Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

O beijo, de Lúcio de Mendonça


Edição de referência:

Jornal das Famílias. Tomo 16, setembro de 1878, p. 270-277.

  

I

— D. Ângela não dança?

— Não pode: tem proibição expressa.

— De algum namorado egoísta?

— Não; de seu médico. Pobre Ângela! Não tem namorado; o que tem, é a sua moléstia de coração, que de um dia para outro ha de matá-la. Não vês como é tão pálida? Sabe que há de morrer moça, está bem certa disso, e é tão resignada, o anjo, que às vezes tem animo ainda de sorrir-se entre a sua melancolia, com um sorriso apagado e triste.... Como agora, — estás vendo?

— E que bonito rapaz aquele, que lhe mereceu o sorriso! Sabes quem é? Será parente dela?

— Foram companheiros de infância; é amigo íntimo da casa; até creio que este baile é dado a ele.

— No entanto, é a primeira vez que o vejo aqui!

— Não admira: há muitos anos que viajava fora do Brasil; chegou ontem mesmo, ouvi dizer.

— Como se chama?

— Eugenio...

— Ah! É o nome que eu sempre ouvia repetir aqui a toda hora, a propósito de tudo.

Conversava-se isto, num baile, entre dois amigos, à janela de uma casa da praia de Icaraí, a mais formosa praia em que estende as suas ondas a magnifica baía do Rio de Janeiro.

Si isto fosse um romance, estava eu obrigado a preparar uma estrada de efeito para o meu herói, depois que o leitor já estivesse mais ou menos interessado por ele e pela minha heroína, descrita desde a fronte soberana, digna de uma coroa, como se costuma dizer, até ao pezinho chinês, que podia reclamar o sapatinho da Borralheira, o que também se diz muitas vezes. Mas como é apenas um conto singelo e despretensioso, desde já levo o leitor à presença do meu jovem par, que ali está agora, naquela outra janela da sala, num colóquio delicioso como só é possível entre duas almas enamoradas e moças, que sempre dizem mais do que falam.

— Ainda uma noite destas, sonhei contigo, que tinhas chegado...

— Olha, eu não creio muito em sonhos, Ângela...

— Veio muito incrédulo, o senhor; pois pergunte a Julia, quando estiver com ela.

— Sim! ... Julia, como está? Já quase moça...

— E bonita, muito, a minha irmãzinha. Foi ontem, de manhã, para o colégio, na Corte; só no princípio do outro mês é que há de vir.

— Sabes que sinto isso deveras?

— E eu também: queria muito que a visses; queria até...

Aqui, Ângela, que falava ao companheiro de infância com a mesma desembaraçada intimidade do seu tempo de criança, expirou-lhe a voz, e abaixou os olhos, para ocultar umas lagrimas que lhe cresceram rápidas.

— Dize, insistiu ele afetuosamente.

— Queria também que a amasses. Olha, prometo que ela te ha de amar muito.

O moço já não era o mesmo; descaíram-lhe as feições numa expressão de acerba angústia; os lábios, pouco antes enflorados do sorriso, tremia-os agora a alma agitada; o olhar vivo e alegre que luzia-lhe francamente nos olhos negros, confrangeu-se sombrio.

— Não vê, Ângela, que isso que me está dizendo é uma crueldade? As minhas cartas à sua mãe deviam ter-lhe revelado que ia comigo uma saudade que me seguia por toda a parte, como si fora a sombra de minh’alma. Devia saber que eu levava no mais íntimo do coração, longe da pátria, pela terra estrangeira, uma imagem nunca esquecida, que era a sua...

— Sabia-o, sim. Deus to pague, Eugenio. Deus que ouvia o teu nome nas minhas orações de cada noite, e que via o teu retrato nas minhas cismas de todo o dia. Oh! ninguém mais ha de amar-te assim! Mas, sabes? Não quis o destino que eu fosse tua; minh’alma ficará contigo eternamente, pertence-te; mas este corpo já meio morto, vou entregá-lo ao noivo que me espera, ao noivo que é...

