

Que desbaratam-se ao luar

Correndo em horas hialinas

A um luar de ânsias e de ais

Minha saudade — turmalinas

Por ti em joias irreais

Tua presença enferma e débil

Convalescendo em nosso amor

Tem a doçura d’hora flébil

Da minha ausência num sol-pôr.

1916

 

Elegias do sol e da doçura

No mês de outono dolorido

Suave num lírio a fenecer

Minh'alma é ausência pelo olvido

D'alguém que vai convalescer...

O mês de outono minh'alma

Saudoso adeus de roxo em ti

Espiritual violeta d'alma

Que a luz do dia não sorri

Adeus da hora que não parte

Que só revive dentre em mim

Porta que o sol cerra escarlate

À nostalgia dum jardim

Quisera assim fixar-te a oiro

Ó minha azul melancolia

Toda a luar na estrada a oiro

A lua fonte d'alma fria...

Amortalhada à nostalgia

Vais a sangrar os pés d'aurora

Num roxo fim que o dia chora

De mim murmura a pedraria

No mês do outono dolorido

Triste num lívido jasmim

Su'alma exala um olor a olvido

De teu piano de marfim

1916

 

Outros poemas avulsos

 

Crepúsculo

A sombra é deus — penumbra d'ópio ascensa!

A esmorecer num sol de ocaso exangue;

Diluências de luz, que ungindo incensa

Em mãos de espectro úmidas de sangue.

Noite d'alma que avulta em sombra densa

As árvores à beira d'algum mangue,

Num dilúvio de cinzas, na descrença

Dessa tarde de túnicas em sangue...

Dá-lhe um ar roxo à anímica miragem,

É monges d'água errante de nascente

Sonhando com carenas em paisagem!

Soturno em luzes tristes a cismar

Sobre o azul adriático ao sol-poente,

Que sonha ver palácios sob o mar!...

1912

 

Como uma flor tombas morta...

Como uma flor tombas morta

Dentro de mim, meu jardim...

Bate a chuva a minha porta

E o vento do outono, spleen!

A morte é certa velhinha

Aparição do senhor,

Cruz à boca da noitinha

Descanso da nossa dor

Sinto longe da minh'alma

Os olhos meus se enublar,

É a névoa ao longe, na calma

Da noite aflita a rezar

De incerto erro no acaso

Vão acender meus turíbulos

É a terra toda um vaso

Ardem os góticos vestíbulos!

Sonho com a mística noite

Da minha sombra no amor,

A tristeza dum crepúsculo

Num lírio morto ao sol-pôr,

Cerra ó lírio da tristeza

O teu cálice ao Sol-pôr!

1914

 

Lilases, violetas, memórias do outono...

Lilases, violetas, memórias do outono

Que morrem ao poente...

Qual lume dolores diáfano e absono,

Que ondula ao crescente;

Memórias d'outono, cintilos de opala

De tons a morrer...

A tarde é um anjo com lírios na fala

Quase a endoidecer

Silêncio, penumbra... É tudo memória

As folhas que tombam, parecem dormir

As flores são saudade à luz merencória

A uma dessa quem dera partir!...

Memoriado outono! Quedou-se de neve...

Já pelo silêncio parece pregar

Num ritmo dorido caixões, para breve...

À lua a rezar!

Eu sou a memória de tudo que é lindo

Beleza e ilusão;

Divinas palavras de outono menino,

Rezadas em vão...

Memórias d'outono de cisma e tragédia

À sombra a sagrar!

Eu sou a saudade parque medievo

À boca da noite lusíada a orar!

1913

 

Outubro. O sol...

Outubro. O sol em fuga d'oiro parte!

E a paisagem parece que morreu.

Todo um temor procura-me afastar-te...

Dentro de mim tu'alma floresceu.

Cerrou-se teu palácio em brônzeas portas,

Teus repuxos cessaram de se erguer...

