LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Verbo solto, de Maura de Senna
Texto-fonte:
Maura de Senna Pereira, Verbo solto,
Rio de Janeiro: Livraria Kosmos, 1982.
SUMÁRIO
Anita: primeiros passos de sua glória
Os 120 anos do livro "Babicka"
Lacerda Coutinho — humanista e poeta
Durante longo período, nesta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, onde tenho passado a maior parte de minha vida, trabalhei principalmente como jornalista (atividade de que resultaram dois livros) e comunicadora. Referindo-se a essa fase na página que me dedicou em sua obra "A Literatura de Santa Catarina" (Editora Lunardelli, 1979), o professor Celestino Sachet, atual presidente da Academia Catarinense de Letras, chamou-a também de "intensa Realmente, como diretora do Departamento Cultural do Centro Catarinense na inesquecível gestão do Dr. Max Tavares d'Amaral e, outras vezes, por iniciativa própria ou a convite de amigos e entidades, organizei cursos, reuniões comemorativas, conferências, horas de arte, focalizando quase sempre velhos e novos valores de meu Estado natal.
Locais, entre outros: Centro Catarinense, PEN Clube do Brasil, Associação Brasileira de Relações Humanas, Auditório do MEC, Federação das Academias de Letras, Clube de Interesses Femininos, Academia Carioca de Letras, Salão de Arte Marita Pinheiro Machado. Nessas ocasiões, que tiveram sempre simpática repercussão, muitas vezes falei: apresentando oradores e artistas, enfatizando o significado dos temas abordados ou eu mesma sobre eles discorrendo. Poucos textos foram escritos ou gravados e é apenas uma parte deles que aparece neste pequeno volume — com o intuito de re-homenagear figuras e fatos, de lembrar uma fase de labor constante e, por tudo isso, embora modesto, de prender algo daquele verbo solto...
MSP
Para ALMEIDA COUSIN
— amado meu e meu maior incentivador —
e a todos os que
me prestigiaram
e me ajudaram
com o seu apoio,
sua valiosa participação,
seu amigo e generoso aplauso
Santa Catarina, minha terra
Estar no verdor dos anos, trazendo ainda a franja da adolescência; passear os primeiros sonhos pelas mesmas ruas estreitas e líricas que haviam conhecido os passos de Cruz e Sousa; publicar os primeiros escritos nas pequenas folhas da terra não ter outro valor senão o da autenticidade e ser de chofre visitada pela notícia de que tivera o nome apresentado e unanimemente aceito na Academia Catarinense de Letras — eis o que me cumpre desde logo evocar, pois tais fatos constituem a gênese desta tarde. Enfatizo a iniciativa da entidade barriga-verde; e o ter ela, que congregava os valores estaduais, buscado pela primeira vez uma pessoa do "segundo sexo" — logrou na época enorme repercussão. Lembrarei, pois, aquela noite em que, de cabelos longos soltos e longo vestido branco, pelo braço de Nereu Ramos e com flores ilhoas na mão, penetrei no salão repleto do Palácio da Assembleia Legislativa. Lá me aguardava o verbo de José Artur Boiteux (que fora grande amigo de meu pai), inflamado como o de um cavaleiro andante, e lá tentei o elogio do patrono que para mim escolheram, inteiramente destoante da pequena recipiendária o grande Roberto Trompowsky, marechal, "scholar", matemático. Foi uma bela noite sem dúvida, mas, se a estou evocando, é porque a ela se limitou a minha vida acadêmica.
Muito cedo me voltei, para sonhos e rumos que empolgaram minha juventude ardente e, em breve, se esvaziava de élan o título que em verdade não cheguei a ostentar. Minhas ausências da terra e os prolongados recessos do cenáculo contribuíram para que aquele meu posto não tivesse exercício. Mas, nesta espécie de catarse, devo acrescentar que, sendo tão gregária e colocando acima de tudo no contexto da existência a criatura humana, não está para mim no mesmo plano de estima a forma associativa habitual — com estatutos, atas, compromissos. Eis por que, embora admirando a pertinácia que mantém esta casa, apesar dos gentis convites que recebi de vários dos seus dirigentes, embora aqui tenha amigos diletos e esteja aqui o meu bem-amado, permaneci afastada deste preclaro enlaçamento de academias estaduais.
Tal comportamento iria alterar-se quando Othon d'Eça, o alto prosador-poeta de "Homens e Algas", hoje desaparecido e então presidente e restaurador da Academia Catarinense de Letras, ao insistir para que fizesse eu parte da delegação — onde já se encontravam ilustres conterrâneos — junto à Federação das Academias de Letras do Brasil, apelou para o meu amor à nossa terra catarinense. Oh, a terra na qual me integrava, em versos dos tempos jovens, a ponto de, num ato de consubstanciação, me sentir carregada da sua seiva e do seu pólen; de em suas carnes (ou em meus chãos) nascerem as grumixamas que eu devorava e os brincos-de-princesa que pendiam das minhas orelhas. E em cujo peito joguei este dístico dos tempos maduros: abraçada ao universo / tendo as raízes em ti. Amor naturalmente centrado na Jurerê-mirim natal com seu halo de praias e de conchas. Lá onde o sol nasce nas águas da Lagoa da Conceição, bíblicas como de Genesareth, parecendo um deus resplandescente no primeiro dia da criação. E onde, ao fim da jornada, nos é dado o luminoso salário de ver os tesouros do rei Salomão entornados nos nossos poentes e estriados com aqueles fúlgidos lilases que fui buscar para os meus crepúsculos no País de Rosamor.
Não é, no entanto, em virtude apenas das belezas daquela terra e daquele céu que pulsa o meu amor a Santa Catarina. Também de atos, vozes, ritmos, gestos que irromperam de tantos de seus filhos, forjando a maior porção de sua glória. Também de símbolos, eventos, nomes destinados à perenidade. Alguns citarei: Virgílio Várzea e Victor Meireles; Cruz e Sousa e Luiz Delfino; Lacerda Coutinho e Araújo Figueiredo; Jerônimo Coelho, que nos deu o primeiro jornal, e, na mesma importante faixa, os nomes exponenciais de Gustavo Lacerda, fundador da Associação Brasileira de Imprensa, de Oscar Rosas, Lucas Bainha, José Johanny, Martinho Calado, Joe Collaço, Crispim Mira, Diniz Júnior, Rubens de Arruda Ramos; os historiadores Almeida Coelho, Paulo José Miguel de Brito, Afonso de Taunay, general José Vieira da Rosa e os laboriosos e íntegros irmãos Boiteux; a sábia jurisprudência do conselheiro Manoel da Silva Mafra; as vozes humildes de Marcelino Antônio Dutra, o poeta do brejo, e João Rosa Júnior, o poeta cego; o verbo do Arcipreste Paiva, de Edmundo da Luz Pinto e, entre outras incomuns eloquências, a de um rapaz genial chamado Helio Régis, que morreu aos vinte anos; o polígrafo Henrique Fontes, para quem eu gostava de me firmar como a sempre discípula; o regionalista Tito Carvalho, que foi ao mesmo tempo um dos nossos mais completos homens de imprensa; os eminentes estadistas, entre os quais Adolfo Konder, que trouxe um sopro renovador ao assumir o governo do Estado, prestigiando os valores que surgiam e erguendo a bandeira do catarinensismo; Lauro Müller, que se projetou no cenário político nacional durante as primeiras décadas republicanas, e Nereu Ramos, que iniciou, em 1930, a ascensão que o levaria, em hora histórica do Brasil, à presidência da República; todos os que lutaram e sofreram pela justiça e pela liberdade e — ai! — o sangue de duzentos fuzilados pingando na ilha de Anhatomirim.
Lista-síntese que poderia bastar pela força dos nomes e dos significados. Contudo, não posso esquecer os não catarinenses que o foram entranhadamente, a todos reverenciando nos que Santa Catarina ainda pranteia — o arcebispo Joaquim Domingues de Oliveira, que durante meio século escreveu e pregou em língua clássica, e o governador Jorge Lacerda, que teve nos atos e nas palavras a marca dos tempos novos — e em Horácio Nunes Pires e José Brazilício de Souza, que compuseram o Hino do Estado, cálido e humanista, exprimindo os melhores arroubos da alma do nosso povo em estrofes como esta:
Não mais diferenças de sangues e raças
Não mais regalias sem termo, fatais.
A força está toda do povo nas massas.
Irmãos somos todos e todos iguais!
