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LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
“A cruz de fogo”, de Leo Junius (José da Rocha Leão)
Edição de referência:
Jornal das Famílias. Tomo 9, novembro de 1871, p. 145-152.
En suivant la vérité.
(ERAL PORTSMOUTH).
I
O Brasil com seus campos matizados de flores vicejantes, com suas florestas virgens, seus regatos que murmuram docemente seus rios caudalosos e seus rochedos e montanhas majestosas, encerra no solo abençoado riquezas imensas, que olhos observadores ainda não puderam de todo pesquisar.
Este solo porém, mais de uma vez tem sido juncado de cadáveres, regado com o sangue de mais de uma vítima, que a sede de ouro, ou a vingança terrível de seus filhos tem derramado.
Mais de um crime se tem cometido, mais de um drama horrível com todas as suas peripécias tem passado desapercebido, sem que o historiador narrando os acontecimentos da época, pintando os costumes, ou descrevendo os tipos fisionômicos de seus autores, escreva a crônica desses factos, e assim leve ao conhecimento da geração vindoura a história desses dramas sanguinolentos, que fazem estremecer de horror o coração humano.
II
Não há muitos anos, vagava às vezes pela estrada real de Santa Cruz, um velho coberto de andrajos, de estatura alta, mirrado e seco como uma múmia, trêmulo como um caniço açoutado pela brisa, mas que apesar disso se não curvava para o túmulo, ao peso dos anos.
Seu rosto cadavérico e bronzeado, seus espessos cabelos cor de estopa, sua barba branca como a neve, e seus olhos encovados, davam-lhe um aspecto sinistro.
Um longo rosário de grossas contas, do qual pendia um crucifixo de latão de meio palmo de comprido, um bordão nodoso, e um chapéu velho de feltro, eram os únicos objetos que possuía, os quais ainda não estavam em completa ruína.
Mais de uma vez o tínhamos encontrado. Nunca porém o vimos pedir esmola!
Esse homem tinha-nos causado impressão.
Um dia que íamos caminho de Jacarepaguá o encontramos sentado à borda da estrada, um pouco adiante do regato do Trindiba, que corre em terras da Fazenda da Taquara.
O cavalo que montávamos espantou-se ao ver o velho e rodou sobre os pés. Obrigando-o a reconhecer o objeto de que se espantara, paramos de fronte do velho e lhe dirigimos a palavra.
— Adeus meu velho, o que faz por estes sítios exposto assim ao vigor do sol?
O velho encarou-nos por um momento, depois tirando o chapéu, respondeu-nos:
— Cumpro o meu fadário Senhor Deus o acompanhe. Segui vosso caminho.
Esta resposta despertou em nós o desejo de com ele travar conversa.
Apeamo-nos e dirigindo-nos a ele lhe estendemos a mão.
— Quem quer que sejais meu velho, encontrais um homem que se compadece de estranhos males.
Sois talvez bem desgraçado, não é assim? Pois bem! Aqui está um homem ainda no verdor dos anos que vos estende a mão de amigo e vos pergunta. Em que vos posso ser útil?
O velho levantou-se lentamente, apoiado no seu bordão de peregrino, e estendeu-nos a mão mirrada como a de um esqueleto, e assim nos falou.
— Ha bem anos, Senhor, que esta mão, que peava como nenhuma o mais fogoso cavalo, que empunhava uma espada com tanta facilidade como um punhal, não aperta a mão de uma criatura humana! Sede abençoado.
Mau grado nosso não pudemos reprimir um movimento de espanto.
O velho percebeu-o, e um sorriso irônico roçou-lhe os lábios descorados e finos.
— Sois leal e generoso, Senhor, continuo ele, e não ireis de certo denunciar à justiça um criminoso, a quem Deus, deixou vagar livremente pelo mundo, e que agora se a justiça dos homens se apoderasse dele, apenas agarraria em um cadáver seco pelo sol abrasador, e devorado pelos remorsos, não é?
— Quando vos estendi a mão, bom velho, foi para apertá-la como se aperta a de um irmão, ou a de um amigo, e amaldiçoado seja o homem que fazendo-o esconda no pensamento uma ideia de traição. — Amém, respondeu o velho. Tendes pressa, Senhor.
— Nenhuma; por quê?
— Desejo conversar convosco. Ha tantos anos que eu apenas balbucio algumas palavras, que meu coração agora quisera aproveitar-se deste acaso para desabafar. E sentou-se.
— Pois bem, eu vos escuto.