Há um estranho rumor a coisas mortas,

Já as fontes pararam de correr.

Guardo um rumor de folhas pela alameda,

Gela-me o ar da tarde pelo outono...

Anda um fiar de luz a oiro em seda!

Sonho-te morta... Ou antes recolhida,

Vejo teu ser passar pelo abandono

Como uma sombra errante em minha vida.

1915

 

Uma noite morria de saudade...

Uma noite morria de saudade

E a lua pelo azul, de nostalgia...

Quando lembrei-me que num'outra idade

A tu'alma sem corpo amado havia.

E no mundo esse amor era um segredo,

Um perfume de rosa fenecida,

Dessa noite em que sibaris a medo

Deixei em sombras e cinzas, resolvida.

Pensei meus olhar serem teu olhar,

A tua sombra mística minh'alma,

Caravelas de fumo sobre o mar!

Teu corpo para mim velou-se a véus

De roxa languidez, a lises d'alma,

Que eram a saudade pelo olhar de deus.

1915

 

Noite egípcia

Noite egípcia caiu a cor de casebre

A manchas roxas que se evola à lua...

Fumo de incenso, que oscilar reflua...

Fugindo aparição d’horas de febre.

Palor de lua... Levantina rosa,

Sonho sem rumo... A noite em aparição!

Que tristeza a da luz? Tão dolorosa...

Esvaída penumbra de visão!

Sonho-te aroma louco, fugidio...

Pelos meus dedos, fluido de quimera,

Tal como a lua, pelo céu, no estio!

Rei exilei-me em teu ruivo cismar!

Desde essa noite, que o luar tivera...

Em teu palácio a ronda dum olhar.

1915

 

Excêntrico singrar

Quem me dera partir certo, que longe

Lavarei os meus olhos tresloucados,

Na tua luz beatíssima de monge...

Oh! Sonho, ó meu crepúsculo fluente!

Parti! Mas o mar era fingido,

Proas, carenas em quilhas d'oiro e azul

Oravam...

Vi mundos através dum sonho ido,

Galeras a singrar à luz da tarde em Thul...

Por flébeis, musicais

Vislumbres d'áureos timbres,

Que eram as minhas taças iriais

E as minhas horas — flores de timbres hialinos

Que fugiram ao sol-pôr banhadas de luar

Tocadas de rubis — fatídicos destinos...

Pedraria aflitiva em rastro sibilino

Murmura com alma de violinos

Sonhei a tua voz água que deslisava

E luz crepuscular, morrente teu olhar...

Fixando loucamente a saudade dest'alma

Doida e rica de sonho, e triste como a calma

De flébeis fins de dias outonais!

1916

 

Alma ansiosa

Sonho-me perfume que fugisse um dia

Pelos teus dedinhos sem poder tocar

Como te namoro branca e fugidia

Como noite velha pelo azul a orar

Porque minh'ânsia busca-te de longe

Meu luar dorido, donde morto estais...

Amo-te branquinha pela fé veemente,

Que me inspira mansa como a ti meus ais!...

Se meus olhos buscam-te, tentam-me afastar-te

Dessa noite etérea que rezaram bocas,

Oh, que louco anseio pra da lua olhar-te

Quando a hora é morta, como as almas loucas!...

Todo meu intento pálida quimera

É de possuir-se sem teu ser tocar!

Príncipe e poeta num palácio antigo

Qual a lua fria por jardins a errar!

11-11-1915

 

Carta pr'além túmulo

Eu tive a conclusão de que isto é o nada,

E a alma é uma flor que mesmo murcha odora!

Partir nada adianta, o mundo é a estrada,

Onde já tateei e sigo agora...

Todos os males aqui vou sofrendo,

Partirei o mais breve que puder...

A mágoa que alimento, ela assim quer

Crepúsculo profundo anoitecendo...

Partir, é uma ilusão de quem não sonha!...

Amo a tu'alma por sofrer comigo,

É uma alquimia as horas que não tive...