Impossível tampouco esquecer os vultos femininos, tanto mais que, ao recordá-los, surge logo a maior figura da história barriga-verde: Anita Garibaldi, que há pouco voltou à Laguna do seu berço no bronze de Antônio Caringi e lá está bela e jovem como era há mais de cem anos, quando partiu para a luta e para o amor. Surge, em seguida, Amália Bainha, a heroína do mar, enquanto no território da poesia se derramam os versos de Delminda Silveira, que foi também uma espécie de heroína na aquisição de sua cultura, no dedilhar de sua lira. Delminda, a dos "Lises e Martírios" e "Passos Dolorosos", a quem conheci nos últimos anos de sua vida e que teve para mim ternuras de fada. Sua voz e a da misteriosa Semíramis com seus cantos assíduos nas páginas ilustres do "Sul-Americano". Quem era ela? Foi só quando a fonte silenciou que tiveram todos a resposta. Era Maria Carolina Corcoroca de Souza, esposa daquele mesmo José Brazilício, o dos muitos talentos, que musicou nosso vibrante "hino de estrelas e flores" e foi mestre da mais adorável e adorada Scheherazade, minha mãe, e daquele que seria o exemplaríssimo professor Senna Pereira, meu pai.
Chego, assim, aos vivos de várias gerações — desde a de meus fulgurantes mestres até à novíssima. Chego aos valores que lá pontificam e aos tantos que transpuseram as fronteiras e estão brilhando na literatura e nas artes nacionais, no mundo jurídico, na esfera das pesquisas, no púlpito e na cátedra ou, em setores vários, participando das lutas e das esperanças do Brasil.
Certo é que a estas facetas devo restringir-me, não me cabendo, aqui, ressaltar as mãos que impulsionam o estadual progresso — no fundo das minas, no alto das serras, em planuras e vales, em glebas e mares. Mas como excluir aquelas cujo labor desfolha poesia, borbulha folclore? Comparecem, por isso, as que modelam os lindos e rústicos objetos de palha e de cerâmica, vendo-se, entre os últimos, os que reconstituem, na magia do barro trabalhado, as figuras todas do nosso boi-de-mamão, um dos autos populares mais ricos e movimentados de todo o País. E as prodigiosas mãos femininas que, de fios e de bilros, fazem surgir o claro poema que as avós açorianas ensinaram a tecer. Beleza de margaridas, estrelas, favos, trepadeiras, de múltiplos desenhos, de entrelaçados pontos — naquelas alvas peças, naquele tesouro branco. Que elas criam — cada vez mais pobres e cantando as trovas mais ternas do nosso litoral. Eis uma delas:
Inveja só posso ter
Da luz clara do luar
Que faz rendas tão bonitas
Com a branca espuma do mar.
Neste apenas esguio recorte, eu quero, como as rendeiras, exaltar o grandioso e saúdo o mural que em breve começaremos a apreciar no primeiro volume da "Enciclopédia Catarinense", trabalho gigantesco que está realizando o almirante Carlos da Silveira Carneiro. Beirando a pré-história e o porvir abarcará ele Santa Catarina na sua totalidade.
Santa Catarina, minha terra, em que estou presa como uma planta e à qual devo a honra desta hora. Não importa que, depois de vários anos meu nome aqui figurar, só hoje eu viesse tomar posse. O que importa é vermos a Academia Catarinense, presidida pelo admirável ensaísta Nereu Corrêa, entrar numa fase rasgadamente moderna — promovendo concursos, realizando currículos, acendendo debates, publicando cadernos. O que importa é sabermos que tal espírito renovador coincide com os propósitos do nosso fidalgo e ilustre presidente Cumplido Sant'Anna. O que importa é estar sendo tão eu mesma em ambiente acadêmico.
Tempo de agradecer, agora, à Federação das Academias de Letras do Brasil a oração que vai proferir o acadêmico Pizarro Drummond. Suas palavras ainda mais me desvanecem porque, sobre serem a voz desta casa, partem de alguém que, entre outros títulos, é autor de livros primorosos pelo estilo, pela temática, pela interpretação e que, jovem juiz, está honrando a carreira que tem como ápice, no Brasil deste momento, um grande catarinense, o ministro Luiz Gallotti, presidente do Supremo Tribunal Federal.
Tempo de agradecer a homenagem do belíssimo curso de Regina Lúcia Pimentel através de várias de suas alunas. Alunas radiosas que vão emprestar beleza a versos meus de vários períodos.
Tempo de agradecer esta esplêndida medalha, atada nas cores da bandeira catarinense, que deixou para entregar neste ato o representante oficial da nossa Academia, escritor Almiro Caldeira. Escritor, quero frisar, que está utilizando com brilho, na sua excelente obra ficcional, episódios da nossa história ilhoa. Estas insígnias e as expressões com que as entregou o autor de "Ao Encontro da Manhã" — revigoram minha posição de delegada de Santa Catarina e meu intento de bem e sempre projetá-la. Que eu evoque, pois, neste momento, suas glórias mais inspiradoras: um cisne negro e uma rosa matuta — o poeta emparedado e a musa da liberdade. Aquele cujos Broquéis, Faróis, Evocações, últimos Sonetos, deram ao mundo um dos seus maiores simbolistas. E aquela cujo próximo sesquicentenário eu quisera que trouxesse o frêmito dos seus ideais ao coração de todas as gentes. Um negro e uma matuta, repito, para concluir com os nomes altíssimos de Cruz e Sousa e de Anita Garibaldi.
(Discurso pronunciado a 2 de dezembro de 1961 — em sessão realizada no auditório do PEN Clube, à Avenida Nilo Peçanha, 26, 13° andar).
Anita: primeiros passos de sua glória
Municipal da Laguna, a cidade Juliana. Em artigo intitulado "Anita e a República", que escrevi há vários anos em "A Gazeta", de Florianópolis, frisei eu no tópico final: "Se outros fatores, portanto, não houvessem para que a República Catarinense fosse festejada como um dos nossos maiores acontecimentos históricos, bastaria este, pelo colorido romântico e pela expressão revolucionária: Ana de Jesus Ribeiro seguindo o belo corsário mazzinista, integrando-se nos seus ideais e a seu lado participando de lutas que foram etapas do "pugilato milenar entre o cativeiro e a liberdade".
O encontro
O belo corsário era Giuseppe Garibaldi, partidário de Mazzini, o teórico do liberalismo italiano; era Garibaldi, condenado a morte em sua terra, proscrito cheio de bravura e élan que, refugiando-se no Brasil, se tornara o chefe da esquadra farroupilha. Descrevendo-o, diz Brasil Gerson: "Era belo e forte como um atleta e as melenas alouradas, caindo-lhe até os ombros, davam-lhe a mais romântica das aparências".
Vitorioso em águas lagunenses, ei-lo agora, no barco capitânea, observando com um óculo de alcance assestado para uma elevação chamada Barra, o vulto airoso e jovem de uma filha da terra. Encantado, toma um bote e tenta aproximar-se. E o primeiro encontro acontece na própria casa da moça encantadora: por sua vez, casada sem amor havia quatro anos, vivia constantemente pensando no marujo carregado de magnetismo que, a bordo do pequeno Seival, combatera e derrotara os navios imperiais.
Estáticos e silenciosos nos olhávamos mutuamente, como se já nos tivéssemos conhecido antes... Cumprimentando-a por fim, dizia-lhe: "Tu devi esser mia" — conta Garibaldi em suas "Memórias". Anita trazia então os pés morenos descalços e vestido de ganga azul, numa visão comovedora de pobreza e de poesia. E aquelas palavras ousadas, longe de a ofenderem, deslumbraram-na, pois foi só então que se sentiu noiva, pedida em casamento, convidada para as verdadeiras núpcias de sua vida. Ninguém sabe como se desenrolou o romance após aquela súbita e mútua constatação de que um achara no outro o seu par na terra. O que se sabe é que, rompendo laços sem sentido para seu bravo e digno coração, Anita manifestou a força de sua personalidade e, desafiando preconceitos que deveriam ser ferozes há cento e tantos anos, realizou o seu primeiro heroísmo. E, a 14 de outubro, deixava a sua casa sem crianças, o marido ébrio, o burgo atônito e, ao lado do seu herói, chegava a bordo do Rio Pardo. Eram os primeiros passos na grandiosa carreira de Anita Garibaldi.
O marinheiro
Esse mesmo Rio Pardo (capitânea), o histórico Seival e o Caçapava rumaram a 20 de outubro para Santos, pois o almirante farrapo recebera ordem de fazer o corso aos barcos de cabotagem. Estranho cruzeiro em que Anita, no entanto, era uma desposada feliz vendo seu bravo marujo fazer presas e, ao mesmo tempo, sofrer a implacável perseguição dos barcos imperiais. Perseguição que leva Garibaldi a buscar abrigo na enseada de Imbituba, onde se prepara para o combate, construindo, também em terra, uma trincheira.
