Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Verbo solto, de Maura de Senna


Texto-fonte:

Maura de Senna Pereira, Verbo solto,

Rio de Janeiro: Livraria Kosmos, 1982.

SUMÁRIO

Santa Catarina, minha terra  

Anita: primeiros passos de sua glória   

Voltando da cidade natal  

Os 120 anos do livro "Babicka"  

O poeta que pinta o cosmo

Lacerda Coutinho — humanista e poeta 

Remembranças  

Durante longo período, nesta cidade de São Sebas­tião do Rio de Janeiro, onde tenho passado a maior parte de minha vida, trabalhei principalmente como jornalista (atividade de que resultaram dois livros) e comunicado­ra. Referindo-se a essa fase na página que me dedicou em sua obra "A Literatura de Santa Catarina" (Editora Lunardelli, 1979), o professor Celestino Sachet, atual presidente da Academia Catarinense de Letras, chamou-a também de "intensa Realmente, como diretora do De­partamento Cultural do Centro Catarinense na inesque­cível gestão do Dr. Max Tavares d'Amaral e, outras ve­zes, por iniciativa própria ou a convite de amigos e enti­dades, organizei cursos, reuniões comemorativas, confe­rências, horas de arte, focalizando quase sempre velhos e novos valores de meu Estado natal.

Locais, entre outros: Centro Catarinense, PEN Clube do Brasil, Associação Brasileira de Relações Humanas, Auditório do MEC, Federação das Academias de Letras, Clube de Interesses Femininos, Academia Carioca de Le­tras, Salão de Arte Marita Pinheiro Machado. Nessas ocasiões, que tiveram sempre simpática repercussão, mui­tas vezes falei: apresentando oradores e artistas, enfatizando o significado dos temas abordados ou eu mesma sobre eles discorrendo. Poucos textos foram escritos ou gravados e é apenas uma parte deles que aparece neste pequeno volume — com o intuito de re-homenagear figu­ras e fatos, de lembrar uma fase de labor constante e, por tudo isso, embora modesto, de prender algo daquele verbo solto...

MSP

Para  ALMEIDA COUSIN

— amado meu e meu maior incentivador  —

e a todos os que

me prestigiaram

e me ajudaram

com o seu apoio,

sua valiosa participação,

seu amigo e generoso aplauso

 

Santa Catarina, minha terra

Estar no verdor dos anos, trazendo ainda a franja da adolescência; passear os primeiros sonhos pelas mesmas ruas estreitas e líricas que haviam conhecido os passos de Cruz e Sousa; publicar os primeiros escritos nas pe­quenas folhas da terra não ter outro valor senão o da autenticidade e ser de chofre visitada pela notícia de que tivera o nome apresentado e unanimemente aceito na Academia Catarinense de Letras — eis o que me cumpre desde logo evocar, pois tais fatos constituem a gênese desta tarde. Enfatizo a iniciativa da entidade barriga-ver­de; e o ter ela, que congregava os valores estaduais, buscado pela primeira vez uma pessoa do "segundo sexo" — logrou na época enorme repercussão. Lembrarei, pois, aquela noite em que, de cabelos longos soltos e longo vestido branco, pelo braço de Nereu Ramos e com flores ilhoas na mão, penetrei no salão repleto do Palácio da Assembleia Legislativa. Lá me aguardava o verbo de José Artur Boiteux (que fora grande amigo de meu pai), infla­mado como o de um cavaleiro andante, e lá tentei o elo­gio do patrono que para mim escolheram, inteiramente destoante da pequena recipiendária o grande Roberto Trompowsky, marechal, "scholar", matemático. Foi uma bela noite sem dúvida, mas, se a estou evocando, é por­que a ela se limitou a minha vida acadêmica.

Muito cedo me voltei, para sonhos e rumos que em­polgaram minha juventude ardente e, em breve, se esvaziava de élan o título que em verdade não cheguei a os­tentar. Minhas ausências da terra e os prolongados re­cessos do cenáculo contribuíram para que aquele meu posto não tivesse exercício. Mas, nesta espécie de ca­tarse, devo acrescentar que, sendo tão gregária e colo­cando acima de tudo no contexto da existência a cria­tura humana, não está para mim no mesmo plano de es­tima a forma associativa habitual — com estatutos, atas, compromissos. Eis por que, embora admirando a perti­nácia que mantém esta casa, apesar dos gentis convites que recebi de vários dos seus dirigentes, embora aqui tenha amigos diletos e esteja aqui o meu bem-amado, permaneci afastada deste preclaro enlaçamento de aca­demias estaduais.

Tal comportamento iria alterar-se quando Othon d'Eça, o alto prosador-poeta de "Homens e Algas", hoje desaparecido e então presidente e restaurador da Acade­mia Catarinense de Letras, ao insistir para que fizesse eu parte da delegação — onde já se encontravam ilustres conterrâneos — junto à Federação das Academias de Le­tras do Brasil, apelou para o meu amor à nossa terra ca­tarinense. Oh, a terra na qual me integrava, em versos dos tempos jovens, a ponto de, num ato de consubstan­ciação, me sentir carregada da sua seiva e do seu pólen; de em suas carnes (ou em meus chãos) nascerem as grumixamas que eu devorava e os brincos-de-princesa que pendiam das minhas orelhas. E em cujo peito joguei este dístico dos tempos maduros: abraçada ao universo / tendo as raízes em ti. Amor naturalmente centrado na Jurerê-mirim natal com seu halo de praias e de conchas. Lá onde o sol nasce nas águas da Lagoa da Conceição, bíblicas como de Genesareth, parecendo um deus resplandescente no primeiro dia da criação. E onde, ao fim da jornada, nos é dado o luminoso salário de ver os te­souros do rei Salomão entornados nos nossos poentes e estriados com aqueles fúlgidos lilases que fui buscar para os meus crepúsculos no País de Rosamor.

Não é, no entanto, em virtude apenas das belezas da­quela terra e daquele céu que pulsa o meu amor a Santa Catarina. Também de atos, vozes, ritmos, gestos que irromperam de tantos de seus filhos, forjando a maior porção de sua glória. Também de símbolos, eventos, nomes destinados à perenidade. Alguns citarei: Virgílio Várzea e Victor Meireles; Cruz e Sousa e Luiz Delfino; Lacerda Coutinho e Araújo Figueiredo; Jerônimo Coelho, que nos deu o primeiro jornal, e, na mesma importante faixa, os nomes exponenciais de Gustavo Lacerda, fun­dador da Associação Brasileira de Imprensa, de Oscar Rosas, Lucas Bainha, José Johanny, Martinho Calado, Joe Collaço, Crispim Mira, Diniz Júnior, Rubens de Arruda Ramos; os historiadores Almeida Coelho, Paulo José Mi­guel de Brito, Afonso de Taunay, general José Vieira da Rosa e os laboriosos e íntegros irmãos Boiteux; a sábia jurisprudência do conselheiro Manoel da Silva Mafra; as vozes humildes de Marcelino Antônio Dutra, o poeta do brejo, e João Rosa Júnior, o poeta cego; o verbo do Arcipreste Paiva, de Edmundo da Luz Pinto e, entre outras incomuns eloquências, a de um rapaz genial chamado Helio Régis, que morreu aos vinte anos; o polígrafo Henrique Fontes, para quem eu gostava de me firmar como a sempre discípula; o regionalista Tito Carvalho, que foi ao mesmo tempo um dos nossos mais completos homens de imprensa; os eminentes estadistas, entre os quais Adolfo Konder, que trouxe um sopro renovador ao assu­mir o governo do Estado, prestigiando os valores que surgiam e erguendo a bandeira do catarinensismo; Lauro Müller, que se projetou no cenário político nacional du­rante as primeiras décadas republicanas, e Nereu Ramos, que iniciou, em 1930, a ascensão que o levaria, em hora histórica do Brasil, à presidência da República; todos os que lutaram e sofreram pela justiça e pela liberdade e — ai! — o sangue de duzentos fuzilados pingando na ilha de Anhatomirim.

Lista-síntese que poderia bastar pela força dos no­mes e dos significados. Contudo, não posso esquecer os não catarinenses que o foram entranhadamente, a todos reverenciando nos que Santa Catarina ainda pranteia — o arcebispo Joaquim Domingues de Oliveira, que durante meio século escreveu e pregou em língua clássica, e o governador Jorge Lacerda, que teve nos atos e nas pa­lavras a marca dos tempos novos — e em Horácio Nunes Pires e José Brazilício de Souza, que compuseram o Hino do Estado, cálido e humanista, exprimindo os melhores arroubos da alma do nosso povo em estrofes como esta:

Não mais diferenças de sangues e raças

Não mais regalias sem termo, fatais.

A força está toda do povo nas massas.

Irmãos somos todos e todos iguais!