E sentamo-nos ao lado do velho, depois de ter atado as rédeas do cavalo a um tronco de uma árvore.
O velho permaneceu em silêncio alguns minutos, contemplando-nos com seus olhos encovados e acinzentados, onde ainda brilhava um raio de vida. Depois descobrindo-se pegou no crucifixo, e mostrando-nos assim falou.
— Jurais Senhor, por esta imagem do Redentor, que em quanto não tiverdes certeza de que meu corpo serve de pasto aos corvos, a ninguém revelareis o segredo que vou confiar-vos?
— Sim, eu juro, repetimos sem hesitar, descobrindo-nos e estendendo a mão por cima da imagem.
— Escutai-me agora, serei breve.
E largando o crucifixo que se balançou sobre seu peito alguns instantes, contou-nos o seguinte. III
III
Em 1681, na vila de S. Paulo de Piratininga, então capitania de S. Vicente[1], no tempo do Marquês de Cascais, um homem embuçado em uma ampla capa, de espada à cinta, e cavalgando um soberbo cavalo, bateu à porta de uma casa de modesta aparência situada a meia légua da vila para a banda do sul.
Era um sítio onde morava um pobre lavrador e sua mulher, tidos e havidos na vila por honrados e benfazejos.
Depois de alguns instantes de espera o cavaleiro puxou da espada e batendo com o punho na porta bradou: “Oh! de casa. Deo gratia!”
De dentro responderam logo. “Oh! de fora, que quereis? Se sois algum viajante em busca de pousada, sede bem-vindo.”
E abriu-se a porta em cujo lumiar apareceu uma mulher de cerca de 30 anos com uma baeta verde sobre a cabeça caindo-lhe sobre os ombros e uma candeia de cobre na mão.
O cavaleiro abriu a capa, e tirando do braço esquerdo uma cesta a entregou à mulher dizendo-lhe:
— Tomai boa mulher esta criança, criai-a como se vosso filho fosse, e todos os anos neste dia recebereis dez doblas pelo vosso trabalho.
— Mas eu não tenho leite Senhor, e a criancinha não há de passar toda a noite sem mamar.
— Aqui tendes com que comprar uma cabra para criá-lo, ou pagar à mulher do vosso camarada Ruy Pereira para criá-lo.
E deu-lhe uma bolsa cheia de ouro.
E sem dar tempo à boa mulher, deu de rédea ao cavalo, e desapareceu a galope.
A pobre mulher fechou a porta, tirou a criança da cesta e pô-la na cama; depois chamou um famulo e mandou-o a toda a pressa chamar a mulher de Ruy Pereira.
Daí a duas horas, o menino libava a nutrição em peito estranho.
No dia seguinte quando ambas as mulheres despiram as brancas vestes de cambraia da criança para lavá-la, qual não foi o seu espanto ao verem sobre o peito esquerdo dela, uma cruz de duas polegadas de extensão, feita com ferro em brasa, e apenas cicatrizada!
Quando o marido voltou da sua viagem a mulher contou-lhe o ocorrido, e o bom do homem que não tinha filhos, adotou a criança como se fora sua, dizendo à mulher.
— Toma cuidado Clara, talvez ainda nos peçam contas deste menino.
Correram os anos, e o menino crescia vigoroso e forte; a pensão era sempre paga pontualmente pelo homem misterioso, que todos os anos, e à mesma hora e dia, batia à porta e deixava cair uma bolsa contendo ouro, e desaparecia sem nada dizer.
Sua mãe adotiva pediu ao marido para mandar educar o menino no colégio dos jesuítas, donde aos dezesseis anos voltou o menino misterioso, que já então era um belo mancebo, a quem chamavam João da Cruz.
A pensão tinha deixado de ser paga havia um ano.
Aí viveu ele em casa de seus pais adotivos até a idade de 30 anos ignorando o mistério do seu nascimento.
Clara, a boa mulher, que então contava 60 anos, adoeceu, e chamando seu filho adotivo contou-lhe a misteriosa história de sua vinda para a sua companhia.
No dia seguinte a boa mulher deu a alma a Deus.
Desde esse dia João da Cruz tornou-se taciturno e abatido.
Cinco anos depois o marido de Clara faleceu de um ataque de asma, deixando a João da Cruz o seu sítio e os poucos bens que possuía.
João da Cruz vendeu tudo, mandou dizer missas por alma dos dois finados que lhe serviram de pais, e só montado em seu cavalo, com dois mil cruzados em ouro num cinto de couro, abandonou esses sítios em que passara sua infância.