De carabina em punho, ao lado do marido, Anita inaugura a sua vida de guerreira "No mais aceso dos combates narra o historiador Henrique Boiteux na sua primorosa biografia "Anita Garibaldi" — eis que, de repente, certeira bala, dando de encontro à amurada do Rio Pardo, fá-la em estilhaços, um dos quais arroja Anita ao convés e com ela dois marinheiros que ficaram estendidos mortos. Ouviu-se um grito geral, precipitando-se todos para erguê-la; antes, porém, que a acudissem, lépida levantou-se tinta de sangue dos seus companheiros e seu único pensamento foi o de fazer novo apelo à bravura dos combatentes. Instada por todos e muito principalmente por Garibaldi para que se recolhesse à coberta, respondeu: "Sim, descerei, mas para buscar os covardes que lá se foram esconder." Diante de tanto desprendimento, de tanto heroísmo, não mais insistiu Garibaldi: entregou-a a seu destino.
E o seu destino de marinheiro da República foi lutar durante todo aquele dia tremendo, 4 de novembro de 1839, até à retirada dos navios atacantes e prosseguir lutando na histórica batalha naval da Laguna, a 15 de novembro, que terminou com a derrota da esquadrilha farrapa e da República Juliana, precisamente cinquenta anos antes da proclamação da República no Brasil.
Como vou, apenas, situar Anita e apresentar em síntese os lances de sua bravura, recordarei que, para enfrentar os treze navios fortemente guarnecidos do capitão-de-mar-e-guerra Frederico Mariath, Garibaldi colocara em semicírculo seus poucos barcos e lanchas. E preparou-se para o combate desigual em que se bateram com tanto heroísmo os defensores da República Catarinense, a começar por Anita. Esta, antes de ter início a grande batalha, deixara-a Garibaldi como comandante do Rio Pardo, enquanto ia ele inspecionar as baterias de terra e observar os movimentos da esquadra inimiga. E a batalha se inicia antes de seu regresso ao barco. E é Anita quem responde ao fogo do inimigo, para ele voltando, com sua admirável presença de espírito e seu destemor, o canhão do Rio Pardo.
Naquele aceso combate, Garibaldi procura salvar a companheira e, no intuito de afastá-la da luta, manda-a a Canabarro, pedindo reforços e ordenando-lhe que ficasse em terra. Com aquela ligeireza de gazela, de que fala Garibaldi em suas "Memórias", tomou Anita um bote e foi cumprir sua missão. Mas não ficou em terra. Não mandou nenhum mensageiro com a resposta do general. Levou-a ela em pessoa. E a resposta era uma negativa: não havia reforços. E uma ordem: a retirada, salvando armamentos e munições. E, como todos os oficiais, com exceção do comandante-em-chefe, haviam sido mortos na sangrenta batalha, coube a Anita realizar o transporte, enquanto Garibaldi incendiava os navios.
"Quando acabei a minha obra de destruição — recorda ele — Anita havia também concluído a sua de salvação. Porém de que maneira, ó meu Deus! Ela não fez menos de vinte viagens, passando constantemente sob o fogo do inimigo. Em pé, à popa, no meio da metralha, aparecia firme, calma e altiva como uma estátua de Palas e Deus, que estendia uma sua mão sobre mim, a protegia ao mesmo tempo com a sombra dessa mão."
A fuga
Após a derrota, a retirada. A coluna a que pertencia Garibaldi empreende a áspera subida da serra com o propósito de alcançar Lajes, que caíra de novo em poder dos republicanos. Dois combates se travam com as forças legais. No de Santa Vitória, a 14 de dezembro, ganharam os revolucionários. Dele Anita não participou como combatente. Foi enfermeira, anjo, bálsamo, inspiração, cuidando dos feridos, animando em seus rudes combates aqueles bravios centauros serranos. O segundo ocorreu no Campo das Forquilhas, já a 12 de janeiro de 1840, e nele os rebeldes foram derrotados. Anita comandava uma guarda conduzindo munições, quando é cercada de surpresa por um esquadrão inimigo. Não se rende, porém, nem tampouco foge à luta. Uma bala atravessa-lhe o chapéu e leva um cacho dos seus belos cabelos. Outra bala abate-lhe o cavalo. E só aí ela cai prisioneira. Mas nunca subiu tão alto.
Corria, no acampamento, a notícia de que Garibaldi morrera em combate. Então, a altiva prisioneira pede permissão para ir ao campo de batalha, juncado de cadáveres. Era noite e ei-la com uma tocha na mão, espiando um a um o rosto dos mortos. Devia ter a face transtornada, parecer uma figura de tragédia grega, lembrar Antígone à procura do cadáver do irmão. E, após a busca macabra, uma certeza: seu guerreiro louro havia escapado. E um pensamento: ir-lhe ao encontro.
Anita empreendeu então sua fuga epopeica, forjando um dos momentos mais altos do heroísmo humano. Depois de rastejar, de colar-se como uma sombra ao tronco dos pinheiros, descobre uma casa onde é acolhida e onde consegue um cavalo para sua marcha de vinte léguas, que tal foi a distância percorrida de Curitibanos a Lajes, entre perigos e tempestades, com o primeiro filho do amor lhe palpitando nas entranhas, pela extraordinária valquíria catarinense.
Mulher e presença
Tendo tido sempre o encanto supremo da juventude, pois que morreu aos trinta anos incompletos, teve também Anita os encantos todos da feminilidade: foi mulher ardentemente apaixonada, verdadeira mãe, dona de grandes olhos luminosos, de um talhe delicado e harmonioso, de uma graça agreste de bonina e de negras madeixas que, desatando-se no ardor dos combates, fascinavam o próprio inimigo. Tudo isso, além de completas prendas domésticas. Quanto a estas, em companhia de Garibaldi só lhe foi dado manifestar totalmente nos tempos de Montevidéu, no lar da Rua do Portão, onde criou seus meninos, cozinhou e varreu e onde, para ajudar a manter uma casa em que tantas vezes faltou lume — fez rendas e crivos, claros poemas de fios de luar, magos e brancos como os sabem tecer as mãos de fada das rendeiras catarinenses.
É, portanto, um ser maravilhosamente feminino que vemos manifestar uma coragem de que só é capaz o mais bravo dos homens e, ao mesmo tempo, vemos a coragem de Anita irromper do amor e voltar-se contra a tirania nos dois hemisférios, tornando-se fonte perene de inspiração.
Por isso não posso imaginar a heroína parada no tempo em toda a sua glória, mas estendendo pelas idades a sua poderosa presença, sempre ao lado, sempre companheira de todo aquele que, em qualquer lugar e em qualquer época, luta e sofre pela justiça, pelo humanismo e pela liberdade.
(Uma das várias palestras que a autora proferiu no Centro Catarinense. "Anita: primeiros passos de sua glória" foi repetida, a pedido, na Associação Brasileira de Relações Humanas).
Depois de algum tempo de ausência, volto a Florianópolis precisamente neste ano do tricentenário de sua fundação e do sesquicentenário de sua vida de cidade. Talvez fosse por isso que os novos arranha-céus me pareceram um halo comemorativo. O crescimento vertical que eles significam e as avenidas que se abrem, formando um apreciável binômio de expansão, alteram sem dúvida — sem lhe deformar a beleza, no entanto — a face terna e plácida que teve até há pouco a cidade onde nasci. E o coração algo se aperta, mas só um momento. O seguinte é para compreender e saudar, pois era apenas esse tônus de urbe moderna que estava faltando para que Florianópolis — localizada na maravilhosa Ilha de Santa Catarina e culta capital de um Estado adiantadíssimo — pudesse assumir, em toda a plenitude, a sua destinação de metrópole.
Se, nos meus verdes anos, lá residindo e trabalhando, pude colaborar no progresso intelectual da terra catarinense, longe dela não tenho cessado de cantar-lhe o meu amor. É a minha glória simples a não alienação, a participação contínua, embora ausente. Por isso, quando, na Academia Catarinense de Letras, fui saudada pelos queridos confrades Nereu Corrêa, que a renovou, e Theobaldo Costa Jamundá, seu secretário-geral e presidente do Conselho Estadual de Cultura, não sei o que mais me comoveu: se as pétalas (azuis?) que ambos jogaram sobre a Maura em flor do "Cântaro de Ternura" ou se o haverem ressaltado a minha constante fidelidade à terra natal. (A respeito daquele primeiro livro, Almeida Cousin, na mesma tarde saudado pelo admirável contista Holdedemar de Menezes, presidente em exercício da Academia revelou que, por ocasião do seu aparecimento, estreava ele, em Vitória, com a epopeia "Itamonte" e que, trocados os livros, vieram as primeiras cartas ligando em ponto lírico as duas ilhas. Publicando nota sobre o fato, "Jornal de Letras" intitulou-a "A ponte".).