Impossível tampouco esquecer os vultos femininos, tanto mais que, ao recordá-los, surge logo a maior figura da história barriga-verde: Anita Garibaldi, que há pouco voltou à Laguna do seu berço no bronze de Antônio Ca­ringi e lá está bela e jovem como era há mais de cem anos, quando partiu para a luta e para o amor. Surge, em seguida, Amália Bainha, a heroína do mar, enquanto no território da poesia se derramam os versos de Delminda Silveira, que foi também uma espécie de heroína na aqui­sição de sua cultura, no dedilhar de sua lira. Delminda, a dos "Lises e Martírios" e "Passos Dolorosos", a quem conheci nos últimos anos de sua vida e que teve para mim ternuras de fada. Sua voz e a da misteriosa Semí­ramis com seus cantos assíduos nas páginas ilustres do "Sul-Americano". Quem era ela? Foi só quando a fonte silenciou que tiveram todos a resposta. Era Maria Caro­lina Corcoroca de Souza, esposa daquele mesmo José Brazilício, o dos muitos talentos, que musicou nosso vi­brante "hino de estrelas e flores" e foi mestre da mais adorável e adorada Scheherazade, minha mãe, e daquele que seria o exemplaríssimo professor Senna Pereira, meu pai.

Chego, assim, aos vivos de várias gerações — desde a de meus fulgurantes mestres até à novíssima. Chego aos valores que lá pontificam e aos tantos que transpu­seram as fronteiras e estão brilhando na literatura e nas artes nacionais, no mundo jurídico, na esfera das pes­quisas, no púlpito e na cátedra ou, em setores vários, par­ticipando das lutas e das esperanças do Brasil.

Certo é que a estas facetas devo restringir-me, não me cabendo, aqui, ressaltar as mãos que impulsionam o estadual progresso — no fundo das minas, no alto das serras, em planuras e vales, em glebas e mares. Mas como excluir aquelas cujo labor desfolha poesia, borbu­lha folclore? Comparecem, por isso, as que modelam os lindos e rústicos objetos de palha e de cerâmica, ven­do-se, entre os últimos, os que reconstituem, na magia do barro trabalhado, as figuras todas do nosso boi-de-­mamão, um dos autos populares mais ricos e movimen­tados de todo o País. E as prodigiosas mãos femininas que, de fios e de bilros, fazem surgir o claro poema que as avós açorianas ensinaram a tecer. Beleza de marga­ridas, estrelas, favos, trepadeiras, de múltiplos desenhos, de entrelaçados pontos — naquelas alvas peças, naquele tesouro branco. Que elas criam — cada vez mais pobres e cantando as trovas mais ternas do nosso litoral. Eis uma delas:

Inveja só posso ter

Da luz clara do luar

Que faz rendas tão bonitas

Com a branca espuma do mar.

Neste apenas esguio recorte, eu quero, como as ren­deiras, exaltar o grandioso e saúdo o mural que em breve começaremos a apreciar no primeiro volume da "Enci­clopédia Catarinense", trabalho gigantesco que está rea­lizando o almirante Carlos da Silveira Carneiro. Beirando a pré-história e o porvir abarcará ele Santa Catarina na sua totalidade.

Santa Catarina, minha terra, em que estou presa como uma planta e à qual devo a honra desta hora. Não importa que, depois de vários anos meu nome aqui figu­rar, só hoje eu viesse tomar posse. O que importa é vermos a Academia Catarinense, presidida pelo admirá­vel ensaísta Nereu Corrêa, entrar numa fase rasgadamente moderna — promovendo concursos, realizando currículos, acendendo debates, publicando cadernos. O que importa é sabermos que tal espírito renovador coincide com os propósitos do nosso fidalgo e ilustre presidente Cumplido Sant'Anna. O que importa é estar sendo tão eu mesma em ambiente acadêmico.

Tempo de agradecer, agora, à Federação das Aca­demias de Letras do Brasil a oração que vai proferir o acadêmico Pizarro Drummond. Suas palavras ainda mais me desvanecem porque, sobre serem a voz desta casa, partem de alguém que, entre outros títulos, é autor de livros primorosos pelo estilo, pela temática, pela interpre­tação e que, jovem juiz, está honrando a carreira que tem como ápice, no Brasil deste momento, um grande cata­rinense, o ministro Luiz Gallotti, presidente do Supremo Tribunal Federal.

Tempo de agradecer a homenagem do belíssimo cur­so de Regina Lúcia Pimentel através de várias de suas alunas. Alunas radiosas que vão emprestar beleza a ver­sos meus de vários períodos.

Tempo de agradecer esta esplêndida medalha, atada nas cores da bandeira catarinense, que deixou para en­tregar neste ato o representante oficial da nossa Acade­mia, escritor Almiro Caldeira. Escritor, quero frisar, que está utilizando com brilho, na sua excelente obra ficcional, episódios da nossa história ilhoa. Estas insígnias e as expressões com que as entregou o autor de "Ao Encon­tro da Manhã" — revigoram minha posição de delegada de Santa Catarina e meu intento de bem e sempre pro­jetá-la. Que eu evoque, pois, neste momento, suas gló­rias mais inspiradoras: um cisne negro e uma rosa ma­tuta — o poeta emparedado e a musa da liberdade. Aque­le cujos Broquéis, Faróis, Evocações, últimos Sonetos, de­ram ao mundo um dos seus maiores simbolistas. E aquela cujo próximo sesquicentenário eu quisera que trouxesse o frêmito dos seus ideais ao coração de todas as gentes. Um negro e uma matuta, repito, para concluir com os no­mes altíssimos de Cruz e Sousa e de Anita Garibaldi.

(Discurso pronunciado a 2 de dezembro de 1961 — em sessão realizada no auditório do PEN Clube, à Avenida Nilo Peçanha, 26, 13° andar).

 

Anita: primeiros passos de sua glória

Municipal da Laguna, a cidade Juliana. Em artigo inti­tulado "Anita e a República", que escrevi há vários anos em "A Gazeta", de Florianópolis, frisei eu no tópico final: "Se outros fatores, portanto, não houvessem para que a República Catarinense fosse festejada como um dos nos­sos maiores acontecimentos históricos, bastaria este, pelo colorido romântico e pela expressão revolucionária: Ana de Jesus Ribeiro seguindo o belo corsário mazzinista, in­tegrando-se nos seus ideais e a seu lado participando de lutas que foram etapas do "pugilato milenar entre o cativeiro e a liberdade".

O encontro

O belo corsário era Giuseppe Garibaldi, partidário de Mazzini, o teórico do liberalismo italiano; era Garibaldi, condenado a morte em sua terra, proscrito cheio de bra­vura e élan que, refugiando-se no Brasil, se tornara o che­fe da esquadra farroupilha. Descrevendo-o, diz Brasil Gerson: "Era belo e forte como um atleta e as melenas alouradas, caindo-lhe até os ombros, davam-lhe a mais romântica das aparências".

Vitorioso em águas lagunenses, ei-lo agora, no barco capitânea, observando com um óculo de alcance asses­tado para uma elevação chamada Barra, o vulto airoso e jovem de uma filha da terra. Encantado, toma um bote e tenta aproximar-se. E o primeiro encontro acontece na própria casa da moça encantadora: por sua vez, casada sem amor havia quatro anos, vivia constantemente pen­sando no marujo carregado de magnetismo que, a bordo do pequeno Seival, combatera e derrotara os navios im­periais.

Estáticos e silenciosos nos olhávamos mutuamente, como se já nos tivéssemos conhecido antes... Cumpri­mentando-a por fim, dizia-lhe: "Tu devi esser mia" — conta Garibaldi em suas "Memórias". Anita trazia então os pés morenos descalços e vestido de ganga azul, numa visão comovedora de pobreza e de poesia. E aquelas pa­lavras ousadas, longe de a ofenderem, deslumbraram-na, pois foi só então que se sentiu noiva, pedida em casa­mento, convidada para as verdadeiras núpcias de sua vida. Ninguém sabe como se desenrolou o romance após aquela súbita e mútua constatação de que um achara no outro o seu par na terra. O que se sabe é que, rom­pendo laços sem sentido para seu bravo e digno coração, Anita manifestou a força de sua personalidade e, desa­fiando preconceitos que deveriam ser ferozes há cento e tantos anos, realizou o seu primeiro heroísmo. E, a 14 de outubro, deixava a sua casa sem crianças, o marido ébrio, o burgo atônito e, ao lado do seu herói, chegava a bordo do Rio Pardo. Eram os primeiros passos na gran­diosa carreira de Anita Garibaldi.

