Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Almerinda


Edição de Referência:

“Almerinda”. Jornal das Famílias.

Rio de Janeiro, setembro de 1867.

Dido era o nome de uma galera que navegava da Europa para os portos sul-americanos, fazendo regularmente três viagens em seis meses do ano. Os outros seis meses do ano eram empregados em outras viagens da Europa para a África.

Era a rainha das galeras, se para este título lhe bastavam a solidez, a elegância, a comodidade, o asseio... e a afabilidade do capitão.

O capitão e a galera faziam o mais unido e amante casal que ainda se viu. O capitão olhava a galera com olhos de esposo, tratava dela como se tivesse recebido diante dos altares. Era um amor de marinheiro.

A galera pertencia a um negociante de Barcelona, parente remoto do capitão, sendo este um tanto dono dela, em virtude de contrato anterior.

No dia em que se batizou o navio houve conselho para escolher o nome que se lhe havia dar. Muitos apareceram, mas todos rejeitou o capitão, cuja opinião era acatada. Enfim ele lembrou que se desse à galera o nome de Dido.

Dido! exclamou o negociante coçando a orelha, com ar descontente.

— Que achas?

— Não sei; é esquisito.

— Não há mais próprio nome do que este.

E como tivesse uns longes de estudos, referiu o capitão o episódio da esposa cartaginesa com as cores mais poéticas que achou à mão.

Foi adotado o nome; a galera começou a fazer regularmente as suas viagens.

Estava no terceiro ano de existência e achava-se no porto do Rio de Janeiro quando se deu princípio à história que vou narrar.

Dido devia demorar-se quinze dias no porto para receber o pouco carregamento que tinha de levar. Tinha chegado havia quatro dias. O capitão gozava nas horas mais livres dos passeios e das visitas a alguns amigos que tinha no corpo do comércio.

Ora, um dia lembrou-se ele de oferecer a esses amigos um jantar à bordo da galera. Marcou o dia, a hora, fez os convites e retirou-se para bordo a fim de dirigir o banquete.

À hora aprazada começaram a atracar à galera os escaleres que levavam os convidados. Quando todos se achavam presentes sentaram-se à mesa e começou o jantar, que, além de fino e escolhido, tinha a vantagem de reunir meia dúzia de amigos, ou ao menos pessoas que se ligavam por simpatia.

Todos eram negociantes, exceto um, que aliás, se o não era, prendia-se ao comércio por ser filho de negociante. Era um rapaz de vinte e cinco anos, alto, bem parecido, olhar inteligente, fisionomia enérgica e resoluta.

O pai chamava-se José Braz e o filho Gustavo Braz. Havia entre ambos, além da diferença das idades, a diferença da ideias politicas, que os traziam em perpétuas discussões. O pai era conservador, o filho era liberal. O pai não era da opinião de um conservador jornalista que eu conheci, e que me dizia uma vez a propósito das minhas opiniões liberais:

— Vieram dizer-me há dias que meu filho era liberal. Assim deve ser até aos vinte e cinco anos. Depois será um conservador extremo, porque não se tira conservador bom senão de massa liberal.

Fora da divergência política nenhuma outra separava Gustavo de José Braz, posto que outro ponto houvesse em que ambos deviam divergir, mas que só apareceu quando se deu o episódio que faz objeto destas páginas.

Começara o banquete no meio da mais franca alegria. O estômagos enchiam-se, circulavam as tortas e o Xerez, soltavam-se as línguas, avermelhavam-se os olhos, tudo enfim tomava o aspecto animado e vivo de uma festa em que ninguém conservava um cuidado no espírito.

Já para o fim do jantar atracou à galera novo escaler e entraram para o navio duas pessoas. O escaler pertencia à galera. As duas pessoas pareciam ser de casa.

Era um rapaz e uma rapariga. O rapaz era alto, claro, de fronte rasgada, olhos vivos. Tinha um aspecto que diziam logo, sem o rapaz falar, a que raça pertencia. Era espanhol. A rapariga baixa, morena, olhos grandes, pretos e cintilantes, cabelos da mesma cor e abundantes, não pequena. Acrescia um véu preto, preso no cabelo, à moda espanhola, caído para trás com a pontas sobre o seio.

Quando entraram os dois recém-chegados na sala de jantar, levantou-se o capitão, e apresentou-os aos convivas. Depois mandou pôr duas cadeiras de honra à mesa.

— Já jantamos, disse o rapaz.

A moça, antes de sentar-se, entregou a um criado uma pasta que trazia, e quando este ia levá-la para dentro, o capitão deteve-o, perguntando à moça:

— São desenhos?

— São, respondeu ela.

O capitão abriu a pasta e tirou papéis, e mostrou-os aos convivas, dizendo-lhes em português:

— São desenhos da senhorita Almerinda. Que hábil artista, não é?

Os desenhos foram examinados um por um. Representavam paisagens.

— Onde foi hoje a excursão? perguntou o capitão a Almerinda.

— À Tijuca, respondeu ela.

Dos conviva Gustavo era o único que falava quatro línguas, entre elas o Espanhol. Travou, portanto, conversação com a moça e o rapaz.

