Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Os franceses no Rio de Janeiro, de Moreira de Azevedo


Edição de referência:

Moreira de Azevedo. Os franceses no Rio de Janeiro.

Rio de Janeiro: Garnier, 1870.

OS FRANCESES NO RIO DE JANEIRO

ROMANCE HISTÓRICO PELO Dr. MOREIRA DE AZEVEDO

RIO DE JANEIRO B. L. GARNIER, LIVREIRO-EDITOR

RUA DO OUVIDOR, 69.

A

SEU IRMÃO

O Dr. MANUEL ANTONIO DUARTE DE AZEVEDO

LENTE DA FACULDADE DE DIREITO EM S. PAULO, E DEPUTADO À ASSEMBLEIA GERAL LEGISLATIVA

OFERECE

O Dr. MANUEL DUARTE MOREIRA DE AZEVEDO

ÍNDICE

AOS LEITORES

ESPERANÇAS PERDIDAS

O LEIGO

A ÁGUA MILAGROSA

AMOR DESDITOSO

OS DOIS IRMÃOS

INVASAO INIMIGA

DEPOIS DA VITÓRIA

GASPAR SOARES

A ENTREVISTA

FRANCISCO DE MORAIS

DUCLERC

A JUSTIÇA DE FRANCISCO DE MORAIS

DUGAY TROUIN

A ALÇADA

A CONFISSÃO

A CONFIRMACÃO DA SENTENÇA

DOIS CORAÇÕES MARTIRIZADOS

O PRESO

PESQUISAS

PARTIDA

A VOZ DA CONSCIÊNCIA

CONCLUSÃO

 

AOS LEITORES

O desejo de ir tornando mais conhecidos certos episódios da história pátria, de lembrar fatos notáveis de que rezam as crônicas, esquecidas e empoeiradas nos arquivos, de apresentar ao povo os vultos venerandos dos seus antepassados, nos tem levado a buscar assunto para nossos romances nos monumentos históricos, nas memórias da pátria, acreditando que até nos romances, nesses escritos ligeiros e imaginários, deve o leitor encontrar um eco do passado.

Lourenço de Mendonça foi a primeira tentativa do romance histórico, que o autor delineou e vestiu com simpleza e imperfeição; e este é o segundo ensaio, cuja urdidura saio da leitura das nossas antigualhas, porque é lá que vamos buscar inspiração para esses nossos trabalhos, a fim de caracterizarmos a índole, as tradições, os costumes do país em que nascemos e nos criamos, e registrar fatos que recordam glórias à pátria.

Cremos que a literatura, assim como a arte, deve ter um cunho nacional, e que mais profícuo torna-se o livro cujas raízes mais profundamente penetram no solo pátrio.

 

 

I

ESPERANÇAS PERDIDAS

Era no princípio do século passado.

Celebravam-se em Lisboa esplêndidas e pomposas festas para solenizar a aclamação e sagração do rei D. João V.

As casas particulares, as hospedarias, os conventos e outros edifícios públicos regurgitavam de gente, que concorrera das províncias do reino para assistir à festividade da aclamação do rei.

Teve lugar a solenidade em janeiro de 1707 com extraordinária pompa e riqueza, que deram logo indício do luxo e grandeza que deviam reinar na corte do novo monarca. Nunca celebrara-se em Lisboa festa de tanta magnificência.

O filho de Pedro II que, durante seu reinado, procurou imitar a Luiz XIV de França, quis cingir a coroa de Afonso Henrique com excessiva pompa; no dinheiro e luxo que dispendeu em sua sagração mostrou-se orgulhoso e parvo, como mais tarde havia sê-lo erguendo esse convento de frades, chamado basílica de Mafra, à custa das lágrimas e angústias de muitos de seus súditos, compelidos a trabalharem nesse monumento que, no dizer do fecundo romancista Camilo Castelo Branco, é um acervo de pedaços de mármore que tanto montam ali como nas pedreiras de onde os quebraram.

Entre os que haviam deixado Coimbra para assistirem na capital do reino à aclamação do jovem monarca notava-se Lopo da Silva, que com sua filha de nome Lúcia, alugara antecipadamente e por excessivo preço uma casa em uma das principais ruas de Lisboa.

Lúcia tinha vinte e oito anos, e era linda e dotada desses encantos e atrativos que, como um dom do céu, impressionam facilmente, e fazem pulsar o coração de todos que tem amor ao que é realmente belo.

Fabiano um de entre os milhares de transeuntes que percorriam as ruas de Lisboa, sentiu ao encarar o semblante dessa moça que, debruçada na sacada da janela via passar o préstito régio em direção à Catedral, uma emoção que agitou-lhe as fibras do coração, e produziu-lhe um abalo jamais experimentado pela sua alma.

Que seria; teria o semblante dessa moça despertado repentinamente no coração de Fabiano o sentimento do amor; teria a flama do seu olhar acendido na alma desse espectador dos festejos reais uma paixão de momento! E porque não?

Facilmente acordam as paixões em nossa alma quando experimentamos sensações que impressionam os sentidos; assim como o movimento vem imediatamente após ao pensamento, assim a sensação vem logo após a impressão, e o coração obedece ao sentimento como o cérebro à ideia.

Começou Fabiano a sentir pela filha de Lopo da Silva uma inclinação que jamais tivera por outra mulher, e desde então procurou vê-la todos os dias, e muitas vezes todos os dias.

E Lúcia amou desde logo a Fabiano, acolheu seu coração tão facilmente ao deus Cupido!

Não sabemos por isso que é mais misterioso o coração da mulher; porém não procurou ela esquivar-se aos olhares de Fabiano, antes parecia desejar vê-lo repetidas vezes, e ou por isso ou por uma feliz coincidência achava-se quase sempre à janela quando o moço atravessava a rua.

Julgou Fabiano ser tempo de declarar à mulher que o fascinara o estado do seu coração; e o fez por meio de uma carta tão banal como soe ser a correspondência de namorados. Respondeu-lhe Lúcia que votava-lhe vivo interesse, prezava-o como a um irmão, e só desse modo podia estimá-lo.

Mas não era esse o amor que nascera no coração inflamado como o dele, e para manifestar mais claramente o que ia-lhe pelo recôndito do peito, declarou Fabiano à Lúcia que desejava recebê-la por esposa.

Novo desengano.

A filha de Lopo da Silva fez ver ao pobre moço que um obstáculo insuperável a separava dele, e aconselhou-lhe se retirasse de Lisboa para não alimentar um amor sem esperanças.

Dizei ao naufrago que tiritando de frio, trêmulo de susto, com o rosto túmido, afadigado se agarra às pedras escorregadias da rocha que volte às ondas; dizei ao enforcado que quase desfalecido e exânime, com a respiração anelante cai do patíbulo que o suba de novo; aconselhai ao homem que ama apaixonadamente, que esqueça, afaste de si, abafe no coração o amor que é sua vida; e o náufrago, o justiçado, o amante vos responderam logo — não.

Pois foi esse o monossílabo pronunciado por Fabiano ao receber a segunda carta de Lúcia, e mais perseverante, mais apaixonado procurou todos os meios, esforçou-se por aproximar-se da mulher que amava, e dizer-lhe com o olhar incendido, o rosto abrasado o que ela talvez não compreendera nas linhas escritas no papel.

Tinha a casa de Lúcia um extenso jardim que se prolongava até à rua vizinha; conseguindo subornar um dos criados penetrou Fabiano no jardim onde sabia que Lúcia costumava aparecer, e então dir-lhe-ia quanto era puro e veemente o seu amor.

Realizaram-se as suas esperanças; Lúcia veio, e ao chegar ao extremo de uma álea de arvores percebendo-o quis fugir, mas Fabiano a deteve.

— Esperai, senhora, disse-lhe, não receeis, se vossa honra necessitasse aqui de defensor ninguém o seria tão decidido como eu.

— Mas, que desejais, senhor?

— Dizer que vos amo, D. Lúcia, é repetir-vos o que meus olhares, minhas cartas vos terão dito muitas vezes; mas deixai que com o ardor da paixão vos declare que adoro-vos, que puro e santo é este amor, e tão puro que Deus há de abençoá-lo junto ao altar; não é assim!

— Escutai-me; não fui estranha à impressão que me haveis dito ter-vos causado; vendo-vos senti por vós uma inclinação, uma simpatia que quase sempre nasce instintivamente, mas; Lúcia balbuciou.

— Acabai.

— Quis desenganar-vos, despersuadir-vos cedo para não alimentardes um sentimento que não pode subsistir.

— Por quê?

— Porque há um obstáculo que nos separa.

— Qual?

— Sou casada.

Ao ouvir esta palavra apertou Fabiano a cabeça entre as mãos, e soltou um profundo suspiro tão sentido como um gemido do peito. Visivelmente comovido disse ele.

— Como sou desditoso! Que grande obstáculo se antepôs à minha felicidade; mas devo por isso deixar fenecer todas as esperanças do meu coração, devo perder a fé no meu futuro; que dizeis Lúcia?

— Que posso responder-vos! Arrastado por um zelo exagerado de ciúme tornou-se meu marido injusto e ingrato, abandonou-me, e afastou de mim um filho que eu tanto estremecia; meu pai abriu-me as portas de sua casa onde espero viver até que meu esposo reconhecendo sua ingratidão, venha buscar-me, ou até que a morte me afaste do mundo. Assim, que posso prometer-vos; apenas posso aconselhar-vos que apagueis do coração esse amor infeliz.

— Não, já vos não posso esquecer, velarei pelo meu amor até que o destino nos una, se não neste mundo ao menos no outro.

Neste momento ouviram-se passos, e receando Lúcia que alguém se aproximava despediu-se de Fabiano, que apressadamente deixou o jardim.

Correram seis meses e durante esse tempo não houve dia em que Fabiano deixasse de passar pela rua, onde residia Lopo da Silva; continuara a sua correspondência amorosa com Lúcia, e repetidas vezes lhe pedira uma entrevista; mas, pretextando diversos obstáculos, esquivava-se a filha de Lopo, e apenas concorria à janela nas horas em que Fabiano costumava a passar.

Decorreu porém uma semana durante a qual conservou-se fechada a casa de Lúcia; tratou Fabiano de indagar se Lopo da Silva se mudara, e soube que se retirara para uma quinta nos arredores de Lisboa por achar-se a filha gravemente enferma.

Partiu o moço para lá, e no mesmo dia que chegou recebeu esta carta:

“Morro amando-vos. Deus salvou-me matando-me tão cedo; é uma pecadora quem vos diz. Desejava relatar-vos as dores que esse amor que me inspiraste me há causado, mas não quero dilacerar o vosso coração; seja eu só a vítima. Meu marido que tão injusto e cruel foi para comigo tornou-me esposa e mãe infeliz; afastou para longe de mim o meu filho Frederico que consta achar-se no Brasil. Se algum dia os ventos vos levarem a essas regiões longínquas amparai o meu filho, e encontre ele no vosso coração o amor que não achou no de seu pai. Eis o que em lembrança do nosso amor desditoso vos pede uma infeliz que prestes vai deixar a vida. — Lúcia. 

Ao terminar a leitura desta carta Fabiano caiu quase desfalecido; as lágrimas lavavam-lhe o rosto e os soluços sufocavam-no; cravando os cotovelos na mesa, e cobrindo o rosto com as mãos esteve muitas horas quedo, sem pronunciar palavra.

Quinze dias depois, na frota que se dirigia ao Brasil, deixava Fabiano a terra em que nascera para talvez nunca mais voltar a ela.

 

II

O LEIGO

Em uma manhã dos primeiros dias do mês de janeiro de 1708 batia à portaria do convento de Santo Antônio da cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro um homem com calções de estamenha, véstia de pano baixo, chapéu desabado e envolvido em um capote cor de azeitonas. Era ainda moço, mas apresentava no semblante uma melancolia que denotava a profunda dor que ia-lhe na alma. O guardião recebeu o desconhecido que declarou-lhe haver chegado de Portugal há poucos dias, e desejar professar na ordem franciscana como religioso leigo. Levado ao padre provincial, depois de exames e indagações necessárias, foi o desconhecido conduzido à casa do noviciado onde presenciou as penitências dos noviços.

Depois de feita a confissão geral abriu-lhe o pedagogo o cercilho, tirou-lhe as vestes e deu-lhe a capa preta, e conduzido descalço à igreja ajoelhou-se o noviço aos pés do prelado da ordem e repetiu-lhe:

— Muito reverendo padre, eu desejo deixar o mundo e servir a Deus nesta santa província professando nela a regra do padre S. Francisco; peço à vossa paternidade pelo amor de Deus que, sem atender ao meu grande desmerecimento, me admita na sua amável companhia e me lance o santo hábito.

Depois de breves perguntas para se reconhecer o firme propósito do candidato à ordem, das absolvições e indulgências plenárias, e de haver repetido a confissão foi frei Fabiano revestido do hábito e cordão.

Durante esta cerimônia conservara-se o noviço de joelhos, e terminados os hinos sagrados voltou à casa do noviciado com o mesmo cerimonial com que fora conduzido à igreja.

Decorrido o ano do noviciado em penitências e mortificações professou frei Fabiano como frade leigo.

Alguns meses depois pediu frei Fabiano de Cristo ser empregado como enfermeiro dos religiosos, e acedendo o provincial entrou frei Fabiano na enfermaria, estabelecida em um vasto salão na parte posterior do edifício do convento.

Começou então a vida santa e humanitária de frei Fabiano de Cristo.

Junto ao leito dos doentes e dos moribundos patenteou esse frade leigo inteira dedicação e muita caridade; administrava cuidadosamente os remédios e as dietas, consolava pacientemente aos aflitos, resignava aos moribundos, acudia aos gemidos de todos, e se não esgotava com os pobres enfermos a sua paciência e caridade.

Pedira para si a cela mais próxima da enfermaria, e se ali se recolhia para ter algum repouso, despertava-o prontamente o primeiro ai, o primeiro gemido dos doentes.

Rezam as crônicas do convento um fato que lembra a humildade e profunda resignação desse frade, que se devotara ao penoso encargo de enfermeiro.

Achava-se doente em um dos leitos da enfermaria um frade já idoso, que havendo pedido um caldo a frei Fabiano apressou-se este em trazer-lho, mas ou por estar o caldo mal preparado, ou pelo estado de excitação nervosa em que se achava o doente, arremessou este com a xícara sobre o rosto do enfermeiro que ficou com as faces envermelhecidas e queimadas. Resignado e humilde disse o leigo:

— Sossegai, meu padre, vou já preparar-lhe outro caldo.

A bondade, a resignação evangélica do humilde enfermeiro tocou o coração do religioso que, erguendo-se no leito, ajoelhou-se e pediu-lhe perdão.

— Desculpai-me, suplicou o padre velho, e por Nosso Senhor Jesus Cristo, vos peço não reveleis este insulto que irrefletidamente vos fiz.

Frei Fabiano tranquilizou-o, deitou-o, e prometeu-lhe que não diria a ninguém o que se passara entre ambos. Mas apresentando no dia seguinte sinais de queimadura no rosto perguntou-lhe o provincial que lhe acontecera: frei Fabiano recusou-se a dizer, mas ordenando-lhe o prelado, sob preceito de obediência que lho declarasse, tomou o enfermeiro um crucifixo, ajoelhou-se, e referindo tudo pediu pela imagem que tinha entre mãos, o perdão do culpado.

Suspendeu-o provincial, e abraçou-o elogiando sua humildade e bondade de coração.

A prática colhida na enfermaria fizera-lhe conhecer o uso e emprego dos medicamentos, assim como a diagnosticar as moléstias; por isso, logo que adoecia qualquer religioso ora o frade leigo quem receitava-lhe os primeiros remédios: e se o doente não desejava recolher-se à enfermaria levava-lhe o leigo à cela os medicamentos precisos, o que se permitia quando o mal era passageiro.

De dia para dia foi crescendo a proficiência do frade leigo, que começou a obter fama de entendido em moléstias e remédios; em pouco tempo os frades se não quiseram tratar senão por ele, porque só no frade leigo havia fé; começaram seus remédios e diagnósticos a ser considerados infalíveis.

Em breve espalhou-se pela cidade a fama do humilde enfermeiro dos franciscanos; tornaram-se conhecidas e estimadas suas receitas, e apregoado seu tino e felicidade no curativo das moléstias. Começou o povo a dirigir-se ao convento para consultar a frei Fabiano em suas moléstias, e pedir-lhe receituários; e eram sempre profícuas as aplicações aconselhadas pelo caritativo enfermeiro.

Muitos doentes, depois de haverem esgotado todos os meios de curativo, recorriam a frei Fabiano, e ouvindo-o achavam o lenitivo para seus males.

As repetidas e quase miraculosas curas operadas pelo leigo deram-lhe a reputação de santo, e por isso os ricos, os poderosos da terra, os pobres, os aleijados, os paralíticos arrastavam-se até ao claustro dos capuchos para suplicar ao leigo enfermeiro receituários à seus males

Já se não referiam curas, senão verdadeiros milagres realizados pelo virtuoso enfermeiro, que tornou-se respeitado de seus irmãos da ordem, e venerado pelo povo.

Se ia ver a algum doente, e apesar de achá-lo em estado assaz grave dizia que havia de restabelecer-se, assim acontecia, mas se prognosticava a morte, era certo terminar a moléstia fatalmente.

Adoecendo o mestre de campo Martim Corrêa Vasques que, com o bispo D. Francisco de S. Jerônimo e Gregório de Castro, regera interinamente a capitania, foi medicado por diversos cirurgiões, mas chamado o leigo frei Fabiano para vê-lo, declarou logo que o doente não podia durar mais de cinco dias, e assim aconteceu; em 25 de junho de 1710 faleceu Martim Corrêa, que levado no esquife da irmandade de S. Pedro, a que pertencia, teve jazigo na igreja da ordem terceira de S. Francisco.[1]

Logo que chegara ao Rio de Janeiro procurara Fabiano obter notícias do filho de Lúcia; havendo recebido o hábito e cordão de frade franciscano continuara as suas investigações, mas já haviam decorrido mais de dois anos sem haver descoberto qualquer nova de Frederico, tão cedo arrancado aos braços de sua mãe.

 

III

A ÁGUA MILAGROSA

Ainda existe no convento de Santo Antônio desta cidade um moringue que pertenceu a frei Fabiano.

