Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

“Cecília, a voluntária”, de Vitória collona


Edição de referência:

Jornal das Famílias. Tomo 6, maio de 1868, p. 152-155.

— Ora, a minha avó, é porque V.M. já não é moça que reprova o meu entusiasmo. Pois que não é tão bonito ir a gente defender a sua pátria?

— Sim, minha neta, dizia D. Isabel, velha sexagenária, a D. Fernandina, moça de seus vinte e dous anos, e cheia de bélicos entusiasmo; mas uma mulher está descolocada no meio de soldados. Ela pode, e deve mesmo prestar serviços, preparando fios, fazendo ataduras, ou curando os pobres feridos, com essa doçura que todos lhe reconhecem e de que têm os homens uma falta absoluta; mas não com uma arma mortífera na mão, que além de não ser saber manejar convenientemente, não a pode auxiliar com a força física indispensável em tais casos.

Estavam, avó e neta, neste ponto da conversa quando veio uma escrava anunciar a visita do Dr. Pecilgo.

— Bons olhos o vejam, Sr. Doutor, disse D. Isabel, indo ao encontro do visitante. Há muitos dias que não honra esta casa com uma visita; esteve acaso doente? está demudado!

— Não, minha senhora, disse o Doutor, a alteração que V. Ex. nota em mim provém do abalo que me causou o desgraçado desfecho que teve ontem um romântico episódio desta desastrada guerra.

— O que é que aconteceu? perguntou D. Fernandina com interesse.

— Lembram-se, disse o Doutor, de uma moça chamada Cecilia Monteverde, que no princípio desta guerra lhes disse que tinha assentado praça com um nome de homem?

— Lembramo-nos, exclamaram as duas senhoras ao mesmo tempo.

— E bem que lhe invejei a coragem, acrescentou Fernandina.

— Mas que felizmente não imitou, minha senhora, disse o médico.

— Diga infelizmente, Sr. Doutor, porque se me deixassem há muito que eu lá estaria também defendendo o meu país e cobrindo-me de gloria.

— Mas fora do seu lugar, minha senhora, porque se já é inconcebível ver-se o embate dessas enormes massas de homens que sem terem ofensa pessoal que os justifique procuram-se destruir por todos os meios que a maldade humana sugere, menos concebível é ver-se um ente todo doçura e caridade levar o seu fraco contingente para a obra de extermínio em que se empenham os homens.

— Admira-me a sua imagem, Doutor, depois de tê-lo ouvido louvar diversas vezes atos de valor praticados por mulheres, disse D. Fernandina.

— Sim, minha senhora, mas se V. Ex. se recorda foram todos esses atos de valor praticados em defesa própria, ou na de seus filhos, nos casos de invasão dos inimigos. Nessas circunstâncias a coragem da mulher é bela e santa; mas se ela empunha um a espada por sequiosidade de sangue desmente a sua natureza e torna os homens mais ferozes. Creia V. Ex. que o aspecto da compaixão de uma mulher prodigalizada, mesmo a um inimigo, de quem ela se compadece, e as lágrimas que derrama ao ver partir os que lhes são caros, maldizendo a guerra, faz-nos refletir sobre essa triste necessidade que têm, e ainda terão por muito os homens, para decidirem as suas questões, enquanto não forem assaz civilizados para deixar esse cuidado à diplomacia. Única arma cristã, a meu ver, com que Deus quer sem dúvida que nos batamos com os nossos irmãos, por isso que nos deu a inteligência, para nos diferençar dos irracionais que se dilaceram entre si.

— Aí tens, minha neta, disse D. Isabel. Agora não dirás que a opinião que por mais de uma vez tenho sustentado, com ainda há pouco eu fazia, é o fruto dos meus gélidos sessenta anos. O nosso Doutor pensa do mesmo modo que eu, e não tem mais de vinte e quatro.

D. Fernandina, meio vencida, abaixou os olhos não ousando sustentar a sua opinião diante do Doutor, mas dizendo consigo mesma: aposto que eles estavam ajustados para me persuadirem de assentar praça.

— Mas, Sr. Doutor, disse D. Isabel, o senhor nos ia dizer alguma cousa relativamente a D. Cecilia e desviou-se da conversa com a exótica ideia desta menina. Conte-nos o que houve nessa história, que talvez ela encerre alguma proveitosa lição para minha neta.