Ora, agora, farei aos leitores a apresentação da senhorita Almerinda e de D. Antônio Valdez.

Eram estes moços filhos de um capitão do exército de Espanha, ao qual, como conviria ao romance, não sucedeu morrer em campo de batalha, ou escalando uma fortaleza sitiada, mas sim no fundo de um leito em Barcelona.

Órfãos de pai, como já o eram de mãe, os dois jovens procuraram liquidar o pouco que seus pais lhes deixaram. Mas eram moços, tinham futuro e confiança. Uma vez liquidada a herança dispuseram-se a trabalhar. Mas trabalhar em quê? Almerinda só tinha uma ocupação capaz, própria, muito sua: a pintura; Valdez só tinha igualmente uma ocupação, muito sua, própria, capaz: a música. Ora, poderiam nesses seus misteres achar a segurança da vida?

Em que ambos pensavam mal formaram projetos de trabalhar, todavia, a necessidade urgia e dominava as preferências. O tendeiro apreciava o fandango e gastava dois minutos diante de uma tela, mas não entendia que isso o obrigasse a fiar os gêneros, o que era lógico e assinado. Diante de tais razões deviam ceder os dois artistas.

Assim que, dispuseram-se ambos, um a copiar música, e a outra a bordar, sendo que o bordado e a música eram encomendas para o teatro, onde, além de tudo, tinham um lugar para ver o espetáculo duas vezes por semana.

Deste modo podiam viver e economizar alguma coisa do patrimônio. Trabalhavam com aplicação digna de louvor; apresentado aos olhos de toda a gente uma vida digna de ser imitada.

Mas a vocação não se esconde todo o tempo que se quer. Lá veio um dia em que Valdez, ouvindo ao autor de uma peça que lhe faltava música para certos versos, ofereceu-se para fazê-la, e tão bem se houve na empresa que conquistou as simpatias do autor e do empresário.

Desde esse dia foi olhado com maior atenção. Tirou-se-lhe o emprego de copista para dar-se-lhe o de compositor, e com a diferença da posição subiu a diferença do ordenado. Quanto a Almerinda, essa apenas dava expansão ao talento artístico nas horas vagas, empregando as outras no mister a que se votara.

Um dia Valdez foi ao autor a que devia a mudança da posição e convidou-o a escrever o texto de uma zarzuela. O autor fez o trabalho e deu-o a Valdez. Valdez fechou-se dois dias em casa, e no fim desse tempo apresentou ao teatro a obra para ser cantada e representada.

A execução foi um triunfo.

Valdez, daquele dia em diante, começou uma reputação, que devia ser mais auspiciosa, se as circunstâncias posteriores não viessem interromper-lhe a carreira.

As circunstâncias foram o que são estas circunstâncias: um amor e uma mulher. Valdez apaixonou-se por uma rapariga a quem a natureza e a sorte tinham dotado da mais completa beleza e da mais completa pobreza. O caso não é raro.

A paixão de Valdez foi uma paixão verdadeira, sincera, profunda. As circunstâncias em que a viu e amou não interessam ao caso: o que interessa é saber que no princípio da carreira apareceu-lhe esta mulher.

Em outras condições Valdez tiraria do encontro o resultado natural, logico, único: casava-se e do amor de ambos colheria vontade e ardor para o trabalho, inspiração e motivo para produzir.

Mas nas circunstâncias dele podiam fazê-lo? Valdez pensou nisso. Tinha uma irmão que não podia viver por si e a quem ele mantinha; casar-se, era redobrar as necessidades da vida, dividir o pão, minguá-lo à irmã, companheira resignada e contente das suas vigílias, como à outra que viesse acompanhá-lo do mesmo modo nas vigílias e no trabalho. E o futuro? Podia não crescer a fortuna e crescer a necessidade, com a presença na família de novas criaturas a quem cumpriria alimentar.

Considerando todas estas coisas Valdez resolveu adiar o casamento até que os lucros da profissão o pusessem na posição de poder satisfazer, a um tempo, o amor e o dever.

Mas, à proporção que essa posição se fazia lentamente, caminhava com celeridade a paixão pela moça.

Valdez, dominado pela paixão, esteve quase, quase a esquecer o dever e atirar-se de olhos fechados naquilo que ele considerava um abismo.

Ocorreu uma circunstância que transtornou todos os projetos e abriu os olhos de Valdez.

Cansada de esperar o casamento, a moça, que só procurava marido, voltou os olhos para um pretendente, ao qual, visto ser menos empenhado e menos escrupuloso que Valdez, prometeu a mão de esposa.

Valdez desesperou.

Mas as coisas fazem-se assim no velho mundo, tal qual como no mundo nova, e Valdez viu com dor e mágoa do coração passar a infiel aos braços do concorrente.

Braços digo, e de propósito; uma mulher que pratica assim, não passa ao coração, passa aos braços do homem que prefere.

Valdez não quis assistir à felicidade do preferido, sendo que, além disso, doía-lhe no coração a paga que recebera da namorada.

É que ainda amava.

Entre os remédios para a doença de que fora atacado não viu outro remédio senão a mudança de terra.