Emoção semelhante eu teria ao ver transmitida a entrevista que concedi à TV Cultura, a convite de Darcy Lopes, seu dinâmico diretor-presidente e seu fundador — após muitos anos de sonho tenaz, pertinácia, sacrifício. E catarinensismo, para usar a feliz expressão que me parece criada pelo grande e saudoso estadista Adolfo Konder. Durante a entrevista, a oportunidade de conhecer os dignos companheiros de Darcy Lopes na direção da TV Cultura, os ágeis repórteres e apresentadores e as magníficas instalações na Rua Bocaiuva e no morro da Cruz — e, lá do alto, contemplar em todo o seu esplendor a cidade que é três vezes centenária.
Florianópolis. Que poderia ser Ondina, como queria o nosso inolvidável marinhista Virgílio Várzea e que — desde sua fundação pelo paulista Dias Velho até os primeiros anos da República, quando meus pais eram crianças e meu bisavô Régis estava escondido em consequência da revolta de 93 — se chamou Nossa Senhora do Desterro.
Sob o antigo nome, ganhou ela monumento através da recente e notável obra do Dr. Oswaldo Rodrigues Cabral. Na residência do historiador e sua esposa (e inteligente colaboradora em muitas pesquisas), rodeada de jardins e bosques onde vimos correr o pequeno e encantador Alexandre, a quem a obra é dedicada, eu e meu marido fomos brindados com os quatro volumes de "Nossa Senhora do Desterro". E o receber tal presente em 73 — embora a data do lançamento seja anterior — teve para mim um sentido de celebração. Neles, cada capítulo abordando um assunto, flui a história da ilhoa vida, fixando costumes e fatos, estabelecendo situações e cotejos, ressuscitando gente, pingando autenticidade. Resultado de profunda erudição e de trinta anos de minuciosas pesquisas para que tivéssemos retratos desterrenses de todos os tempos, o novo trabalho de Oswaldo Cabral enriquece a vasta bibliografia do autor, a literatura catarinense e a cultura brasileira. É história e é crônica. Crônica lúdica, pitoresca, luminosa. Aliás, desde o longo subtítulo barroco e a declaração, ainda na capa, de que fora a obra publicada "com todas as licenças necessárias, isto é: nenhumas", até às últimas páginas, que fixam os últimos dias em que a depois Florianópolis se chamou Desterro, o ilustre mestre é sempre o humanista jovial que todos admiram.
Lembro que, ao final da tarde inesquecível, quando deixamos a bela casa da Rua Esteves Júnior, não vimos o inigualável poente ilhéu, onde mil pedrarias se derramam. Em compensação, carregávamos um tesouro concentrado em mil páginas — que estou saudando já em tempo, de Natal, mas ainda dentro deste ano comemorativo.
(Palavras ditas em reunião cultural do Centro Catarinense e publicadas na "Tribuna da Imprensa" de 19-12-1973).
Os 120 anos do livro "Babicka".
A celebração dos 120 anos do livro "Babicka", da escritora tcheca Bozena Nemcová, inspirado na figura humilde e luminosa de sua avó materna, justifica esta reunião, que se realiza, muito apropriadamente, no Centro Brasileiro da Associação Mundial de Escritores e ainda no Ano Internacional da Mulher. O livro universalizou-se, porque traduzido em numerosas línguas — e é "livro imorredouro" e "documento artístico de valor quase inexcedível", como diz Antônio Houaiss no prefácio da edição brasileira.
Bozena Nemcová, de pai austríaco e mãe tcheca, nasceu em Viena a 4 de fevereiro de 1820. Andava pelos seis meses quando a pequena família foi residir num vale poético do norte da Boêmia, pois seu pai entrou para o serviço dos senhores da região, um ducado feudal. A morada da família era uma casa isolada, a Velha Lavanderia. Aí passou a infância e parte da juventude e foi naquele cenário paradisíaco — talvez à sombra da grande tília do jardim, onde sua avó fiava no verão, e certamente sob as mesmas montanhas dos Gigantes que viram crescer a sonhadora Panklová, que tal era seu sobrenome de solteira, ou Barunka, como aparece no livro, ou Babette, como era chamada em casa — que Bozena Nemcová escreveu, em 1855 o romance que é a sua obra máxima: Babicka.
Pelo relato do livro, contava um lustro vida — era ela a mais velha de quatro irmãos — quando sua avó materna, Magdalena Novotná, analfabeta e sábia, veio morar com eles. E foi como se uma fada tivesse chegado — com suas vestes aldeãs, suas toucas engomadas, seu baú pintado de flores e de pássaros, onde, entre outros preciosos guardados, havia aquele avental que tinha a mesma idade da avó, aquele colar de cinco voltas de granadas, que ela recebera do marido no dia do casamento, e o escudo que o próprio imperador José, que amava perambular incógnito, dera, tantos anos antes, à então Magda juveníssima. Um mar de estórias foi chegando aos poucos ao conhecimento dos meninos, que ficaram logo cativos da avó, e bem assim os rifões empregados na hora exata, as ternuras e os conselhos partidos de um coração cheio de amor e de lábios que ensinavam a valorizar cada momento da vida.
Não tardou muito e a avó, acostumada ao labor, começou a dirigir a casa, mesmo porque sua filha também trabalhava no castelo. E "de tempos em tempos" — segundo conta a escritora "fazia com as crianças longos passeios: ora à casa do couteiro, ora ao moinho; ou então iam para a floresta, onde os pássaros entoavam belos cantos, onde sob as árvores se viam doces travesseiros de musgo, onde cresciam junquilhos perfumados, prímulas, cravos, anêmonas, tufos de loureiros e os belos lírios agrestes". Nesses passeios — as crianças talvez seguindo, encantadas, as corças e os esquilos ou colhendo morangos, flores, cerejas — muitas vezes o grupo encontrava a figura patética de Viktorka, os pés descalços, os olhos brilhando como "carvões acesos", os cabelos pretos espalhados, sem falar nunca e a avó tendo sempre a respeito dela uma doce palavra de compaixão. Raras outras, quando convidados e em domingueiros trajes, iam os cinco visitar a poderosa castelã (sempre designada como "senhora princesa" e, em verdade, a duquesa de Couriande) que respeitava e admirava profundamente tudo quanto dizia a velha camponesa. Assim decorreram os verdes anos da escritora. E não é de admirar que tivesse sido aquela grande mulher simples, em cujo quarto dormia, que lhe dava a bênção cada manhã, cujas palavras soube guardar como um legado, cujas histórias de anjos resplandecentes, de princesas com estrelas de ouro na testa foram o primeiro toque recebido pela futura ficcionista — a sua maior e mais entranhada influência.
Aos 17 anos, casou-se Bozena com um austero burocrata, Josef Nemec, e teve quatro filhos. União infeliz, mãe amorosa, vida marcada de lutas e de golpes, Mas, sempre heroica, escreveria mais tarde a um de seus filhos: "Em minha vida, experimentei muitas dores e amargas decepções. Já me encontrei à beira do desespero, mas jamais perdi minha fé e meu amor pela humanidade".
"Depois do nascimento do seu quarto filho — escreve Milena Novakova, presidente da Sociedade de Amigos de Bozena Nemcová — ela conseguiu instalar-se em Praga. Foi assim que, aos 22 anos, se encontrou na companhia de escritores e sábios animados de um ardente patriotismo, que descobriram seus dons intelectuais e a incitaram a escrever. Ela começou pela poesia, passou a narrar em prosa as lendas nacionais e tornou-se logo uma mulher de letras de reconhecido talento."
Pelo que tenho pesquisado, além de "Babicka", escreveu, Bozena Nemcavá, entre outros e sem contar os abundantes trabalhos publicados nos jornais, os seguintes livros: "O Senhor Professor", onde se modela uma figura ideal de mestre; "Contos e Lendas Eslovenas" e o romance "Aldeia de Montanha", onde ela prega, como o fazia em numerosos artigos, a afirmação da mulher como pessoa humana e sua "participação direta na edificação do mundo". Uma pioneira, portanto. Louvo-me, para tal conclusão, no ensaio que escreveu em 1940 sobre "Bozena Nemcová Lutadora" — outro grande vulto das letras tchecas, Julius Fucik, assassinado pelos nazistas e autor de "Testamento sob a Forca".