O marinheiro

Esse mesmo Rio Pardo (capitânea), o histórico Seival e o Caçapava rumaram a 20 de outubro para Santos, pois o almirante farrapo recebera ordem de fazer o corso aos barcos de cabotagem. Estranho cruzeiro em que Anita, no entanto, era uma desposada feliz vendo seu bravo marujo fazer presas e, ao mesmo tempo, sofrer a implacável perseguição dos barcos imperiais. Persegui­ção que leva Garibaldi a buscar abrigo na enseada de Imbituba, onde se prepara para o combate, construindo, também em terra, uma trincheira.

De carabina em punho, ao lado do marido, Anita inaugura a sua vida de guerreira "No mais aceso dos combates narra o historiador Henrique Boiteux na sua primorosa biografia "Anita Garibaldi" — eis que, de re­pente, certeira bala, dando de encontro à amurada do Rio Pardo, fá-la em estilhaços, um dos quais arroja Anita ao convés e com ela dois marinheiros que ficaram esten­didos mortos. Ouviu-se um grito geral, precipitando-se todos para erguê-la; antes, porém, que a acudissem, lé­pida levantou-se tinta de sangue dos seus companheiros e seu único pensamento foi o de fazer novo apelo à bra­vura dos combatentes. Instada por todos e muito prin­cipalmente por Garibaldi para que se recolhesse à co­berta, respondeu: "Sim, descerei, mas para buscar os covardes que lá se foram esconder." Diante de tanto des­prendimento, de tanto heroísmo, não mais insistiu Gari­baldi: entregou-a a seu destino.

E o seu destino de marinheiro da República foi lutar durante todo aquele dia tremendo, 4 de novembro de 1839, até à retirada dos navios atacantes e prosseguir lutando na histórica batalha naval da Laguna, a 15 de novembro, que terminou com a derrota da esquadrilha far­rapa e da República Juliana, precisamente cinquenta anos antes da proclamação da República no Brasil.

Como vou, apenas, situar Anita e apresentar em síntese os lances de sua bravura, recordarei que, para enfrentar os treze navios fortemente guarnecidos do ca­pitão-de-mar-e-guerra Frederico Mariath, Garibaldi colo­cara em semicírculo seus poucos barcos e lanchas. E preparou-se para o combate desigual em que se bate­ram com tanto heroísmo os defensores da República Catarinense, a começar por Anita. Esta, antes de ter início a grande batalha, deixara-a Garibaldi como coman­dante do Rio Pardo, enquanto ia ele inspecionar as ba­terias de terra e observar os movimentos da esquadra inimiga. E a batalha se inicia antes de seu regresso ao barco. E é Anita quem responde ao fogo do inimigo, para ele voltando, com sua admirável presença de espírito e seu destemor, o canhão do Rio Pardo.

Naquele aceso combate, Garibaldi procura salvar a companheira e, no intuito de afastá-la da luta, manda-a a Canabarro, pedindo reforços e ordenando-lhe que fi­casse em terra. Com aquela ligeireza de gazela, de que fala Garibaldi em suas "Memórias", tomou Anita um bote e foi cumprir sua missão. Mas não ficou em terra. Não mandou nenhum mensageiro com a resposta do general. Levou-a ela em pessoa. E a resposta era uma negativa: não havia reforços. E uma ordem: a retirada, salvando armamentos e munições. E, como todos os oficiais, com exceção do comandante-em-chefe, haviam sido mortos na sangrenta batalha, coube a Anita realizar o transporte, enquanto Garibaldi incendiava os navios.

"Quando acabei a minha obra de destruição — re­corda ele — Anita havia também concluído a sua de sal­vação. Porém de que maneira, ó meu Deus! Ela não fez menos de vinte viagens, passando constantemente sob o fogo do inimigo. Em pé, à popa, no meio da metralha, aparecia firme, calma e altiva como uma estátua de Palas e Deus, que estendia uma sua mão sobre mim, a prote­gia ao mesmo tempo com a sombra dessa mão."

A fuga

Após a derrota, a retirada. A coluna a que pertencia Garibaldi empreende a áspera subida da serra com o pro­pósito de alcançar Lajes, que caíra de novo em poder dos republicanos. Dois combates se travam com as forças legais. No de Santa Vitória, a 14 de dezembro, ganharam os revolucionários. Dele Anita não participou como com­batente. Foi enfermeira, anjo, bálsamo, inspiração, cui­dando dos feridos, animando em seus rudes combates aqueles bravios centauros serranos. O segundo ocorreu no Campo das Forquilhas, já a 12 de janeiro de 1840, e nele os rebeldes foram derrotados. Anita comandava uma guarda conduzindo munições, quando é cercada de surpresa por um esquadrão inimigo. Não se rende, porém, nem tampouco foge à luta. Uma bala atravessa-lhe o cha­péu e leva um cacho dos seus belos cabelos. Outra bala abate-lhe o cavalo. E só aí ela cai prisioneira. Mas nunca subiu tão alto.

Corria, no acampamento, a notícia de que Garibaldi morrera em combate. Então, a altiva prisioneira pede permissão para ir ao campo de batalha, juncado de ca­dáveres. Era noite e ei-la com uma tocha na mão, es­piando um a um o rosto dos mortos. Devia ter a face transtornada, parecer uma figura de tragédia grega, lem­brar Antígone à procura do cadáver do irmão. E, após a busca macabra, uma certeza: seu guerreiro louro havia escapado. E um pensamento: ir-lhe ao encontro.

Anita empreendeu então sua fuga epopeica, forjando um dos momentos mais altos do heroísmo humano. De­pois de rastejar, de colar-se como uma sombra ao tronco dos pinheiros, descobre uma casa onde é acolhida e onde consegue um cavalo para sua marcha de vinte léguas, que tal foi a distância percorrida de Curitibanos a Lajes, en­tre perigos e tempestades, com o primeiro filho do amor lhe palpitando nas entranhas, pela extraordinária valquíria catarinense.

Mulher e presença

Tendo tido sempre o encanto supremo da juventude, pois que morreu aos trinta anos incompletos, teve tam­bém Anita os encantos todos da feminilidade: foi mulher ardentemente apaixonada, verdadeira mãe, dona de gran­des olhos luminosos, de um talhe delicado e harmonioso, de uma graça agreste de bonina e de negras madeixas que, desatando-se no ardor dos combates, fascinavam o próprio inimigo. Tudo isso, além de completas prendas domésticas. Quanto a estas, em companhia de Garibaldi só lhe foi dado manifestar totalmente nos tempos de Montevidéu, no lar da Rua do Portão, onde criou seus meninos, cozinhou e varreu e onde, para ajudar a manter uma casa em que tantas vezes faltou lume — fez rendas e crivos, claros poemas de fios de luar, magos e brancos como os sabem tecer as mãos de fada das rendeiras catarinenses.

É, portanto, um ser maravilhosamente feminino que vemos manifestar uma coragem de que só é capaz o mais bravo dos homens e, ao mesmo tempo, vemos a co­ragem de Anita irromper do amor e voltar-se contra a tirania nos dois hemisférios, tornando-se fonte perene de inspiração.

Por isso não posso imaginar a heroína parada no tempo em toda a sua glória, mas estendendo pelas ida­des a sua poderosa presença, sempre ao lado, sempre companheira de todo aquele que, em qualquer lugar e em qualquer época, luta e sofre pela justiça, pelo huma­nismo e pela liberdade.

(Uma das várias palestras que a autora proferiu no Centro Catarinense. "Anita: primeiros passos de sua glória" foi repe­tida, a pedido, na Associação Brasileira de Relações Humanas).

Voltando da cidade natal

Depois de algum tempo de ausência, volto a Flo­rianópolis precisamente neste ano do tricentenário de sua fundação e do sesquicentenário de sua vida de cidade. Talvez fosse por isso que os novos arranha-céus me pare­ceram um halo comemorativo. O crescimento vertical que eles significam e as avenidas que se abrem, formando um apreciável binômio de expansão, alteram sem dúvida — sem lhe deformar a beleza, no entanto — a face terna e plácida que teve até há pouco a cidade onde nasci. E o coração algo se aperta, mas só um momento. O se­guinte é para compreender e saudar, pois era apenas esse tônus de urbe moderna que estava faltando para que Florianópolis — localizada na maravilhosa Ilha de Santa Catarina e culta capital de um Estado adiantadís­simo — pudesse assumir, em toda a plenitude, a sua des­tinação de metrópole.