Dava-se então com o capitão da Dido, amigo antigo de seu pai. Falou-lhe na sua situação, e perguntou-lhe se poderia ir com ele na próxima viagem.

— Pois não, respondeu o capitão; mas Almerinda?

— Também vai. É possível?

— É.

Valdez foi para casa, achou Almerinda ocupada em concluir um desenho.

— Almerinda, disse ele, tu que tens tanto amor às paisagens, queres ir ver o novo mundo e pintar alguma coisa da natureza americana?

Almerinda sorriu.

— Não é caçoada, continuou Valdez. Queres ir?

— Como?

— De um modo simples. Na galera do capitão D...

— Deveras?

— E já. Não gastamos nada. Vês o oceano, vês a América, dois mundos que não conheces, e que te hão de inspirar.

Valdez convenceu Almerinda da conveniência da viagem, e daí a dias se encontraram a bordo da galera, onde esperava o capitão.

Foi em consequência destes acontecimentos que os dois irmãos artistas se achavam no Rio de Janeiro na época em que se passa a história. Valdez e Almerinda eram duas criaturas amáveis e perfeitamente delicadas. Gustavo teve consciência disso em meia hora de conversa.

Dos convivas o único moço era Gustavo. Era, como disse, o único que falava Espanhol. A intimidade entre Gustavo e os dois artistas não podia deixar de dar-se.

Quando o jantar acabou era noite.

Subiram todos à tolda, onde foi servido o café. Era então noite de lua, a qual daí a poucos minutos apareceu derramando na superfície das águas uma luz límpida.

Almerinda admirou o espetáculo com a alma de artista. Os dois rapazes a acompanharam nessa admiração.

Travou-se uma conversa geral. Às dez horas é que repararam que a noite se adiantava, e cada qual foi tomando o escaler em que viera.

Almerinda despediu-se de Gustavo, como se despedem as pessoas que se desejam ver. Era simplesmente uma simpatia nascida dos sentimentos de delicadeza e de elevação que o rapaz manifestara; e da parte dele, despedindo-se dos dois irmãos determinou in petto voltar à galera, tão impressionado foi com as maneiras agradáveis e distintas de Almerinda e Valdez.

— Desejo, disse Gustavo alguns minutos antes de sair, que vão à nossa casa. São artistas e minha família os aprecia muito. Irão, sim?

— Iremos, respondeu Valdez.

— Olhem; um há de deixar-me escrito, numa nesga de papel, algum pensamento musical; outra há de reproduzir alguma cena da natureza em outra nesga de papel. Ah! eu não sou artista, mas compreendo-os...

— É artista, disse Almerinda. Tem o sentimento, se não tem a vocação...

— É verdade, acrescentou Valdez.

— Digam o que quiserem. O que peço é que não faltem.

— Não faltamos.

— Está entendido.

E voltando-se para o pai, Gustavo acrescentou:

— Meu pai, vamos ter artistas um dia destes...

— Ah!

— Seu filho fez-nos obséquio de convidar-nos, disse Valdez.

— Meu filho adiantou-se-me. Eu tencionava fazer o mesmo convite.

— Obrigado.

— A propósito, também o capitão deve ir.

— Que é lá isso comigo? acudiu o capitão.

— Também há de ir a nossa casa, repetiu José Braz.

— Pois não!

— Quando?

— Quando quiser.

— Domingo, sim?

— Está dito? perguntou José Braz a Valdez e à sua irmã.

— Está dito.

O escaler tinha atracado, José Braz e Gustavo desceram da galera e mandaram remar para o cais dos Mineiros.

Enquanto os remadores feriam as águas com o remos, José Braz cochilava e Gustavo olhava para a lua.

O mar estava de rosas.

O escaler deslizava como um dia feliz.

José Braz, depois de alguns cochilos, que o leitor calcula bem que não eram os de Homero, procurou despertar, travando conversa com Gustavo.

— A minha ideia convidando-os é dar-lhes um jantar. Que achas?

Gustavo, que estava na lua, desceu de um salto.

— Não achas?

— O que, meu pai?

— Não achas que devo dar-lhes um jantar domingo?

— Acho.

— São boas pessoas. O capitão já conhecia; é um homem excelente.

— Excelente!

— Os dois rapazes não me parecem más criaturas. Ao princípio não lhes fiz boa cara. Não são raros os aventureiros, e aqueles podiam ser. Mas indaguei do capitão, e o capitão deu-me boas informações.

— Parecem boas pessoas.

— São, são.

José Braz foi sobressaltado por um novo cochilo e deixou cair a conversação. Gustavo voltou os olhos para o luar e continuou a cismar.

Daí a pouco o escaler atracou e o pai e o filho saltaram em terra.

Moravam em um dos arrabaldes. Era tempo de encontrar um carro; acharam um e partiram para casa.

Saltemos os dias de intervalo entre o do jantar do capitão e o jantar do negociante. Nem há nada que dizer. Almerinda e Valdez continuarão nas suas excursões aos arrabaldes e Gustavo continuou na vida de médico sem clínica que levava.