A água dessa pequena bilha de barro era considerada milagrosa pelo povo, que aplicava-a em diversas moléstias, e referiam-se curas miraculosas operadas por essa água, quer pela fé que votava-lhe o povo, quer pelos ingredientes mais ou menos ativos que pudesse conter; principalmente como aplicação externa era de incontestável virtude, mas empregava-a o povo em todos os males externos e internos, e considerava-a remédio infalível.

Depois de esgotada toda a farmacopeia iam os doentes buscar a água de frei Fabiano, e em pouco tempo diziam-se curados.

Se em estado grave ouvia o doente o juízo desfavorável dos cirurgiões, se não aterrava nem perdia as esperanças antes de experimentar a água do enfermeiro do convento, remédio empregado em casos desesperados, e muitas vezes proveitosamente.

Não desejamos entornar no espírito do leitor ideias nocivas e supersticiosas, mencionamos os fatos como a tradição os conservou, e só podemos acrescentar que os sentimentos religiosos, a crença da época de que escrevemos, e a fé que se tributava ao frade leigo, tão humildemente dedicado ao curativo dos enfermos, podem explicar essas notícias que à primeira vista perecem embusteadas e ridículas.

Tornara-se frei Fabiano o médico predileto do povo, só nele havia fé, assim não só da cidade como do recôncavo, vinham indivíduos consultar ao enfermeiro do convento.

De um dos arrabaldes da cidade veio um moço quase cego apresentar-se ao humilde e caritativo leigo, que examinou-o, observou-lhe os olhos e receitou-lhe a água santa do moringue.

Começou o doente a usar do remédio que produziu-lhe melhoras sucessivas, e no fim de dois meses achava-se restabelecido.

Satisfeito e risonho dirigiu-se ao claustro a agradecer ao seu benfeitor o curativo.

— Havia empregado todos os medicamentos, disse-lhe o moço, mas inutilmente, e só o vosso remédio pôde curar-me a vista.

— Foi porque assim o permitiu a Providencia, meu filho, respondeu-lhe o leigo.

— E restituístes-me a luz aos olhos e a esperança ao coração.

— Pois já havíeis descrido, perguntou-lhe o frade em tom áspero.

— Sim, já havia descrido da felicidade e do amor. Há doze anos vim para o Brasil; era um menino de sete anos quando meu pai, sem eu saber o motivo, afastou-me repentinamente dos braços de minha mãe, e entregou-me a um capitão de navio que, partindo na frota que se dirigia a este país, conduziu-me consigo. Ao chegar nesta cidade fui levado à casa de um mercador que admitiu-me como caixeiro. Dez anos passei uma vida de tormentos e privações, mas depois desse longo cativeiro meu amo chamou-me, e alegre disse-me.

— Desde hoje ficas sendo sócio nesta casa.

Agradeci-lhe, e desde então começou uma nova vida para mim, adquiri liberdade e principiei a ter avantajados lucros no negócio. Porém pouco tempo sorriu-me a felicidade; sobreveio-me aos olhos, ativa e grave inflamação, e já acreditava-me cego quando comecei a usar do vosso remédio miraculoso.

— Não, meu filho, acrescentou o leigo, é uma simples mesinha; se vos fez bem foi porque a Virgem Nossa Senhora deitou-lhe a virtude.

— E quanto vos devo?

— Nada; é a caridade divina quem manda distribuir esses remédios preparados por nós pobres frades, que, devotados ao amor de Deus, devemos também amar muito ao próximo.

— Eu vos agradeço, tornou-lhe o moço, e ficai certo de que o cego Frederico, como já me chamavam, se não esquecerá jamais que vos deve o restabelecimento da vista.

— Dissestes que há doze anos viestes para o Brasil e que o vosso nome era.... retorquiu frei Fabiano como preocupado com alguma ideia.

— Frederico.

— E como se chamava a vossa mãe.

— Lúcia.

— Lúcia, bradou frei Fabiano erguendo-se da cadeira de couro lavrado em que estava sentado.

_Sim; recordo-me muito dela, dos afagos e carinhos com que me acolhia, dos olhares ternos que lançava-me a todos os momentos, dos risos que expandia-lhe o semblante quando apertava-me contra seu seio, do amor com que ao passar seus dedos pelos meus cabelos anelados repetia-me “meu filho eu vos amo”. Ah, meu padre, não é tão bom ter-se mãe?

— Sim, é, murmurou frei Fabiano comovido, mas talvez a vossa ainda exista, e tenhais o prazer de vê-la, abraçá-la.

— Não, redarguiu Frederico, é morta, e as lágrimas assomaram-lhe aos olhos.

— Morta!

Sim, pereceu em Lisboa em casa de meu avô, e...

— E o nome do vosso avô, perguntou frei Fabiano interrompendo-o.

— Lopo da Silva.

— Meu Deus, bradou o frade erguendo os olhos e as mãos ao céu, graças meu Senhor!

Notando o interesse que suas respostas desperta vão no religioso, perguntou-lhe Frederico.

— Conhecestes minha mãe, e meu avô?

— Sim, meu filho, e o frade abaixou o semblante e caiu em profunda melancolia.

— Mas, dizei-me, ela vos falou em mim, recordou-se de seu filho tão cedo afastado do lar paterno para ser desterrado em país longínquo!

— Vossa mãe muito vos amava, meu filho, tornou-lhe o frade, e pouco antes de morrer pediu-me que se a sorte me conduzisse a esta terra vos amparasse, e vos servisse de pai; mas que vos pode fazer um pobre frade leigo, acrescentou Fabiano abaixando os olhos, cruzando os braços sobre o peito, e mui meditativo.

— Muito, retorquiu Frederico, porque muito já me fizestes trazendo-me de novo a luz aos olhos; sereis meu protetor, meu pai, meu amigo, meu irmão. Vivendo tão distante da terra em que nascemos, haja em nossos corações um amor que nos console e mitigue nossas saudades. A vossa mão, meu padre.

Frei Fabiano estendeu-lhe a mão, e apertando junto à sua a de Frederico, disse-lhe mostrando-lhe uma imagem de Cristo.

— Serei vosso amigo, eis a testemunha sagrada de nossa amizade.

 

IV

AMOR DESDITOSO

Encontrou Frederico em frei Fabiano um coração amigo e dedicado; tornou-se o enfermeiro dos Franciscanos seu mais devotado e sincero amigo, e seu melhor protetor. Todos os dias ia Frederico visitá-lo e ambos passavam horas e horas em colóquios íntimos.

— Disse-vos, meu padre, repetia Frederico em uma tarde a frei Fabiano, que restituístes-me a vista aos olhos e a esperança ao coração; sabeis como?

— Contai-me, meu filho.

— Nove anos depois de haver chegado a esta cidade encontrei-me em uma reuniam familiar com uma moça linda, cujo olhar encantava e seduzia; ao encará-la senti uma sensação estranha e tão profunda que compreendi logo a influência que aquela mulher havia de exercer em minha vida; nossos olhares encontraram-se muitas vezes nesse dia e nos seguintes, e os nossos corações, nossas almas uniram-se, amaram-se.

— Infelizes, murmurou o frade.

— Tereza leu em meus olhos o amor do meu coração, e santificou esse amor em sua alma de virgem. Porém cedo reconheci que um obstáculo se interpunha entre mim e Tereza; seu pai orgulhoso e altivo me não admitiria em sua família. Conheceis o juiz de fora?

— Luiz Fortes de Bustamante?

— Sim, o presidente da câmara, e logo que soube que era ele o pai de Tereza compreendi que não anuiria ao casamento de sua filha com um pobre mercador, sem parentes, desconhecido e desprezado; mas o coração que ama é como a mariposa que sofre o calor, queima as asas e morre circunvizinhando a luz.

— É assim, redarguiu frei Fabiano pensativo.

— Mas uma moléstia veio desalentar-me, enlutar-me a alma; vi-me ameaçado da cegueira; alguns meses vivi nas trevas, e em quanto os remédios aplicados embaciavam-me mais a vista, o vosso operou o milagre, fiquei bom.

— Seja Deus louvado, acrescentou o leigo.

— Reabri os olhos à luz e o coração à esperança; o amor renasceu-me vivo e intenso como nos primeiros dias de felicidade; mas nova desdita estava-me reservada.

— Qual?

— Um homem rico, um fidalgo rendeu-se ao olhar mágico da filha de Bustamante, e consta-me que já pediu-a em casamento.

— Quem?

— Gregório de Castro.

— O irmão do governador?

— Sim, esse fidalgo, mestre de campo, que além dos títulos que o enobrecem, tem serviços que o distinguem.

— Ilustrou-se em Minas à frente de duas companhias de seu terço; é um rival digno de temer-se.

— Sei, e creio que breve será o esposo de Tereza. Ah, meu padre, é o amor que nos prepara os primeiros infortúnios da vida.

— Mas já se impetrou a licença de El-Rei nosso senhor para a celebração do casamento?

— Dizem que sim, e logo que chegue...

— Pode porém demorar-se.

— Que importa, chegará por fim, e por satisfazer a seu pai, orgulhoso de honras e títulos, Tereza esposará o irmão do governador. E que será de meu coração, frei Fabiano, acrescentou Frederico com tanta expressão de dor que o leigo comoveu-se.

— Mas quem sabe se esse casamento se realizará; o homem põe, Deus dispõe.

— É inútil querer derramar alguma esperança neste coração dilacerado; breve entrará a frota do reino e virá a licença de El-Rei para a uniam de Gregório de Castro e Tereza. E hei de presenciar esse enlace sem estalarem-me as fibras do coração, continuou Frederico como se falasse consigo só.

— Ainda não tendes bastante fé, retorquiu-lhe o leigo, ainda a crença vos não robusteceu a esperança; sois fraco porque duvidais; lembrai-vos de que este hábito de estamenha, que me cobre, abafa um coração que amou como o vosso, mas sempre fortalecido pela esperança, até que a morte da mulher que amava trouxe-lhe o desengano da felicidade neste mundo. Ainda assim não desesperou, e em seu auxilio veio o sacrossanto amor de Deus. Esperai, iluminai a vossa alma com essa luz santa e divina que Deus colocou junto ao homem, e que se não apaga senão no instante em que começa a grande noite do túmulo; esperai; Gregório de Castro pode não ser o esposo de Tereza, e vós...

— E eu, perguntou Frederico enlevado.

— Ser o escolhido por Deus para companheiro inseparável da filha de Bustamante.

— Ah, como são consoladoras vossas palavras; não tendes só a ciência dos homens tendes também a do céu; destes-me luz aos olhos e agora vida ao coração.

— Não: é Deus que começa a iluminar vossa alma; tenhais fé e sereis feliz,

— Serei ouvindo-vos e procurando imitar-vos.

Pouco depois despedia-se Frederico do humilde leigo, tendo antes beijado-lhe a mão e recebido sua benção.

 

V

OS DOIS IRMÃOS

Francisco de Castro de Morais e Gregório de Castro de Morais, nomeados mestres de campo dos terços de infantaria da praça do Rio de Janeiro, chegarão a esta cidade antes do ano de 1699.

Ambos se haviam casado em Portugal; e ao deixar a mulher de Gregório de Castro as terras da pátria, assim como seus pais, confrangiu-se-lhe de dor o coração, o sentiu-se quase indecisa em acompanhar o marido ou ficar com seus pais, que se debatiam nas ânsias da saudade, e lastimavam haver criado filha tão estremecida para tão cedo vê-la arrebatada para um país longínquo.

A nostalgia é uma moléstia, enluta o coração, entristece e abate os ânimos, é traz por fim o enfraquecimento geral, o aniquilamento das forças e a morte. Só bastava isso para matá-la; restava ainda a D. Maria de Castro, esposa de Gregório de Castro, as saudades vivíssimas de seus pais para roubar-lhe as alegrias da existência, definhar-lhe o corpo, tirar-lhe o viço, as cores da mocidade e trazer-lhe a decrepidez prematura, depois os achaques, e depois a morte.

D. Maria de Castro pereceu gemendo um suspiro profundo que era um adeus à seus pais, e um adeus à pátria.

Por se haver ausentado para Lisboa o governador da capitania do Rio de Janeiro, D. Álvaro da Silveira, entrara Gregório de Castro, juntamente com o bispo D. Francisco de S. Jerônimo e Martim Corrêa Vasques, no governo interino da praça em 1704.

Foi nesse ano que faleceu D. Maria de Castro, lastimada por seu marido, filhos e pelos pobres, que também eram seus filhos. Deixou dois filhos e uma filha que entrou-se de tanta melancolia pela morte de sua mãe que, desprezando as alegrias e prazeres da mocidade, resolveu entrar em clausura; seu pai satisfez-lhe o intento, e D. Luzia de Castro recolheu-se à Portugal onde professou no convento da Esperança, em Lisboa.

Achava-se Gregório de Castro viúvo quando foi enviado contra os paulistas forasteiros que inquietavam a capitania de Minas, e à frente de seu terço mostrou valor e denodo.

Seu irmão Francisco de Castro de Morais administrara interinamente em 1700 a capitania do Rio de Janeiro por ausência do governador Arthur de Sá e Menezes; regera depois a capitania de Pernambuco, onde se conservara, até 1710 em que foi provido na governação do Rio de Janeiro.

Nesse ano regressou Gregório de Castro a esta cidade, e acontecendo ver em um dia de cortejo à efígie do rei, no palácio do governador, à filha de Fortes de Bustamante com uma vasquinha de seda, um pelote de pano apertado sobre o justilho, uma capa curta caída sobre os ombros, sapatos com fivelas de prata e alto penteado com pérolas e plumas, espelhou-se em sua alma a imagem dessa mulher; repentinamente apagaram-se-lhe as últimas lembranças que restavam-lhe de D. Maria de Castro, e desde então um sentimento vivo e veemente surpreendeu-lhe o coração; Gregório de Castro amou.

E Tereza!

A estatura elevada e nobre do mestre de campo, seu olhar expressivo, a farda encarnada com passamanes de prata, o calção azul, os borzeguins de couro, os cabelos apolvilhados e o chapéu desabado tornavam-no elegante e de aspecto agradável, mas Tereza nem mostrou reparar no garboso militar, nem retribuiu-lhe com agrado as atenções que lhe merecera.

Tereza amava a Frederico, e a mulher que ama só tem olhares apaixonados e expressivos para aquele a quem dedicou seu coração; por isso passara-lhe desapercebido, não impressionaram-na a presença e afagos do irmão do governador da capitania; Fortes de Bustamante porém exultou de alegria ao notar a impressão que sua filha causara a Gregório de Castro, e contentíssimo ficou quando o mestre de campo divulgou-lhe o amor que ia-lhe no peito, e fez-lhe dias depois o pedido formal da mão de Tereza.

Fortes de Bustamante acedeu, e mandou imediatamente pedir permissão a El-Rei para a celebração do casamento; à filha porém nem consultou, nem ouviu-lhe a voz do coração.

Esperava-se o consentimento régio para a uniam dos noivos, quando ocorreram os acontecimentos que o leitor vai ver no capítulo seguinte.

 

VI

INVASAO INIMIGA

Um mês depois da cena que acabamos de esboçar deu-se no Rio de Janeiro a invasão dos franceses.

Notando os habitantes de Cabo Frio a passagem de algumas embarcações estrangeiras que se dirigiam para o sul, participaram o fato ao governador do Rio, Francisco de Castro de Morais, que ordenou se guarnecessem as fortalezas e chamou as armas toda a milícia.

 Aproximaram-se os navios franceses da barra, mas impedindo-lhes a entrada a fortaleza de Santa Cruz, navegaram para a ilha Grande, bombardearam a vila desse nome, que foi corajosamente defendida pelo capitão João Gonçalves Vieira à frente das ordenanças, e dirigiram-se à Guaratiba onde desembarcaram; guiados por um negro começaram a trilhar caminhos aspérrimos e difíceis que os avizinharam da cidade.

Ciente o governador do desembarque do inimigo e de sua aproximação mandou tocar a rebate, reuniu as milícias, os regimentos velho e novo, as duas companhias de cavalaria que havia na cidade, chamou diversos voluntários, e, à frente desse exército organizado apressadamente, marchou para o campo do Rosário. Em dois dias levantara-se uma trincheira que se estendia do morro da Conceição ao de Santo Antônio.

Precedido do cabido, dos religiosos de todos os conventos, e de muitos sacerdotes apareceu o bispo D. Francisco de S. Jerônimo no acampamento, e abençoou e espargiu água benta sobre o governador, o estandarte nacional e o exército.

Francisco de Morais proclamou aos soldados e ao povo, e bradaram todos que esperavam debelar e destruir o inimigo, para que lhe custasse caro aquela tão insolente audácia.

No dia seguinte determinou o governador ao guardião do convento de Santo Antônio, assim como aos dos outros mosteiros, que fizessem celebrar por todos os religiosos o santo sacrifício da missa por sua tenção à bem da vitória que esperava alcançar.

Mui devoto do glorioso padre confessor Santo Antônio, conferiu-lhe Francisco de Morais a patente de capitão, tendo assim o milagroso santo um acesso assaz raro na vida militar, pois de simples soldado, cujo soldo recebia, assumiu ao posto de capitão!

Grato à honra tributada ao orago do convento, enviou o provincial ao governador o bastão do santo para que, tendo-o nas mãos, pelejasse; mas, depois de beijar o santo cajado, remeteu-o Francisco de Castro ao provincial para colocá-lo nas mãos santificadas que o sustinham, e suplicou-lhe que conduzisse para a muralha, que circunda o terrado em frente ao convento, a imagem do milagroso padre; como se o santo capitão ali postado a olhar para as milícias e os regimentos pudesse comandá-los e incutir-lhes valor e brios!

No dia 18 de setembro de 1710 chegaram os inimigos ao Engenho Velho, onde pernoitaram, causando grande dano aos jesuítas, em gado, açúcar e outros produtos agrícolas; no dia seguinte abriram caminho pela estrada do Barro Vermelho, e apropinquaram-se da lagoa da Sentinela que se estendia entre as ruas do Conde, do Areal e pouco mais.

Fez-lhes frente ali Bento do Amaral, o corajoso chefe da companhia dos estudantes, que em todos os encontros com os franceses causou-lhes muito destroço, e deu renome à pátria.

Seguindo pela azinhaga de Matacavalos[2] subiram os inimigos o morro do Desterro, hoje de Santa Tereza, e ao descer foram investidos por duzentos paisanos guiados pelo frade trinitário Francisco de Menezes, que aprisionou e matou a muitos.