Se, nos meus verdes anos, lá residindo e trabalhando, pude colaborar no progresso intelectual da terra catari­nense, longe dela não tenho cessado de cantar-lhe o meu amor. É a minha glória simples a não alienação, a participação contínua, embora ausente. Por isso, quando, na Academia Catarinense de Letras, fui saudada pelos queridos confrades Nereu Corrêa, que a renovou, e Theo­baldo Costa Jamundá, seu secretário-geral e presidente do Conselho Estadual de Cultura, não sei o que mais me comoveu: se as pétalas (azuis?) que ambos jogaram sobre a Maura em flor do "Cântaro de Ternura" ou se o haverem ressaltado a minha constante fidelidade à terra natal. (A respeito daquele primeiro livro, Almeida Cousin, na mesma tarde saudado pelo admirável contista Holde­demar de Menezes, presidente em exercício da Academia revelou que, por ocasião do seu aparecimento, estrea­va ele, em Vitória, com a epopeia "Itamonte" e que, trocados os livros, vieram as primeiras cartas ligando em ponto lírico as duas ilhas. Publicando nota sobre o fato, "Jornal de Letras" intitulou-a "A ponte".).

Emoção semelhante eu teria ao ver transmitida a entrevista que concedi à TV Cultura, a convite de Darcy Lopes, seu dinâmico diretor-presidente e seu fundador — após muitos anos de sonho tenaz, pertinácia, sacri­fício. E catarinensismo, para usar a feliz expressão que me parece criada pelo grande e saudoso estadista Adol­fo Konder. Durante a entrevista, a oportunidade de co­nhecer os dignos companheiros de Darcy Lopes na dire­ção da TV Cultura, os ágeis repórteres e apresentadores e as magníficas instalações na Rua Bocaiuva e no morro da Cruz — e, lá do alto, contemplar em todo o seu es­plendor a cidade que é três vezes centenária.

Florianópolis. Que poderia ser Ondina, como queria o nosso inolvidável marinhista Virgílio Várzea e que — desde sua fundação pelo paulista Dias Velho até os pri­meiros anos da República, quando meus pais eram crian­ças e meu bisavô Régis estava escondido em consequên­cia da revolta de 93 — se chamou Nossa Senhora do Desterro.

Sob o antigo nome, ganhou ela monumento através da recente e notável obra do Dr. Oswaldo Rodrigues Ca­bral. Na residência do historiador e sua esposa (e inteligente colaboradora em muitas pesquisas), rodeada de jardins e bosques onde vimos correr o pequeno e encan­tador Alexandre, a quem a obra é dedicada, eu e meu marido fomos brindados com os quatro volumes de "Nos­sa Senhora do Desterro". E o receber tal presente em 73 — embora a data do lançamento seja anterior — teve para mim um sentido de celebração. Neles, cada capítulo abordando um assunto, flui a história da ilhoa vida, fi­xando costumes e fatos, estabelecendo situações e cote­jos, ressuscitando gente, pingando autenticidade. Resul­tado de profunda erudição e de trinta anos de minuciosas pesquisas para que tivéssemos retratos desterrenses de todos os tempos, o novo trabalho de Oswaldo Cabral en­riquece a vasta bibliografia do autor, a literatura cata­rinense e a cultura brasileira. É história e é crônica. Crô­nica lúdica, pitoresca, luminosa. Aliás, desde o longo subtítulo barroco e a declaração, ainda na capa, de que fora a obra publicada "com todas as licenças necessá­rias, isto é: nenhumas", até às últimas páginas, que fixam os últimos dias em que a depois Florianópolis se chamou Desterro, o ilustre mestre é sempre o humanista jovial que todos admiram.

Lembro que, ao final da tarde inesquecível, quando deixamos a bela casa da Rua Esteves Júnior, não vimos o inigualável poente ilhéu, onde mil pedrarias se derra­mam. Em compensação, carregávamos um tesouro con­centrado em mil páginas — que estou saudando já em tempo, de Natal, mas ainda dentro deste ano comemora­tivo.

(Palavras ditas em reunião cultural do Centro Cata­rinense e publicadas na "Tribuna da Imprensa" de 19-12-1973).

 

Os 120 anos do livro "Babicka".

A celebração dos 120 anos do livro "Babicka", da escritora tcheca Bozena Nemcová, inspirado na figura humilde e luminosa de sua avó materna, justifica esta reunião, que se realiza, muito apropriadamente, no Centro Brasileiro da Associação Mundial de Escritores e ainda no Ano Internacional da Mulher. O livro universalizou-se, porque traduzido em numerosas línguas — e é "livro imor­redouro" e "documento artístico de valor quase inexce­dível", como diz Antônio Houaiss no prefácio da edição brasileira.

Bozena Nemcová, de pai austríaco e mãe tcheca, nasceu em Viena a 4 de fevereiro de 1820. Andava pelos seis meses quando a pequena família foi residir num vale poético do norte da Boêmia, pois seu pai entrou para o serviço dos senhores da região, um ducado feudal. A morada da família era uma casa isolada, a Velha Lavan­deria. Aí passou a infância e parte da juventude e foi naquele cenário paradisíaco — talvez à sombra da gran­de tília do jardim, onde sua avó fiava no verão, e certa­mente sob as mesmas montanhas dos Gigantes que vi­ram crescer a sonhadora Panklová, que tal era seu so­brenome de solteira, ou Barunka, como aparece no livro, ou Babette, como era chamada em casa — que Bozena Nemcová escreveu, em 1855 o romance que é a sua obra máxima: Babicka.

Pelo relato do livro, contava um lustro vida — era ela a mais velha de quatro irmãos — quando sua avó materna, Magdalena Novotná, analfabeta e sábia, veio morar com eles. E foi como se uma fada tivesse chegado — com suas vestes aldeãs, suas toucas engomadas, seu baú pintado de flores e de pássaros, onde, entre outros preciosos guardados, havia aquele avental que tinha a mesma idade da avó, aquele colar de cinco voltas de granadas, que ela recebera do marido no dia do casa­mento, e o escudo que o próprio imperador José, que amava perambular incógnito, dera, tantos anos antes, à então Magda juveníssima. Um mar de estórias foi che­gando aos poucos ao conhecimento dos meninos, que ficaram logo cativos da avó, e bem assim os rifões em­pregados na hora exata, as ternuras e os conselhos par­tidos de um coração cheio de amor e de lábios que en­sinavam a valorizar cada momento da vida.

Não tardou muito e a avó, acostumada ao labor, co­meçou a dirigir a casa, mesmo porque sua filha também trabalhava no castelo. E "de tempos em tempos" — se­gundo conta a escritora "fazia com as crianças lon­gos passeios: ora à casa do couteiro, ora ao moinho; ou então iam para a floresta, onde os pássaros entoavam belos cantos, onde sob as árvores se viam doces traves­seiros de musgo, onde cresciam junquilhos perfumados, prímulas, cravos, anêmonas, tufos de loureiros e os belos lírios agrestes". Nesses passeios — as crianças talvez seguindo, encantadas, as corças e os esquilos ou colhendo morangos, flores, cerejas — muitas vezes o grupo encontrava a figura patética de Viktorka, os pés descalços, os olhos brilhando como "carvões acesos", os ca­belos pretos espalhados, sem falar nunca e a avó tendo sempre a respeito dela uma doce palavra de compai­xão. Raras outras, quando convidados e em dominguei­ros trajes, iam os cinco visitar a poderosa castelã (sem­pre designada como "senhora princesa" e, em verdade, a duquesa de Couriande) que respeitava e admirava pro­fundamente tudo quanto dizia a velha camponesa. Assim decorreram os verdes anos da escritora. E não é de admirar que tivesse sido aquela grande mulher simples, em cujo quarto dormia, que lhe dava a bênção cada ma­nhã, cujas palavras soube guardar como um legado, cujas histórias de anjos resplandecentes, de princesas com es­trelas de ouro na testa foram o primeiro toque recebido pela futura ficcionista — a sua maior e mais entranhada influência.

Aos 17 anos, casou-se Bozena com um austero bu­rocrata, Josef Nemec, e teve quatro filhos. União infe­liz, mãe amorosa, vida marcada de lutas e de golpes, Mas, sempre heroica, escreveria mais tarde a um de seus filhos: "Em minha vida, experimentei muitas dores e amar­gas decepções. Já me encontrei à beira do desespero, mas jamais perdi minha fé e meu amor pela humanidade".

"Depois do nascimento do seu quarto filho — es­creve Milena Novakova, presidente da Sociedade de Ami­gos de Bozena Nemcová — ela conseguiu instalar-se em Praga. Foi assim que, aos 22 anos, se encontrou na com­panhia de escritores e sábios animados de um ardente patriotismo, que descobriram seus dons intelectuais e a incitaram a escrever. Ela começou pela poesia, passou a narrar em prosa as lendas nacionais e tornou-se logo uma mulher de letras de reconhecido talento."

Pelo que tenho pesquisado, além de "Babicka", es­creveu, Bozena Nemcavá, entre outros e sem contar os abundantes trabalhos publicados nos jornais, os seguintes livros: "O Senhor Professor", onde se modela uma figura ideal de mestre; "Contos e Lendas Eslovenas" e o romance "Aldeia de Montanha", onde ela prega, como o fazia em numerosos artigos, a afirmação da mulher como pessoa humana e sua "participação direta na edi­ficação do mundo". Uma pioneira, portanto. Louvo-me, para tal conclusão, no ensaio que escreveu em 1940 sobre "Bozena Nemcová Lutadora" — outro grande vulto das letras tchecas, Julius Fucik, assassinado pelos nazistas e autor de "Testamento sob a Forca".