No domingo marcado para o jantar de José Braz, foi assentado que Gustavo iria buscar a bordo o capitão, Valdez e Almerinda, e viria em um carro para casa com os três.

Fez-se assim.

Quando Gustavo chegou à galera já os três se preparavam para descer a um escaler. Gustavo subiu e disse-lhes ao que ia. Almerinda agradeceu com um sorriso gracioso e uma palavra de sentimento o ato do rapaz.

Partirão os três.

— O meu desenho e a minha música estão prontos? Olhe que não os deixo hoje sem cumprirem a promessa...

— Pois não, disse Valdez.

— É uma lembrança, uma simples lembrança, que eu desejo ter de pessoas estimáveis...

— Tens irmãs, Sr. Doutor? perguntou Almerinda.

— Dois querubins.

— Moças?

— Treze e quinze anos.

— Devo ir fazer um passeio à Europa, doutor, disse o capitão.

— Tenho vontade.

— Pois que lhe custa?

— Deixar a família sempre custa, mas eu hei de fazer um esforço, e quando mal pensarem dou uma fugida.

— É o que deve fazer. Até o velho podia ir também...

— Não sei se quererá.

— É um excelente homem seu pai, disse o capitão.

E desfiou uma ladainha de elogios a José Braz, que Gustavo ouviu lisonjeado e comovido.

Desembarcaram, meteram-se no carro e partiram para casa, onde já os esperava José Braz e a família.

Aí passaram o dia todo.

Somente, no fim do dia e à hora de se separarem Gustavo e Almerinda tinham adquirido a certeza de que se queriam como velhos amantes.

A impressão que cada um deles recebeu na véspera e os acontecimentos posteriores produziram este resultado.

Desde que eles viram que os seus olhos se procuravam frequentemente e que frequentemente se tocavam as suas mãos, não duvidaram mais: amavam-se.

Dos olhos às palavras parece que há um pouco apenas; mas não é assim, sobretudo quando se ama deveras.

Para prova tenho estes dois amantes que mais de uma vez tentaram durante o dia dizer o que sentiam um pelo outro, mas que não encontravam uma só palavra a proferir.

Quando estavam presentes alguns estranhos (e estranhos aqui eram todos quantos não fossem eles dois) animavam-se, olhavam-se com intrepidez, sem susto nem enleio; mas uma vez a sós, fechavam os olhos e sentiam as línguas presas.

E se falavam era sempre em coisas remotas do coração.

Todavia em uma dessas ocasiões, à noitinha depois do jantar, procuravam cada um de sua parte comunicar ao outro os seus sentimentos, e chegaram a dizer alguma coisa.

— Vai amanhã a bordo? perguntou Almerinda.

— Vou.

— A que horas? Posso ter saído aos passeios do costume...

— Às que quiser...

— À tarde, disse ela.

Gustavo abriu a boca três vezes e só à ultima pôde dizer:

— Teria desgosto em não estar lá à hora em que eu fosse?

— Teria... murmurou Almerinda.

Ora, eis aqui tudo quanto puderam dizer os dois namorados. É verdade que o provérbio popular: a bom entendedor meia palavra basta, tem nestes casos, mais que em nenhum outro, um exemplo irrefutável.

Gustavo e Almerinda não só sabiam que amavam um ao outro, como até tinham relativamente ao amor do outro a mais sólida certeza.

Neste sentimento se despediram.

Despediram-se?

Despediram-se a bordo a galera, porque Gustavo, sendo de uma generosidade de cavaleiro, não quis deixar Almerinda senão quando fosse impossível continuar ao pé dela.

Almerinda, a pretexto de que o luar estava bonito e de que queria descansar antes de descer, ficou em cima do navio, olhando fixamente para o escaler em que Gustavo voltava para a cidade.

Quanto a Gustavo, só quando foi impossível ver Almerinda e a galera é que se dispôs a olhar para a frente.

Olhar! Olhava ele, naquele momento, alguma coisa que não fosse a espanhola, os cabelos no ar, os sonhos de bem-aventurança?

Gustavo foi para casa arredado de si, todo alegria, cisma, quimera e desejo. A imagem de Almerinda acompanhou-o em todo o caminho, entrou com ela em casa, na alcova, leu com ela um volume de Espronceda, dormiu com ela e com ela sonhou.

Este sentimento que gradual e rapidamente dominava o rapaz tornou-se no fim de poucos dias um sentimento exclusivo, dominante, absorvente. O pai e as irmãs de Gustavo reparavam nisso, mas nada podiam atinar com a causa de semelhante fenômeno.

— Andas doente, Gustavo? dizia uma vez José Braz à mesa do almoço.

— Eu? não senhor.

— Parece. Então que tens tu?

— Nada...

— Pois se não tens nada acho esquisito que andes com esse ar acabrunhado; se não tens nenhuma doença nem desgosto... Não é desgosto?

— Desgosto, por quê?

— Alguma coisa o mano tem, disseram em coro as irmãs de Gustavo.

O rapaz teimava em dizer que nada tinha, e para isso afetava um ar alegre e contente.

Mas a mudança era visível e ninguém da família tomou ao sério o ardil do namorado.