Acelerando a marcha conduziu Duclerc os seus soldados até a capela da Ajuda erguida na esquina da rua, que mais tarde recebeu o nome de Barbonos; aí sofreu vivíssimo fogo da fortaleza de S. Sebastião, levantada no morro do Castelo, e comandada por José Correa de Castro. Mas continuou Duclerc a sua marcha para o interior da cidade, chegou à rua da Ajuda, entrou na rua do Parto, e alcançou a praça do Carmo, experimentando muitos revezes não só pelas continuas descargas de mosqueteria disparadas nas esquinas das ruas, como pelo fogo, que das janelas de suas habitações faziam os moradores.

Tentou o inimigo apoderar-se do convento do Carmo, mas foi repelido; avançou pela rua Direita, porém junto à igreja da Cruz achou quem lhe disputasse o terreno; e entre os mais denodados defensores distinguiu-se o valente capitão Antônio Dutra. Aproximaram-se Duclerc e os seus da alfândega e do palácio do governador, onde esforçaram-se por entrar, porém repeliram-nos os corajosos estudantes de Bento do Amaral.

Ouviu-se nesse momento o estampido de uma explosão que produziu o incêndio da alfândega, do palácio do governador, que lhe era contíguo e de mais duas casas; havendo-se ateado o fogo em alguns barris de pólvora armazenados na alfândega; diversas pessoas pereceram nas chamas, assim como três estudantes da companhia de Bento do Amaral.

O estrondo da explosão acordou do seu letargo a Francisco de Morais, que continuou quedo no campo do Rosário, mas destacou para o lugar do perigo o seu irmão Gregório de Castro, que pelejou como valente guerreiro que era, mas ao defender o estandartes do seu terço, duas balas inimigas feriram-no mortalmente; seus soldados carregaram-no em uma padiola para uma das casas vizinhas, louvando-lhe seus brios militares, sua valentia e denodo, qualidades opostas à covardia, inércia e inaptidão de seu irmão Francisco de Morais.

Notando que perdera mais de quatrocentos homens e que achava-se atacado por forças mui superiores às suas, determinou Duclerc apoderar-se do trapiche da cidade, e aí resistir com a infantaria; de feito ocupou-o, e fortificou-se com seis peças de artilharia que encontrara na praia.

Logo que soube da imprudência do general francês em encerrar-se no trapiche, julgou Francisco de Morais azada a ocasião para mover-se, e marchando à frente de seus soldados veio intimar a Duclerc que se rendesse ao vencedor, mas como o inimigo recusasse entrarem negociações, mandou o governador buscar a artilharia da ilha das Cobras e começou a cercar os franceses.

Alguns corajosos guerreiros ofereceram-se a tomar de assalto o trapiche, e um deles Antônio Dutra avançou contra o inimigo, querendo ser um dos primeiros a entrar onde se achavam os franceses, mas uma bala varou-o, e prostrou sem vida ao valente cabo de guerra.

Como se demorasse a artilharia pensou-se em colocar barris de pólvora por debaixo do trapiche para fazê-lo saltar, e esquecendo-se um alferes de ordenanças de que na casa contígua ao trapiche residiam sua mãe, mulher, irmãos e filhos, ofereceu-se para atear o incêndio, mas se não realizou tão violento sacrifício.

Duclerc resolveu capitular, e o fez com seiscentos e quarenta homens do seu comando. Foram ele e treze oficiais enviados presos para o colégio dos jesuítas, e agrilhoados os soldados foram remetidos para a cadeia, casa da moeda e conventos com sentinelas à vista.

Quando os sinos de todos os campanários saudavam a vitória dos portugueses, quando rebentavam no ar milhares de foguetes e salvavam as fortalezas, estorcia-se nas agonias da morte o mestre de campo Gregório de Castro; os cirurgiões pensaram-lhe as feridas, mas eram elas tão graves que logo após entrou o doente nos paroxismos da morte, o rosto decompõe-se, empanaram-se os olhos, assomou aos lábios uma espuma ensanguentada, e ao partir-se-lhe do peito o último ai resmoneou um nome que se pôde perceber; foi o de Tereza.

 

VII

DEPOIS DA VITÓRIA

Na mesma tarde em que Duclerc capitulou tratou-se do enterramento dos guerreiros mortos em combate; os soldados foram sepultados no cemitério da santa casa da Misericórdia; o cadáver do capitão Antônio Dutra foi conduzido com pompa à igreja da Sé, onde teve jazigo em uma sepultura rasa, e o de Gregório de Castro, conduzido para a igreja do convento dos Franciscanos, ficou depositado até o dia seguinte, em que houve os funerais assistindo a todas as cerimônias fúnebres o governador, a câmara, o bispo, o cabido, a nobreza e povo.

Havia na cidade grande agitação; os foguetes que estalavam, o som continuado dos sinos, os vivas à El-Rei D. João 5º., os tiros das fortalezas, os gemidos dos feridos que eram removidos para o hospital da Misericórdia e para outros edifícios, o saimento fúnebre dos mortos, os lamentos dos que choravam a morte de seus parentes, e os gritos de alegria que erguiam os pais, os maridos, os irmãos, os filhos, os amigos ao encontrarem aqueles que julgavam haver perecido, produziam uma confusão e desordem que até então se não presenciara.

Ali era uma mãe que lavada em lágrimas abraçava o cadáver do filho que morrera em defesa da pátria; acolá era a viúva que, sufocada pelo pranto, beijava a face fria do esposo; mais adiante era a irmã que atirava-se aos braços do irmão, que julgara ter perecido na peleja, e próximo via-se um velho que em assomos de alegria saudava o filho que voltara são e salvo do combate; e essas cenas de dores e alegrias, de prantos e risos repetiam-se em quase todas as ruas, em quase toda a cidade.

As igrejas estavam abertas e atopetadas de povo; uns entoavam hinos a Deus pela vitória da pátria, outros pela salvação de parentes e amigos, e outros aflitos e chorosos imploravam a misericórdia divina em favor das almas dos que eram finados.

Tendo ardido o palácio em que residia retirara-se Francisco de Morais para o mosteiro dos Beneditinos, onde foram muitos cidadãos felicitá-lo pelo triunfo que conseguira; outros porém, que não eram néscios nem aduladores, censuravam a conduta fraca e pusilânime de Francisco de Morais.

— Bendito e louvado seja o senhor governador, exclamava uma velha envolta em grossa mantilha, ao entrar na igreja acompanhada de outras com o mesmo vestuário; se não se lembrasse de conferir ao glorioso padre Santo Antônio a patente de capitão a vitória não seria nossa.

— A nossa cidade não podia ser presa de hereges, retorquia outra, pois tem por defensor o milagroso mártir S. Sebastião.

— E S. Januário, nosso patrono, em cujo dia foram os hereges batidos e escravizados, clamava outra com ênfase. É o santo da minha devoção; em seu dia casei-me, recordo-me como se fora ontem, mas já lá se foram mais de quarenta e cinco janeiros; acrescentava a velha sorrindo.

Depois destas e outras observações idênticas ajoelhavam-se as devotas e começavam a rezar horas e horas.

Reunidos nas ruas e praças conversavam e discutiam diversos indivíduos os acontecimentos da invasão estrangeira, assunto então de todos os discursos e dizeres.

Viam-se na rua Direita, junto à igreja da Cruz, entre outros, dois homens que se ocupavam em referir o que se dera na cidade.

Eram o padre Luiz da Mota e o mercador Gaspar Soares, cuja casa havia sido incendiada.

— Malditos franceses, dizia o padre, levaram uma lição, julgavam que vinham escravizar-nos, mas saiu-lhes às avessas o negócio.

— Sim, redarguiu Gaspar Soares, porém depois de haverem causado tantos danos, tantos males que se podiam ter evitado.

— Dispôs o senhor governador a defesa, acrescentou o padre, com diligência e tino, e por isso não lograram os inimigos o gizado plano, ficarão prisioneiros e mortos, e prisioneiro ficou o seu comandante.

— Ah, ah, exclamou o mercador estralejando uma gargalhada, qual tino, nem diligencia, senhor padre; para repelir inimigo tão inepto não precisava sofrer o que padecemos; tivemos muitos feridos e mortos, destruídos e incendiados alguns edifícios, e profanados os templos.

— Mas deveis atender que os hereges chegaram repentinamente.

— S. Sebastião nos valha! Antes de entrar na cidade teve o inimigo de percorrer caminhos perigosos, atravessar vales, e desfiladeiros onde facilmente podia ser debelado; mas que fizeram os destacamentos mandados em sua perseguição; em sete dias de marcha não dispararão um tiro!

— A glória de um general, Sr. Gaspar Soares, está no bom resultado dos feitos militares; quis o governador atrair o inimigo ao centro da cidade para esmagá-lo completamente como o fez.

— Não creio, meu padre; maldito seja o governador que foi causa de minha mulher morrer queimada e de meu filho ficar gravemente ferido, além das casas e dos cabedais que o incêndio da alfândega devorou-me. Ora diga-me porque enviou o governador ao mestre de campo João de Paiva para a praia Vermelha, que se achava assaz fortificada, afastando-o do posto em que podia resistir convenientemente ao inimigo; pois não foi inepto em acreditar que havendo descido o morro do Desterro deixariam os franceses de entrar na cidade para irem tomar aquela fortaleza!

— Não discuto os planos do Sr. Francisco de Castro de Morais, o que sei é que a vitória foi completa.

— Não pelo que fez esse nosso governador e capitão general; que se não moveu do acampamento nem quando o inimigo passou-lhe quase pela barba; limitou-se em mandar à rua Direita o seu irmão que morreu combatendo pela pátria e pelo rei. Sr. reverendo, acrescentou o mercador tomando um ar mui grave, sobre a lápide do sepulcro que se abriu para receber o cadáver de Gregório de Castro ha de lavrar-se o juízo da posteridade, que dirá “o morto que aqui dorme foi um herói, mas seu irmão um covarde!”

— Falai baixo, Sr. Gaspar Soares, estais ressentido porque perdestes vossa mulher e bens.

— São muitos os que sofreram pela inépcia e fraqueza do nosso governador. Não vos recordais de Francisco da Costa casado com a filha do capitão Luiz Lopes de Carvalho?

— Sei.

— Pois pereceu na explosão da pólvora, na alfândega, e se não achou mais o seu cadáver[3]. Como ficou a família desse pobre militar!

A viúva que vá pedir uma esmola a Francisco de Castro de Morais!

— Talvez obtenha uma tença.

— Ah, ah, exclamou o mercador abrindo os dentes ao riso, as recompensas hão de ser para o governador que se declarou vencedor depois de ver o inimigo recluso no trapiche!

— Valha-me Nossa Senhora e seu Santíssimo Filho; não tendes ouvido os elogios dirigidos a Francisco de Morais, não assististes ontem ao sermão em que o bispo D. Francisco de S. Jerônimo louvou os méritos militares do governador da praça!

— O bispo, o qualificador do santo ofício que regozija-se em remeter para os cárceres e fogueiras da inquisição os inocentes julgando-os culpados e sacrílegos, pode também chamar valentes e destemidos aos fracos e pusilânimes!

— A rainha dos anjos vos ilumine; de mim creio que muito fez pela defesa da cidade o nosso governador ajudado por Deus e pelos milagrosos santos S. Sebastião, S. Antônio e S. Januário, protetores celestes deste povo.

— Dizei, antes Sr. reverendo, que foi Deus Nosso Senhor, quem nos valeu, e também os gloriosos santos que nomeastes, que quanto a Francisco de Morais nada fez em serviço de El-Rei nosso senhor e do país.

— Mas como está o vosso filho, perguntou-lhe o padre para desviar o mercador do fio que a conversa ia tomando.

— Vai muito mal, dizem; quereis vê-lo?

— Onde está?

— No convento de Santo Antônio.

— Vamos e esperai em Deus que o rapaz há de sarar.

— Seja de um anjo o seu dizer, meu padre.

E ambos, o mercador e o padre Luiz da Mota, dirigiram-se para o convento de Santo Antônio.

 

VIII

GASPAR SOARES

Os feridos em combate haviam sido remetidos para o hospital da Misericórdia, e para a enfermaria que os padres capuchos estabeleceram em seu convento.

Oferecera-se frei Fabiano ao governador para durante a invasão inimiga, pensar os contusos e feridos, e absolver os agonizantes; e em todos os combates que se deram no memorável dia 19 de setembro de 1710 viu-se entre os guerreiros, esse frade assíduo, diligente, incansável, a percorrer as fileiras, e sem atender aos perigos, aproximar-se dos feridos e moribundos que caíam, aplicar-se aparelhos, administrar-lhes remédios, consolar, absolver os agonizantes. Aparecera em todos os lugares onde foram necessários seus socorros; na lagoa da Sentinela, na descida do morro do Desterro, na rua Direita, em frente ao palácio do governador, e em outros lugares em que travaram os franceses combate com os nossos, apresentara-se o frade leigo, acudindo ao primeiro gemido, ao primeiro ai soltado pelos feridos ou pelos moribundos.

— Frei Fabiano, murmurava o guerreiro ao cair lavado em sangue, que se espadanava da ferida aberta pelas partasanas; e repentinamente assomava ao seu lado a figura plácida e serena do virtuoso enfermeiro do convento.

Tendo sido ferido o filho do mercador Gaspar Soares fizera-lhe frei Fabiano os primeiros curativos, e depois enviara-o à enfermaria do convento, onde encerrara-se logo que foram dispensados seus serviços junto às fileiras dos soldados.

Chegando à portaria do convento declararam o mercador e o padre Luiz da Mota ao porteiro que desejavam falar a frei Fabiano; o porteiro participou ao guardião, e ambos foram admitidos no recinto do claustro. Ao avistar o frade enfermeiro perguntou-lhe Gaspar Soares:

— Como vai meu filho?

— Pouco melhor, murmurou frei Fabiano em voz dúbia como receoso de dizer a verdade ao pai.

— Posso vê-lo?

— Seria melhor não entrar, acrescentou o leigo.

— Pelo que?

— Pode o moço ter alguma emoção que lhe seja fatal,

— É certo, redarguiu o padre Luiz da Mota.

— Está ele mal?

O frade esfregou uma das mãos na palma da outra, e não respondeu.

— Dizei, dizei, meu padre, repetiu Gaspar Soares.

Nesse momento chamaram da enfermaria por frei Fabiano, e logo que o frade entrou, seguiram-no o mercador e o padre Mota.

Chegando o mercador ao leito do filho, abriu este os olhos que conservara fechados, mas tinha-os fixos e empanados, e repentinamente, como se só esperasse pela vinda do pai, estirou os membros, fez uma contorção com os músculos da face, gargarejou um gemido e pereceu.

O pai deu grito e caiu desfalecido; frei Fabiano e o padre Mota suspenderam-no, deram-lhe alguns excitantes a cheirar que acordaram-no do delíquio; lavavam-lhe as lágrimas o rosto e sufocavam-no os soluços. Luiz da Mota afastou-o da enfermaria, apoiando-se o mercador no braço do padre.

— Perdi minha mulher, murmurava Gaspar Soares, meus tesouros e meu filho, o arrimo da minha velhice; e pelo quê!... por não apressar-se o governador em defender a cidade. Ah... hei de vingar-me.

— Resignai-vos, Sr. Soares, e pedi a Deus pelas almas desses entes que no mundo foram tanto do vosso coração.

— Hei de orar a Deus por eles, meu padre, e pedir-lhe que dê-me ocasião de vingar-me de quem foi causa desses meus aflitivos males.

— Deus não favorece o desejo de vingança, meu amigo, acrescentou o padre.

Continuou o mercador a lastimar-se e a praguejar contra Francisco de Morais até entrar em casa muito prostrado e comovido.

 

IX

A ENTREVISTA

Entre os feridos recolhidos à enfermaria do convento estava Frederico, que fora um dos que mais se distinguira pelejando contra os franceses. Na lagoa da Sentinela ao lado dos estudantes de Bento do Amaral Gurgel, no morro do Desterro entre os paisanos do frade trino Francisco de Menezes, na rua Direita ainda com a companhia de Bento do Amaral combatera Frederico com denodo e valentia; eram certeiros seus golpes, e ia sua coragem até à temeridade, pois quando Antônio Dutra penetrou no trapiche quis Frederico acompanhá-lo, e se o não fez foi porque o deteve um dos companheiros do valente guerreiro Bento do Amaral.

Deixara Duclerc no morro do Desterro um destacamento que, penetrando mais tarde na cidade, julgou poder saqueá-la, mas foi perseguido e posto em debandada pelos habitantes; tentaram porém alguns soldados invadir diversas casas, entre outras a do juiz de fora Fortes de Bustamante.

Com a espada em punho correu Frederico em socorro dessa habitação, travou combate com três adversários; ligeiro e valente aparava os golpes dos inimigos, e depois de muito pelejar conseguiu matar a dois; continuou a luta com o terceiro, mas recebendo uma forte cutilada na cabeça, caiu desfalecido; o soldado francês fugiu.

Dera-se o combate junto à entrada da casa do juiz de fora, e ficara Frederico estendido na calçada, gotejando-lhe copioso sangue, da ferida aberta pela partasana do adversário.

Veio encontrá-lo nesse estado o caridoso enfermeiro do convento; reconhecendo-o sentiu frei Fabiano grande sobressalto.

— Meu Deus, estará morto, clamou o frade tomando o pulso ao ferido, e aplicando o ouvido ao coração; não, o coração bate, e Deus ha de permitir que ele se salve.

Nesse momento atravessaram a rua diversos homens do povo, frei Fabiano chamou-os, e pediu-lhes que levassem o ferido para a enfermaria do convento; um deles tirou dos ombros o seu capote, estendeu-o no chão, e, envolvendo nele o ferido, carregou-o ajudado pelos companheiros até ao leito da enfermaria.

Frei Fabiano se não afastou mais do leito de Frederico; tornou-se desvelado e cuidadoso como sabia sê-lo ao lado dos doentes; aplicou-lhe as ataduras necessárias sobre o ferimento, e administrou-lhe remédios.

Decorridos alguns instantes Frederico abriu os olhos, encarou no frade, tomou-lhe a mão e levando-a aos lábios beijou-a.

Expandiu-se de alegria o rosto do humilde leigo, que erguendo os olhos ao céu murmurou:

— Mercês, meu Deus.

O doente melhorou de dia para dia, renasceram-lhe as cores, restauraram-se-lhe as forças; e frei Fabiano cada vez mais satisfeito por haver salvado o seu amigo.

É a caridade o sentimento mais belo que

Deus ensinou aos homens; dos raios da luz divina é o que mais brilha; quem a exercita pratica uma virtude porque todos os sentimentos de Deus são virtudes; os homens assemelham-se aos anjos quando são caridosos, e transformam-se as mulheres em santas quando também sabem sê-lo.