— Não digas!

— ... Que é o tumulo. Estou desenganada; estão contando os meus dias.

II

Era por tarde de um formosíssimo dia de verão.

No jardim da casa de Ângela, ao fim de uma extensa alameda de murta, quase na aba do morro, havia um caramanchão vestido de hera e madressilva, onde a moça costumava passar as horas da sesta, lendo ou bordando. Depois que adoecera, ia para ali todas as tardes, cismar as suas tristezas, com os olhos postos no céu, que se avistava pela janelinha aberta na parede de verdura.

Mas agora não estava só. Sentado junto dela, no banquinho rustico, Eugenio, que prendera nas suas as magras e alvas mãos da doente, dizia-lhe todas as meiguices do amor, tão sabidas já, mas tão encantadoras ainda.

A cabeça loura de Ângela inclinava-se para ele, atraída, fascinada, e pouco e pouco descaía-lhe no ombro, como flor mimosa que enlanguesce aos ardores do meio-dia. Por fim uniram-se as duas bocas num beijo longo, sôfrego, insaciável, — o primeiro beijo.

Súbito, a moça furtou os lábios á caricia do amante, e erigindo a fronte com um gesto de rainha, e apertando-lhe vivamente as mãos, cravou nele os olhos azuis, magníficos, radiantes de toda a paixão que os incendia:

— Não beijes nunca outra mulher! Nunca! Ouviste? Nunca! Jura! Hás de jurar!

— Juro-o por Deus, por ti, Ângela!

III

Si jamais houve dias de celeste ventura em vida de homem, foram os que se volveram para Eugenio naquele encantado paraíso da praia de Icaraí.

Ou foi por virtude do amor, ou não sei pelo que foi, mas Ângela recobrou alento e vida; rubesceram-lhe na face as rosas da saúde, alegraram-se-lhe os olhos, e outra vez desabrocharam sorrisos seus em lábios tentadores.

A carta é recurso já muito explorado em dramas e romances, não acham? Pois ainda uma vez – e não será a última – vão ver para quanto presta uma carta.

Eugenio recebeu carta do pai, chamando-o a Paris, para qualquer caso urgente, que eu deixo a fantasia dos leitores conjecturar a seu gosto.

Obedeceu; partiu. Imaginem que lacrimosa despedida não haveria na casa de Icaraí, que soluçados protestos; imaginem isso do melhor modo, que eu não os quero comover com a descrição de cenas tristes.

IV

Eugenio estava a um mês em Paris, quando recebeu uma carta do Brasil.

Ainda uma carta!.. O que querem? Sem esta é que eu não podia absolutamente mover a ação da minha história.

A carta dizia unicamente:

“Ângela morreu está manhã. Desde o dia da sua partida, reapareceu-lhe a cruel enfermidade, que foi progredindo até matá-la. A última palavra que proferiu, foi o seu nome. Amava-o muito!”

Quem escrevia era Julia, a irmã de Ângela.

Eugenio quis embarcar no primeiro vapor que saísse para o Brasil; não consentiu nisso o pai, que o mandou viajar à Itália, para distrair as magoas.

O rapaz teve bastante coração para não se lembrar senão da sua querida morta, naqueles primeiros meses; mas afinal... tinha também muito gosto, e a Itália é terra de maravilhas: resignou-se, consolou-se, esqueceu-se.

V

O Lírico, da Corte, estava em noite de enchente completa: era espetáculo de estreia de uma companhia italiana, ultimamente chegada.

Num grupo de elegantes, descido o pano do primeiro ato, elogiavam-se os raros dotes da prima-dona, que era admirável cantora e ainda mais admirável formosura.

— É a primeira vez que tem vindo ao Rio de Janeiro.

— É, sim, é um prodígio!

— Nem tanto! Reclamou um severo dilettanti. Como aquilo há na Itália aos centos.

— Engana-se, meu senhor: da Itália venho eu, e venho por causa desta.

