LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
A beneficência delicada, de Emília Augusta Gomide Penido
Edição de referência:
Jornal das Famílias. Tomo 16, setembro de 1874, p. 271-274.
Beneficência é uma das mais amáveis virtudes para a humanidade; ela aperta e torna mais doces os laços da sociedade. Porém se ela não for acompanhada pela delicadeza, e pelo necessário sentido de não fazer pesado o benefício para quem o recebe, perderá grande parte de sua doçura e esplendor.
O célebre Thompson, literato e poeta inglês de grande nomeada, não gozou em princípio das comodidades, que eram devidas ao seu mérito. A fortuna muitas vezes tem o bárbaro prazer de recusar os seus dons a quem mais os merece
No tempo em que os escritos do poeta corriam com fama e eram recebidos com aplauso não só em toda Inglaterra, como em toda a Europa, e em as duas Índias; no tempo em que todos os impressores e livreiros se aventuravam por ele, e que o seu poema das Estações, recentemente publicado, era procurado com ardor por todos os literatos, ele achava-se reduzido à mais dura pobreza. Para sustentar-se com decência, e aplicar-se aos estudos que ele amava com extremo, foi constrangido a contrair muitas dividas, e por isso era continuamente perseguido pelos avaros credores, que não presavam a rara inteligência, e só amavam ao ouro, por isso compraziam-se em humilhar e oprimir ao grande poeta.
Um deles na ocasião em que publicou-se o poema das Estações fez arrastar e conduzir Thompson para a prisão dos devedores insolventes, esperando que o poeta desejoso de recuperar a sua liberdade lhe satisfizesse com a soma recebida pela venda de seu poema.
Mas quando Thompson foi preso, já tinha despendido a pequena soma que recebeu pelo precioso manuscrito. Devia, por conseguinte desfalecer miseramente no cárcere; e ele não encontrava nenhum meio para livrar-se da prisão.
A prisão de um homem tão notável não podia ficar em segredo. Muitos o visitaram e mostraram-se aflitos em seus discursos, porém seus corações indiferentes estavam tranquilos, e incapazes d`uma ação generosa. Os ricos, e os poderosos que de ordinário não sabem fazer bom uso de seu poder e riqueza, limitavam-se a compadecer d`aquele a quem tantas vezes tinham admirado, mas nenhum o socorria em tão grande necessidade.
A generosidade, a beneficência, e todas as mais virtudes que fazem a gloria, e ornamento do generoso humano, deviam habitar em todos os corações, mas bem poucos são os que acolhem e conservam em suas almas.
Kean, cômico de profissão, que cultivou a inteligência e juntamente o coração tornou-se ilustre, virtuoso, e digno do nome do homem: apenas soube que Thompson estava preso, sentiu-se tomado do nobre desejo de torna-se útil a um tão distinto literato, e cheio de vergonha pelo mau procedimento dos seus compatriotas, que não procuravam ajudar a aquele que tanto concorria para a gloria de sua nação. Recorreu ao juiz, e facilmente obteve licença para visitar o ínclito preso, e de conversar com ele.
Thompson ficou admirado quando viu entrar em sua prisão um desconhecido; porém o delicado cômico declarou logo quem era, e foi recebido como merecia um homem que em sua profissão distinguia-se de muitos.
Por muito tempo entretiveram –se em agradáveis discursos. O urbano poeta falava a Kean sobre o teatro, e da difícil arte declamatória, e da mais difícil ainda de compor uma tragédia, ou uma comedia, que une a verdade e o decoro ao útil e ao agradável.
Kean não se cansava de falar com entusiasmo no poema das Estações e como sabia de cor as passagens mais vivas, as recitava as tais força e doçura, que pareciam mais eloquentes e mais belas ao próprio autor.
Tendo-se o cômico por tal modo nobremente insinuado no ânimo do poeta, lhe pediu licença para jantar com ele, e de mandar trazer alguns pratos mais do seu jantar; o que foi concedido de bom grado.
Quando chegaram à sobremesa, e que a generosa bebida tinha alegrado o seu espirito, Kean falou d`este modo. Ora é tempo, senhor Thompson, de falarmos de negócios, se me permitirdes. – Thompson tendo permitido com um aceno de cabeça, o cômico continuou. Há muito tempo que sois meu credor... Eu vos devo duzentos sequins, e vim agora satisfazer o meu debito. Então o poeta que tinha nobre altivez, e que mesmo na triste situação em que jazia, sabia conservar sua dignidade, com indignação e grave seriedade disse; que estranhava que ele assim lhe falasse sabendo que por dividas se achava preso, e que era muito duro fingir-se urbano para zombar mais, e insultá-lo em sua desgraça.
Permita Deus, replicou o outro com vivacidade, que eu nunca seja tão vil e abjecto como julgais, sinto terdes suspeito, em mim tão pérfida intenção: dignai-vos ouvir-me, senhor, sem interromper-me, e estou certo que me dareis razão... Eis aqui um bilhete do banco da soma indicada.
— Eu vos repito com franqueza, que eu vos devo, e vos explico como, e espero que vos dignareis aceitar o bilhete.
Eu tenho uma pequena fortuna, e já passei da metade do curso ordinário da vital carreira concedida aos homens. Já fiz o meu testamento, e como não tenho mais parentes próximos, quero recompensar com pequenos legados as pessoas a quais sou obrigado por me terem prestado serviços e me dado ocasião de prazeres.
Quantos prazeres, quantas delicias me deram as vossas obras, e principalmente o poema das Estações! Com a leitura de vossas trabalhos literários, aumentaram-se os meus talentos como já sabeis, e passei muitos dias felizes e deleitosíssimos, e tudo isto só a vós eu devo. Se eu não tivesse conhecimento do vosso presente estado, não recebereis este legado senão depois de minha morte. A mim não faz nenhuma falta este dinheiro. Ainda que eu espero viver mais alguns anos. E ele pode ser-vos muito util. Creio, que assim como não vos envergonhareis de aceitá-lo depois de minha morte, tende, eu vos peço, a bondade de recebê-lo agora de minhas mãos; não me roubeis o raro prazer de poder eu mesmo cumprir uma parte do meu testamento, e acreditar que eu pago verdadeiramente uma dívida, porque a minha pequena herança me fez contrair convosco uma dívida, que declarei nas minhas ultimas disposições, e as quais de modo algum eu mudarei.
Muito doce era ver-se, durante o discurso do generoso ator, pintar-se no rosto do poeta alternativamente os diversos sentimentos que o animavam de admiração, de alegria, e de reconhecimento. Thompson lançou-se nos braços de Kean, não cessando de agradecê-lo e disse muitas vezes: Eu devo tanto a um desconhecido! Oh! Vergonha para meus falsos amigos! Para os grandes soberbos, que nunca me deram um jantar sem me fazer sentir que eu recebia uma honra, uma graça, entretanto um homem que me é inteiramente desconhecido, porém nobre e virtuoso, oculta seu imenso benefício, com delicada generosidade, debaixo do nome de satisfação de uma dívida”.
Traduzido do italiano por Emília Augusta Gomide Penido.