Tendo havido muitos contusos e feridos, portugueses e franceses, nos combates do dia 19 de setembro, sentiu-se falta de fios e ataduras para os curativos; então trataram as mães, as mulheres, as irmãs, as filhas daqueles que haviam pelejado, de preparar fios e ataduras que iam levar às enfermarias.

A mulher e a filha de Fortes de Bustamante prestaram-se também a esse caritativo serviço, desfiaram panos, prepararam ataduras, e dirigiram-se com o que haviam feito à enfermaria do convento dos Franciscanos, onde sabiam que havia alguns feridos, e achava-se Frederico que com tanto valor defendera a casa de seu marido e seu pai.

Depois de fazerem oração na igreja foram admitidas na enfermaria por haverem manifestado desejo de visitar Frederico.

Tereza e Frederico logo se avistaram; e aproveitando-se de estar sua mãe em conversa com um doente, aproximou-se Tereza do leito do seu amante.

Frederico animou-se, brilharam-lhe os olhos, e procurou erguer-se.

— Ficai tranquilo, disse-lhe Tereza, talvez vos não convenham esses movimentos.

— Oh, como sou feliz, murmurou Frederico.

— Já sabeis... acrescentou Tereza volvendo os olhos em redor de si para ver se a executavam.

— Que? dizei.

— Gregório de Castro....

— Acabai.

— É morto.

— Ah.

— E assim.

— E assim, repetiu o moço erguendo-se.

— Desapareceu esse obstáculo, e talvez julgue meu pai que, tendo vós defendido heroicamente à nossa casa, sejais digno... E o rubor tingiu-lhe as faces e impediu-a de continuar.

— Viestes, retorquiu Frederico em tom veemente e apaixonado, trazer-me a esperança e a vida; viverei para amar-vos muito e sempre. E vós, dizei-me, jurai-me que vi virá em vosso coração o meu amor?

Tereza abaixou os olhos, corou, e tremula balbuciou:— Juro.

Neste momento aproximou-se a mãe de Tereza que, depois de cumprimentar a Frederico, e de agradecer o serviço que o moço prestara à sua família, saiu com sua filha da enfermaria.

Frederico ficou em um estado de agitação excessiva, não via o que se passava em redor de si, não percebeu que frei Fabiano estava junto de seu leito, e enlevado, arrebatado pela paixão, exclamou.

— Ah, hei de ser feliz porque ela jurou amar-me, e os anjos juram pelos lábios de Deus.

Ouvindo-o frei Fabiano abaixou os olhos, deixou pender os braços e murmurou.

— Assim seja.

 

X

FRANCISCO DE MORAIS

O filho do mercador Gaspar Soares foi sepultado na claustra do convento; frei Fabiano acompanhou-o até o leito em que se vai dormir o sono do qual só se desperta na eternidade; e junto desse jazigo vinha o velho mercador orar e derramar lágrimas quase todos os dias.

A mãe de Tereza censurou-a por haver se aproximado do leito de Frederico, cujo amor ela e seu marido já haviam compreendido; irado mostrou-se Fortes de Bustamante quando soube do que a filha fizera, repreendeu-a e declarou-lhe que de nenhum modo consentiria que ela se casasse com um mercador; e que se não esquecesse essa paixão a enviaria à professar em um dos conventos de Lisboa.

Era naqueles tempos a ameaça mais frequente que os pais faziam às filhas quando estas se não sujeita vão a seus caprichos, despotismo, ou à seus cálculos de interesse e ambição; outros, arrastados por um excessivo zelo religioso ou por temor à inquisição afastavam de si às filhas, que lá iam finar-se nas clausuras de Portugal. Espanha e Itália, roubando à pátria mães de família e despedaçando corações cheios de vida e amor.

Durou esse costume até o tempo do marquês de Pombal, que, além de outras providencias que tornaram grata aos brasileiros sua governação, não foi somenos a que proibiu aos pais enviarem às filhas, por ideias de egoísmo ou superstição, para os conventos do velho mundo.

Se os instantes que passara junto de Frederico, se as palavras que lhe ouvira derramaram inefável contentamento em seu coração, causaram-lhe as expressões acerbas de seu pai profundo pesar; aflita e chorosa recolheu-se Tereza ao seu aposento, onde com o coração magoado entregou-se a sentidas cogitações.

Abalado pela agitação que experimentara caiu Frederico em um estado grave, apareceu-lhe uma febre contínua, tomaram as feridas um aspecto mau, e sobrevieram contrações nervosas e delírio. Frei Fabiano tornou-se infatigável, aplicava já um remédio, já outro, consultava os principais cirurgiões da cidade, velava dia e noite junto ao leito do doente, e alguns momentos em que se ausentava, passava-os ajoelhado diante do oratório, que tinha em sua cela, à implorar o auxílio divino para o filho de Lúcia.

Em um dos dias tomou a febre traumática um caráter mais desesperado, recrudesceu, e tornou-se o delírio mais forte e frequente. Examinando o doente declarou o cirurgião Estevão Ribeiro que era melindroso e mui grave o seu estado, e, se com as aplicações feitas recentemente não experimentasse melhoras, era inevitável a morte.

Ao ouvir o prognóstico do cirurgião comoveu-se profundamente e afligiu-se frei Fabiano; vinte vezes aproximou-se do doente para examinar-lhe o pulso, e vinte vezes correu à cela para ajoelhar-se em frente do seu oratório. Mas piorava o doente e vendo que poucos momentos restavam-lhe de vida, tomou o leigo uma resolução desesperada; correu à botica do convento, trouxe um vidrinho que continha um narcótico cujo efeito não estava bem conhecido, deitou algumas gotas em um cálice com água, e administrou-as ao doente; ordenou aos que se achavam junto ao leito que se retirassem, e só, ajoelhado aos pós do moribundo, começou a orar.

Ele que salvara a tantos de graves, moléstias, que operara curas miraculosas pelas quais apelidavam-no santo, via agora quase a expirar o seu melhor amigo, o filho querido de Lúcia que lhe incumbira que o amparasse e servisse-lhe de pai! O pobre leigo estava sucumbido de dor, e tão perturbado que em suas orações confundiam-se continuamente os nomes de Lúcia e de Frederico.

Depois de haver permanecido quase uma hora nessa inquietação de espírito, ergueu-se o frade, chegou-se ao leito, e vendo que o doente adormecera, bradou.

— Está salvo.

De feito desde esse dia progredirão as melhoras, e principiou para o doente a convalescença.

No dia em que apresentara Frederico as primeiras melhoras houve no convento grande solenidade.

Mandara o governador celebrar com excessiva pompa fúnebre o sétimo dia do falecimento do seu irmão Gregório de Morais. Estavam as paredes do templo cobertas de pano negro e ornadas com galões de ouro; no centro do pavimento erguia-se um alto cenotáfio, onde viam-se sobre a essa a espada e cota d’armas do finado guerreiro; diversos sacerdotes revestidos de paramentos fúnebres cantavam salmos e orações de réquiem junto ao altar; outros turificavam o catafalco. Achavam-se presentes o governador, o bispo D. Francisco de S. Jerônimo, o cabido, todas as confrarias e ordens religiosas, o senado da câmara, a nobreza e povo. Subiu ao púlpito o franciscano frei José dos Anjos, e balanceou o turíbulo da lisonja engrandecendo os méritos do morto, e o tino e valentia militar do governador, seu irmão; o mesmo fizeram os poetas cujos cantos incensaram mais as virtudes, o valor e glória do governador do que os brios guerreiros do irmão falecido!

Tratou Francisco de Morais de participar à corte o que fizera pela defesa da capitania; pediu à câmara que também o fizesse, e apressou-se a municipalidade em representar a El-Rei louvando o valor e singular disposição com que acudira o governador contra o inimigo.

Tendo a proteção de seu tio o padre José de Castro, reitor do colégio de Santo Antão dos jesuítas em Lisboa, e valido de El-Rei, conseguiu Francisco de Castro de Morais o que almejara; elogiou-lhe o rei o valor e tino e agraciou-o com uma comenda, Na corte do beato rei D. João V era fácil aos sobrinhos dos padres e frades terem mercês honoríficas, ainda quando os méritos daqueles eram tão problemáticos e negativos como os do sobrinho do reitor José de Castro. .

Entretanto festejava-se no Rio de Janeiro a derrota e capitulação de Duclerc; faziam-se solenidades públicas, representavam-se comédias no teatro do padre Ventura, corriam-se cavalhadas, erguiam-se coretos de música, celebravam-se danças, procissões, missas e Te-déuns; o abade dos beneditinos, frei José de Santa Catarina, solenizou a vitória dos portugueses em pomposa festividade, na qual orou o distinto monge frei Mateus da Encarnação Pina, que vestira o hábito há sete anos; os jesuítas, em ação de graças pelo mesmo motivo, cantaram hinos, e nessas solenidades religiosas viu-se ocupar o púlpito o celebrizado jesuíta Prudêncio do Amaral, nascido no Rio de Janeiro em 1675, notável teólogo, literato e poeta.

O dia 19 de setembro em que a igreja reza de S. Januário, e em que os franceses foram vencidos, foi declarado dia santo e de guarda perpetuamente para os moradores da cidade, com a obrigação de ouvirem missa.

 

XI

DUCLERC

Achando-se no colégio dos jesuítas conseguiu Duclerc permissão de retirar de bordo diversos objetos de seu uso, assim como de vender uma balandra que viera na flotilha que o conduzira à América. Corno havia poucos cirurgiões na cidade permitiu-se também o desembarque de alguns cirurgiões franceses para ajudarem no curativo dos feridos.

Depois de residir algum tempo no colégio dos padres da companhia, concedeu o governador ao general francês a faculdade de alugar uma casa para moradia, e de passear na cidade com sentinela à vista. Aproveitando-se desse indulto alagou Duclerc casa em uma das principais ruas da cidade, e em breve travou relações com muitas famílias.

A casa de Fortes de Bustamante foi uma das primeiras em que o general francês encontrou generoso acolhimento, e ao apresentarem-no à filha do juiz de fora sentiu-se Francisco Duclerc impressionado, e pareceu expandir-se seu peito enlevado por um sentimento de admiração; repetiu suas visitas e no fim de um ou dois meses reconheceu que Cupido com seus dedos, que são setas, abrira-lhe o coração ao amor. Duclerc amou a filha de Fortes de Bustamante.

Conheceu o juiz de fora que a beleza de sua filha não passara desapercebida ao general francês, e como mais de uma vez mencionara este a genealogia ilustre de sua família, e os cabedais que possuía em França, e também a inteira esperança que tinha de breve ver-se libertado e restituído à pátria, abafou em seu peito Fortes de Bustamante, sempre egoísta e vaidoso, o pundonor e brios nacionais, e começou se não a favorecer, ao menos a não embaraçar a afeição que Duclerc manifestara por Tereza.

Mas mostrava-se Tereza indiferente aos carinhos e afagos do general francês, e até lhe não deixava de causar estranheza o agrado com que seu pai recebia em sua casa a um inimigo da pátria, em quanto desprezava a Frederico por ser um pobre mercador, esquecido do serviço que este lhe prestara, defendendo com tanta galhardia sua vida e bens.

Soube Frederico das quotidianas visitas de Francisco Duclerc à casa do juiz de fora e também murmuraram-lhe aos ouvidos que o general francês tencionava casar com a filha do presidente da câmara.

Começou a correr pela cidade esse boato, e também a nova de que breve viria uma esquadra francesa vingar a derrota e libertar Duclerc e seus companheiros.

Era um novo rival que se apresentava ao filho de Lúcia para contrariá-lo, e rival poderoso que o fez enraivecer e entornou-lhe no coração o veneno do ciúme.

Indo visitar a frei Fabiano disse-lhe Frederico irritado.

— Corre, meu padre, que o general francês é o noivo da filha de Fortes de Bustamante.

— O glorioso padre Santo Antônio me ilumine, pois, não percebo como o juiz de fora acha tão facilmente noivos para a filha; se morre um ele levanta outro do pó das ruas. E D. Tereza de Bustamante ama e quer por esposo esse forasteiro?

— Tem-lhe ódio, mas o pai não cogita na felicidade da filha; Duclerc é rico, dizem, e de nobre estirpe, e isso satisfaz à vaidade e egoísmo de Bustamante.

— Ainda não creio, meu filho, acrescentou frei Fabiano, nesse enlace; o juiz de fora há de respeitar o decoro nacional, não há de esposar sua filha com um inimigo, que veio insultar-nos em nossos próprios lares.

É certamente uma infâmia digna de vingança.

— Não, redarguiu o leigo com calma, mas é um ato inconveniente e desonroso.

— Meu padre, Duclerc não é só meu rival, é também meu inimigo, bradou Frederico.

— Mas inimigo que deve ser respeitado, porque está prisioneiro sob a proteção do estandarte, que tem por emblema as chagas de Cristo.

Frederico encarou no frade leigo que com suaves conselhos continuou a tranquilizar-lhe o ânimo, e abafar-lhe o ciúme.

Entretanto procedia Duclerc de um modo inconveniente, não cessava de repetir que fora atraiçoado, maltratado, que menosprezavam-no vigiando-o com sentinela à vista, que não tinha liberdade nem garantias apesar de haver deposto sua espada e rendido-se à discrição, e bradava que breve chegaria nova expedição para vingá-lo e restaurar o nome francês escarnecido e vilipendiado pelos nossos.

Viera com ele um frade carmelita, homem violento e exaltado, que, insuflado pelo general francês, começou a clamar contra a corrupção dos costumes, a predizer castigos celestes contra o povo que, crédulo e receoso, foi-lhe dando ouvidos, e em breve era o frade tido por profeta, o que quer dizer que adquiriu decidida preponderância sobre a plebe rude e fanática.

O modo violento em que se exprimia o general francês, o receio que sua presença causava na cidade, a inquietação em que trazia os ânimos assustando-os com recentes invasões; a linguagem violenta de frei Cosme, a sua pregação veemente e fanática levaram Francisco de Castro de Morais a representar a El-Rei pedindo-lhe que retirasse da capitania não só a Duclerc, como àquele frade carmelita. Mas crescendo-lhe o temor que tinha do general inimigo, apesar de vencido e preso, por correr geralmente na cidade o boato da vinda mui próxima de nova esquadra inimiga, e demorando-se a resposta do soberano, lembrou-se Francisco de Morais de executar um plano atroz para mais depressa desembaraçar-se do inimigo vencido.

Propalara-se que o general francês, abusando da hospitalidade que recebera em casa de um pobre homem, chamado Muniz de Albuquerque, ultrajara a honra de uma donzela.

Julgou Francisco de Morais que o irmão dessa infeliz podia servir de instrumento para executar suas sinistras intenções; de feito resolveu escrever-lhe pedindo-lhe que viesse a palácio para ensinar-lhe a vingar-se dos sedutores, como era o general Duclerc; mas depois de haver escrito deitou o papel na secretaria, julgando mais judicioso e prudente mandar vir a palácio o ofendido, e dizer-lhe qual o seu intento. Assim fez.

Compareceu Muniz de Albuquerque, e depois de longa conferência com o governador Francisco de Morais, saiu do palácio acompanhado de um soldado do regimento velho.

Na noite do dia seguinte, em 18 de março de 1711, entraram dois rebuçados na casa em que residia Francisco Duclerc, e assassinaram-no sem que se opusessem as sentinelas que vigiavam-no.

 

XII

A JUSTIÇA DE FRANCISCO DE MORAIS

No dia seguinte Duclerc foi sepultado na capela funda de S. Pedro na igreja da Candelária.

Logo que divulgou-se este assassínio tocou-se a rebate sobre o caso; fizeram-se milhares de conjecturas; diziam uns que o general francês fora morto por ordem dos jesuítas, outros pelos seus compatriotas por não haver mostrado plano nem energia no ataque da cidade; estes lembravam o nome de Francisco de Morais, como o autor do crime, o qual desse modo se quis livrar de inimigo tão inquieto e turbulento; aqueles, cientes da infame ação praticada contra a irmã de Muniz de Albuquerque, mencionavam o nome desse homem como o do autor do assassínio; porem o boato mais geral era que Duclerc havia sido vítima do ciúme de Frederico.

Fingiu-se Francisco de Castro surpreendido quando referiram-lhe a notícia da morte do general francês, e movendo a justiça da capitania, prometeu castigar severamente o autor e cúmplices de tão nefando crime, perpetrado contra os direitos internacionais e decoro da nação.

Clamavam as velhas que Duclerc fora vítima do demônio que, sem ser visto, penetrara em casa do herege e sufocara-o.

— Já sabe, comadre, dizia uma velha à sua vizinha, morreu o perro judeu, o desbragado francês que veio conquistar-nos a terra.

— Sei, acutilaram-no bem.

— Qual; aquilo foi obra de Satanás, as sentinelas não virão entrar nem sair ninguém, e o herege apareceu morto.

— O anjo Gabriel nos acompanhe, cruz, santíssimo seja o nome de Jesus; que cheiro de enxofre se não havia de sentir quando Satanás entrou naquela habitação.

— Ah! ah, acrescentou a outra sorrindo, dizem que depois de alto berro exalara o demo cheiro de enxofre, e desaparecera, tendo antes espalhado por toda a casa um clarão sinistro; quando entrarão na câmara do francês estava o herege morto e estirado no leito.

— Olhe, vizinha, Satanás que levou-lhe a alma, foi porque já a tinha endemoninhado; cruz, para longe, repetiu a mulher fazendo mais de uma vez o sinal da cruz.

— Também aquilo não era gente para viver entre cristãos, redarguiu a outra.

E despediram-se as vizinhas depois de exorcizarem com sobejidão de palavras ao infernal assassino do general francês.

Desejando afastar de si toda a suspeita sobre o assassínio de Duclerc ordenou Francisco de Castro de Morais a Muniz de Albuquerque, que podia comprometê-lo, que naquela mesma noite se ausentasse da cidade, e simulou exercer excessiva vigilância para descobrir o autor do nefando crime.

Quanto ao soldado do regimento velho, cúmplice de Muniz, nunca mais foi visto na cidade, nem em terras da capitania, porém, constou tempos depois, haver sido degradado para as Índias por ordem do governador Morais.