Sofrendo perseguições do poder austro-húngaro pela sua posição no movimento irredentista nacional e que enfren­tando privações, sacrifícios, enfermidades, dores que culminaram com a perda do amado Hynek, seu filho mais velho, refugiou-se no maravilhoso vale da sua infância e, buscando talvez o consolo de revivê-la, escreveu "Babicka". Quer dizer: forjou um dos livros mais admiráveis da literatura universal, mais ricos de aspectos e de qua­dros, romântico e realista a um tempo, magistralmente preso à terra e às raízes.

A grande escritora faleceu em Praga a 21 de janeiro de 1862, e foi chorada pelo povo e pela intelligentzia, celebrada pelos tribunos e pelos poetas. Por ocasião do centenário de sua morte, entre outras homenagens, a pátria tcheca já lhe havia erguido um monumento e dado seu nome a uma sala no museu de literatura nacional, em Praga, e já "Babicka" era lido em 52 línguas, como declara a mencionada biógrafa. Pode, pois, o nome glorioso da Nemcová ecoar na 11ª Assembleia da UNESCO — através do ardente discurso que, sobre a data, pronunciou o Dr. Adolfo Hoffmeister. Trechos dessa oração que li em publicação europeia, tive a iniciativa de traduzir e apresentar em minha coluna "Nós e o Mun­do", de "Gazeta de Notícias", o tradicional matutino que está festejando o seu centenário.

Agora, chegou a vez de exaltar a realização de "Edi­ções O Cruzeiro" publicando em 1958, na sua coleção Romances Eternos, a tradução de "Babicka", feita da célebre versão francesa de Thiérot, que data de 1900. Ruth Saltes traduziu "La Grand'Mère" e "A Avó" traz prefácio do nosso eminente Antônio Houaiss, que situa a obra como "um marco miliário importante na evolução e caracterização da prosa tcheca".

Torno a confessar que o livro me empolgou inteira­mente com sua beleza, sua autenticidade, sua estonteante riqueza folclórica. Classificado como romance, contém vários romances. Entre eles: o da avó, o de Kristla, a linda filha do dono do albergue, e a pungente tragédia de Viktorka.

Viktorka, a moça que era como uma rainha na sua aldeia e que perdeu o sossego depois que o soldado ne­gro passou a fixá-la e persegui-la. Que deixou noivo, pais, irmã, casa, fortuna e desapareceu para voltar um dia louca; morar anos e anos na floresta, abrigada numa gruta entre pinheiros; vagar, arisca e selvagem, com ra­malhetes nas mãos, com flores no vestido em andrajos; recusar tudo que lhe dessem (pois todos a amavam), exceto algum alimento, principalmente pão, que, nos dias gelados do inverno e deixando marcas vermelhas na neve, mendigava, batendo nas portas e estendendo a mão; e morrer fulminada por um raio em noite de tempestade.

Algum tempo depois de sua volta, viram-na sair do bosque banhada de luar, aproximar-se da barragem, jogar algu­ma coisa nas águas e desde então, pelo crepúsculo, ir ali cantar:

Dorme, filhinho, dorme.

fecha teus olhos e dorme.

Que Deus do céu te proteja

e teu anjo guarde e veja.

Dorme, filhinho, dorme.

Romance, biografia, memórias, folclore — foi o livro patrioticamente escrito na língua materna, assim contri­buindo para a consolidação da literatura tcheca. Muitos personagens nele se movem, mas a figura central é a velha avó, dona de segredos, rica de dons, pura, jovial e terna, que sabia amar e entender o semelhante, atrair o bem-querer da comunidade, cumprir com humilde gran­deza o difícil exercício de viver. Dir-se-ia que andara em universidades de bom-senso e, muito mais de um sé­culo antes de serem codificadas como disciplina, fizera cursos de relações humanas.

"A Avó", descrevendo os costumes de toda uma região através de uma série de quadros que pingam vida e poesia, apresenta inúmeras facetas para serem estuda­das: os profusos diálogos, a vida familiar, as peregrina­ções, as visitas, a exuberante flora, as estórias de amor, as danças, as lendas, as bordas, as múltiplas intervenções da avó para as soluções felizes dentro e fora do clã — e tantas outras, entre as quais a que me parece tudo representar: as festas, não as singulares, mas as coletivas e periódicas.

Elas intercalam-se por todo o volume e, reunidas, poderiam oferecer o próprio sumo do livro. Revestidas sempre pela magia das cores locais, abrangem o calen­dário de ponta a ponta, algumas parecendo coincidir com os equinócios e solstícios, numa comunhão da religião com a terra, da terra com o mito solar. Seu conteúdo mais fascinante está nas comemorações do inverno, que se iniciam quando a avó desperta os netos (e há aquele alvoroço) para anunciar a chegada de São Martinho, mon­tado no seu cavalo branco. (A neve já cobria com o seu manto o vale todo.) As estações são marcadas e rece­bidas ritualmente. Mudam os hábitos, as comidas. No inverno, desce a roca do sótão, chegam as limpadoras de penas à Velha Lavanderia e, enquanto "na lareira cre­pitava a lenha resinosa", estendem-se os animados se­rões das fiandeiras — com ervilhas assadas, peras cozi­das, ameixas, risos claros, estórias de assombrações. Erguem-se pela manhã os cânticos do Advento, entoados pela avó, e seguem-se as copiosas celebrações do Natal — onde não podia faltar o hóspede à mesa, nem a trom­beta do pastor — e as dos Reis Magos, estas sucedidas pelo "serão longo" e pela representação de Santa Doro­teia. Os festejos do carnaval com trenós e guizos — terminam com uma grande mascarada e são o epílogo do inverno. Novamente os cânticos da avó, na sua roca e vestida de luto, agora assinalando a Quaresma. E che­ga-se ao domingo florido de Ramos, à quinta-feira santa, único dia do ano em que eram feitos os deliciosos judas­-com-mel, ao sábado branco (Aleluia) e ao domingo da festa de Deus — com ovos tintos, o carneiro imolado e as rondas da Páscoa, entoadas pelas crianças. Já as andorinhas tinham regressado, já os dias se alongavam e, no limite de primavera e verão, vem as festas de Pentecostes, que a avó chama de "festas verdes", pois enfeita a casa toda de galhos de bétulas. A noite de São João é uma das mais significativas, porque é também come­moração onomástica, banquete doméstico. Mas o ponto romântico é quando a avó surpreende a jovem Kristla com as nove flores do ramo da sorte — e lembra-se de Mag­dalena em flor jogando a coroa, de costas, no alto de uma árvore. Depois vem agosto e começa a colheita na rural região. A festa dos segadores marcará o final da colheita do trigo.

O trigo e o pão. Para a avó o pão é algo sagrado. Sua feitura é um rito, seu modo de cortar deve ser certo. Com o sal simbólico, oferece-o às visitas. Dele nada é jogado fora: junta as migalhas e leva-as com fervor às aves, às formigas, aos peixes. E, quando prepara a me­renda para os netos, põe na cestinha de junco e nas sacolas de couro, ao lado dos frutos secos, uma verda­deira torta de pão, pois ocou, antes, um farto pedaço, revestiu-o de creme e adicionou toda a polpa do miolo. Para a avó, o pão é festa de cada dia, é bênção, é "dom de Deus".

Como se está vendo, tudo, neste livro, gravita em torno da figura extraordinária de Magdalena Novotná. Ele começa com a sua chegada à Velha Lavanderia, quando a caçulinha Adelka ainda era carregada no colo, e ter­mina no dia de sua morte. Nesse dia, os netos, já mo­ços, haviam voltado de diferentes pontos, um a um, para cercá-la com o culto da sua gratidão. "O vale inteiro chorou" e a senhora princesa, ao ver, da janela do cas­telo passar o longo cortejo, enquanto os sinos dobravam em honra da camponesa morta, exclamou comovida: "Foi uma. mulher feliz". O que ela não sabia, no entanto, é que a camponesa morta que fora uma mulher feliz — graças ao talento da sua pequena Babette, ia continuar a viver. E, identificada com o vulto bem-amado da duas ­vezes mãe, que todos temos ou tivemos um dia, a emo­cionar, em qualquer lugar e qualquer época, todo aquele que leia as páginas imortais de "Babicka", a Avó.

(Palestra publicada na revista "Convivência", órgão do PEN Clube do Brasil).