Quem havia de ser o que se saiu com tamanho desplante! O nosso próprio Eugenio, o qual só se lembrou de voltar ao Brasil, quando teve de acompanhar a linda cantora, por quem estava gravemente apaixonado.

Correndo distraidamente o binoculo pelo constelado hemisfério dos camarotes, deu com um busto de moça que o fez estremecer.

Olhou muito, com insistência, com impaciência: lembrava-se vagamente de já ter visto algum dia aquele rosto, mas não era bem aquele, mas não podia ser outro.  Afinal, não lhe sofrendo mais a curiosidade, perguntou a um amigo que lhe ficava ao lado:

— Sabes que moça é aquela que lá está, no... quarto camarote da segunda?

— Oh! pois já não conheces a Julia....

— Sim! A irmã de Ângela! Bem me queria parecer... Mas está moça, e bonita deveras!... Olhou agora para cá e sorriu-se... Quem sabe si me reconheceu?... Eu, é porque não sei que a família é aquela com quem está; senão, ia já cumprimentá-la. Mas é o mesmo: vou amanhã a Icaraí. Ainda moram lá? Sabes?

— Moram.

VI

Precipitemos os acontecimentos: vamos já um mês adiante. Dou-lhes parte de que Eugenio está apaixonadíssimo por Julia, e ela por ele ao que parece.

Falavam poucas vezes em Ângela, e isso mesmo sem tristeza; Julia até, quando falava, era quase sempre sorrindo.

Era um demoninho de morena feiticeira, a tal Julia; e via-se logo que estava muito empenhada em cativar o nosso Eugenio.

Uma noite, — noite de lua clara, — estavam os dois à janela, com as mãos dadas, a dizer frases, ante o espetáculo que mais parece a ilusão de um sonho.

Os olhos negros de Julia coavam seduções irresistíveis; a boca, levemente descerrada, entremostrando a úmida alvura dos dentes, palpitava de volúpia. Eugenio sentia a alma inteira oscilar-lhe entre os olhos e os lábios dela. Beijou-lhe avidamente as mãos, e já quase tocava-lhe a face com a boca ambiciosa, quando a moça esquivou-se enrubescendo e sorrindo:

— Não!

— Julia!

— Só si for um beijinho só, muito pequenino.

— Pois sim?

— Só si for a meia noite, hoje, no caramanchão do jardim.

— Estas palavras foram proferidas com voz rápida, firme, surda, como Eugenio nunca ouvira.

— Vae? Perguntou-lhe trémulo.

— Vou! Disse-lhe a moça em voz sumida, mas tão perto da face, que sentiu-lhe o calor do hálito.

Estendeu os braços para ela, mas já nesse mesmo instante desaparecia pela porta da sala a cauda do seu vestido branco.

— Que mulher é esta; meu Deus? Pensou consigo, atônito.

VII

A lua estava a pino, o céu puríssimo, o ar tranquilo, frio, pejado de aromas; a espaços ecoava longamente, na noite silenciosa, o estrondar das ondas na praia.  Á porta do caramanchão, que abria para a alameda de murta, estava Eugenio, imóvel.

Longe, no extremo da área extensa, viu surgir e vir-se destacando uma branca aparição.

A princípio, era apenas o alvejar de uma forma vagamente esboçada; pouco a pouco foi-se delineando completo um vulto de mulher.

Mas, ou fosse efeito da luz magica, ou fosse obra da exaltação em que estava, o certo é que Eugenio juraria que não era Julia a mulher que se aproximava.  E seria mulher? Seria ente humano, real? Parecia-lhe que não andava, — resvalava, e sem deslocar-se-lhe uma linha só do porto marmóreo, hirto.

Aproximou-se mais, mais, estava a dois passos dele.

Violenta estremeção sacudiu o corpo inteiro de Eugenio; ia soltar um grito agudo, mas apenas estertorou com voz estrangulada:

— Ângela!

E caiu para traz, como fulminado.

Quem quer que era que tinha chegado, precipitou-se para ele, ergueu-lhe a cabeça nos braços, encostou a face à sua face. Sentiu-o gelado e rígido; estava morto.