Fortes de Bustamante vira desvanecerem-se mais uma vez as esperanças de uma feliz aliança para sua filha, e contrariado por isso, e por ver que Frederico persistia firme, resoluto e constante no seu amor por Tereza, ouvindo pronunciar o nome do moço como réu da morte de Duclerc, deu credito a essa balela, e apressou-se em ir à palácio denunciá-lo como criminoso.

Encontrara Francisco de Morais uma vítima para ocultar-se ao crime que mandara praticar; exultou ao ouvir pronunciar o nome do culpado, e, momentos depois de haver recebido a denúncia, ordenou a prisão de Frederico, que foi lançado em ferros no forte de S. Sebastião.

Instantes depois referiam a frei Fabiano a prisão de Frederico acusado de assassino.

— Não posso crer, bradou o frade - erguendo-se repentinamente do escabelo em que estava sentado.

— São contra ele os indícios; foi visto embuçado na noite em que se perpetrou o crime em frente à casa do assassinado; dizem que o ciúme armara-lhe o braço....

Lembrou-se então frei Fabiano do que lhe contara Frederico sobre os amores de Duclerc com a filha do juiz de fora, e sucumbido, sufocado de dor, murmurou.

— Meu Deus, será ele culpado!

As lágrimas assomaram-lhe aos olhos.

 

XIII

DUGAY TROUIN

Realizaram-se as ameaças de Duclerc e as profecias do carmelita frei Cosme.

Em 5 de agosto de 1711 avisaram os habitantes de Cabo Frio ao governador do Rio de Janeiro, que se dirigia para o sul uma numerosa armada. Francisco de Morais chamou os cabos de guerra a seus postos, mandou guarnecer as fortalezas, e patenteou uma atividade e energia que causaram vivo contraste com a inépcia e frouxidão de que dera provas um ano antes. Porém cedo esmoreceu, julgou conjurado o perigo e descansou, abandonou o que fizera, e adormeceu ao som dos elogios que lhe votavam pela destreza e tino com que providenciara a defensão da cidade. O perigo, porém era iminente; em 12 de setembro, dia chuvoso e de denso nevoeiro, assomaram à barra os navios franceses; curta resistência fizeram-lhe as fortalezas, e penetrando no porto não encontraram embarcações à combater, porque apressara-se Gaspar da Costa em lançar fogo a quatro naus e duas fragatas sob seu comando, escapando das chamas um único navio que os inimigos tomaram-lho.

As fortalezas haviam emudecido, e a única que podia resistir, por ser-lhe fácil receber auxilio de terra, a de Villegaignon, teve também de cessar o fogo por causa de uma explosão no paiol da pólvora, de que resultou a morte de dois capitães, dos quais um era filho de Gregório de Castro, e sobrinho do governador.

Abandonada por ordem de Francisco de Morais a fortaleza da ilha das Cobras foi ocupada pelo inimigo, que desse ponto causou grande dano à cidade, e especialmente ao mosteiro dos Beneditinos.

No dia seguinte desembarcarão os franceses na praia do Valongo, assenhorearam-se de alguns montes que dominam a cidade, e foram estabelecer no palácio do bispo, no morro da Conceição, o seu quartel general.

Entretanto impassível e quedo conservava-se Francisco de Morais no campo do Rosário, permitia ao inimigo o desembarque, a conquista dos pontos mais salientes, e se não animava a sair-lhe ao encontro e pelejar em defesa da capitania, cujo governador era. Vendo-o quedar-se naquele ponto quiseram os franceses cortar-lhe a retaguarda pela lagoa da Sentinela, mas o não fizeram impossibilitados pelos mangues e pântanos que se estendiam nas circunvizinhanças daquela lagoa.

Todas as fortalezas se tinham rendido ao inimigo, exceto a de S. Sebastião, mas intimando-lhe Dugay-Trouin pronta rendição, capitulou abatendo covardemente o estandarte da pátria para erguer o pavilhão estrangeiro.

Julgaram-se os habitantes sem segurança, e resolutos a fugir, incendiaram uma nau e duas fragatas ancoradas junto ao morro de S. Bento, assim como diversos trapiches e armazéns da cidade. Em vão procuraram alguns valentes cabos de guerra animar o povo, e em vão ofereceram-se para atacar o inimigo; recusara-os Francisco de Castro dizendo:

— Aqui o aguardo, aqui o espero, não convém por agora afastar-nos de nosso posto.

Bradava inutilmente Bento do Amaral aos que fugiam abandonando suas habitações.

— Saibamos morrer, não esperemos que o inimigo nos provoque, corramos a buscá-lo, travemos peleja; a morte é nosso fim certo, mas vendamo-la caro, e vinguemos a honra da pátria violada por piratas.

Enviando o general francês um tambor a Francisco de Castro para que entregasse a praça à mercê de El-Rei de França, respondeu Morais.

— Nunca; e dizei ao vosso general que a defenderei até a última gota de meu sangue.

Mas quedou-se, se não moveu do acampamento, e em vez de pelejar convocou um conselho de oficiais, em que se decidiu, contra o voto de briosos guerreiros, que se abandonasse a cidade.

De feito na noite de domingo, 21 de setembro, fugiu o governador aceleradamente para a fazenda dos jesuítas no Engenho Novo. A sua fuga precipitada alarmou o povo, abateu-lhe os ânimos, e incutiu-lhe infindo terror; tornou-se geral o pânico, e excessiva a confusão.

Tendo recebido a resposta de Francisco de Castro mandara Dugay-Trouin bombardear a cidade.

Era uma hora da noite; a chuva caía em torrentes, repetiam-se amiudadamente os trovões, alumiavam com seu clarão fugaz a escuridade da noite os contínuos relâmpagos, e o clarão sinistro e medonho da artilharia inimiga; o povo corria apavorado, estrugiam os gritos, os lamentos, os ais, os choros dos fugitivos. Ali via-se uma moça que caía exânime; ali perecia uma criança afogada; acolá ouvia-se o estertor da morte no peito de um velho que sucumbia de frio e terror; mais perto ouviam-se os gemidos de outras vítimas que desfaleciam de cansaço; adiante perdiam-se no espaço os ais de muitos que as balas inimigas haviam alcançado; as filhas bradavam por seus pais, as crianças choravam por suas mães, as irmãs pelos irmãos, as mulheres pelos maridos, os pais pelos filhos, os parentes e amigos pelos parentes e amigos; as mães morriam abraçadas com seus filhos. Vendo desfalecer sua mãe e irmã quedou-se um menino junto delas até o dia seguinte em que, sendo encontrado, perguntaram-lhe que fazia.

— Estava esperando, respondeu a criança, que minha mãe e minha irmã acordassem.[4]

Às duas horas da tarde do dia seguinte entrou o inimigo na cidade que achou abandonada, e os soldados dissolutos e desenfreados saquearam as casas, profanaram o lar doméstico, invadirão e roubarão as igrejas, dilapidaram e matarão os poucos cidadãos que haviam restado em seus lares.

Tornou-se tal o excesso de cobiça e a selvatiqueza dos soldados, que ordenou Dugay-Trouin a suspensão do saque, mandou colocar sentinelas, corpos avançados e patrulhas em diversos pontos, prendeu os que se haviam excedido no roubo, e arcabouçou dezoito soldados por haverem cometido violências e crimes contra os moradores da cidade.

Escreveu a Francisco de Castro que arrasaria a cidade se não cuidasse de resgatá-la, e para provar que achava-se disposto a executar a sua ameaça, mandou duas companhias de granadeiros devastar e queimar todas as casas de campo na circunvizinhança de meia légua da cidade.

Partirão os granadeiros mas encontraram quem os detivesse; Bento do Amaral Gurgel, com alguns guerreiros corajosos e destemidos, resistiu aos franceses, repeliu-os, mas, quando já era sua a vitória, uma bala inimiga acertou-lhe no crânio, o denodado guerreiro agitou-se no cavalo, quis suster-se, vacilou e caiu exânime. Levaram sua espada e seu ginete a Dugay-Trouin, que recebendo esses troféus elogiou a valentia desse cabo de guerra, que ousara medir suas armas contra o inimigo, já senhor da terra que viera conquistar.

Bento do Amaral foi sepultado em uma das igrejas da cidade, por cuja defesa dera a vida, deixando gravado seu nome nas páginas da história pátria; em carta de 7 de abril de 1713 agradeceu El-Rei aos descendentes do valente guerreiro os serviços que este prestara à nação.

Apressou-se Francisco de Castro de Morais em ajustar o resgate da praça; encarregou disso, sem ouvir a câmara, ao jesuíta Antônio Cordeiro, ao juiz de fora Fortes de Bustamante e ao mestre de campo João de Paiva. Pediram a princípio os franceses 12 milhões, mas essa excessiva soma foi reduzida a seiscentos e dez mil cruzados, e mais duzentos bois e cem caixas de açúcar.

Havendo recebido o último pagamento em 4 de novembro, fizeram-se os franceses de vela no dia 13, conduzindo em suas embarcações valiosas quantias extorquidas ao estado e ao povo.

Na esquadra de Dugay-Trouin tiveram passagem José Gomes da Silva, seus filhos e mais de cem cristãos novos, que destinados pelos agentes do santo oficio aos cárceres e fogueiras da inquisição, escaparam acobertados pelo pavilhão de El-Rei de França. Evitou ao menos Dugay-Trouin o espetáculo ao povo de Lisboa de alguns autos de fé, de procissões de penitentes, que saíam das prisões do santo ofício para as fogueiras com tochas de cera verde nas mãos e revestidos de samarra e carocha.

Mas não chegou o almirante francês à Europa com os tesouros, que acumulara na conquista e saque do Rio de Janeiro; ventos contrários e violentos separaram seus navios, desarvoraram alguns, e levaram muitos ao abismo do mar, onde desapareceu o melhor das riquezas colhidas por ele e seus soldados na cidade, já mui florescente, fundada por Estácio de Sá.

Vendo zarpar os navios que reconduziam Dugay-Trouin e seus companheiros d’armas à Europa, dizia Gaspar Soares ao padre Luiz da Mota.

— Então, senhor padre, ainda sustenta que o nosso governador é general de plano e tino estratégico; não concorda que sua irresolução e covardia, e a fuga rápida, vergonhosa e intempestiva que fez, deixando tudo ao saque, e o povo sem direção, provaram sua extrema fraqueza e perfídia!

— Senhor Gaspar Soares, redarguiu o padre, os males que havemos sofrido são castigos do céu pelos nossos pecados; se não recorda das profecias de frei Cosme?

— Frei Cosme era um turbulento e fanático e nada mais: lá se foi para o velho mundo onde pode continuar a pregar suas homilias e especular com as superstições do povo; mas creia, vossa paternidade, que castigo nosso é termos por governador e general homem tão inerte e poltrão, retorquiu o mercador sorrindo e batendo no chão com o bastão que tinha entre mãos.

 

XIV

A ALÇADA

Irritados estavam os ânimos contra Francisco de Castro de Morais, todos acusavam-no abertamente, clamavam contra sua inépcia e covardia, chamavam-no de traidor, lançavam-lhe labéus infamantes, insultavam-no se aparecia em público, apelidavam-no vaca, e negavam-lhe obediência.[5]

Vendo a exaltação do povo e a falta de prestigio de Francisco de Morais a municipalidade o depôs do governo, e indo ao encontro de Antônio de Albuquerque, que se achava em Iguaçu em viagem de Minas para o Rio de Janeiro, entregou-lhe a governação da terra.

Pediram a câmara e o povo ao novo governador a prisão de Francisco de Morais, mas por não ter ordem de El-Rei não deferiu Antônio de Albuquerque a pretensão do povo e da câmara, que imediatamente enviou à

Lisboa o seu procurador Antônio Mendanha para participar a El-Rei o proceder venal e indigno de Francisco de Morais, de seus parentes, e de outros cabos de guerra, e pedir-lhe mandasse ministros capazes de averiguar os desconcertos da entrega da praça, para que com toda a severidade se castigassem os culpados dela.

Regeu Antônio de Albuquerque a capitania até 24 de junho de 1713, em que foi substituído por Francisco de Távora.

Ouviu o rei os votos da câmara; ordenou ao chanceler da Baía, Francisco de Melo e Silva, que se dirigisse ao Rio de Janeiro, e tendo por adjuntos diversos desembargadores e juízes, inquirisse sobre a criminosa entrega da praça aos franceses, julgando os culpados na conformidade das leis.

Depois de coligidas as provas e feitos os exames dos fatos pela devassa a que se procedeu, sendo os réus perguntados e acareados, condenaram os ministros da alçada a Francisco de Castro de Morais em degredo perpétuo e prisão em uma das fortalezas da Índia, sendo confiscados seus bens; em degredo perpetuo ao mestre de campo Francisco Xavier de Castro, sobrinho do governador, o qual, havendo abandonado seu posto, se refugiara em Maxambomba; sentenciaram em pena de morte o sargento-mor Antônio Soares por haver entregado indecorosa e covardemente ao inimigo a fortaleza de S. João, cujo era comandante; e em pena de prisão a Cristóvão Pereira acusado de haver comprado um navio aos franceses, ao capitão Francisco Rodrigues Frade, e a outros oficiais que tiveram perda de postos e mais tarde foram degradados.

Antônio Soares havia se evadido logo que a alçada se reunira, e por isso, lavrada a sentença, foi justiçado em estátua, assistindo a esse ato toda a guarnição da fortaleza, assim como a irmandade da Misericórdia, o alcaide-mor, meirinhos, pregoeiro, carrasco, o padre, esbirros e outros comparsas dessa lúgubre e assustadora cerimônia.

Fiado na valiosa proteção de seu tio o reitor do colégio dos jesuítas em Lisboa, não julgou Francisco de Morais que fosse grave a pena de sua condenação, e por isso se não afastou da cidade, e esperou a decisão da alçada.

Lavrada a sentença ordenou Francisco de Távora a imediata prisão do réu. Apresentou-se então em palácio um velho acompanhado de diversos cidadãos, e disse ao governador.

— Ofereço-me para executar a prisão do traidor Francisco de Morais.

— Quem sois; perguntou-lhe Francisco de Távora. .

— O mercador Gaspar Soares.

— Tendes ódio a Francisco de Morais?

— Excessivo, meu senhor; por sua inépcia e covardia vi morrer minha mulher nas chamas, meu filho no hospital, e perdidos meus cabedais; por sua inépcia e covardia introduziu-se o inimigo duas vezes nesta cidade denominando-a sua, porque o governador largou-a, ou lha deu por medo ou por outra razão oculta que só Deus sabe; por sua inépcia e covardia viu este povo dilapidados seus bens, saqueadas suas casas, destruídas suas mercadorias, empobrecidos seus cofres, e profanados seus templos; por sua inépcia e covardia ficou este povo duas vezes entregue ao desamparo e a morte, e o que é mais para os brios portugueses, lançaram-lhe a contumélia de fraco e vencido.

— Sim, bradaram os companheiros de Gaspar Soares, foi um traidor que roubou a fazenda real, e deturpou a nossa fama de fiéis e valentes servidores da pátria e de El-Rei nosso senhor.

Francisco de Távora encarou fito nessa turba desenfreada que vociferava contra a fraqueza de Francisco de Morais, e abanando ligeiramente a cabeça entregou a ordem de prisão a Gaspar Soares.

Sem se fazer anunciar, e sem impetrar licença embarafustou Gaspar Soares, seguido dos cidadãos, pela porta da casa de Morais, e avistando-o disse-lhe:

— Em nome de El-Rei nosso senhor estais preso.

Francisco de Morais empalideceu, agitou-lhe o corpo uma convulsão repentina, e não pronunciou uma só palavra.

— Conheceis-me, perguntou-lhe com voz arrogante o mercador.

— Muito, senhor Gaspar Soares, retorquiu-lhe Morais, lançando-lhe um olhar de cólera e desprezo.

— Costumo cumprir o que prometo; chegou o dia da vingança; não sou como os vis covardes que só sabem locupletar-se renegando à pátria e ao rei.

— Senhor Gaspar Soares, clamou iroso Francisco de Morais.

— Não o temo; ainda neste braço velho e descarnado há bastante força para subjugar os covardes, acrescentou o mercador distendendo o braço.

— Cumpri vossa missão, redarguiu Morais, que talvez um dia os covardes vos ensinem a ser mais comedido.

— Não julgueis, tornou Gaspar sorrindo, que eu me canse em ir à Índia para desafrontar injúrias que me assacarão os galés.

— Degradado para Índia, murmurou Francisco de Morais, que até então não tivera notícia do conteúdo da sentença.

— E por toda a vida, interrompeu-o o mercador; seja encerrado nas praças de guerra quem não sabe defendê-las do inimigo.

— Ah, murmurou Morais, aniquilado, mas repentinamente como arrependido de mostrar sua fraqueza a um homem do povo, e além disso lampejando-lhe na mente esperanças risonhas ao recordar-se de seu tio frade, valido do rei, bradou para o mercador.

— Vamos.

Ao aparecer na rua, seguido dos que o haviam prendido, foi Francisco de Castro de Morais insultado e vilipendiado pelo povo; todos vociferavam, de todas as bocas saíam insultos e maldições contra ele

— Vil traidor, inepto, malvado, pusilânime cabo militar, em vossas mãos depositou o soberano a segurança da praça, a boa fortuna do estado e dos povos e também o credito da nação, e vos tornastes indigno de tão alto encargo; ah a justiça dos homens vos condene, e o céu vos castigue, exclamou um velho militar vendo o ex-governador atravessar preso as ruas da cidade.

Em todas as ruas em que transitou o preso mostrou se o povo inquieto, amotinado e rancoroso.

Francisco de Morais achava-se assustado, tremiam-lhe as pernas, tinha o rosto empalidecido, representando o terror que ia-lhe na alma.

Mais de uma vez foi preciso afastar um braço armado prestes a descarregar-se contra o infeliz, que manchara o nome e brios portugueses.

Ha três anos antes este mesmo povo atopetava as ruas para saudar a Francisco de Morais pela vitória alcançada contra Duclerc; abriam-se os templos, os sacerdotes cantavam hinos em louvor de Francisco de Morais, o povo acompanhava os ministros do altar, entoava hosanas, atirava flores, corria ao palácio, aos divertimentos públicos, às praças, aos passeios para felicitar a esse homem, que hoje era insultado, ameaçado e coberto de imprecações e maldições!

 

XV

A CONFISSÃO

Frederico conservava-se preso e incomunicável.