— Como já lhes contei, continuou o Doutor, logo que começou a guerra com o Paraguai D. Cecilia (minha comprovinciana), entusiasmada com a partida dos voluntários, abandonou a companhia de sua velha mãe a despeito de sua oposição e prudentes conselhos que lhe dava, para assentar praça com um homem, no mesmo batalhão em que sabia estar Carlos Cincinato, seu noivo, que já havia se despedido dela fazendo-lhe mil protestos de fidelidade, pedindo-lhe que rogasse a Deus de conservar-lhe a vida. Ele não a reconheceu debaixo daquele uniforme. Chegando Cecilia ao teatro da guerra bateu-se com denodo ao lado do seu querido Carlos, sem que este nem de leve suspeitasse quem era esse valente camarada. Quis a sorte porém que ela fosse ferida num braço ao tomar uma bandeira paraguaia, e por isso levada para Montevidéu, e depois para a corte afim de ser convenientemente tratada. Quando as dores lhe permitiram atentar no que lhe estava ao redor viu que no leito contigua achava-se seu noivo com uma larga ferida no peito. Intima conversa travaram os dous doentes. Cecilia falou das saudades da pátria e das afeições que por lá tinham deixado, provocando assim alguma confidencia de Carlos que a orientasse sobre a grau de afeição que ele lhe consagrava; este contou-lhe que deixara na sua província uma noiva que adorava e com a qual se casaria logo que acabasse a guerra, se Deus lhe conservasse a vida. O amor-próprio de Cecilia ficou sumamente lisonjeado ouvindo descrever a paixão que soubera inspirar e com a certeza de que se realizaria o seu mais ardente desejo logo que se acabasse a guerra. Teve ímpetos de revelar-se a Carlos, mas quis primeiramente sondar o seu espirito relativamente ao passo que havia dado. No decurso da conversa fez-lhe antever a possibilidade de sua noiva assentar praça no intuito de aproximar-se dele. Muito admirada ficou ao vê-lo repelir essa ideia dizendo que se tal acontecesse ele a consideraria mais longe de seu coração, esmo estando a seu lado, do que conservando-se na província em que a deixara. Estranhou-lhe Cecilia de que em vez de agradecer à sua noiva esse ato de dedicação ele o estigmatizasse. Ele lhe respondeu que assim o faria porque além de julgar um exército mais improprio dos lugares em que devesse achar-se uma moça, acrescia não poder esperar que viesse a ser boa esposa e boa mãe quem não houvesse sabido ser boa filha; pois que abandonando ela a autora de seus dias sem que a lei a obrigasse a isso, como acontece aos homens, ela a faria morrer de pesar. Ouvindo as judiciosas reflexões de Carlos conheceu Cecilia o quanto tinha errado querendo cercar-se de uma aureola de gloria que a tornasse mais cara ao seu querido noivo, e arrependida, prometeu-se, mentalmente, de esforçar-se para obter a sua baixa logo que se restabelecesse, no intuito de ir implorar o perdão de sua pobre mãe, que tão desapiedadamente abandonara, e esperar pelo regresso de Carlos deixando-o sempre ignorar o delirante passo que dera. Deus porém havia decidido o contrário; pois permitiu que poucos dias depois de seu restabelecimento e da obtenção da requerida baixa, quando tudo se lhe sorria para a realização de seus desejos, recebesse uma carta vinda da sua província em que uma tia lhe anunciava a morte de sua mãe, que se finara de pesar pela sua ausência; mas que ainda a abençoara em seus últimos momentos rogando a Deus por ela. Um raio não a houvera fulminado tanto como essa carta no momento em que ia emendar seu erro. A datar desse dia apoderou-se dela uma negra melancolia; até que ontem, sentindo-se fraca para arcar com o remorso que a ralava, suicidou-se com um punhal; juntando assim mais um crime ao erro cometido, e terminando tragicamente a sua já tão romanesca vida. É de uma carta que se achou sobre a mesa de seu quarto dirigida ao médico que fosse chamado depois de sua morte que sei todos estes pormenores, pois fui eu o médico a quem recorreu a preta que a servia quando a viu banhada em sangue sobre a cama pensando que ainda eu chegaria a tempo de salvá-la; porém já era tarde. Na carta endereçada ao médico rogava-lhe ela que mandasse pôr no correio a que achasse inclusa que destinava ao seu noivo, na qual dizia ela, contava igualmente a sua história, com a única diferença de encerrar algumas expressões de saudade e de arrependimento.

Quando o Doutor acabou a sua narração viu que brilhavam sinceras lágrimas nos olhos das duas senhoras.

D. Isabel levou o lenço aos olhas e disse com voz saída do coração:

— Pobre mãe! pobre menina!

Depois levantando as mãos para o céu exclamou:

— Tirai do entusiasmo à minha Fernandina e terminai a guerra em atenção aos corações maternos.

A moça ouvindo a prece de sua querida avó lançou-se-lhe nos braços e exclamou soluçando:

— Aqui tem sua neta para sempre, minha avó; conheço agora que eu errava quando, em vez de folgar que a lei me não obrigue a arremedar o tigre, eu aspirava a imitá-lo sem pesar-me de afligi-la.

— Abençoada sejas, minha neta, disse a boa senhora apertando-a sobre o peito, e praza ao céu que todas as que pensão como tu pensavas não careçam de um quadro igual a esse par conhecer seu erro.