 

O poeta que pinta o cosmo

Conheci mais profundamente Ely Braga — consagra­do pela crítica e por um público fascinado — em plena fase superespacial. Mas o seu espaço já era colorido e não o pitagórico, onde apenas ressoa a música das esferas. Ele explodira como abstrato em 61 e, na sua ordenada inquietação, partira para novos caminhos e des­cobertas. Foi aí que me perdi em suas nebulosas, mun­dos, sóis, projetados — ou sugeridos — nas cores sober­bas que só ele é capaz de criar, sobre os matizados fundos em que se joga primeiramente o subconsciente do artista (pois este é o seu processo de criação) para, tendo forjado o espaço, nele compor a mensagem, nele divagar o poeta.

A diferença, na mostra de agora, é que parte do seu público fascinado — vi e admirei as telas antes de serem expostas. Ainda quentes das tintas mágicas, das mãos criadoras. Todas trazendo o timbre do caminho novo: o abstrato-figurativo, embora não inteiramente des­pojadas da estrutura espacial, dos arroubos cósmicos que marcaram, por longo tempo, a obra de Ely Braga.

Assim, entre os sete pássaros abstratos, um deles me pareceu um peixe nadando nos mares-ares da ampli­dão. O pássaro dourado é uma fulguração de amarelos, de manhãs. O denominado "orgia no espaço" é uma quase bacanal em branco e verde do trio esguio (do trio em cio?). Assim, o "reflexo de uma libertação", em fundo ouro-poente, e a "festa no céu", em lilases esgarçados sobre matizes azuis. Sempre o corte das amarras, o mo­vimento, a palpitação — em todas essas aves-barcos do infinito.

Beleza de arlequins com sugestões de balé — o so­litário em fundo vermelho, e os dois perdidos no espaço, verdes dançarinos no azul-piscina do céu.

Já "a grande senhora" — rosto e mãos em verde-ausência entre os rubros de um triângulo (corpo e saia de Madona ou árvore festiva de Natal?) — e "quando o branco é cenário de uma ruína" — este uma composição em branco e petróleo, lembrando desmoronamento, desin­tegração — talvez sejam as mais laboriosas telas do gran­de artista nos últimos tempos.

As quatro naturezas mortas são naturezas vivas e as mais figurativas da coleção: buquês de flor dentro de jarras, em cores superpostas, saltando em relevo, incon­fundíveis, perenes.

Tudo isso criado no estúdio de Ely Braga, o artista em sua belíssima cobertura, na companhia do silêncio e vizinhando com a paisagem tranquila e verde dos mor­ros e das árvores — enquanto, nas telas, explodem suas odes plásticas e seus pássaros desfilam no voo da li­bertação.

(Abrindo a exposição inaugurada a 28 de setembro de 1978, na Nouvelle Dezon — Galerie d'Art).

 

Lacerda Coutinho humanista e poeta

O Dr. José Cândido de Lacerda Coutinho(*) médico, poeta, professor, teatrólogo, articulista, poliglota, parlamentar, extraordinário latinista e um dos maiores eruditos de Santa Catarina em todos os tempos — nasceu em Nossa Senhora do Des­terro a 15 de dezembro de 1842. Na terra natal fez as primeiras letras e, com os jesuítas, cursou humanidades. Em 1862, veio para a Corte estudar medi­cina, mas, antes de terminar o seu brilhante curso, eis o jovem catarinense se notabilizando por duas atuações: tomou parte na Guerra do Paraguai como interno no hos­pital de Corrientes e publicou seu poema épico "Green­halgh" em homenagem ao herói que tombara em Ria­chuelo e fora seu fraterno amigo. Lacerda Coutinho ter­minou o curso, defendeu tese sobre "A Teoria das Sen­sações" e exerceu a medicina e com igual proficiência o magistério. O amor à terra natal e a saudade levaram-no a fundar, no Rio de Janeiro, a 25 de novembro (dia de Santa Catarina) de 1886, o Centro Catarinense. Nos princípios da República, foi nomeado por Benjamin Cons­tant para a Secretaria da Justiça e Integrou a bancada catarinense na Constituinte de 1891, sendo que antes já cumprira uma legislatura na Assembleia Provincial, o que mais uma vez demonstra a permanência dos seus vínculos com a terra onde nasceu. A 2 de novembro de 1900, fa­leceu aqui no Rio, contando 58 anos incompletos.

Quanto à sua obra, deixou-a quase toda inédita. Pelo que constatei, além do poema dos seus verdes anos, viu publicados: uma ou duas peças de teatro, que foram re­presentadas em Santa Catarina; sua tese de doutoramen­to; suas traduções de Daudet e Júlio Verne; sua assídua colaboração na Gazeta de Notícias, Jornal do Comércio e em revista semanal ilustrada por Ângelo Agostini; e seus discursos pronunciados na Constituinte, nos quais, segundo Araripe Júnior, ele demonstrou os seus dons de dialético(**).

Sua obra literária, pouco extensa mas, em compen­sação, densa e alta — foi publicada entre 1910 e 1917 pelo seu filho, Dr. João Francisco de Lacerda Coutinho. É constituída de três volumes: "Ovidianas", "Lendas Es­candinavas" e "Páginas Soltas". Trazem eles longas in­troduções interpretando com louvor e respeito o homem e o intelectual, assinadas por nomes importantes da cul­tura brasileira, entre os quais Ramiz Gaivão e Araripe Júnior.

As "Ovidianas" são uma paráfrase das "Metamorfo­ses" de Ovídio. Poesia erótica muito bem construída, foi consignada e ressaltada por Afrânio Peixoto na sua His­tória da Literatura Brasileira e chamada por João Ribeiro, de tal forma sugerem uma recriação, de Novas Metamor­foses. O volume traz abundantes ilustrações, adequadas ao texto, de autoria de Raul Pederneiras.

As "Lendas Escandinavas" são poemas dramáticos, canções de gesta, tradições e sagas colhidas no latim, dos 16 livros de uma das obras raras da literatura universal: a História Dânica ou Gesta Danorum, de Saxo Grammaticus, o Tito Lívio da Escandinávia. A História Dâ­nica, de que Shakespeare ia tirar o Hamlet, daria ao muito saber do humanista catarinense a oportunidade de escrever esse livro precioso e talvez único em língua portuguesa.

As Ovidianas e as Lendas são ainda enriquecidas: com as sábias anotações do autor e nos dão a dimensão, da sua enorme cultura clássica e do seu valor incontes­tável como poeta e como prosador.

As "Páginas Soltas" incluem o famoso poema publi­cado e os demais que deixou inéditos, heróicos, líricos e epigramáticos, alguns datados do Desterro e numerosos trazendo as cores e os ares da ilha natal. Do volume faz parte a primorosa coletânea "Esboços", que vou apre­ciar.

Antes, porém, quero relatar um fato que nos dá a medida do caráter e da altivez de Lacerda Coutinho. Seu poema "Greenhaigh" despertou cálidas admirações, prin­cipalmente da parte de José Feliciano de Castilho, que o leu em sessão especial da Arcádia Fluminense, sendo o nosso poeta ovacionadíssimo. Convidado para outra sessão, presidida pelo Imperador, algo ocorre e Lacerda Coutinho retira-se. Para melhor interpretar seu gesto, é mister avançar no conhecimento do homem.

Pelo que pude pesquisar, posso concluir que duas contradições lhe nuançam a personalidade e que uma constante avulta no contexto. As contradições: o varão austero, inatacável, faz por vezes uma ousada poesia erótica; o homem esquivo, desencantado, melancólico escre­ve epigramas. A constante: sua áspera intransigência, sua absoluta incapacidade de compactuar com tudo que lhe ferisse a independência e a dignidade. Nessas oca­siões a reação era uma só: a retirada, a evasão. Deixava o grupo como o único modo de ser e de se declarar livre. Mas se, ao longo da vida do humanista, sempre foi esse o seu comportamento, no caso referido há conotações merecedoras de registro: muito novo era ele e muito alto o personagem que teve de enfrentar, porquanto menos que Sua Majestade Imperial, o Senhor D. Pedro II. Ora, todos nós sabemos que, entre as qualidades do Im­perador, embora seu amor pelas coisas do espírito, não estava a de ser mestre da poesia. Apesar disso e preva­lecendo-se do seu régio posto, tentou impor ao vitorioso estreante alterações em alguns de seus versos. Mas Lacerda Coutinho não cedeu nem silenciou: manteve o seu texto. E retirou-se em seguida.

Esboços são 33 sonetos e não trazem data; mas, pela temática e pela feitura, trazem a data da maturidade. Além disso, os costumes e tipos que descrevem são ca­racterísticos dos fins do Império e começos da República — época em que o poeta vivia a sua idade outonal.