Sofrendo perseguições do poder austro-húngaro pela sua posição no movimento irredentista nacional e que enfrentando privações, sacrifícios, enfermidades, dores que culminaram com a perda do amado Hynek, seu filho mais velho, refugiou-se no maravilhoso vale da sua infância e, buscando talvez o consolo de revivê-la, escreveu "Babicka". Quer dizer: forjou um dos livros mais admiráveis da literatura universal, mais ricos de aspectos e de quadros, romântico e realista a um tempo, magistralmente preso à terra e às raízes.
A grande escritora faleceu em Praga a 21 de janeiro de 1862, e foi chorada pelo povo e pela intelligentzia, celebrada pelos tribunos e pelos poetas. Por ocasião do centenário de sua morte, entre outras homenagens, a pátria tcheca já lhe havia erguido um monumento e dado seu nome a uma sala no museu de literatura nacional, em Praga, e já "Babicka" era lido em 52 línguas, como declara a mencionada biógrafa. Pode, pois, o nome glorioso da Nemcová ecoar na 11ª Assembleia da UNESCO — através do ardente discurso que, sobre a data, pronunciou o Dr. Adolfo Hoffmeister. Trechos dessa oração que li em publicação europeia, tive a iniciativa de traduzir e apresentar em minha coluna "Nós e o Mundo", de "Gazeta de Notícias", o tradicional matutino que está festejando o seu centenário.
Agora, chegou a vez de exaltar a realização de "Edições O Cruzeiro" publicando em 1958, na sua coleção Romances Eternos, a tradução de "Babicka", feita da célebre versão francesa de Thiérot, que data de 1900. Ruth Saltes traduziu "La Grand'Mère" e "A Avó" traz prefácio do nosso eminente Antônio Houaiss, que situa a obra como "um marco miliário importante na evolução e caracterização da prosa tcheca".
Torno a confessar que o livro me empolgou inteiramente com sua beleza, sua autenticidade, sua estonteante riqueza folclórica. Classificado como romance, contém vários romances. Entre eles: o da avó, o de Kristla, a linda filha do dono do albergue, e a pungente tragédia de Viktorka.
Viktorka, a moça que era como uma rainha na sua aldeia e que perdeu o sossego depois que o soldado negro passou a fixá-la e persegui-la. Que deixou noivo, pais, irmã, casa, fortuna e desapareceu para voltar um dia louca; morar anos e anos na floresta, abrigada numa gruta entre pinheiros; vagar, arisca e selvagem, com ramalhetes nas mãos, com flores no vestido em andrajos; recusar tudo que lhe dessem (pois todos a amavam), exceto algum alimento, principalmente pão, que, nos dias gelados do inverno e deixando marcas vermelhas na neve, mendigava, batendo nas portas e estendendo a mão; e morrer fulminada por um raio em noite de tempestade.
Algum tempo depois de sua volta, viram-na sair do bosque banhada de luar, aproximar-se da barragem, jogar alguma coisa nas águas e desde então, pelo crepúsculo, ir ali cantar:
Dorme, filhinho, dorme.
fecha teus olhos e dorme.
Que Deus do céu te proteja
e teu anjo guarde e veja.
Dorme, filhinho, dorme.
Romance, biografia, memórias, folclore — foi o livro patrioticamente escrito na língua materna, assim contribuindo para a consolidação da literatura tcheca. Muitos personagens nele se movem, mas a figura central é a velha avó, dona de segredos, rica de dons, pura, jovial e terna, que sabia amar e entender o semelhante, atrair o bem-querer da comunidade, cumprir com humilde grandeza o difícil exercício de viver. Dir-se-ia que andara em universidades de bom-senso e, muito mais de um século antes de serem codificadas como disciplina, fizera cursos de relações humanas.
"A Avó", descrevendo os costumes de toda uma região através de uma série de quadros que pingam vida e poesia, apresenta inúmeras facetas para serem estudadas: os profusos diálogos, a vida familiar, as peregrinações, as visitas, a exuberante flora, as estórias de amor, as danças, as lendas, as bordas, as múltiplas intervenções da avó para as soluções felizes dentro e fora do clã — e tantas outras, entre as quais a que me parece tudo representar: as festas, não as singulares, mas as coletivas e periódicas.
Elas intercalam-se por todo o volume e, reunidas, poderiam oferecer o próprio sumo do livro. Revestidas sempre pela magia das cores locais, abrangem o calendário de ponta a ponta, algumas parecendo coincidir com os equinócios e solstícios, numa comunhão da religião com a terra, da terra com o mito solar. Seu conteúdo mais fascinante está nas comemorações do inverno, que se iniciam quando a avó desperta os netos (e há aquele alvoroço) para anunciar a chegada de São Martinho, montado no seu cavalo branco. (A neve já cobria com o seu manto o vale todo.) As estações são marcadas e recebidas ritualmente. Mudam os hábitos, as comidas. No inverno, desce a roca do sótão, chegam as limpadoras de penas à Velha Lavanderia e, enquanto "na lareira crepitava a lenha resinosa", estendem-se os animados serões das fiandeiras — com ervilhas assadas, peras cozidas, ameixas, risos claros, estórias de assombrações. Erguem-se pela manhã os cânticos do Advento, entoados pela avó, e seguem-se as copiosas celebrações do Natal — onde não podia faltar o hóspede à mesa, nem a trombeta do pastor — e as dos Reis Magos, estas sucedidas pelo "serão longo" e pela representação de Santa Doroteia. Os festejos do carnaval com trenós e guizos — terminam com uma grande mascarada e são o epílogo do inverno. Novamente os cânticos da avó, na sua roca e vestida de luto, agora assinalando a Quaresma. E chega-se ao domingo florido de Ramos, à quinta-feira santa, único dia do ano em que eram feitos os deliciosos judas-com-mel, ao sábado branco (Aleluia) e ao domingo da festa de Deus — com ovos tintos, o carneiro imolado e as rondas da Páscoa, entoadas pelas crianças. Já as andorinhas tinham regressado, já os dias se alongavam e, no limite de primavera e verão, vem as festas de Pentecostes, que a avó chama de "festas verdes", pois enfeita a casa toda de galhos de bétulas. A noite de São João é uma das mais significativas, porque é também comemoração onomástica, banquete doméstico. Mas o ponto romântico é quando a avó surpreende a jovem Kristla com as nove flores do ramo da sorte — e lembra-se de Magdalena em flor jogando a coroa, de costas, no alto de uma árvore. Depois vem agosto e começa a colheita na rural região. A festa dos segadores marcará o final da colheita do trigo.
O trigo e o pão. Para a avó o pão é algo sagrado. Sua feitura é um rito, seu modo de cortar deve ser certo. Com o sal simbólico, oferece-o às visitas. Dele nada é jogado fora: junta as migalhas e leva-as com fervor às aves, às formigas, aos peixes. E, quando prepara a merenda para os netos, põe na cestinha de junco e nas sacolas de couro, ao lado dos frutos secos, uma verdadeira torta de pão, pois ocou, antes, um farto pedaço, revestiu-o de creme e adicionou toda a polpa do miolo. Para a avó, o pão é festa de cada dia, é bênção, é "dom de Deus".
Como se está vendo, tudo, neste livro, gravita em torno da figura extraordinária de Magdalena Novotná. Ele começa com a sua chegada à Velha Lavanderia, quando a caçulinha Adelka ainda era carregada no colo, e termina no dia de sua morte. Nesse dia, os netos, já moços, haviam voltado de diferentes pontos, um a um, para cercá-la com o culto da sua gratidão. "O vale inteiro chorou" e a senhora princesa, ao ver, da janela do castelo passar o longo cortejo, enquanto os sinos dobravam em honra da camponesa morta, exclamou comovida: "Foi uma. mulher feliz". O que ela não sabia, no entanto, é que a camponesa morta que fora uma mulher feliz — graças ao talento da sua pequena Babette, ia continuar a viver. E, identificada com o vulto bem-amado da duas vezes mãe, que todos temos ou tivemos um dia, a emocionar, em qualquer lugar e qualquer época, todo aquele que leia as páginas imortais de "Babicka", a Avó.
(Palestra publicada na revista "Convivência", órgão do PEN Clube do Brasil).