Como viera somente para julgar o procedimento do governador, e dos diversos cabos de guerra durante a segunda invasão dos franceses, delegou a alçada de si o direito de examinar as provas do crime que era atribuído a Frederico; e assim coube ao governador a decisão desse processo. Francisco de Távora encarregou o corregedor de estudar a questão, e apesar de não haver testemunhas de vista contra o réu, nem provas veementes do crime, como havia sido preso por acusação de ser o assassino do general francês, mandou o governador conservá-lo em ferros e incomunicável, em quanto se dava andamento ao processo.

Lastimava-se frei Fabiano por ver seu amigo lançado em ferros em uma fortaleza, sem poder vê-lo, nem consolá-lo; mais de uma vez se dirigira ao governador implorando a graça de penetrar no cárcere de Frederico, mas não fora atendido; condoía-se da sorte do pobre moço, porém ao mesmo tempo se receava de advogar franca e abertamente sua causa.

— Será Frederico, pensava o frade de si para consigo, inocente, ou ardendo em ciúme cometeria o crime de que o acusam; se é culpado, se é réu como hei de proclamar sua inocência, e pedir seu perdão!

A consciência reta, pura e escrupulosa do frade achava-se em torturas; não devia de ser defensor de um réu, de um assassino; mas também devia de quedar-se, cruzar os braços e deixar padecer e morrer o filho querido de Lúcia!

Padecia frei Fabiano; caíra em um abatimento que assustava a todos, raras vezes aparecia na enfermaria, vivia recluso na cela manifestando no semblante profunda tristeza pela dor que torturava-lhe a alma.

A sorte de Frederico afligia e amargurava também a Tereza. Ele que lhe dedicara todo seu amor, que sacrificara sua existência para defendê-la, assim como a seus pais dos ultrajes e violências dos inimigos, que talvez inflamado em ciúme tornara-se assassino, achava-se preso por haver Fortes de Bustamante se “apressado em acusá-lo perante o governador! Se Frederico soubesse, cismava Tereza, de onde lhe partira a acusação, quem fora seu denunciante, não apagaria de seu peito o amor que consagrava a filha de seu perseguidor para votar-lhe ódio ou desprezo!

Essas cogitações dolorosas traziam-na trêmula de aflição, triste e inconsolável.

Espalhara-se na cidade que Frederico havia sido condenado a morte, tendo de subir ao patíbulo em frente à casa em que assassinara ao general Duclerc.

Chegou este boato aos ouvidos de frei Fabiano, que experimentou emoção tão súbita e veemente, que viram-no cair desfalecido. Ao voltar em si estava o frade atônito, tinha os cabelos eriçados, e havia em seu semblante um aspecto de imbecilidade que fazia supor que fugira-lhe a razão; pouco depois submergiu-se em um estado de letargia que durou muito tempo.

Vieram despertá-lo três pancadas soadas fortemente na porta da cela.

— Quem bate?

— É um pecador que vem pedir a vossa caridade para ouvir em confissão a outro pecador que está a expirar.

— Já vou, respondeu o frade, e, tomando a capa curta e o chapéu de Braga, abriu a porta da cela, e disse para o indivíduo que viera chamá-lo.

— Vamos.

Desceram ambos a ladeira, chegarão à rua do Cano, fora dos muros da cidade, e entraram em uma casa baixa e antiga.

Aproximou-se o frade do' leito onde repousava o doente, e disse-lhe.

— Aqui estou, irmão.

— Vou deixar a vida, balbuciou o moribundo, e por isso devo confessar meus pecados para que Deus m’os perdoe, e se lembre da minha alma.

— Falai.

— Ha quase três anos que um homem indigno profanou esta casa, manchando a honra de uma donzela que aqui nascera; acreditara a infeliz nas palavras pérfidas e enganosas desse sedutor, e foi vítima dele; mais tarde, como soe acontecer, teve o abandono e o desprezo que trouxeram-lhe lágrimas de sangue aos olhos, e ao coração dores que mataram-na. Essa donzela era minha irmã. O doente arquejava.

- — Infeliz, retorquiu o padre.

— Pobre, oculto, ignorado sob este teto sorvi a afronta que me haviam feito, receando alçar o braço contra o malvado, porque sua figura se apresentava diante de meus olhos envolvida no estandarte da pátria, que prometera-lhe abrigo e proteção; receava ofender ao rei e à pátria matando-o. Além disso por comiseração à vítima não queria tornar pública a sua mácula, expondo na rua o cadáver dó seu sedutor; julguei que ficaria ignorada e oculta a afronta vil praticada na casa do pobre; contive-me pois, porém guardei no peito a lembrança do ultraje, fervendo-me no coração o desejo da vingança.

Alguns meses depois recebi ordem para ir à palácio, e admitido à presença de Francisco de Morais, disse-me ele:

— Deveis vingar a desonra de vossa irmã.

— Sabeis isso, senhor governador, bradei enfurecido.

— Sei, tornou me ele.

— O malvado se gabara talvez do mal que fizera.

— O general Duclerc deve ser morto, é um vil prisioneiro, um infame sedutor, acrescentara o governador.

— Sim, clamei eu, já, neste instante, dai-me a arma, dizei-me onde ele está, e deixará de existir. Fiquei alucinado; diante de meus olhos vi o vil sedutor, e a seus pés minha irmã maculada lavada em pranto. O governador acalmou-me, aconselhou-me o meio de realizar minha vingança, deu-me dinheiro para subornar as sentinelas que guardavam a casa de Duclerc, mandou vir à sua presença um soldado do regimento velho, forneceu-nos punhais, e disse-nos.

— Ide, matai-o e fugi que nada vos acontecerá.

— Eram oito horas da noite, quando chegamos a porta da casa do general francês; as sentinelas que vigiavam-no, ao receber as espórtulas, deixaram-nos; entramos; meu companheiro, o soldado do regimento velho, ficou postado na porta do quarto em que se achava o general, eu avancei, aproximei-me, e cravei-lhe até às guardas o punhal no coração.

O moribundo cessou de falar caindo exausto no leito.

— Ah, fostes vós, perguntou frei Fabiano como se naquele momento despertasse do estado comatoso em que havia permanecido, fostes vós que assassinastes a Duclerc?

— Sim, meu padre, continuou o doente com voz rouca e enfraquecida; cego de furor, tremulo, arrebatado pelo sentimento da vingança, surpreendi-o no momento em que ia recolher-se ao leito, e matei-o; fiquei satisfeito, vingara a minha irmã.

— Ah, exclamou frei Fabiano soltando um suspiro como se necessitasse de ar para dilatar-lhe o peito.

— Fugi nessa mesma noite da cidade, e quase três anos fiquei homiziado, mas como sentisse no peito o princípio da moléstia, de que foram vítimas meus pais e minha irmã, resolvi regressar à esta casa para morrer no mesmo leito, em que nasci, em que pereceram meus pais e minha desditosa irmã.

A voz do doente tornara-se estertorosa e a respiração ofegante.

O frade ajoelhara-se e começara a orar.

— Absolvei-me, meu padre, regougou o doente, não posso continuar, sinto um cansaço, uma ansiedade que me sufoca, falta-me ar, luz, ah, absol.. .vei.. .me.

— Mas dizei, bradou o frade, erguendo-se, posso revelar esse segredo de confissão, e declarar o nome do assassino de Duclerc?

Porém o moribundo não respondeu, tartamudeou algumas palavras imperceptíveis, entrou nas ânsias da agonia e faleceu.

Frei Fabiano ungiu o morto, orou-lhe pela alma, e saiu.

Regressando ao convento mais calmo e tranquilo do que saíra, entrou na cela, e diante da imagem do Senhor dos Passos que merecia-lhe particular devoção, bradou:

— Eu vos agradeço, meu Senhor, porque ele é inocente!

 

XVI

A CONFIRMACÃO DA SENTENÇA

Sabendo que Frederico não era criminoso ficou frei Fabiano mais calmo e resignado, não viu mais diante de si um réu porém uma vítima, podia proclamar a inocência do seu amigo, advogar sua causa, e profligar a perseguição que lhe faziam. Mas pensou o frade de si para consigo.

— Não posso revelar o nome do verdadeiro criminoso, porque não podem transpirar os segredos do confessionário, o moribundo expirou sem dar-me permissão de anunciar o nome do assassino de Francisco Duclerc; posso declarar que Frederico não é culpado, mas se me inquirirem as provas da sua inocência, o nome do verdadeiro réu que responder?

Ficou o frade pensativo longo tempo, e ajoelhando-se cruzou os braços sobre a mesa do oratório e neles deitou a cabeça; nessa posição permaneceu mais de uma hora orando a Deus que o inspirasse.

Ao erguer se tomou a capa e o chapéu desabado, e dirigiu-se ao palácio do governador.

Senhor, disse frei Fabiano depois de haver saudado a Francisco de Távora, venho advogar a causa de um inocente.

— Eu vos ouço.

— Frederico não foi o assassino do general Duclerc.

— Quem foi?

— Não posso dizê-lo, proíbe-mo o meu ministério.

— Mas como admitir o vosso simples testemunho, as provas são contra esse moço que foi visto de noite embuçado em amplo capote em frente à casa em que se cometeu o crime, além de várias circunstancias que o condenam. O delito já está sujeito aos tramites da lei, breve lavrará o corregedor a sentença e eu farei justiça punindo o réu. O vosso dizer não procede, meu padre.

— Mas atendei-me, senhor governador, eu não seria capaz de asseverar a inocência desse moço se não estivesse certo dela; esse moço é um pobre órfão que neste país só tem por si este mísero frade leigo, a quem sua mãe ao expirar pediu que o amparasse e servisse-lhe de pai, porque, aquele que era seu pai, abandonou-o injusta e cruelmente.

— Injusto e cruel também fui eu, murmurou Francisco de Távora.

— Procurei cumprir o que me pediu essa desditosa mulher; chegado a este país encontrei depois de algum tempo a esse infeliz, e reconhecendo-o abri-lhe meu coração, estreitei-o em meus braços, e disse-lhe sou vosso amigo. Mas pouco hei feito por ele, porque pouco pode fazer quem, como eu, sustenta sobre os ombros este humilde hábito de estamenha.

— Mas Frederico não nasceu aqui?

— Não, meu senhor.

— E sua mãe onde faleceu?

— Em Lisboa.

— Em Lisboa, que coincidência, balbuciou Francisco de Távora; mas em que tempo pereceu a mãe desse moço em Lisboa, perguntou ele ao leigo.

— Eu vos digo, morreu no ano em que sagrou-se El-Rei nosso senhor D. João V.

— Oh, e como se chamava a mãe de Frederico?

— Lúcia.

— Lúcia, bradou Francisco de Távora levando as mãos à cabeça, Lúcia, a filha de Lopo da Silva?

— Sim, senhor governador, afirmou frei Fabiano sem compreender a causa do sobressalto de Francisco de Távora.

— Ah, esse moço é meu filho, exclamou Francisco de Távora caindo sentado sobre uma cadeira de espaldar de couro lavrado, e tapando com as mãos convulsivas o rosto.

— Vosso filho; sois porventura o marido de D. Lúcia, perguntou frei Fabiano sobressaltado.

— Sim, acrescentou Francisco de Távora, fui o algoz dessa vítima; o ciúme tornou-me injusto e cruel; por uma suspeita vaga abandonei a mãe de Frederico, arranquei-lhe dos braços o filho, e entreguei-o a um amigo a fim de enviá-lo para longe da pátria; depois corri ao campo de batalha esperando que uma bala me traspassasse o coração para findarem os meus tormentos; expunha-me aos perigos, aos dardos, às lanças do inimigo mas saía incólume da peleja, e conquistava postos e honras que eu desprezava. No dia seguinte apresentava-me contra o inimigo, ardendo em desejo de achar a morte à pontadas lanças, ou ao arrebentar da artilharia, mas as balas me não feriam, e as espadas me respeitavam. Assim passei doze anos em luta com a vida, ansioso pelo momento em que Deus piedoso me abafasse a existência para fim e descanso dos meus males. Um dia recebi uma carta, era de Lúcia; a princípio não quis lê-la, mas não sei que me disse o coração que abri-a, e vi que Lúcia participava me achar-se gravemente doente, jurava-me que era inocente, e despedia-se de mim por estar prestes a deixar a vida, perdoando-me os males, as dores que lhe fizera sofrer.

Deixei apressadamente o acampamento e corri à Lisboa para ver e pedir perdão à minha mulher; dizia-me o coração que a encontraria viva para uni-la a meu peito depois de tantos anos de separação, de tormentos e dores para ambos; mas era tarde, Lúcia havia perecido, e do nosso filho não havia notícia. Não posso contar-vos que se passou então em minha alma, que dores alancearam-me o coração, e como os remorsos abateram-me o espírito. Estive muito tempo abraçado com o cadáver de Lúcia, chorei e ouvi calmo as justas recriminações de seu pai. O pobre velho ficara inconsolável.

Poucos dias depois voltei ao campo de combate, e lá conservei-me até que fui chamado para exercer a governação desta capitania, onde venho encontrar meu filho preso e acusado de crime de morte!

Francisco de Távora chorava amargamente, e os soluços abafavam-lhe a voz.

Despertaram-se em frei Fabiano as recordações de seu amor da mocidade, a imagem de Lúcia passou-lhe mais de uma vez radiante e bela diante da vista, o coração pulsou-lhe apressadamente, partiram-lhe do peito gemidos que procurou abafar, assim como esconder as lágrimas que arrebentavam-lhe dos olhos.

Era também a imagem de Lúcia, que preocupava a imaginação de Francisco de Távora, à quem ora apresentava-se-lhe feliz e risonha com o filhinho nos braços, ora percebia-a aflita com lágrimas de desesperação que queimavam-lhe as faces, bradando-lhe: porque me abandonastes, onde está meu filho!

O governador sentado e frei Fabiano em pé defronte dele estavam ambos silenciosos e submersos em suas cogitações, quando anunciou-se a chegada do corregedor.

Francisco de Távora avincou a testa, engrifou os dedos, e bradou:

— Entre.

O magistrado apresentou-se de capa e volta e com o clássico bastão na mão; com voz pausada e grave disse:

— Senhor governador, trago-vos a sentença do assassino de Francisco Duclerc.

— Foi condenado, perguntaram ao mesmo tempo Francisco de Távora e frei Fabiano.

— Sim, senhor governador, afirmou o corregedor.

— Mas esse moço é inocente, exclamou o frade leigo.

— Perdoai-me, vossa caridade, redarguiu o corregedor, mas não sei que nome se há de dar aos inocentes quando assim denominais os assassinos; pois ficai sabendo que esse a quem chamastes de inocente, por não haver sido preso em flagrante delito, foi a justiça compassiva para com ele sujeitando-o à pena de degredo perpétuo.

— Condenado, clamou Francisco de Távora com inexprimível angústia, deixando pender os braços e inclinando a cabeça sobre o peito.

— Condenado, repetiu frei Fabiano erguendo os olhos e as mãos ao céu.

Tendo deixado os autos em uma mesa forrada de tissu de seda colocada próxima do lugar em que estava o governador, fez o corregedor uma profunda vênia a Francisco de Távora, beijou a manga do habito de frei Fabiano, e retirou-se sem atinar o motivo da suprema angustia e aflição, que suas palavras haviam causado ao governador e ao frade enfermeiro dos franciscanos.

 

XVII

DOIS CORAÇÕES MARTIRIZADOS

Anunciando-lhe o corregedor a condenação de Frederico ficou Francisco de Távora submerso na dor, e lastimou-se de seu cargo de governador da capitania que lhe incumbia administrar justiça, ser imparcial e reto; julgou não ser digno e airoso subtrair o filho à condenação da pena de degredo, mas sofria lembrando-se de que teria de mandar executar a sentença; seu coração de pai lutava com os deveres do supremo magistrado da capitania.

Encerrado em seu palácio, entregue aos tormentos que lhe causavam a desgraça do filho, raras vezes aparecia em público escusava-se às audiências, mostrava-se melancólico, taciturno, indeciso e tardio nos negócios públicos.

Pensou em pedir sua exoneração de governador da capitania e retirar-se para Portugal, a fim de não assistir à partida do filho para o desterro, mas o zelo pelo real serviço e a suspeita de cair no desagrado do soberano, o que naqueles tempos era assas melindroso e grave, o detinham na posição aflitiva de governador geral.

Viam-no nas audiências ficar repentinamente imóvel, impassível, com os braços pendidos, e o olhar fixo, ou cair como extenuado, abatido e quase exânime em uma cadeira, sem mais atender aos que cercavam-no.

Propalava-se por isso que o governador achava-se doente, outros que via-se embaraçado em descobrir os meios de satisfazer à real fazenda e aos mais -cofres o empréstimo de seiscentos e dez mil cruzados, que custara o resgate da cidade; e era voz geral que Francisco de Távora se não demorava na governação da capitania.

Pensava Francisco de Távora em apresentar-se na prisão, e declarar a Frederico que era seu pai, mas se não achava com força de ânimo de abraçar-se com o filho, e depois deixá-lo sob o peso dos ferros e nos rigores do cárcere.

Em seus momentos aflitivos e amargurados recordava-se o governador de que tornara desgraçada sua mulher que tanto o amara, e agora devia ser quase o carrasco do filho, referendando a sentença de exílio lavrada pelo corregedor. Esses pensamentos abatiam-lhe os ânimos, e aguçavam o estilete do remorso que ia feri-lo no coração.

Era também profunda a dor que amargurava o coração de frei Fabiano; sabia que Frederico era inocente, mas não podia denunciar o culpado, e breve devia ser remetido o infeliz moço para Índia ou África em degredo perpétuo.

Lembrando-se do que Lúcia lhe pedira ao expirar, considerava-se fraco e miserável protetor, e amigo infeliz e imprestável.

Declarando ao provincial que necessitava de entregar-se alguns dias aos exercícios de penitência, recolheu-se à sua cela, e recusou-se a todo o serviço do convento e da enfermaria.

Lastimavam-se os frades por vê-lo macilento, de olhar amortecido, magro e abatido, como se alguma moléstia de caráter assustador lhe houvesse penetrado no corpo, ameaçando-o levá-lo ao támulo.

— Como está enfraquecido e esgrovinhado o nosso santo frei Fabiano, dizia um devoto, que se havia dirigido ao convento em busca de uma receita do frade leigo.

— Não chega à lua nova, acrescentava o outro que o acompanhava.

— Não diga tal, senhor Gonçalo; Nossa Senhora não ha de permitir que tão santo varão acabe assim.

E que seria de nós se tal desgraça acontecesse?

— Diz muito bem vossa mercê; mas quero crer que se frei Fabiano está assim não é de moléstia e sim de penitências e jejuns.