Então vibrou no silencio da noite um grito pungente, dorido, penetrante, como de um coração que estalasse.

VIII

Nesta época de espiritismo, bem podia acabar aqui a minha história e era um fim admirável, forte, colorido.

O mais que se vae seguir é chato e raso, porque é a realidade nua.

Logo que Eugenio embarcou para a Europa, ao chamado do pai, Ângela, passadas as primeiras lagrimas, fez estas reflexões de muito senso e profunda filosofia:

- Quem me diz que este rapaz, que mostra amar-me tanto, não é apenas um sedutor vulgar? O que é que me garante a sinceridade do seu amor? Olhem como não desobedeceu ao pai por minha causa, e lá se foi para tão longe! Em todo o caso, com uma experiência não há nada a perder: faço chegar-lhe a notícia de que morri; si voltar logo ao Brasil, ocultar-me-ei; mas o mais certo é que tão cedo não volte. É dolorosa então a experiência: passo muito tempo sem o ver. Não importa! Quero saber como sentiria, se eu tivesse realmente morrido... E si ele se suicida?... Suicido-me também. Mas naturalmente não hei de ter necessidade disso. Si se mostrar fiel à minha memória, si conservar por muito tempo o luto d’alma, desfaço a ilusão, e com que amor hei de consolá-lo! Senão, si esquecer-me logo, si casar com outra, boa viagem! Não se perde nada.

Assentado o seu projeto de morte temporária e aparente, tratou de o pôr por obra, com todas as precauções.

Ditou a carta que Julia escreveu. Desde então, nunca mais deixou de ler nos jornais a lista de passageiros entrados. Afinal, depois de mais de um ano, leu o nome de Eugenio. Esperou que ele viesse a Icaraí, onde já tudo estava predisposto para o manter na ilusão, em que sua mãe e sua irmã e todos os amigos da casa eram cumplices.

Eugenio não apareceu; constou que andava na Corte, preso de amores por uma cantora com quem viera da Itália. Ângela doeu-se muito daquilo, mas não desanimou ainda: depois, entrou-lhe mais nos planos a ideia de vingança. Julia teve a incumbência de ir a todos os espetáculos do lírico, até que atraísse Eugenio ás antigas relações de Icaraí.

Que bom êxito sortiu a astúcia, já o sabemos. O namoro de Julia, que esta representava como boa irmã e boa namoradeira, que igualmente era, foi todo ele dirigido por Ângela. A mísera via-se totalmente esquecida e de bom grado substituída pela irmã no coração de Eugenio.

— Pois sim, pensou consigo, si Julia quiser, case-se com ele; eu, de mim, não proíbo, nem sinto.

— Mas sentia, e muito: não se perdoa o esquecimento. E o beijo, o seu primeiro beijo, que lhe dera aquela tarde, no caramanchão de hera e madressilva!

— Não, disse consigo, aquele beijo, ao menos, ele mo há de pagar, e bem caro. Quero ver si também já não se lembra do juramento que me deu, de não beijar nunca outra mulher. Si se tiver esquecido, ai dele!

Já vimos como Eugenio se tinha esquecido também disso, e como pagou tão caro – ai dele! – aquele funesto beijo.

E agora, o fim? O que fez Ângela quando viu que fora excessiva a vingança, e que, sem querer, matara o amante volúvel? O que fez? Deu aquele grito que ouviram. E depois? E Julia?

Julia nunca fez mais do que representar bem o seu papel. Por isso não teve muito que sentir.

E Ângela? Insiste a leitora impaciente.

Ângela, minha senhora, a minha Ângela, esteve a ponto de ser uma heroína de romance: quase foi, aquela mesma noite, atirar-se ao mar, do alto da penha da Itapuca. Mas não; consolou-se e morreu velha. A culpa não é dela, nem minha: é deste século, em que já não se morre de amor. E entretanto – oh! iniquidade! – foi por não ter morrido de amor, que o pobre Eugenio teve afinal que morrer de susto.