O poeta que pinta o cosmo
Conheci mais profundamente Ely Braga — consagrado pela crítica e por um público fascinado — em plena fase superespacial. Mas o seu espaço já era colorido e não o pitagórico, onde apenas ressoa a música das esferas. Ele explodira como abstrato em 61 e, na sua ordenada inquietação, partira para novos caminhos e descobertas. Foi aí que me perdi em suas nebulosas, mundos, sóis, projetados — ou sugeridos — nas cores soberbas que só ele é capaz de criar, sobre os matizados fundos em que se joga primeiramente o subconsciente do artista (pois este é o seu processo de criação) para, tendo forjado o espaço, nele compor a mensagem, nele divagar o poeta.
A diferença, na mostra de agora, é que parte do seu público fascinado — vi e admirei as telas antes de serem expostas. Ainda quentes das tintas mágicas, das mãos criadoras. Todas trazendo o timbre do caminho novo: o abstrato-figurativo, embora não inteiramente despojadas da estrutura espacial, dos arroubos cósmicos que marcaram, por longo tempo, a obra de Ely Braga.
Assim, entre os sete pássaros abstratos, um deles me pareceu um peixe nadando nos mares-ares da amplidão. O pássaro dourado é uma fulguração de amarelos, de manhãs. O denominado "orgia no espaço" é uma quase bacanal em branco e verde do trio esguio (do trio em cio?). Assim, o "reflexo de uma libertação", em fundo ouro-poente, e a "festa no céu", em lilases esgarçados sobre matizes azuis. Sempre o corte das amarras, o movimento, a palpitação — em todas essas aves-barcos do infinito.
Beleza de arlequins com sugestões de balé — o solitário em fundo vermelho, e os dois perdidos no espaço, verdes dançarinos no azul-piscina do céu.
Já "a grande senhora" — rosto e mãos em verde-ausência entre os rubros de um triângulo (corpo e saia de Madona ou árvore festiva de Natal?) — e "quando o branco é cenário de uma ruína" — este uma composição em branco e petróleo, lembrando desmoronamento, desintegração — talvez sejam as mais laboriosas telas do grande artista nos últimos tempos.
As quatro naturezas mortas são naturezas vivas e as mais figurativas da coleção: buquês de flor dentro de jarras, em cores superpostas, saltando em relevo, inconfundíveis, perenes.
Tudo isso criado no estúdio de Ely Braga, o artista em sua belíssima cobertura, na companhia do silêncio e vizinhando com a paisagem tranquila e verde dos morros e das árvores — enquanto, nas telas, explodem suas odes plásticas e seus pássaros desfilam no voo da libertação.
(Abrindo a exposição inaugurada a 28 de setembro de 1978, na Nouvelle Dezon — Galerie d'Art).
Lacerda Coutinho humanista e poeta
O Dr. José Cândido de Lacerda Coutinho(*) médico, poeta, professor, teatrólogo, articulista, poliglota, parlamentar, extraordinário latinista e um dos maiores eruditos de Santa Catarina em todos os tempos — nasceu em Nossa Senhora do Desterro a 15 de dezembro de 1842. Na terra natal fez as primeiras letras e, com os jesuítas, cursou humanidades. Em 1862, veio para a Corte estudar medicina, mas, antes de terminar o seu brilhante curso, eis o jovem catarinense se notabilizando por duas atuações: tomou parte na Guerra do Paraguai como interno no hospital de Corrientes e publicou seu poema épico "Greenhalgh" em homenagem ao herói que tombara em Riachuelo e fora seu fraterno amigo. Lacerda Coutinho terminou o curso, defendeu tese sobre "A Teoria das Sensações" e exerceu a medicina e com igual proficiência o magistério. O amor à terra natal e a saudade levaram-no a fundar, no Rio de Janeiro, a 25 de novembro (dia de Santa Catarina) de 1886, o Centro Catarinense. Nos princípios da República, foi nomeado por Benjamin Constant para a Secretaria da Justiça e Integrou a bancada catarinense na Constituinte de 1891, sendo que antes já cumprira uma legislatura na Assembleia Provincial, o que mais uma vez demonstra a permanência dos seus vínculos com a terra onde nasceu. A 2 de novembro de 1900, faleceu aqui no Rio, contando 58 anos incompletos.
Quanto à sua obra, deixou-a quase toda inédita. Pelo que constatei, além do poema dos seus verdes anos, viu publicados: uma ou duas peças de teatro, que foram representadas em Santa Catarina; sua tese de doutoramento; suas traduções de Daudet e Júlio Verne; sua assídua colaboração na Gazeta de Notícias, Jornal do Comércio e em revista semanal ilustrada por Ângelo Agostini; e seus discursos pronunciados na Constituinte, nos quais, segundo Araripe Júnior, ele demonstrou os seus dons de dialético(**).
Sua obra literária, pouco extensa mas, em compensação, densa e alta — foi publicada entre 1910 e 1917 pelo seu filho, Dr. João Francisco de Lacerda Coutinho. É constituída de três volumes: "Ovidianas", "Lendas Escandinavas" e "Páginas Soltas". Trazem eles longas introduções interpretando com louvor e respeito o homem e o intelectual, assinadas por nomes importantes da cultura brasileira, entre os quais Ramiz Gaivão e Araripe Júnior.
As "Ovidianas" são uma paráfrase das "Metamorfoses" de Ovídio. Poesia erótica muito bem construída, foi consignada e ressaltada por Afrânio Peixoto na sua História da Literatura Brasileira e chamada por João Ribeiro, de tal forma sugerem uma recriação, de Novas Metamorfoses. O volume traz abundantes ilustrações, adequadas ao texto, de autoria de Raul Pederneiras.
As "Lendas Escandinavas" são poemas dramáticos, canções de gesta, tradições e sagas colhidas no latim, dos 16 livros de uma das obras raras da literatura universal: a História Dânica ou Gesta Danorum, de Saxo Grammaticus, o Tito Lívio da Escandinávia. A História Dânica, de que Shakespeare ia tirar o Hamlet, daria ao muito saber do humanista catarinense a oportunidade de escrever esse livro precioso e talvez único em língua portuguesa.
As Ovidianas e as Lendas são ainda enriquecidas: com as sábias anotações do autor e nos dão a dimensão, da sua enorme cultura clássica e do seu valor incontestável como poeta e como prosador.
As "Páginas Soltas" incluem o famoso poema publicado e os demais que deixou inéditos, heróicos, líricos e epigramáticos, alguns datados do Desterro e numerosos trazendo as cores e os ares da ilha natal. Do volume faz parte a primorosa coletânea "Esboços", que vou apreciar.
Antes, porém, quero relatar um fato que nos dá a medida do caráter e da altivez de Lacerda Coutinho. Seu poema "Greenhaigh" despertou cálidas admirações, principalmente da parte de José Feliciano de Castilho, que o leu em sessão especial da Arcádia Fluminense, sendo o nosso poeta ovacionadíssimo. Convidado para outra sessão, presidida pelo Imperador, algo ocorre e Lacerda Coutinho retira-se. Para melhor interpretar seu gesto, é mister avançar no conhecimento do homem.
Pelo que pude pesquisar, posso concluir que duas contradições lhe nuançam a personalidade e que uma constante avulta no contexto. As contradições: o varão austero, inatacável, faz por vezes uma ousada poesia erótica; o homem esquivo, desencantado, melancólico escreve epigramas. A constante: sua áspera intransigência, sua absoluta incapacidade de compactuar com tudo que lhe ferisse a independência e a dignidade. Nessas ocasiões a reação era uma só: a retirada, a evasão. Deixava o grupo como o único modo de ser e de se declarar livre. Mas se, ao longo da vida do humanista, sempre foi esse o seu comportamento, no caso referido há conotações merecedoras de registro: muito novo era ele e muito alto o personagem que teve de enfrentar, porquanto menos que Sua Majestade Imperial, o Senhor D. Pedro II. Ora, todos nós sabemos que, entre as qualidades do Imperador, embora seu amor pelas coisas do espírito, não estava a de ser mestre da poesia. Apesar disso e prevalecendo-se do seu régio posto, tentou impor ao vitorioso estreante alterações em alguns de seus versos. Mas Lacerda Coutinho não cedeu nem silenciou: manteve o seu texto. E retirou-se em seguida.
Esboços são 33 sonetos e não trazem data; mas, pela temática e pela feitura, trazem a data da maturidade. Além disso, os costumes e tipos que descrevem são característicos dos fins do Império e começos da República — época em que o poeta vivia a sua idade outonal.