Ninguém mais soube dele.
IV
No ano de 1740 vários boiadeiros que conduziam gado encontraram na estrada, um pouco adiante de arraial de Capivari na província de Minas, um homem morto, metade devorado pelos corvos, ao pescoço do qual pendia uma lata de folha de Flandres de feitio dessas em que os carreiros guardam as licenças.
Gruparam-se os boiadeiros em torno do cadáver, e um deles convidou os companheiros a examinar a folha, e a enterrar depois o cadáver.
— Deixa quem está morto, lhe retorquiu um deles, não serei eu que lhe ponha a mão para saber segredos que deve guardar talvez.
— Nada, disse um outro, aos vivos escapula, e aos mortos sepultura; talvez este corpo exija alguma coisa; examinemos a folha e demos-lhe sepultura: seria uma impiedade deixá-lo assim, nós somos cristãos. Eia camaradas mãos à obra.
Este que assim falou, curvou um joelho, benzeu-se e tirou do pescoço do cadáver a folha, e abrindo-a puxou de dentro dela um manuscrito; depois virou a folha na palma da mão.
Caíram-lhe nela cerca de sessenta a setenta diamantes brutos, alguns dos quais eram maiores do que uma amêndoa em casca.
— Estamos ricos, exclamou ele.
Não sabendo ler nem os companheiros, guardou os diamantes e o manuscrito, dizendo aos companheiros.
— No primeiro pouso repartiremos os diamantes e mandaremos ler os papéis do defunto.
E não enterraram o cadáver, nem mais examinaram!
Na cinta ficava ainda muito ouro amoedado!
— Nada, replicou um dos boiadeiros, se o defunto deixa a quem primeiro a achou essa riqueza, está direito, senão havemos de vender isso e dar de esmola ou mandar dizer missas por sua alma, de contrário nós seremos infelizes roubando a um morto.
Deus nos livre de tais patrícios.
— Pois seja assim, replicaram os outros.
E puseram-se a caminho.
Chegados que foram ao primeiro pouso, encontraram-se com um muladeiro paulista, a quem pedirão para ler o manuscrito, e acocorados em redor de fogo no rancho, ouvirão boquiabertos a história que acabo de contar-vos.
O manuscrito findava com estas palavras.
“Não sei quem sou nem onde nasci, fui criado em S. Paulo, tenho gravado no peito uma cruz feita com ferro em brasa. Peço encarecidamente ao caminhante que encontrar meu corpo, que o deixe no lugar em que o achar, e que depois de ler este manuscrito, se apodere destes brilhantes, e deste ouro, venda-os e do seu produto faça entrega da metade a um filho que tenho, o qual se acha em Mogi das Cruzes, província de S. Paulo, em casa do peão João da Nóbrega. O resto guarde-o para si. O menino tem como meu, uma cruz de fogo sobre o peito esquerdo e chama-se João da Cruz.
Os boiadeiros deliberaram entre si cumprir à risca a vontade do finado, e continuaram no dia seguinte a sua viagem.
O velho calou-se por um momento.
Comparando as datas citadas por ele pareceu-nos impossível que fosse ele esse menino.
— Mas ao depois o que aconteceu? lhe perguntamos.
— Espere um pouco Senhor, deixai-me tomar folego.
— E continuou assim:
V
Seis meses depois que isto se passou entre os boiadeiros, o que tinha tirado a folha do pescoço do cadáver batia à porta de uma pequena casinha de sapê em que morava o peão João da Nóbrega.
A mulher deste acompanhada de um lindo menino de 12 anos, mandou-o entrar, e depois de ouvir a narração singular do boiadeiro, dele recebeu oito mil cruzados em ouro e o manuscrito isto depois que o boiadeiro verificou que o menino tinha no peito o sinal fatal, a cruz de fogo.
O menino estava assustado e com um braço cingia a cintura da mulher de João da Nóbrega, não menos assustada do que ele.
Quando João da Nóbrega soube do ocorrido começou a passear pela casa e a cismar.
— Como foi parar aí esse menino, interrompemos nós.
— Só Deus o sabe Senhor João da Nóbrega e sua mulher nunca revelarão esse segredo, levaram-no para o túmulo.
Como vos ia dizendo João de Nóbrega disse à companheira:
Clara este menino tem o mesmo princípio, que seu pai pelo que vejo.
Quem era ele! que mistério é este, não sei.