O leitor perspicaz ou a experiente leitora perguntará ao contador desta historieta por que motivo, amando Almerinda, Gustavo mostrava-se triste e acabrunhado.

A leitora experiente ou o leitor perspicaz acrescentará a esta pergunta esta observação:

— Que o amor alvoroçasse o rapaz, que o tornasse vivo, alegre, feliz, compreende-se; é natural que assim fosse, visto que amava, era amado e podia ver a amada, graças à facilidade de ir ter ao lugar em que ela residia.

Para responder à leitora experiente e ao leitor perspicaz devo dizer em duas linha as circunstâncias em que aparecera Almerinda e Gustavo.

José Braz tinha, entre as qualidades que todos lhe reconheciam, um defeito que ninguém lhe notava, por isso mesmo que esse defeito é a virtude do maior número: o defeito era fazer entrar na ordem das operações financeiras o futuro matrimonial de seus filhos.

Que os pais procurem o bem-estar e a comodidade dos filhos, guiando-os até certo ponto com os conselhos da sua prudência, nada de mais legítimo e de mais obrigatório; mas fazer depender os sentimentos do coração da realidade da cifra e das probabilidades do juro, é uma coisa esta que só pode dar uma consequência irrefutável: caráter baixo, coração nulo.

Ora, isto é exatamente o que fazia o honrado José Braz, para quem os filhos eram objetos de extremo cuidado no que respeitava ao melhor modo de empregá-los, digo, de casá-los.

Este traço característico, tão comum e para o qual é tão fácil a tolerância, quando chega a haver tolerância e não aplauso, este traço, devo dizê-lo em honra da verdade, era observado e censurado por alguns amigos e colegas de José Braz.

De uma das censuras nasceu-lhe um capricho, isto é, cresceu-lhe a ruindade do sentimento: prometeu entre si que casaria os filhos... colossalmente.

Tão ouvido foi o juramento que logo depois surgiu-lhe aos olhos um bom emprego para o capital Gustavo. Era redonda a fortuna, representada em fazendas e apólices. A moça que servia de pretexto a este casamento não era nem bonita, nem graciosa, nem simpática, nem mesmo boa de coração, era simplesmente feia, desenxabida, antipática e má. Mas com tudo isto era anjo com duas asas, duas, meus leitores, duas.

Gustavo, que era moço e não calculava, achou disparatada a primeira proposta do pai, julgou que recusando-se teria posto um termo a tudo. Mas José Braz não deu ao braço a torcer e insistiu; nova recusa e nova insistência; à terceira recusa, não houve proposta, houve imposição.

Amava uma mulher; sentia que não podia amar outra como aquela, e entretanto era a outra que devia ser o juramento de esposo, separando-se daquela... perpetuamente.

Tal situação era na realidade própria para assustá-lo, impressioná-lo, entristecê-lo.

Esta mulher que lhe aparecia como um destes sonhos passageiros e delineados por mãos angélicas, como uma destas boas horas da vida, destas que poucas vezes se dão, ia partir, ia voltar para a pátria, donde nunca mais voltaria e para onde ele não poderia ir, ao menos solteiro.

Viver longe de uma que ama, e perto de outra que aborrece; atar-se a duas cruzes, a cruz da ausência e a cruz da presença; tal era o futuro que se antolhava ao filho de José Braz.

Em um coração verde, generoso, leal, amante, esta situação era prenhe de catástrofes e torturas.

Eis a razão por que esse amor sincero e vivo em ambos dava a Gustavo mais tristeza que prazer.

Apesar de tudo, Gustavo procurava utilizar o tempo, e era involuntariamente levado a bordo da galera todos os dias. Lá se demorava até à noite, quando tomava o escaler e voltava para a terra.

Mas, uma coisa em que eu acreditarei dificilmente, é nos amores escondidos. Entre os dois corações que se querem, o olhar mais indiferente descobre logo, e uma vez feita a descoberta, pode indicar com justeza o grau de simpatia. A prudência pode pouco, e não pode sempre; lá vem o minuto em que os dois olhares se confundem-se e esquecem de que são deste mundo, desse mundo indiscreto e ruim.

O capitão e Valdez não gastaram muito tempo em descobrir a harmonia de sentimentos que existia entre Gustavo e Almerinda. Comunicara-se por sinais, uma vez em que estavam à mesa; e puseram-se, cada qual do seu lado, sem se avisarem, a descobrirem o resto.

O resto confirmou o começo.

Valdez fez logo consigo as seguintes reflexões:

— É fado nosso! Por causa dela fugi à dor que me cercava lá; venho aqui e atiro minha pobre irmão a uma dor igual. Igual, porque este rapaz não pode casar com Almerinda. Ame ou não ame Almerinda, não pode fazê-la feliz; nunca o pai há de consentir nisso: e fazê-lo à força seria entrarmos nós como cúmplices num ato que pareceria infame; porque ele é rico, e nestas alianças o rico é generoso, o pobre é calculista...

Valdez dispôs todas as ideias e consequência destas primeiras e concluiu o monólogo no mesmo tom.