Esboços parece-me um título modesto; já que se tra­ta de desenhos nítidos e acabados, alguns com fortes traços eternos. No entanto, denuncia a consciência que tinha o autor dos seus dons plásticos. Realmente, La­cerda Coutinho é poeta de aguda sensibilidade visual, de notáveis qualidades pictóricas. Assim dotado, não se compraz em traçar quadros estáticos, como seriam, por exemplo, quase todos os "Cromos" de B. Lopes. É uma pintura de movimento a sua. Pintura dinâmica, cinemá­tica, encerrando, às vezes, num sonetilho, séries de qua­dros objetivos e psicológicos. Apreciemos, neste ponto, "A Missa do Natal":

Chega a missa do Natal;

não tarda a tocar matinas.

— Vão-se aprontando, meninas,

já deu segundo sinal.

Despe Júlia o avental;

Maria calça as botinas,

traz rosas, cravos, cravinas

Ana, a preta, do quintal.

Caiu-me um brinco! Esta agora!...

— Não me amarrotes, Florinha!

— Ai! Dê-me um lenço, titia!

Toca o sino... — Ana! — Senhora?

— Fecha a porta da cozinha!

Vamos com Deus e Maria!

Agora, eis a filmagem de uma procissão nos belos alexandrinos de "Nosso Pai":

No silêncio da noite ecoam badaladas,

tocando a Nosso Pai; eis já devota gente

acode à sacristia e busca diligente,

nos gavetões do arcaz, as opas respingadas.

Acendem-se brandões, lanternas hasteadas;

o préstito caminha, alçada cruz à frente;

debaixo de uma umbela, em vaso reluzente

leva o Padre Vigário as hóstias consagradas.

Ao tanger da sineta, avulta o ajuntamento;

entoa-se o Bendito, a sólita oração;

e a rua se ilumina, em pio acatamento.

Ante uma porta aberta estaca a procissão.

Ali, onde um enfermo espera o Sacramento,

a alfazema rescende; há flores pelo chão.

Dentro do realismo dos seus animados painéis, mos­tra vezes muitas o que de resto borbulha em grande parte de sua poética: o seu fino espírito humorístico. Podemos apreciar esta faceta em "A Boda":

Chegou a boda enfim! Corre à janela

a vizinhança toda. Os curiosos

grupam-se em torno dos coupés vistosos

por ver se é moço o noivo e a noiva bela.

Entram... Flores, abraços, beijos...

Ela baixa, corando, os olhos radiosos;

mas ele... abraça, à espera de outros gozos,

quanta priminha conta a parentela...

Pelos pais e padrinhos escoltados,

fazem solene entrada no salão,

onde encontram amigos, convidados.

Após discursos mil de ocasião,

após mil cumprimentos estudados

o clássico sofá ocupar vão.

Como pintor, conhece todas as modalidades das emoções ligadas à paisagem ou às sensações do colorido e da forma, desde a placidez virgiliana de "A Fazenda" com seu enquadramento verde e seu ambiente de trabalho sossegado,

"as senzalas, o engenho, as roças, os currais

e os gados que apascenta a ubérrima campina",

até o humorismo de pesadelo, o realismo fantasmagórico que inspira a sombra móvel, pequenina ou gigantesca, do vulto que, à luz mortiça dos velhos lampiões, caminha embriagado pela "Noite Chuvosa":

Horas mortas; a noite é de invernada;

um aguaceiro cai de instante a instante;

dos lampiões a luz tremelicante

reflete aqui e ali a água empoçada.

De um vulto humano a sombra projetada

ora o segue, ora passa-lhe adiante;

agora o faz anão, depois gigante;

estampa-se nos muros, na calçada.

A lufada do vento, pelas beiras

e grimpas dos telhados assoprando,

sacode e espalha os pingos das goteiras.

Na encharcada, erma rua patinhando,

caminha o vulto, a esbravejar asneiras

e a escorregar também de quando em quando.

Lacerda Coutinho não se contenta em poetizar os dramas e as comédias da humanidade. Chega, também, ao mundo dos bichos, interpretando-lhe as reações psi­cológicas com a sua ironia e a sua compreensão. Desceu aos terreiros antes de Edmond Rostand e sintetizou, em plásticos alexandrinos, todo um drama da tribo galinácea. Notemos ainda este fato: é anterior à de Rostand a obra de Lacerda Goutinho, mas vamos encontrar quase todos os personagens de "Chantecler" em "O Terrreiro":

Faz um sol de rachar que esbraseia o terreiro.

Opressas, a arquejar, as aves encalmadas

abrem asas e o bico; algumas avisadas

procuram refrigério à sombra do poleiro.

A dormitar no chão, estremece o rafeiro,

e, a trincar moscas, vinga as duras ferretoadas

que o não deixam em paz. Em águas encharcadas

dos marrecos mergulha alegre o bando inteiro.

O galináceo rei ergue o canto garrido;

breve momento após, de uma cerca vizinha,

é, como em desafio, o canto respondido.

Mas sucede cortar o espaço uma andorinha:

solta o grito de alerta o galo precavido

e a ninhada se esconde embaixo da galinha.

Falei há pouco em realismo e ante os "Esboços" pelo menos não se pode em verdade classificá-lo um român­tico. E há ainda, corroborando, aquela preferência pelos cenários e personagens da classe média e das camadas populares, que vamos encontrar na obra dos realistas da prosa.

Mostra, por exemplo, de um quadro da vida proletária — é o que nos descreve em "O Cortiço":

Duas séries de casinhas,

ao meio um pátio comum,

onde pode cada um

soltar cães, criar galinhas;

cedo, às portas das cozinhas,

mulheres, ainda em jejum,

lidam sem recato algum,

a disputar com as vizinhas;

tinas d'água com sabão,

roupas em corda estendidas,

outras roupas pelo chão;

à noite, em horas perdidas,

tocatas de violão

do cortiço às avenidas.

Em "A Rendeira", contudo, há quase um remanes­cente de fidalguia. Não é a conhecida rendeira catari­nense, a pobre artesã ilhoa, que dos bilros tira rendas, que das rendas tira pão. É a rendeira que mais parece senhora e dona de sua casa — fazenda tranquila ou urbana mansão — e se tece é que tem lazeres e que só tece para entreter-se. Ei-la:

Sentada na marquesa, as pernas encruzadas,

óculos no nariz, uma almofada em frente,

vai os bilros trocando a velha diligente

e aproveita da tarde as horas avançadas.

Num picado papel as linhas entrançadas

com alfinetes prende; e, com mão já tremente,

logo outros fios tece. Estalam brandamente

os pequeninos paus de formas torneadas.

Coa enfim dúbia luz a aberta gelosia;

já o morcego esvoaça; a ave se empoleira;

canta a estiva cigarra ao despedir-se o dia.

Guarda então o lavor a próvida rendeira

e, ao badalar o sino, ao longe, a Ave Maria,

persigna-se, sacando as contas da algibeira.

Tempo de concluir o nosso passeio lírico, embora tantos aspectos não tivessem sido captados no caminho. Nem aquela pequena tela dourada de sol e de infância. Nem aquele recorte pitoresco de serão laborioso e mo­desto. Nem tantos outros. Mas, neste final de passeio, não podemos deixar de conhecer um quadro em que o poeta parece vibrar, participar. E de tal maneira nos co­munica sua emoção que se torna vivo, presente, atual. É quando descreve uma batalha. Não movida pelo ódio, mas travada em nome da eugenia e da beleza. É a com­petição amável de uma regata, na qual destros marujos — nacionais e "gente estranha", como diz o poeta — lutam com garbo varonil pelas bem-amadas cores de suas pá­trias.

E Lacerda Coutinho aponta os barcos na hora ini­cial:

"Dois batéis — branco e azul — contendem à porfia"

Em seguida fixa as posições:

"por algum tempo vão correndo emparelhados,

mas, instantes depois, já vogam distanciados

e ora um, ora outro alcança a primazia."

Agora, ele observa que os adversários estão per­dendo:

"Até que, afinal, exausta, a guarnição desmaia no cerúleo escaler"

Em consequência, cresce o ímpeto dos rivais:

"alentam-se os rivais;

apertam mais o remo e acercam-se da raia".

Finalmente, a vitória e o poeta canta:

"O veloz batel branco abica enfim ao cais;

imenso grito ovante estruge pela praia:

— o vencedor arvora as cores nacionais!"

(*) Patrono da cadeira nº 23, da Academia Catarinense de Letras, de que é titular o eminente professor Altivo Flores.

(**) Possuidora de uma foto de todos os membros da bancada, ofereci-a ao Centro Catarinense — em noite comemo­rativa dos 70 anos da morte do seu fundador.