Esboços parece-me um título modesto; já que se trata de desenhos nítidos e acabados, alguns com fortes traços eternos. No entanto, denuncia a consciência que tinha o autor dos seus dons plásticos. Realmente, Lacerda Coutinho é poeta de aguda sensibilidade visual, de notáveis qualidades pictóricas. Assim dotado, não se compraz em traçar quadros estáticos, como seriam, por exemplo, quase todos os "Cromos" de B. Lopes. É uma pintura de movimento a sua. Pintura dinâmica, cinemática, encerrando, às vezes, num sonetilho, séries de quadros objetivos e psicológicos. Apreciemos, neste ponto, "A Missa do Natal":
Chega a missa do Natal;
não tarda a tocar matinas.
— Vão-se aprontando, meninas,
já deu segundo sinal.
Despe Júlia o avental;
Maria calça as botinas,
traz rosas, cravos, cravinas
Ana, a preta, do quintal.
Caiu-me um brinco! Esta agora!...
— Não me amarrotes, Florinha!
— Ai! Dê-me um lenço, titia!
Toca o sino... — Ana! — Senhora?
— Fecha a porta da cozinha!
Vamos com Deus e Maria!
Agora, eis a filmagem de uma procissão nos belos alexandrinos de "Nosso Pai":
No silêncio da noite ecoam badaladas,
tocando a Nosso Pai; eis já devota gente
acode à sacristia e busca diligente,
nos gavetões do arcaz, as opas respingadas.
Acendem-se brandões, lanternas hasteadas;
o préstito caminha, alçada cruz à frente;
debaixo de uma umbela, em vaso reluzente
leva o Padre Vigário as hóstias consagradas.
Ao tanger da sineta, avulta o ajuntamento;
entoa-se o Bendito, a sólita oração;
e a rua se ilumina, em pio acatamento.
Ante uma porta aberta estaca a procissão.
Ali, onde um enfermo espera o Sacramento,
a alfazema rescende; há flores pelo chão.
Dentro do realismo dos seus animados painéis, mostra vezes muitas o que de resto borbulha em grande parte de sua poética: o seu fino espírito humorístico. Podemos apreciar esta faceta em "A Boda":
Chegou a boda enfim! Corre à janela
a vizinhança toda. Os curiosos
grupam-se em torno dos coupés vistosos
por ver se é moço o noivo e a noiva bela.
Entram... Flores, abraços, beijos...
Ela baixa, corando, os olhos radiosos;
mas ele... abraça, à espera de outros gozos,
quanta priminha conta a parentela...
Pelos pais e padrinhos escoltados,
fazem solene entrada no salão,
onde encontram amigos, convidados.
Após discursos mil de ocasião,
após mil cumprimentos estudados
o clássico sofá ocupar vão.
Como pintor, conhece todas as modalidades das emoções ligadas à paisagem ou às sensações do colorido e da forma, desde a placidez virgiliana de "A Fazenda" com seu enquadramento verde e seu ambiente de trabalho sossegado,
"as senzalas, o engenho, as roças, os currais
e os gados que apascenta a ubérrima campina",
até o humorismo de pesadelo, o realismo fantasmagórico que inspira a sombra móvel, pequenina ou gigantesca, do vulto que, à luz mortiça dos velhos lampiões, caminha embriagado pela "Noite Chuvosa":
Horas mortas; a noite é de invernada;
um aguaceiro cai de instante a instante;
dos lampiões a luz tremelicante
reflete aqui e ali a água empoçada.
De um vulto humano a sombra projetada
ora o segue, ora passa-lhe adiante;
agora o faz anão, depois gigante;
estampa-se nos muros, na calçada.
A lufada do vento, pelas beiras
e grimpas dos telhados assoprando,
sacode e espalha os pingos das goteiras.
Na encharcada, erma rua patinhando,
caminha o vulto, a esbravejar asneiras
e a escorregar também de quando em quando.
Lacerda Coutinho não se contenta em poetizar os dramas e as comédias da humanidade. Chega, também, ao mundo dos bichos, interpretando-lhe as reações psicológicas com a sua ironia e a sua compreensão. Desceu aos terreiros antes de Edmond Rostand e sintetizou, em plásticos alexandrinos, todo um drama da tribo galinácea. Notemos ainda este fato: é anterior à de Rostand a obra de Lacerda Goutinho, mas vamos encontrar quase todos os personagens de "Chantecler" em "O Terrreiro":
Faz um sol de rachar que esbraseia o terreiro.
Opressas, a arquejar, as aves encalmadas
abrem asas e o bico; algumas avisadas
procuram refrigério à sombra do poleiro.
A dormitar no chão, estremece o rafeiro,
e, a trincar moscas, vinga as duras ferretoadas
que o não deixam em paz. Em águas encharcadas
dos marrecos mergulha alegre o bando inteiro.
O galináceo rei ergue o canto garrido;
breve momento após, de uma cerca vizinha,
é, como em desafio, o canto respondido.
Mas sucede cortar o espaço uma andorinha:
solta o grito de alerta o galo precavido
e a ninhada se esconde embaixo da galinha.
Falei há pouco em realismo e ante os "Esboços" pelo menos não se pode em verdade classificá-lo um romântico. E há ainda, corroborando, aquela preferência pelos cenários e personagens da classe média e das camadas populares, que vamos encontrar na obra dos realistas da prosa.
Mostra, por exemplo, de um quadro da vida proletária — é o que nos descreve em "O Cortiço":
Duas séries de casinhas,
ao meio um pátio comum,
onde pode cada um
soltar cães, criar galinhas;
cedo, às portas das cozinhas,
mulheres, ainda em jejum,
lidam sem recato algum,
a disputar com as vizinhas;
tinas d'água com sabão,
roupas em corda estendidas,
outras roupas pelo chão;
à noite, em horas perdidas,
tocatas de violão
do cortiço às avenidas.
Em "A Rendeira", contudo, há quase um remanescente de fidalguia. Não é a conhecida rendeira catarinense, a pobre artesã ilhoa, que dos bilros tira rendas, que das rendas tira pão. É a rendeira que mais parece senhora e dona de sua casa — fazenda tranquila ou urbana mansão — e se tece é que tem lazeres e que só tece para entreter-se. Ei-la:
Sentada na marquesa, as pernas encruzadas,
óculos no nariz, uma almofada em frente,
vai os bilros trocando a velha diligente
e aproveita da tarde as horas avançadas.
Num picado papel as linhas entrançadas
com alfinetes prende; e, com mão já tremente,
logo outros fios tece. Estalam brandamente
os pequeninos paus de formas torneadas.
Coa enfim dúbia luz a aberta gelosia;
já o morcego esvoaça; a ave se empoleira;
canta a estiva cigarra ao despedir-se o dia.
Guarda então o lavor a próvida rendeira
e, ao badalar o sino, ao longe, a Ave Maria,
persigna-se, sacando as contas da algibeira.
Tempo de concluir o nosso passeio lírico, embora tantos aspectos não tivessem sido captados no caminho. Nem aquela pequena tela dourada de sol e de infância. Nem aquele recorte pitoresco de serão laborioso e modesto. Nem tantos outros. Mas, neste final de passeio, não podemos deixar de conhecer um quadro em que o poeta parece vibrar, participar. E de tal maneira nos comunica sua emoção que se torna vivo, presente, atual. É quando descreve uma batalha. Não movida pelo ódio, mas travada em nome da eugenia e da beleza. É a competição amável de uma regata, na qual destros marujos — nacionais e "gente estranha", como diz o poeta — lutam com garbo varonil pelas bem-amadas cores de suas pátrias.
E Lacerda Coutinho aponta os barcos na hora inicial:
"Dois batéis — branco e azul — contendem à porfia"
Em seguida fixa as posições:
"por algum tempo vão correndo emparelhados,
mas, instantes depois, já vogam distanciados
e ora um, ora outro alcança a primazia."
Agora, ele observa que os adversários estão perdendo:
"Até que, afinal, exausta, a guarnição desmaia no cerúleo escaler"
Em consequência, cresce o ímpeto dos rivais:
"alentam-se os rivais;
apertam mais o remo e acercam-se da raia".
Finalmente, a vitória e o poeta canta:
"O veloz batel branco abica enfim ao cais;
imenso grito ovante estruge pela praia:
— o vencedor arvora as cores nacionais!"
(*) Patrono da cadeira nº 23, da Academia Catarinense de Letras, de que é titular o eminente professor Altivo Flores.
(**) Possuidora de uma foto de todos os membros da bancada, ofereci-a ao Centro Catarinense — em noite comemorativa dos 70 anos da morte do seu fundador.