Quanto ao capitão, não fez monólogo algum; percebeu, calou-se e foi pensar em outras coisas, não sem achar, nessas primeiras solicitações que fez ao sono, quando se deitou, que se a rapariga escolhera bem, o rapaz escolhera do mesmo modo.

E resolveu tocar no assunto quando estivesse com o pai de Gustavo.

Sucedeu exatamente estar com ele no dia seguinte.

— Então como vai sua encantadora passageira? perguntou José Braz ao capitão, depois dos primeiros comprimentos.

— Como está?

E o capitão sorriu.

Há certas pessoas que em se dizendo alguma coisa de uma mulher bonita, acompanhada de um sorriso, riem também, com ar duvidoso, como para indicar que há preferencias em seu favor, mas que não convém publicá-las.

A este respeito contam-me uma anedota que eu não dou por exata, mas que é verossímil:

Conversava-se em uma roda de seis pessoas a respeito de mulheres bonitas e mulheres feias.

Um dos interlocutores trouxera um amigo, esquecendo-se de apresentá-lo aos outros, sem que por este motivo deixasse o tal amigo de tomar parte ativa na conversa e certa familiaridade na contradita.

Havia um indivíduo nessa roda, a quem designaremos pela inicial Z..., o qual se prezava de uma coisa: de saber da crônica de todos, com maior ou menor exatidão. E para isto tinha um processo singular. Dizia a um, por exemplo:

— Já sei quem foi ontem ao Flamengo, a cavalo, embrulhado em um capote, e acompanhado por um moleque... Já sei...

Se o sujeito a quem eram dirigidas estas palavras balbuciava, hesitava em contestar, Z... não perguntava mais nada; concluíra que armara uma rede e colhera o incauto; e na primeira esquina dizia logo ao primeiro que encontrava:

— Não sabes? Z... é sempre o mesmo homem. Adivinha onde foi ele ontem à noite, a cavalo e embrulhado em um capote, e acompanhado por um moleque? Ao Flamengo! É a filha de Y... São namorados.

E seguia aqui um rosário de invenções fresquinhas que o homem metia na cabeça do outro sem dó nem piedade.

Ora, este sujeito, depois de adivinhar muitas coisas deste modo, em relação aos outros contraventores, voltou-se para o quinto (o sexto era o desconhecido) e disse-lhe:

— Não falo da mulher do V... porque temo ofender-te... Maganão! eu sei das tuas proezas!...

O outro olhou para ele, deixou deslizar nos lábios um sorriso de desvanecimento e disse com ar modesto e recatado:

— Não diga isso...

A última sílaba do que ia dizendo entrou-lhe de novo para a garganta mediante uma bofetada que V. (o desconhecido) aplicou-lhe mal ele começava a falar.

Pode-se garantir que o sujeito a quem suceder isto uma vez nunca mais há de tomar a responsabilidade das imputações gratuitas deste gênero.

Tudo isto veio para dizer que José Braz, atribuindo ao sorriso do capitão uma significação que não tinha, riu também com um riso malicioso, e ia já entrar em umas escusas calculadamente esfarrapadas, quando o capitão continuou:

—Como está?... pergunte a seu filho.

—Gustavo tem ido lá?

— Tem... tem...

— Mas, capitão... que há?

— Há que Almerinda e seu filho amam-se... e que, eu que conheço Almerinda e conheci o pai, posso dizer que formariam o melhor par deste mundo.

— Que me diz é verdade?

— Pois não sabia? Deveras?

— Não.

— Pois é isto. Não acha que...

— Veremos.

Passaram a outros assuntos. O capitão ficou meio abalado na convicção que formara de que tinha de ver Almerinda feliz. José Braz despediu-se do capitão disposto a ir fazer reprimenda ao filho.

Gustavo nesse dia não foi à casa; só à noite é que lá apareceu. De manhã tendo de antemão sabido que Almerinda e Valdez iriam a Tijuca, dirigiu-se para lá, e ali se encontrou com ambos.

Passaram lá o resto do dia até a hora de voltar para bordo. Foi para os dois namorados um dia feliz. Tiveram ocasião de dizerem um ao outro que se amavam e juraram fidelidade eterna.

Gustavo acompanhou-os a bordo.

No caminho Valdez, sorrindo maliciosamente à sua irmã, disse:

— Almerinda, é singular; não fizeste hoje um traço... isto é, fizeste dois... uma curva de montanha e uma linha do horizonte. Porque?

— Não estava boa...

— Que razão!

E voltando-se para Gustavo, Valdez acrescentou:

— Que acha a esta razão?

— Acho que pode aceitá-la.

— Pois eu acho que não...

O sorriso de Valdez foi meia luz para Gustavo. Todavia, a conversa parou aqui e os três seguiram para bordo sem que Valdez, apesar das solicitações indiscretas de Gustavo, voltasse a dar explicação do riso e das palavras.

Quando às onze horas da noite, Gustavo voltou para casa, encontrou José Braz acordado, à espera dele.

— Ainda acordado, meu pai?

— À tua espera.

— Ah!

— É verdade. Vens cansado? Naturalmente vens do mar? Gostas do mar, pelo que vejo? É o teu elemento?