Visão leda do sol à cor extinta...

Ausente-me! É a tu'alma e meu jazigo,

Erro no oiro astral que tarde pinta!

1916

 

Elegia

Para Ronald de Carvalho

Doce cantor duma saudade,

Rouxinol do passado

Conta a legenda duma idade

A história êxul dum principado...

Passou num sonho a tua infância

Por encantado e irreal jardim,

Foi como névoa de fragrância

Cristalizada num jasmim.

Cantor, que a alma dolorosa

Doutro poeta te exaltou;

Pra que vivesses numa rosa,

Para que morresses num Sol-pôr...

E o mesmo vento, que o levou...

Levasse ao acaso o seu amor...

1913

 

Manuscritos

 

Soneto

Olhas que és céu e mágico infinito

Orando sempre e sempre a recordar

Essa visão de amor que amei aflito

Antes da sombra errante do luar

Hora em a luz orando, eu vou contrito

Galgar além para também orar,

Para que a luz do luar beije o granito

E beije o rastro azul de seu andar!

E morrerei orando neste monte

Com o olhar para a baixa-mar,

Para que as ondas meu amor vos conte

Cantando essa elegia de oceano...

E são as sete-estrelas a brilhar

As sete chagas do meu puro engano!...

Rio, 1913

 

Paisagem da sombra

Oh! Almas que habitais entristecidas

O luar de uma noite d'além-céu

Vindes ouvir estranhas comovidas

Canções a idealizar um novo Orfeu

Cada árvore é corpo de luz viva

Sombra que em alma mística s'alumbra,

E antes do dia é forma primitiva

Do espírito selvático em penumbra

A penumbra é paisagem em névoa oculta,

Lume de ignoto espírito divino,

Que uma aragem da luz mágica avulta...

Como as coisas ao vir da lua cheia

Pelo silêncio como um violino...

Que se afastasse para alguém que anseia!...

5-11-1913

 

Canção das pedras

Embrandecei pedras duras

À luz da lua, no outono,

Quando tudo é só saudade

D'um coração ao abandono!...

Quando tudo é só doçura

E noite peninsular,

Quando ao longe, muito longe,

Choram guitarras ao mar.

E noites, onde marujos

Cantaram à luz do luar:

Saudosos da sua terra

Nas plagas além do mar.

Embrandecei pedras duras!

Abri os olhos ceguinhos...

Com que alegria as verei.

Estrelas, na noite escura!

A luz da lua no outono,

Quando alguém canta magoado

Cantigas de amor passado

Alta noite... Ao abandono!...

8-9-1913

 

Velhice interior

Minha ledice é como uma moléstia estranha,

Inverno, vento norte, vozes do entardecer;

Eu sei que um mal qualquer dentro de mim se entranha

Embora eu sinta, enfim, vontade de viver.

Já ensejei senhor o cimo da montanha,

Um coração que parte outro logo a sofrer,

Tudo quanto se vai nesta horrenda campanha,

Neste estéril lutar, neste aziago viver...

A fadiga abateu-me e em névoa o que ainda existe

De divino e sublime é unicamente a sombra

D'um sol crepuscular ou d'um espírito triste...

De mim há de nascer o sonho do amanhã,

Neste prolongamento hibernal, que me assombra

D'um outono vermelho aos beijos de Satã!...

21-11-1911

 

Lá!

Lá é onde toda alma se acentua

E se difundem espirituais quimeras,

E se transmudam as almas de panteras

Em estrelas de amor por branca lua!

Lá, tem alguém! Que assim nos insinua

Para amar e viver nessas esferas...

Onde temos visões de primaveras

E galeras de amor para a alma sua.

Lá viverás feliz, tranquilamente

Amanhece a existência num poente

De sombras e emoções a vida estranha!

Viverás nesta luz calma e erradia,

Onde nada se sente e o próprio dia

Faz-se sentir nas sombras da montanha!