(Palestra pronunciada na sede central do PEN Clube, tendo a radiosa declamadora Marita Pinheiro Machado apresentado os poemas dos "Esboços". O mesmo ocorreu quando a autora teve Lacerda Coutinho como seu patrono no Centro de Estudos e Atividades Artísticas, em sessão realizada no Salão de Arte Marita Pinheiro Machado, em Copacabana, e foi brilhantemente saudada pela professora Ilza Tostes. A convite, a palestra foi repetida no Clube de Engenharia, quando os poemas mencionados na conferência tiveram como intérprete a bela atriz Neila Tavares.)
Remembranças
Depoimento de Adelino Magalhães
Adelino Magalhães foi um dos escritores de alto valor que compareceram ao Centro Catarinense por ocasião do Currículo Cruz e Sousa. E deixou, de próprio punho, o importante depoimento que vai abaixo transcrito:
Assisti a duas conferências da série organizada inteligentemente por Maura de Senna Pereira em homenagem a Cruz e Sousa. Na primeira, Tasso da Silveira focalizou o interessantíssimo aspecto do Poeta Negro, tradutor excepcional da alma brasileira, apesar de sua ascendência puramente africana. Na segunda a que assisti e a última da série, Andrade Muricy reproduziu para o público uma verdadeira galeria de retratos escritos do poeta, feitos por vários contemporâneos ilustres. Tive notícias de outras conferências aplaudidas por público sempre numeroso e a minha impressão final é a de que a série representou um autêntico movimento cultural, chegando até a alto plano de refinamento.
Repercussões
A repercussão do Currículo foi enorme desde a sua programação, dele falando seguidamente os colunistas literários e mencionando-o os suplementos dedicados a Cruz e Sousa na data do centenário. Eis, por exemplo, o que escreveu a revista "Leitura" dois meses antes de iniciado o ciclo:
"O Centro Catarinense vai comemorar o centenário de Cruz e Sousa, executando o programa organizado pelo seu Departamento Cultural, que está sob a responsabilidade da poetisa e jornalista Maura de Senna Pereira. Haverá dois concursos, ambos com prêmios: o primeiro, aberto a artistas plásticos, premiará as duas melhores ilustrações a sonetos de Cruz e Sousa; o segundo, de monografias sobre o grande simbolista catarinense, será aberto aos frequentadores do Currículo Cruz e Sousa... Receberão certificado os assistentes que tiverem frequência integral. Podemos também adiantar que o Centro Catarinense figura como entidade copromotora da grande exposição retrospectiva que a Biblioteca Nacional inaugurará em novembro, mês do centenário celebrado e que a Editora Aguilar, ao ter conhecimento das iniciativas do Centro Catarinense, vai oferecer exemplares da edição de luxo das Obras Completas de Cruz e Sousa como prêmios aos vencedores dos concursos."
Na página inteira que dedicou ao evento, no "Jornal do Povo", de Itajaí, o jornalista Antônio Augusto Nóbrega Fontes, que fora testemunha da organização do Currículo, na qualidade de também membro da diretoria, escreveu:
"No Rio de Janeiro, dentre inúmeras outras manifestações, duas se destacaram pela sua importância e profundidade nas comemorações do centenário de Cruz e Sousa. A primeira, patrocinada pelo Centro Catarinense, deveu-se ao organizado trabalho de Maura de Senna Pereira. Ela mesma idealizou em todos os seus detalhes o Currículo Cruz e Sousa, magnífica série de conferências proferidas por uma elite intelectual de biógrafos e estudiosos da vida e da obra do grande catarinense.
Outro ponto alto das comemorações foi a exposição realizada pela Biblioteca Nacional."
(Lembrarei que a grande mostra, inaugurada com a palavra lúcida do escritor Adonias Filho, diretor da Biblioteca, e valiosa desde o Catálogo — que tem na capa, sobre o lilás do simbolismo, versos autografados do "Velho Vento" — foi principalmente organizada pela senhora Ilda Centeno de Oliveira, competente chefe da Seção de Exposições.)
O líder
Em várias ocasiões e no artigo que escrevi em minha coluna "Nós e o Mundo", intitulado "Um Currículo, um Presidente", pude exaltar a figura de Max, Tavares d'Amaral, com quem tive a honra de assinar o manifesto ao quadro social e à colônia catarinense, apresentando o programa das comemorações. Presidente do Centro e do Currículo, Dr. Max prestigiou inteiramente as iniciativas do Departamento de Cultura da entidade barriga-verde e fascinou sempre o auditório com sua simpatia e sua eloquência. Culto advogado e ex-parlamentar (ele assinou a Constituição de 46), autor de ensaios que devem ser publicados — o ilustre catarinense merece ainda ser lembrado pela sua figura humana e como líder compreensivo e amigo que mostrou ser nos anos em que esteve à frente da Casa de Santa Catarina.
As premiações
Como já foi registrado, houve dois concursos: um de monografias sobre Cruz e Sousa, aberto aos alunos inscritos no Currículo, e outro, de ilustrações a poemas do homenageado, aberto aos artistas plásticos.
A comissão julgadora do primeiro, constituída por Adonias Filho, Edison Carneiro e Valdemar Cavalcanti, opinou pela concessão do Prêmio a Márcio Tavares d'Amaral, autor do trabalho "Cruz e Sousa — o Poeta e a Poesia". Márcio, então adolescente, iniciou, pois, vitorioso a sua carreira, já sendo hoje autor de alguns apreciáveis títulos e tendo publicado recentemente "Entre Barro e Nuvem", que foi destaque na safra poética de 81.
Quanto ao concurso de ilustrações, compuseram o júri os professores Quirino Campofiorito, Jordão de Oliveira e Telmo de Jesus Pereira, que deram o primeiro lugar à universitária Dilce Jardim Vianna, autora do trabalho inspirado no primeiro verso do soneto "Música Misteriosa". Foram concedidas três menções honrosas, tendo figurado os quatro trabalhos na exposição comemorativa da Biblioteca Nacional, de que participou com numerosas peças o Centro Catarinense.
Os prêmios consistiram em exemplares de luxo de "Cruz e Sousa, Obra Completa", oferecidos pela Editora Aguilar, cada exemplar constituindo por si só um galardão.
Os prêmios, bem como os certificados aos alunos com frequência integral, foram entregues, entre saudações, na grande noite de 24 de novembro de 1961, data do centenário do Poeta Negro.
Um suplemento
Entre os suplementos que dedicaram páginas ao centenário do gênio catarinense, não posso deixar de mencionar o que publicou o matutino "Gazeta de Notícias". Ao lado do retrato de Cruz e Sousa, a nota que assim termina: "Gazeta de Notícias, onde o grande poeta trabalhou como repórter, não poderia omitir-se nas homenagens que se prestam à sua memória e consagra estas páginas ao nome glorioso de Cruz e Sousa e às correntes estéticas renovadoras, em que ele pontificou. "Entre versos do homenageado, artigos de Astério de Campos com epígrafes de Sílvio Romero e Cruz e Sousa e retrato de Nestor Victor — sobre "O Simbolismo de Cruz e Sousa"; do historiador, almirante Lucas Alexandre Boiteux (a quem a autora deve a segura orientação nas datas catarinenses que aparecem neste volume) sobre "Cruz e Sousa, o Aedo Negro"; de Almeida Cousin sobre "Anatomia do Simbolismo". Quanto a mim, participei com uma reportagem minuciosa, ilustrada de fotos, sobre "As Comemorações, no Rio de Janeiro, do Primeiro Centenário do Nascimento de Cruze Sousa".
Flores e símbolos
Na noite em que foram entregues prêmios e certificados, a diretoria do Centro Catarinense ofereceu, como homenagem de gratidão, belíssimos exemplares dos "Sonetos da Noite", de Cruz e Sousa, selecionados pelas Edições do Livro de Arte, de Florianópolis, com gravuras soberbas de Hugo Mund Junior, à então universitária Helena Maria Cunha Pontes (hoje casada nos Estados Unidos) que secretariou brilhantemente o Currículo, e à sensibilíssima artista Marita Pinheiro Machado, que o cobriu de flores e de símbolos.
O jardim de Marita — palmas nas mesas, buquês nas jarras — também ostentavam flores eternas: sonetos de Cruz e Sousa, belamente manuscritos pelo ilustre Pai da artista, ministro Dulphe Pinheiro Machado. E era sempre monocolorida a homenagem floral de Marita. Ora lembrando que "este caminho é cor-de-rosa", ora "de ouro". Às vezes trazendo no azul das hortênsias a tonalidade violeta do próprio simbolismo. Quase sempre, porém, branca, toda branca, as centenas, de carolas alvas, os gladíolos alvos como açucenas — simbolizando todas as "brancuras do mundo" com que sonhou o Cisne Negro.