Estas perguntas enfiadas e ditas em tom sarcástico deram a Gustavo a consciência da situação: o pai sabia de tudo.

Gustavo estremeceu; baixou os olhos e calou-se.

O pai, tomando então um ar sério, olhou fixamente para o rapaz e perguntou-lhe:

— Que pretendes fazer?

— Meu pai, amo-a, respondeu Gustavo.

— Mas quem te deu licença?

Gustavo olhou espantado para José Braz.

— Sim, Não sabes quais os meus projetos? Não tínhamos acordado em alguma coisa? Porventura vale mais essa Almerinda do que a tua noiva?

— Minha noiva!

— Tua noiva, sim! Pois que é mais? Era o que faltava: arranja-se um casamento bom, dás a tua palavra, e agora, porque aparecesse uma aventureira...

— Meu pai!

— Aventureira, repito!

— Não é...

— Que sabes tu?

José Braz meteu as mãos nos bolsos e começou a passear pela sala com mostras de grande agitação.

Gustavo ficou de pé, imóvel, acompanhando seu pai com o olhar.

José Braz parou de repente.

— Pois ames ou não ames, disse ele, não entendo o que são estas coisas de amor. O que eu quero é que cumpras a tua palavra e a minha vontade. Digo-te isto e te não arrependes. Toma sentido!

E retirou-se para o seu quarto.

Gustavo ficou algum tempo na sala, depois do que seguiu também para o seu quarto, triste e aflito.

O resto da noite foi uma noite de tortura para o pobre Gustavo; não pode conciliar o sono e durante a vigília vagueou-lhe o espírito entre as duas visões das duas mulheres, a que lhe dava a desgraça, a que lhe levava a felicidade. Não podia conformar-se à lei férrea que o obrigava a não seguir uma mulher honesta, formosa, boa, a quem ele amava, para ficar ao lado de outra mulher feia, má, a quem ele aborrecia.

Mas ao mesmo tempo via que era impossível não ceder, porque não ceder seria revoltar-se contra a autoridade paterna, que ele estava afeito a olhar como infalível e absoluta.

No dia seguinte não saiu de casa para não despertar suspeitas do pai. Mas no outro, logo que pôde, vestiu-se, tomou o chapéu e dirigiu-se para bordo.

Achou todos tristes e calados. Estranhou isso e perguntou galhofeiramente que motivo os trazia assim. Todos se esquivaram a responder. Interrogou Almerinda com o olhar, e esta abaixou os olhos.

Gustavo ficou confuso e interdito.

Encontraria naquela gente a mesma crueldade que achará em seu pai? Não o amava Almerinda? Ou, tendo-se descoberto o segredo, fora esta obrigada a repelir os sentimentos dele?

Gustavo fazia estas perguntas a si mesmo sem poder, tão plausíveis lhe pareciam umas explicações como outras.

Neste ínterim Valdez desceu à câmara.

A conversa entre os três versou sobre coisas indiferentes; Gustavo, despeitado pela esquivança de todos, pela frieza crescente que a moça apresentava, tornou-se mais esquivo às resposta e mais frio na conversação.

De modo que a conversa caiu por si.

Cada um dos três interlocutores pôs-se a olhar o horizonte.

Nisto subia pelo outro lado José Braz.

À voz dele voltaram-se os três.

Gustavo ficou pouco enfiado por ser visto ao pé de Almerinda, posto que a presença do capitão fosse garantia de que a conversa era a mais inocente e indiferente do mundo.

Isto que Gustavo pensava, sabe o leitor que não era verdade; a circunstância de estar o capitão presente, reunida à circunstância de ter sido o mesmo capitão quem lhe dera a notícia do ocorrido, fez suspeitar a José Braz uma cumplicidade que agravava a situação.

Por isso fechou a cara apenas deu como os olhos no grupo.

Os três dirigiram-se para José Braz, mostrando cada qual uma fisionomia diferente segundo os sentimentos que o dominava.

José Braz não mostrou-se, entretanto, admirado com a presença de Gustavo a bordo; antes o tratou com benevolência e cordialidade.

O motivo da ida de José Braz, segundo ele próprio declarou, era dizer ao capitão, que dentro de três dias estariam as suas mercadorias a bordo. Era isso o que esperava a galera para partir.

Gustavo e Almerinda estremeceram e olharam, ao mesmo tempo, um para o outro. Este olhar não escapou nem ao capitão, nem a José Braz, e quanto a este sugeriu a ideia de tocar no ponto em conversa com o capitão.

E enquanto o capitão e José Braz se retiraram à parte, Gustavo aproximou-se de Almerinda e perguntou-lhe com instância o motivo da diferença que lhe notava.

Almerinda respondeu então que soubera pelo capitão do desagrado do pai de Gustavo, e que de modo nenhum desejava dividir uma família feliz e tornar desprezado pelos seus aquele que amava de todo o coração. E mais que no mesmo sentido lhe falara Valdez, pedindo-lhe que esquecesse o rapaz e comprimisse ainda nascente um amor que não podia ser feliz.

Gustavo ouviu silencioso a explicação de Almerinda.

Depois perguntou-lhe:

— É capaz de me responder a duas coisas?