(Palestra pronunciada na sede central do PEN Clube, tendo a radiosa declamadora Marita Pinheiro Machado apresentado os poemas dos "Esboços". O mesmo ocorreu quando a autora teve Lacerda Coutinho como seu patrono no Centro de Estu­dos e Atividades Artísticas, em sessão realizada no Salão de Arte Marita Pinheiro Machado, em Copacabana, e foi brilhan­temente saudada pela professora Ilza Tostes. A convite, a pa­lestra foi repetida no Clube de Engenharia, quando os poemas mencionados na conferência tiveram como intérprete a bela atriz Neila Tavares.)

 

Remembranças

Depoimento de Adelino Magalhães

Adelino Magalhães foi um dos escritores de alto valor que compareceram ao Centro Catarinense por ocasião do Currículo Cruz e Sousa. E deixou, de próprio punho, o importante depoimento que vai abaixo transcrito:

Assisti a duas conferências da série organizada inte­ligentemente por Maura de Senna Pereira em homenagem a Cruz e Sousa. Na primeira, Tasso da Silveira focalizou o interessantíssimo aspecto do Poeta Negro, tradutor ex­cepcional da alma brasileira, apesar de sua ascendência puramente africana. Na segunda a que assisti e a última da série, Andrade Muricy reproduziu para o público uma verdadeira galeria de retratos escritos do poeta, feitos por vários contemporâneos ilustres. Tive notícias de outras conferências aplaudidas por público sempre numeroso e a minha impressão final é a de que a série representou um autêntico movimento cultural, chegando até a alto pla­no de refinamento.

Repercussões

A repercussão do Currículo foi enorme desde a sua programação, dele falando seguidamente os colunistas li­terários e mencionando-o os suplementos dedicados a Cruz e Sousa na data do centenário. Eis, por exemplo, o que escreveu a revista "Leitura" dois meses antes de iniciado o ciclo:

"O Centro Catarinense vai comemorar o centenário de Cruz e Sousa, executando o programa organizado pelo seu Departamento Cultural, que está sob a responsabili­dade da poetisa e jornalista Maura de Senna Pereira. Haverá dois concursos, ambos com prêmios: o primeiro, aberto a artistas plásticos, premiará as duas melhores ilus­trações a sonetos de Cruz e Sousa; o segundo, de mo­nografias sobre o grande simbolista catarinense, será aberto aos frequentadores do Currículo Cruz e Sousa... Receberão certificado os assistentes que tiverem frequên­cia integral. Podemos também adiantar que o Centro Catarinense figura como entidade copromotora da gran­de exposição retrospectiva que a Biblioteca Nacional inau­gurará em novembro, mês do centenário celebrado e que a Editora Aguilar, ao ter conhecimento das iniciativas do Centro Catarinense, vai oferecer exemplares da edição de luxo das Obras Completas de Cruz e Sousa como prêmios aos vencedores dos concursos."

Na página inteira que dedicou ao evento, no "Jornal do Povo", de Itajaí, o jornalista Antônio Augusto Nóbrega Fontes, que fora testemunha da organização do Currículo, na qualidade de também membro da diretoria, escreveu:

"No Rio de Janeiro, dentre inúmeras outras manifes­tações, duas se destacaram pela sua importância e pro­fundidade nas comemorações do centenário de Cruz e Sousa. A primeira, patrocinada pelo Centro Catarinense, deveu-se ao organizado trabalho de Maura de Senna Pereira. Ela mesma idealizou em todos os seus detalhes o Currículo Cruz e Sousa, magnífica série de conferências proferidas por uma elite intelectual de biógrafos e estu­diosos da vida e da obra do grande catarinense.

Outro ponto alto das comemorações foi a exposição rea­lizada pela Biblioteca Nacional."

(Lembrarei que a grande mostra, inaugurada com a palavra lúcida do escritor Adonias Filho, diretor da Biblio­teca, e valiosa desde o Catálogo — que tem na capa, sobre o lilás do simbolismo, versos autografados do "Ve­lho Vento" — foi principalmente organizada pela senhora Ilda Centeno de Oliveira, competente chefe da Seção de Exposições.)

O líder

Em várias ocasiões e no artigo que escrevi em mi­nha coluna "Nós e o Mundo", intitulado "Um Currículo, um Presidente", pude exaltar a figura de Max, Tavares d'Amaral, com quem tive a honra de assinar o manifesto ao quadro social e à colônia catarinense, apresentando o programa das comemorações. Presidente do Centro e do Currículo, Dr. Max prestigiou inteiramente as inicia­tivas do Departamento de Cultura da entidade barriga-ver­de e fascinou sempre o auditório com sua simpatia e sua eloquência. Culto advogado e ex-parlamentar (ele assinou a Constituição de 46), autor de ensaios que devem ser publicados — o ilustre catarinense merece ainda ser lem­brado pela sua figura humana e como líder compreensivo e amigo que mostrou ser nos anos em que esteve à frente da Casa de Santa Catarina.

As premiações

Como já foi registrado, houve dois concursos: um de monografias sobre Cruz e Sousa, aberto aos alunos inscritos no Currículo, e outro, de ilustrações a poemas do homenageado, aberto aos artistas plásticos.

A comissão julgadora do primeiro, constituída por Adonias Filho, Edison Carneiro e Valdemar Cavalcanti, opinou pela concessão do Prêmio a Márcio Tavares d'Amaral, autor do trabalho "Cruz e Sousa — o Poeta e a Poesia". Márcio, então adolescente, iniciou, pois, vito­rioso a sua carreira, já sendo hoje autor de alguns apre­ciáveis títulos e tendo publicado recentemente "Entre Barro e Nuvem", que foi destaque na safra poética de 81.

Quanto ao concurso de ilustrações, compuseram o júri os professores Quirino Campofiorito, Jordão de Oli­veira e Telmo de Jesus Pereira, que deram o primeiro lugar à universitária Dilce Jardim Vianna, autora do tra­balho inspirado no primeiro verso do soneto "Música Mis­teriosa". Foram concedidas três menções honrosas, tendo figurado os quatro trabalhos na exposição comemorativa da Biblioteca Nacional, de que participou com numerosas peças o Centro Catarinense.

Os prêmios consistiram em exemplares de luxo de "Cruz e Sousa, Obra Completa", oferecidos pela Editora Aguilar, cada exemplar constituindo por si só um galar­dão.

Os prêmios, bem como os certificados aos alunos com frequência integral, foram entregues, entre sauda­ções, na grande noite de 24 de novembro de 1961, data do centenário do Poeta Negro.

Um suplemento

Entre os suplementos que dedicaram páginas ao cen­tenário do gênio catarinense, não posso deixar de men­cionar o que publicou o matutino "Gazeta de Notícias". Ao lado do retrato de Cruz e Sousa, a nota que assim termina: "Gazeta de Notícias, onde o grande poeta traba­lhou como repórter, não poderia omitir-se nas homena­gens que se prestam à sua memória e consagra estas páginas ao nome glorioso de Cruz e Sousa e às corren­tes estéticas renovadoras, em que ele pontificou. "Entre versos do homenageado, artigos de Astério de Campos com epígrafes de Sílvio Romero e Cruz e Sousa e re­trato de Nestor Victor — sobre "O Simbolismo de Cruz e Sousa"; do historiador, almirante Lucas Alexandre Boi­teux (a quem a autora deve a segura orientação nas da­tas catarinenses que aparecem neste volume) sobre "Cruz e Sousa, o Aedo Negro"; de Almeida Cousin sobre "Ana­tomia do Simbolismo". Quanto a mim, participei com uma reportagem minuciosa, ilustrada de fotos, sobre "As Co­memorações, no Rio de Janeiro, do Primeiro Centenário do Nascimento de Cruze Sousa".

Flores e símbolos

Na noite em que foram entregues prêmios e certifi­cados, a diretoria do Centro Catarinense ofereceu, como homenagem de gratidão, belíssimos exemplares dos "Sonetos da Noite", de Cruz e Sousa, selecionados pelas Edições do Livro de Arte, de Florianópolis, com gravuras soberbas de Hugo Mund Junior, à então universitária He­lena Maria Cunha Pontes (hoje casada nos Estados Uni­dos) que secretariou brilhantemente o Currículo, e à sen­sibilíssima artista  Marita Pinheiro Machado, que o cobriu de flores e de símbolos.

O jardim de Marita — palmas nas mesas, buquês nas jarras — também ostentavam flores eternas: sonetos de Cruz e Sousa, belamente manuscritos pelo ilustre Pai da artista, ministro Dulphe Pinheiro Machado. E era sempre monocolorida a homenagem floral de Marita. Ora lembrando que "este caminho é cor-de-rosa", ora "de ouro". Às vezes trazendo no azul das hortênsias a tona­lidade violeta do próprio simbolismo. Quase sempre, po­rém, branca, toda branca, as centenas, de carolas alvas, os gladíolos alvos como açucenas — simbolizando todas as "brancuras do mundo" com que sonhou o Cisne Negro.