— Virtuoso varão; vive curando e beneficiando os pobres, e ainda dilacera e ensanguenta o corpo para alcançar a graça divina; receba Nosso Senhor as obras pias e os martírios desse caridoso sacerdote em salvação de sua alma.

— Assim seja.

E os devotos se separarão resolutos a orarem a Deus pela vida do caridoso enfermeiro do convento.

Em suas horas de insânia via frei Fabiano perpassar diante de si a imagem de Lúcia, e horripilava-se; sentia uma convulsão geral, porque essa imagem parecia acusá-lo chamando-o de fraco protetor, parecia exprobar-lhe, e ao mesmo tempo implorar-lhe que não desamparasse, não deixasse jazer em um cárcere escuro, e ir para o degredo um homem que era inocente.

Pensava o frade leigo em ir à prisão de Frederico e referir-Ihe que encontrara seu pai, que era o governador da capitania, e que assim devia ter mais esperança no futuro, mas recordava-se logo que achava-se o preso incomunicável em rigoroso cárcere.

Prestes estava a partir para Índia o navio com o sentenciado Francisco de Castro de Morais, que tão pesada pena tivera pela sua inépcia e fraqueza, e que apesar de saber que Frederico sofria injusta prisão, como autor da morte do general francês, se não revelava como o único culpado, por não agravar sua sentença de degredo, cuja comutação esperava alcançar mais tarde, por proteção de seu tio, o válido de El-Rei D. João V.

Devia Frederico seguir viagem para Índia com o condenado Francisco de Castro de Morais.

 

XXVIII

O PRESO

Só, encerrado no estreito cubículo de um cárcere escuro e úmido, jazia Frederico triste e taciturno, julgando-se abandonado de todos; até de Fabiano que tanto o protegera e amparara nas ocasiões arriscadas de sua vida.

Quando menino vira-se afastado dos braços de sua mãe e entregue a um indivíduo que enviou-o para um país longínquo, onde só, pelo seu trabalho adquiriu a subsistência, e agora, quando acreditava ter amigos, quando pensava haver um coração de mulher que palpitava pelo seu, e um peito amigo que o estremecia, via-se abandonado, e não achava quem o consolasse e o defendesse.

— Sofrer tanto inocentemente, perguntava a si próprio o moço, sem haver cometido crime algum; quem me acusaria de assassino do general Duclerc, quais as provas que me condenam; não fui interrogado, e lançou-me a justiça em um cárcere dias, meses e anos, sem dar-me o direito de defender me, ferindo-me com o ferrete da ignomínia. E meus amigos, e frei Fabiano em quem sempre confiei. Ah! foi ingrato como os outros! E Tereza, que jurou amar-me, ter-me-á esquecido julgando-me culpado; em vez do amor que votava-me ter-me-á desprezo ou ódio! Ai! minha mãe quando me arrancaram dos vossos braços porque não acabaram logo com a existência que começava para mim! E o preso caía em abatimento e desânimo.

Encarando no rosto macilento da filha, vendo-lhe sempre os olhos amarejados de lágrimas, as faces abatidas e pálidas, o olhar amortecido e lânguido, o enfraquecimento e magreza do corpo, condoía-se Fortes de Bustamante, e reconhecendo que o sofrer da filha nascia da prisão em que se achava Frederico, arrependia-se de haver dado crédito à nova de que fora ele o assassino de Duclerc, e se apressado em denunciá-lo. Mais de uma vez se dirigira ao governador procurando interceder pelo infeliz.

Mais lancinante tornava-se a dor de Francisco de Távora quando vinham-lhe pedir pelo filho, que ele, mais que todos, desejava salvar, porém pela dignidade de seu cargo o não podia fazer; mostrava-se agitado, convulso, sem quase poder pronunciar uma palavra, e de um modo aflitivo despedia-se daqueles que se interessavam por Frederico dizendo-lhes: — Hei de refletir.

Mas não tinha o governador esperança de poder salvar o filho; prestes devia sair o navio para levar os degradados da Índia, e entre eles devia ir Frederico, e por isso era preciso referendar a sentença de degredo; e cada dia que corria, aproximando o momento da partida da frota, aumentava os padecimentos e a aflição de Francisco de Távora.

Havia porém um coração que às vezes palpitava esperançoso, que acreditava que, sendo Frederico inocente, não havia de sofrer pena tão rigorosa e infamante; era o de frei Fabiano, homem de fé, de crenças puras, de verdadeira convicção na justiça divina, e por isso apresentava-se calmo e tranquilo em alguns momentos, e levantando os olhos para o céu dizia:

— Deus ha de salvá-lo.

A religião é o lenitivo mais suave, o mais virtuoso balsamo para as dores cruciantes da alma; crede e sofrereis menos, sede religioso e tereis consolação e esperança.

 

XIX

PESQUISAS

Em um desses momentos de calma e resignação que a fé trazia a seu ânimo abatido, lembrou-se frei Fabiano de que, entre os objetos confiscados a Francisco de Morais, podia encontrar-se qualquer papel, qualquer declaração escrita que denunciasse o verdadeiro culpado, provando a inocência de Frederico.

Sabia frei Fabiano que a presença de Duclerc incomodara ao ex-governador Francisco de Morais, que mais de uma vez manifestara o receio que tinha desse inimigo, e o desejo de afastá-lo da cidade do Rio de Janeiro por qualquer meio que fosse; e vimos que, tendo-se dado o assassínio do general francês, correu a fama que Francisco de Morais não fora estranho ao crime. Essas vozes de condenação chegaram a frei Fabiano que, se não mostrou dar crédito, conservou no peito suspeitas veementes da traição de Morais.

Dirigindo-se a Francisco de Távora lembrou-lhe o frade leigo a utilidade de examinar cuidadosamente os papéis encontrados em casa de Francisco de Morais, para ver se desse modo se descobria o autor da morte do general francês.

— Já foi examinada a correspondência oficial de Francisco de Castro de Morais, e também todos os papéis pertencentes ao processo do crime praticado contra o general Duclerc, retorquiu-lhe Francisco de Távora.

— Sim, acrescentou o frade, mas quem sabe se não escapou algum papel; se vos assevero, senhor governador, que Frederico não é culpado, devemos pesquisar tudo para cair a pena no verdadeiro réu, e livrar o inocente dos horrores do cárcere.

— O ex-governador e outros hão sido interrogados, e todos são acordes em confessar como criminoso a....

E Francisco de Távora estacou não ousando pronunciar o nome do filho.

— Mentem, bradou o frade, aceso em ira, é uma calunia atroz; se não deve manchar a reputação alheia com acusação tão grave sem provas evidentes da criminalidade; talvez esteja oculto entre esses que o acusam o verdadeiro assassino.

— Dizei o seu nome, tornou-lhe o governador, e farei o que pedirdes; não é o governador quem vos suplica, é, um pobre pai que vê diante de si condenado, expatriado e amaldiçoado por Deus e pelos homens o seu filho; dizei, meu padre.

Ergueu o frade os olhos ao céu, e tocando os lábios com os dedos murmurou.

— Não posso.

O governador deixou-se cair sentado na cadeira de couro lavrado e marchetada de pregos amarelos que estava junto a si, e ocultando o rosto entre as mãos balbuciou:

— Dai-me ânimo, meu Deus, para vencer transe tão aflitivo e pungente.

— Vamos examinar os papéis encontrados em casa de Morais, repetiu o frade ao governador.

Convidou Francisco de Távora ao frade leigo para entrar em um gabinete próximo, onde estavam depositados diversos objetos, e papéis arrecadados em casa do ex-governador.

Começaram ambos a folhear, a abrir e a ler um por um todos os papéis, e já haviam examinado quase todos, quando ao ler um deles expandiu o frade o rosto, julgando haver encontrado a prova da inocência de Frederico.

O escrito dizia assim:

— Desejo, Sr. Muniz de Albuquerque, falar-vos hoje depois da audiência para lembrar-vos um meio de vingar-vos da afronta, que um miserável fez à vossa honra, e...

E nada mais continha o bilhete.

Era a carta que Francisco de Morais começara a escrever a Muniz de Albuquerque, e que inadvertidamente esquecera entre outros papéis. O frade amarfanhou o escrito entre as mãos exclamando contrariado.

— Mais algumas palavras e Frederico estava salvo.

Concluído o exame, a pesquisa de todos os papéis, murmurou o frade leigo.

— Nada encontrei.

— Nem eu, acrescentou Francisco de Távora abatido.

— Mas, senhor governador, há um meio de salvar o vosso filho.

— Qual? dizei, clamou Francisco de Távora agitado.

— Podeis dar-vos por suspeito por ser pai do réu.

— Mas isso o não libertará da prisão, apenas retardará a sua partida para o desterro.

— E já nos convém se tal conseguirmos; se Frederico não é o autor do assassínio, toda a demora na decisão do pleito é útil para descobrir-se o verdadeiro réu.

— E se El-Rei submeter o crime à justiça dos tribunais de Lisboa poderemos esperar sentença mais favorável?

— Pois largai a governação da capitania entregando-a à câmara, como determinam as cartas régias, e correi à Lisboa a advogar a causa do vosso filho.

Francisco de Távora cruzou os braços, abaixou a cabeça e ficou pensativo.

Nesse momento bateram à porta; era o capitão-mor da costa que vinha saber do governador a hora e o dia da partida da frota.

Francisco de Távora encarou-o fixamente, e sem corresponder às cortesias do capitão-mor, disse-lhe:

— Amanhã, às duas horas da tarde.

Retirava-se esse empregado quando assomou na sala vaga, que hoje chamamos sala de visita, a figura austera do corregedor, trazendo a lista dos degradados que deviam seguir na frota.

— Que quereis, perguntou-lhe o governador abordoando-se no seu bastão de marfim.

— Trago-vos, senhor, retorquiu-lhe o magistrado, a lista dos desterrados, que devem seguir na frota, para receber a vossa assinatura.

Francisco de Távora tornou-se pálido, ficou como areado, afastou os cabelos da testa, e recebendo o papel levou-o à uma mesa próxima, assinou, e entregou-o ao corregedor dizendo-lhe.

— Ei-lo.

O magistrado saiu.

Repentinamente caiu o governador desmaiado no pavimento da sala; frei Fabiano abeirou-se dele, e procurou reanimá-lo enxugando-lhe o suor que escorria em bagas pela testa.

 

XX

PARTIDA

Recuperando os sentidos, experimentou Francisco de Távora contrações nervosas durante toda a noite, mas que pouco e pouco minoraram pelas convenientes aplicações medicamentosas de frei Fabiano; ficou o governador exausto de forças, combalido, e com o rosto macilento e desfigurado. Vendo-o mais tranquilo, disse-lhe o frade leigo:

— Animai-vos, senhor, não vos deixeis sucumbir pelas agonias acerbas da dor; necessitais ter coragem para defender vosso filho, que não tem outro arrimo e outro braço que o sustente; se vós, o governador desta capitania, por El-Rei nosso senhor, vos acabrunhais desse modo, como resistirá vosso filho, pobre órfão, que se vê torturado pelas cruezas do cárcere; vos deve consolar a ideia de que vosso filho é inocente; deve a fé abrir o vosso peito à esperança, e se duvidais da justiça dos homens, acreditai ao menos na de Deus. Eu também preso a esse moço, e sei que sofre injustamente por um crime que não cometeu; mas já me vistes sucumbir!

— Mas não sois seu pai!

— Dedico-lhe porém amor de pai; desde o dia que o avistei, declarei-me seu amigo perante à imagem divina do Redentor, e desde esse dia tenho-o acompanhado, protegido e esforçado-me por livrá-lo dos males da vida; vejo-o hoje preso e condenado, mas como ele é inocente, creio que vós, seu pai e poderoso governador deste Estado, podeis salvá-lo, se souberdes ter ânimo para suportar essas flagelações, esses tormentos da alma; tende fé na justiça do céu que nunca falta aos homens. Vosso filho precisa de quem o anime, e acorde-lhe no coração a esperança e a fé, e assim, em vez de entregar-vos às agonias da dor, porque não ides vê-lo e consolá-lo?

— Vê-lo e deixá-lo depois no cárcere só e condenado!

— Mas plantareis em sua alma a esperança, e em seu coração o amor de pai que ele não conhece; ficará ele sabendo que seu pai é o governador da capitania, o qual pode suste-lo das profundezas da masmorra e libertá-lo.

— Mas para que levar-lhe à alma uma esperança que não sei se poderei realizá-la?

— Para reanimá-lo, emprestar-lhe forças a fim de superar as desgraças da vida; para ensinar-lhe a ver no futuro um ente que pode protegê-lo; para dar-lhe uma consolação; e que mais viva e intima consolação para o órfão do que a de achar o homem a quem pode dar o nome de pai!

— Se minha visita à prisão pode ser útil a meu filho, levai-me até lá, virtuoso padre, redarguiu Francisco de Távora chorando.

Mandou frei Fabiano vir uma cadeirinha na qual entrou o governador, sustido pelo braço do frade, que acompanhou-o a pé.

Chegados à fortaleza de S. Sebastião, onde estava o preso, foi frei Fabiano o primeiro a penetrar no cubículo em que estava encerrado Frederico.

— Oh! meu pai, meu padre! exclamou Frederico erguendo-se do almadraque de palha em que estava deitado e lançando-se nos braços do leigo; vós aqui, julgava que me havíeis abandonado.

— Não; a lei é que vedava-me a entrada deste cárcere, e por isso não podia chegar até vós.

— Sou inocente, acreditai-me.

— Sei, e conheço o réu do crime que vos é imputado.

— E porque não tendes advogado minha causa, e libertado-me desta masmorra acusando o verdadeiro criminoso?

— Vedes este hábito, este cordão que me cinge o peito; pois essas vestes e os votos que elas exprimem coíbem-me de falar; é um segredo de confissão.

— Ah! murmurou Frederico sucumbido.

— Mas um ente muito mais poderoso do que este pobre frade, uma voz muito mais imponente, e que mais de perto falará ao vosso coração, vai erguer-se em vossa defesa.

— Quem poderá defender-me como vós, onde encontrarei auxílio mais eficaz e amor como o do vosso coração?

— No coração do vosso pai.

— De meu pai, dizeis!

— Sim de vosso pai, que é o Sr. Francisco de Távora, o governador desta capitania.

— E ainda me não libertou?

— Não, meu filho, disse Francisco de Távora entrando apressadamente no cubículo do preso, não porque a honra de meu nome de fidalgo português e de delegado d’El-Rei meu senhor m’o proíbe; sou responsável pela justiça desta terra que El-Rei o senhor D. João V confiou à minha guarda; mas tenho padecido muito por ver-te condenado; se tens experimentado os rigores do cárcere, tenho esgotado gota à gota o cálice de acerbas amarguras. Ah! deixa-me encarar-te, deixa estreitar o teu peito junto ao meu para ver se me podes dar algum alento, pois sinto a vida desprender-se-me das fibras do coração.

— Meu pai! exclamou Frederico abraçando-o.

— Sim, repete esse nome, chama-me de pai uma e muitas vezes, desperta-me no peito esse sentimento que viveu abafado tanto tempo. Consola-te meu filho, continuou Francisco de Távora enxugando as lágrimas do filho, hei de procurar salvar-te, e se não puder, irei contigo para o desterro, esmolarei em terra estranha o pão da miséria, e suportarei contigo os pesados trabalhos dos presídios da África ou da Índia. Hoje não estás só, tens por ti teu pai. Misturavam-se as lágrimas do pai e do filho.

Apareceram nesse momento na prisão os soldados do regimento velho, que vinham buscar o preso para embarcar na frota que estava a sair. Frei Fabiano, que logo que Francisco de Távora entrara na prisão, se recolhera silencioso a um canto, procurou afastar o pai do filho, mas os lamentos, os gemidos, os gritos que se partiam dos peitos de ambos, os esforços que ambos faziam para se não apartarem, o detinham e embaraçavam por fim, depois de muito lutar, tirou o frade um crucifixo, que trazia por debaixo do hábito, e apresentando-o a Francisco de Távora, bradou:

— Coragem, Sr. governador; este que aqui vedes sofreu mais que todos nós; coragem. E pegando do braço de Francisco de Távora retirou-o do cárcere.

Algumas horas depois zarpava a frota levando, entre os degradados, o filho do governador da capitania.

 

XXI

A VOZ DA CONSCIÊNCIA

Francisco de Távora foi arrancado dos braços do filho em estado de grande aflição e desespero; encerrou-se em seu palácio, absteve se de todo o serviço da administração pública, e escusou-se a receber quem o procurava; só tinha junto a si o frade leigo, que com prudentes reflexões procurava reanimá-lo e dar-lhe alivio às dores pungentes da alma.

O navio que conduzira Frederico para o desterro levou também os degradados Francisco de Castro de Morais, e Francisco Xavier de Castro, que fora preso no lugar em que se refugiara.

Levado para bordo mui desanimado e abatido prostrou-se Frederico no leito, e se não levantou mais.

Frei Fabiano presenciou o seu embarque tendo os olhos lavados em lágrimas, enquanto balbuciava com as mãos erguidas ao céu fervorosas orações.

— Meu Deus e meu senhor, murmurava o frade, protegei-o porque ele é inocente.

Tereza não soubera que seu amante partira para o desterro; Fortes de Bustamante ocultara-lho receoso de que essa nova levasse o desespero ao coração da filha, e acabasse por despedaçar-lhe das fibras do peito os últimos alentos que lhe davam vida. Exceto frei Fabiano ninguém mais sabia que Frederico era filho do governador, e por isso sua partida não interessou nem despertou a atenção publica; alguns lastimarão a sorte do pobre órfão tão cedo roubado ao gozo da liberdade, muitos porém amaldiçoaram-no, indigitando-o como criminoso que manchara suas mãos no sangue de uma vítima.

Cada dia que adiantavam-se os navios na viagem aumentavam-se os padecimentos, a prostração de Frederico; as forças iam-lhe pouco e pouco diminuindo, o pulso abatia-se, o rosto estava emaciado, os olhos aprofundados nas orbitas, envoltos em um círculo arroxeado, e o corpo tão emagrecido que os ossos pareciam querer romper a pele que os revestia. Em certos momentos tomava o seu semblante uma cor animada, relumbravam-lhe os olhos, o mísero esforçava-se por erguer-se no leito, e murmurava como delirante:

— Tereza, meu pai, frei Fabiano.

Logo após inundava-lhe o rosto e toda a periferia do corpo um suor abundante que prostrava-o horas e horas sem movimento.