— Diga...

— Esse amor é, como diz Valdez, um amor nascente?

— Não, disse Almerinda.

— Bem. Seria capaz de esquecer-me?...

Almerinda levantou os olhos para Gustavo; depois voltou-os para o horizonte, e, deixando correr duas lágrimas silenciosas, respondeu com voz sumida:

— Seria capaz...

Gustavo sentiu pulsar-lhe mais o coração.

— Está bem, disse ele.

Não pôde dizer mais nada.

O pai e o capitão acercaram-se dos dois namorados. Gustavo despediu-se de Almerinda e do capitão, e desceu com o pai para o escaler.

A viagem até o cais e do cais até a casa foi silenciosa. Nenhum deles trocou uma palavra.

Gustavo tinha o coração cheio de dor e desespero. A presença do pai mal retinha ao pobre rapaz a manifestação do estado em que se achava.

Quando se achou só consigo, Gustavo deu toda a expansão ao sentimento de pesar e de saudade.

Em um só minuto viu esboroar-se todo o castelo de felicidade que, em sua imaginação, começara a construir.

Mas era preciso ceder: se entre ele e a felicidade apenas se interpusesse a vontade do pai, cederia, talvez, mas na última extremidade; mas a situação era outra. O que se interpunha era, além da vontade do pai, o desprezo da amante. A situação era extrema.

Os dias correram, isto é, correram quatro dias depois da cena que referi, e a galera saiu do porto em direção da Europa.

Haviam já oito dias que navegava, com vento em popa e mar de rosas. O capitão contava que o resto da viagem fosse pelo mesmo teor e fazia comunicação dessas esperanças aos passageiros.

Mas quaisquer que fossem as esperanças de boa e rápida viagem, quaisquer que fossem os prazeres inventados e acumulados pelo capitão e por Valdez, Almerinda conservava-se triste, triste a mais não poder ser.

Isto era um desgosto para os dois.

— Esquece-te dele, dizia-lhe Valdez abraçando a irmã.

— Não, dizia Almerinda suspirando, não!

E passava horas e horas com o olhar fixo no horizonte procurando não sei que consolação que não vinha.

Assim que, a viagem, longe de ser uma viagem alegre, como pareciam indicar as circunstâncias propícias em que era feita, foi uma viagem triste e desconsolada.

Uma tarde estavam todos na coberta, conversando acerca da cidade natal e do prazer que iam causar aos amigos que lá tinham. Almerinda parecia mais tranquila nesse dia e conversava com mais interesse.

O espetáculo do pôr do sol, no horizonte afogueado, e refletindo os últimos raios na face das águas, mal encrespada por um vento fresco, foi para Almerinda um objeto de alegria desusada.

Parecia que era a primeira vez que via tal cena.

— Que belo quadro farás tu, Almerinda, disse Valdez.

— É verdade, respondeu ela. É magnífico!

E a moça ficava extasiada com os olhos fitos no foco de luz viva e resplendente. Esta circunstância alegrou Valdez e o capitão.

Entretanto, o sol sumiu-se mais e mais, e do ocidente começou a surgir a noite, envolvida em sua mantilha escura.

A conversa entrou pela noite. Mas, quando Valdez se dispunha a descer, acompanhando o capitão, Almerinda pediu-lhe que se demorasse.

— Para quê? Está um vento fresco...

— Por isso mesmo. Lá em baixo é uma estufa. Meia hora só...

— Está bem, eu já volto.

— Pois sim.

Valdez desceu e Almerinda ficou.

Uma vez só, Almerinda olhou em roda de si: o mais próximo dos marinheiros estava longe.

A noite não era de luar. O vento soprava cada vez mais rijo, e as águas, ao passo que crescia a violência do vento, encrespavam-se mais.

Almerinda olhou para o mar e viu que a galera singrava com velocidade. Olhou para o horizonte e viu que as mesmas estrelas pareciam olhar para ela e solicitá-la a um banquete celeste.

Almerinda pôs a mão no coração.

— Sim, disse ela à meia voz, o que vou fazer é justo. Viver com este amor impossível é curvar-me a uma tortura igualmente impossível; melhor é que eu corte de uma vez o fio que me prende a vida, já tão pouco consistente e prestes a romper-se por si...

Depois arremessou-se para a borda, mas hesitou. O instinto de conservação e a ideia do dever de resistir à desgraça impediram que ela cometesse o ato.

Esteve perplexa dois minutos.

Mas então a imagem de Gustavo tornou a aparecer-lhe ao espírito, e com ela o quadro de felicidade que podia gozar e que por uma fatalidade lhe foi desviada. Lembrou-se de que o amante talvez àquela hora sofresse e a acusasse.

Então, cobrando novo esforço, Almerinda recuou um pouco e atirou-se no mar.

Nessa ocasião aparecia do outro lado Valdez.

Valdez ainda viu flutuar nas águas as roupas de Almerinda.

Deu um grito.

Tudo acudiu àquele grito. Foi um desespero para salvar a moça. Foi impossível. Nem o cadáver acharam.

O resto da viagem foi desespero para Valdez e uma consternação para a equipagem.