Quando a frota chegou à cidade da Baía, achava-se Frederico em estado assas grave, já não levantava a cabeça, nem abria os olhos, e parco era o alimento que recebia.

Vendo o cirurgião da frota que inevitável era a morte do padecente, para se não ter de lançar o cadáver ao mar, aconselhou o desembarque do moribundo.

Retirado do cubículo em que jazia, foi o misero trazido para o tombadilho, a fim de ser remetido para a terra.

Francisco de Morais e Xavier de Castro presenciaram então o estado do seu companheiro de infortúnio, e olhando fito nesse rosto lívido, vendo esses olhos empanados e esvurmando sangue, esse corpo descarnado e prostrado, como se só esperasse a cova em que devia dormir o sono sem fim, entrou-se Francisco de Morais de tanta condolência, sentiu em si bradar tão alto a voz da consciência que, dirigindo-se a Xavier de Castro, disse-lhe:

— Fui eu quem matou este pobre moço, que é inocente.

— Pois declarai-o, meu tio, observou-lhe Xavier de Castro.

Ouvindo estas palavras aproximou-se o capelão de bordo, e falou assim ao ex-governador.

— Filho, apressai-vos em revelar ao governador desta capitania que esse moço é inocente, e Deus levará em conta de vossos pecados essa confissão; livrai a vossa consciência desse grande remorso e a vossa alma desse ingente pecado; se os homens vos condenaram o corpo, salvai vossa alma perante Deus, pai de misericórdia e amor; não deixeis esse orfanado de pai e mãe soltar o último suspiro sem ouvir a sua absolvição; vedes que ele vai a se finar passado de dores; ainda é tempo, revelai o que sabeis, e Deus vos abençoará.

Depois de fitar muito tempo os olhos no corpo abatido e exangue de Frederico, voltou-se Francisco de Morais para o capelão e disse-lhe:

— Desejo falar ao senhor governador Pedro Luiz de Vasconcelos.

Levaram-no ao palácio do governador da capitania da Baía, que era o filho do fidalgo Luiz de Vasconcelos e Souza, da casa dos condes de Castelo Melhor. Francisco de Castro de Morais fez importantes revelações ao governador, e no dia seguinte prosseguiu a viagem no navio que levava-o à Índia.

 

CONCLUSÃO

Francisco de Castro de Morais deu minuciosas informações ao governador Pedro de Vasconcelos sobre o assassínio de Duclerc, e procurou justificar esse atentado alegando que mandara-o praticar para livrar a pátria de um inimigo inquieto, turbulento e rancoroso, que continuamente perturbava o sossego público; como se houvesse muito que recear de um só homem vencido e prisioneiro, e se pudesse perdoar e julgar lícito ato tão violento e criminoso como o assassínio.

As declarações de Francisco de Morais inocentaram a Frederico que ao ouvi-las sentiu um sobressalto geral, e caiu depois em profundo espasmo, conservando no olhar uma fixidez e calma, que parecia haver-se-lhe varrido a razão. Levado para um aposento mais higiênico, e considerado não como um degradado, senão como um infeliz, recebeu tratamento mais conveniente, e pouco e pouco voltaram-lhe as forças, as cores às faces, o brilho aos olhos e o movimento aos membros; restituído à saúde e à liberdade regressou Frederico de Távora ao Rio de Janeiro. As emoções que experimentou ao abraçar seu pai e a frei Fabiano, que tanto fizera por ele, são inexprimíveis, sentem-se, mas as palavras são insuficientes e amortecidas para descrevê-las, principalmente se o autor, como nós, não tem recursos na frase para pintar transportes tão íntimos e veementes.

Frederico foi nomeado ajudante de ordens do governador da capitania.

Reconhecido como filho de Francisco de Távora, e escolhido seu ajudante de ordens tornou-se festejado e considerado de todos; saudavam-no, lisonjeavam-no quando avistavam-no aqueles próprios que antes acusaram-no de assassino, louvaram a retidão da justiça que o condenara, e foram os primeiros a amaldiçoá-lo no dia em que se fez ao mar o navio que conduzia-o para o desterro; voltaram, reapareceram os amigos ingratos, e todos tiveram de mentir para justificar seu procedimento, e de aviltar-se adulando e engrandecendo os méritos daquele que, pouco antes, chamavam de precito!

Fortes de Bustamante que pelos sofrimentos em que se estava a filha, se interessara pela sorte de Frederico, e lastimara sua partida, regozijou-se quando viu-o voltar à pátria livre da pena do desterro; reabilitado na opinião pública, e considerado por ser o filho do governador e seu ajudante de ordens; foi um dos primeiros a visitá-lo, narrou-lhe a tamanha aflição de Tereza, e mostrou-se desejoso de apressar a uniam dos dois namorados, cujos corações já estavam atados pelos liames do amor.

Abriu-se a alma de Frederico aos sonhos alegres e risonhos da vida, quando viu realizadas suas esperanças nas palavras francas e decididas de Fortes de Bustamante.

Quanto a Tereza, mudaram-se-lhe as lágrimas em risos, e encheu-se-lhe de júbilo o coração ao ouvir seu pai dizer-lhe:

— És a noiva de Frederico de Távora.

Ajustaram-se as núpcias, impetrou-se a licença régia, para a uniam dos noivos; e corridos quatro meses celebrou-se o casamento na igreja da Cruz, que servia de Sé e Catedral, oficiando o bispo D. Francisco de S. Jerônimo, e achando-se presentes governador e as pessoas mais gradas da cidade.

Durante a cerimônia conservou-se ajoelhado, de mãos postas e com os olhos em Cristo, o frade leigo frei Fabiano.

Terminado o ato estreitou Francisco de Távora o filho entre os braços balbuciando:

— Perdoa-me se te fiz sofrer, e pede a tua mãe que também m’o perdoe.

— Ela já vos perdoou, senhor, acrescentou Frederico beijando a mão do pai.

— Meu Deus e Senhor, tornou Francisco de Távora fitando os olhos em Cristo, eu vos agradeço haver concedido essas alegrias ao meu coração.

Erguendo-se aproximou-se frei Fabiano de Frederico e disse-lhe:

— Eu vos abençoo em nome de Deus e de vossa mãe.

Frederico ajoelhou-se, e beijou a fímbria do hábito do frade leigo; Tereza imitou-o.

Depois de haver prestado úteis serviços à capitania, e tomado posse da colônia do Sacramento que, em virtude do tratado de Utrech, fora restituída à coroa portuguesa, retirou-se Francisco de Távora para Portugal, onde faleceu no posto de mestre de campo do exército do rei.

Frederico não acompanhou-o, deixou-se ficar no Brasil, onde pelo dote que lhe viera com a esposa, e pelos recursos herdados de seu pai, avantajou-se no comércio, tornou-se um dos mais ricos da cidade, ocupou diversos cargos, como ode juiz da Alfândega, e chegou a exercer, com outros homens bons da terra, a governação interina da capitania.

Chegados à Índia foram Francisco de Castro de Morais e Francisco Xavier de Castro reclusos em uma fortaleza, onde consta que se finaram a chorar pela pátria, pelas mulheres e filhos, e o primeiro também por seu tio, o reitor do colégio de Santo Antão, que há muito adormecera o sono eterno na igreja dos padres da companhia de Jesus.

O mercador Gaspar Soares pereceu de decrepidez.

É fama que vendo fazer-se ao mar o navio que exilava para Índia o desditoso Francisco de Morais dissera:

— Vai homem pusilânime e covarde com o inimigo forte e destemido, e vil e traiçoeiro com o inimigo vencido e desarmado.

Recusando a decidida proteção de Francisco de Távora, que oferecera-lhe impetrar da corte honroso benefício eclesiástico que premiasse suas virtudes, conservou-se frei Fabiano na condição humilde e humanitária de enfermeiro, e nessa vida obscura mas caritativa permaneceu o virtuoso leigo trinta e sete anos.

Em outubro de 1747 agravaram-se os padecimentos do santo varão, que reconheceu estar próxima a hora de encetar a grande viagem que devia levá-lo até Deus.

Vindo Frederico visitá-lo, disse-lhe o humilde leigo:

— Adeus, meu filho, até o céu.

Frederico afastou-se do leito do frade sufocado em choro.

O virtuoso leigo anunciou em que hora e dia havia de afastar-se do mundo, e como se Deus já lhe houvesse concedido aos olhos luz divina para ler no futuro, aconteceu perecer na hora e dia marcados; às duas horas da tarde de 17 de outubro de 1747 frei Fabiano era do céu.

Divulgada sua morte agitou-se o povo, correu ao claustro lastimando-se de tão grande perda; dobraram os sinos de todos os campanários, fecharam-se as casas, e quase todos vestiram-se de luto, causando o acontecimento tanto abalo como se fora uma calamidade pública.

Depositado o cadáver na capela do claustro consagrada à Jesus, Maria, José, invadiu o povo esse recinto, aproximou-se do esquife em que dormia o morto, e rasgou, dilacerou os dois primeiros hábitos que revestirão o cadáver, acreditando ter nesses pedacinhos de pano relíquias santas; manifestavam todos o desejo de ver o finado, de tocar-lhe o corpo com as mãos ou conchegar-lhe à carne rosários, fitas, lenços, cruzes, figas e outros objetos por julgarem que se transmitiam do corpo morto aos objetos que tocavam-no as virtudes do humilde leigo. Começou a reinar tanta confusão e alarido que foi preciso intervir a força armada para aquietar a multidão, que se mostrava exaltada, e porfiava em obter relíquias arrancadas a esse corpo que se diluía

Conduzido o cadáver no dia seguinte à igreja começaram os ofícios fúnebres celebrados por ordem de Frederico com muita pompa, e a que assistirão o bispo de então D. frei Antônio do Desterro, o governador Gomes Freire de Andrade, depois conde de Bobadela, a nobreza, clero e povo; um religioso relatou no púlpito as virtudes do morto, e os milagres que Deus por sua intervenção praticara, e, antes de descer ao jazigo que era-lhe reservado, na quadratura da claustra, beijaram o governador, o bispo, e todas as pessoas presentes a mão do finado, notando-lhe cheiro de santidade.

Terminados os funerais conservaram-se longo tempo ajoelhados, orando junto ao túmulo em que repousava o humilde frade, um homem e uma mulher cobertos de luto. Erguendo-se disse Frederico olhando fito na sepultura:

— Eu vos agradeço, minha mãe, o amigo e protetor que me escolhestes; ele foi mais que isso, foi meu pai.

— E pai de todos que chora vão e sofriam, acrescentou Tereza.

Na parede fronteira ao jazigo do leigo gravou-se esta inscrição:

— Sepultura do servo de Deus frei Fabiano de Cristo, falecido em 17 de outubro de 1747.

Tal era a veneração e fé que tributava o povo a esse frade, que começou a empregar contra diversas moléstias, e em casos aflitivos, as relíquias obtidas no dia do enterramento, e propalaram-se muitos milagres operados por esse meio.

O bispo e o governador atestaram o cheiro de santidade no cadáver do leigo [6], e mandou o diocesano proceder a uma inquirição jurídica sobre os numerosos milagres que se diziam operados por Deus em testemunho da santidade de frei Fabiano de Cristo. Vinte e nove pessoas relataram, sob juramento aos santos evangelhos, fatos miraculosos realizados por meio das relíquias e intervenção do humilde e virtuoso leigo, que não foi canonizado por faltarem à congregação franciscana meios para tão dispendiosa honra.

Dobados anos exumaram-se os ossos de frei Fabiano, que ainda estão depositados na parede do corredor, que comunica a enfermaria com a capela do Senhor dos Passos, levantada na antiga cela do frade leigo, cuja sepultura em que se consumiu o cadáver, foi desde então, por ordem episcopal, declarada impedida.

Não reflexionaremos sobre as atestações de Gomes Freire de Andrade e do bispo D. frei Antônio do Desterro, que o leitor pode ler nas ultimas páginas deste livro; o primeiro, há mais de um século, e o segundo, há noventa e sete anos, foram responder pelos seus atos perante o supremo juiz, perante Deus; assim diremos dessas vinte e nove pessoas que juraram milagres operados por intervenção do humilde leigo.

Mas convém observar que devemos estudar os acontecimentos e indivíduos segundo a época, os costumes, as ideias, a crença e os sentimentos religiosos em que viveram, e não condenar absolutamente os fatos, principalmente em obras tais em que não corre ao autor o dever de investigar as causas e as razões dos acontecimentos.

Mas uma reflexão e fecharemos o livro; apesar de não haver sido canonizado o caridoso enfermeiro do convento, se há perpetuado seu nome, que ainda é repetido com veneração; entretanto pesa sobre seu túmulo mais de um século.

Que santo varão não foi esse homem, chamado no claustro frei Fabiano de Cristo!

FIM

NOTAS

 

[1] Histórico.

[2] Hoje rua do Riachuelo.

 

[3] Histórico.

 

[4] Histórico.

 

[5] Histórico.

 

[6]

PRIMEIRA

D. frei Antônio do Desterro, por mercê de Deus e da Santa Sé Apostólica, bispo do Rio de Janeiro, do conselho de Sua Majestade, etc., etc.; atestamos que aos 18 dias do mês de outubro do ano passado, de 1747, às 4 para às 5 horas da tarde, assistindo nós a rogo dos Revms. franciscanos do convento de Santo Antônio desta cidade, ao enterro do servo de Deus frei Fabiano de Cristo, religioso leigo do mesmo convento, o qual havia falecido no dia antecedente, pelas duas horas da tarde, vimos e presenciamos o seguinte:

Que havendo falecido o dito servo de Deus de uma hidropisia e de umas chagas antigas e asquerosas, que lançavam de si matérias pútridas, depois de morto nenhum mau cheiro lançava o cadáver. Que as ditas chagas estavam rosadas, vertendo sangue líquido. Que, esfregando nós as ditas chagas com um retalho do hábito do mesmo servo de Deus, e molhando-o no seu sangue, lançava este um cheiro suavíssimo que recreava o olfato. Que o cadáver tinha flexíveis as mãos, braços, pernas e juntas do corpo em que se fez exame. Que tinha as cores do rosto tão naturais e agradáveis, e os olhos tão cristalinos como se estivesse vivo, havendo mais de vinte e seis horas que tinha morrido. O que tudo nos pareceu, e aos médicos que estavam presentes, serem efeitos sobrenaturais e prodigiosos. E informando-nos nós da pátria, vida e costumes do dito servo de Deus, soubemos dos religiosos do dito convento, que era natural do arcebispado de Braga, no reino de Portugal, que tinha 71 anos de idade pouco mais ou menos, e 41 de professo na religião de S. Francisco desta cidade, dos quais gastara 37 em servir com fervorosa caridade na enfermaria do convento: que finalmente fora sempre um religioso de vida inculpável e exemplar. Todo o referido é verdade, em fé do que mandamos passar a presente atestação por nós assinada e selada com o selo das nossas armas, neste nosso palácio episcopal da cidade do Rio de Janeiro, aos 2 de agosto de

1748. E eu padre Agostinho Pinto Cardoso, escrivão da câmara eclesiástica, a subscrevi. Assinado D. Fr. Antonio, bispo do Rio de Janeiro— Lugar do selo — Cardoso.

Registrado à fl. 77 v. do livro 1° do registro das letras apostólicas.

Rio, 2 de agosto de 1748. — SENNA.

SEGUNDA

Gomes Freire de Andrade, do conselho de Sua Majestade, sargento-mor de batalha de seus exércitos, governador e capitão general das capitanias do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás e Cuiabá, etc., etc. Certifico e atesto que indo eu ao convento de Santo Antônio desta cidade, assistir ao funeral do servo de Deus frei Fabiano de Cristo, religioso leigo do mesmo convento, vi e examinei haver falecido de hidropisia geral, e que algumas chagas que tinha antigas e asquerosas, lançavam de si sangue puro e odorífero. Que tinha as mãos, pés e mais partes do corpo, em que pôde fazer-se exame, inteiramente flexíveis. Que sendo o dito religioso em vida de cor muito macilenta, ao tempo que se fazia o oficio de corpo presente, reparei que se lhe tornaram as cores do rosto tão rosadas e naturais, e os olhos tão cristalinos, melhor do que se estivera vivo, havendo mais de 26 horas que estava morto; o que tudo me pareceu e às mais pessoas que estavam presentes, serem efeitos sobrenaturais e prodigiosos. Ultimamente sempre o conheci de quatorze anos que estou nestas capitanias, e geralmente de todos foi tido como um religioso de vida virtuosa e exemplar. Era natural do arcebispado de Braga, em Portugal. Viveu setenta e um anos, pouco mais ou menos, e morreu a 17 de outubro do ano passado, pela uma para as duas horas da tarde. Tinha 41 anos de corporação, havendo 36 ou 37 que servia de enfermeiro no referido convento, com ardente caridade evangélica.

Todo o referido passou na verdade segundo o que presenciei e as informações que tomei; em fé do que mandei passar a presente atestação por mim assinada e selada com o sinete das minhas armas.

S. Sebastião do Rio de Janeiro, a 5 de setembro de 1748. — Gomes Freire de Andrade.

TERCEIRA

No livro 2.° do tombo do convento de Santo Antônio desta cidade à folhas 85 a 100, acham-se lançados os depoimentos de vinte e nove pessoas respeito aos milagres, que fez o Senhor em testemunho da santidade daquele seu servo.

Entre outros diz Tereza de Jesus, moradora na rua do Parto, viúva de Jacinto de Almeida, haver-se curado de um fluxo de sangue, tendo prometido rezar quotidianamente pela alma do servo de Deus frei Fabiano de Cristo.

Depôs João Baptista de Sousa haver se restabelecido de um flato hipocondríaco no estômago, tocando o lugar enfermiço com um rosário, que conchegara ao corpo do servo de Deus frei Fabiano.

Depôs o ajudante de cavalaria Manoel de Sousa de Andrade que uma sua filha de dois meses se curara de uma impigem, por meio de uma relíquia do habito daquele servo de Deus.

Depôs Manoel Gonçalves Loureiro, morador na rua do Cano, dentro dos muros da cidade, haver-se restabelecido de uma impigem na face, por meio de uma relíquia daquele servo de Deus.

Deu depoimento João de Morais Leal, oficial de alfaiate, morador na rua do Rosário, de que sofrendo de uma dor no ventre há quatro meses, se curara ligando o ventre com uma fita, que cingia a perna do cadáver de frei Fabiano, relíquia esta que recebera do padre frei Pedro Nolasco de S. Francisco.

E outros, e outros...