Vou mandá-lo benzer pela velha Inês respondeu Clara, e depois quando ele for homem se formos vivos entregar-lhe-emos esse dinheiro que é dele., e o mandaremos para longe daqui. E que Deus lhe dê melhor sorte do que a de seu pai. Pobre enjeitado que eu amo como se fosse nosso filho!
Em quanto Nóbrega e sua mulher assim conversavam o menino escutava-os atentamente fingindo dormir.
VI
Dois anos depois, um dia em que que saíra para ir correr umas cavalhadas, não voltou mais a casa. Em vão o procuraram, ninguém dava notícias dele.
Algumas semanas tinham decorrido e João da Nóbrega saíra na esperança de saber notícias do menino. Na distância de dez léguas encontrou na estrada uma lata de folha e dentro dela o manuscrito que o boiadeiro entregara a sua mulher.
De volta a casa aí achou uma carta em que o menino lhe dizia que em sinal de gratidão lhe deixara a herança de seu pai, e que o não procurasse, pois ia correr mundo. E nada mais.
VII
A fazenda de criação de gado, no sertão de Aracuara, chegou uma tarde ao sol posto um viajante montado em uma possante mula.
Era um moço de cerca de 18 anos, alto, moreno de cabelos negros e anelados.
Chegando ao terreiro apeou-se e perguntou pelo dono da casa.
Apareceu-lhe um homem de cerca de 30 anos alto e robusto, que lhe perguntou o que desejava.
— Hospitalidade por alguns dias, pois estou cansadíssimo, e se o Senhor precisar de um campeiro, ofereço-lhe os meus serviços.
O dono da casa sorriu-se, e fazendo entrar o moço perguntou-lhe donde vinha, quem era, e porque queria empregar-se como campeiro.
— Sou um enjeitado, não tenho nome, nem sei quem sou. Só sei que sou desgraçado e preciso trabalhar para viver.
— Pois fique moço. Aqui nada lhe faltará, creio eu; se me quiser ajudar repartirei o fruto do nosso trabalho. Sabe ler?
— Sim, Senhor.
— Quer tomar conta da minha tropa?
— Com muito gosto.
Daí a pouco o moço e o fazendeiro sentavam-se à mesa para cear.
Quando porém o moço viu sentar-se à cabeceira da mesa a mulher do dono da casa, moça de 19 para 20 anos, de rara beleza, baixou os olhos.
A moça fitou nele os lindos olhos, e corou.
Eram dois corações que se encontravam e desse encontro fatal nasceu a paixão mais desastrada que devia levá-los ao túmulo.
Oito dias depois o fazendeiro precisou fazer uma compra de bestas. Partiu ordenando ao moço que no dia seguinte saísse com a tropa.
Na madrugada desse dia nessa mesma varanda o moço e a moça juravam amar-se para sempre.
Ele partiu levando consigo a glória de em menos de oito dias ter conquistado um coração que agora era seu.
De volta à fazenda depois de uma ausência de dois meses, com o seu patrão, o moço continuou a entreter relações amorosas com a moça.
Deu ela à luz um menino, que causando alegria ao marido, fê-lo entretanto suspeitar da fidelidade da mulher, tal era a extrema parecença da criança com o moço.
Mas essa suspeita desvaneceu-se, porque os dois amantes eram cautelosos.
Castigando o moço um dos tocadores da tropa por ter deixado extraviar-se uma besta, este que havia tempos tinha visto o moço levantar-se alta noite, quando o patrão estava ausente, e saltar pela janela para o quarto dela, foi em segredo denunciá-lo.
VIII
A VINGANÇA DE UM MARIDO
O fazendeiro ficou furioso, e jurou vingar-se. Faltavam-lhe provas.
Sua mulher já então tido três filhos, um dos quais já contava doze anos, e ele nunca a apanhara em flagrante! Nada tinha visto.
Esperou ainda um ano.
Fingiu ter de fazer em casa para tomar conta da boiada, que precisava de trato.
Partiu; porém nessa mesma noite voltou a pé, emboscou-se no mato e esperou que anoitecesse.
Com a escuridão nada via.
Esperou. De madrugada postou em frente da janela um escravo armado de um bacamarte, com ordem de atirar, se alguém, fosse quem fosse, tentasse evadir-se pela janela.
Entrou na casa. Empunhava uma larga faca de ponta de cabo de prata, e ao lado pendia-lhe uma garrucha.
Bateu à porta do quarto de sua mulher. Esta dormia tranquila ao lado do amante!
Não ouviu.
Ele chamou então uma das escravas, e ordenou-lhe que batesse à porta da senhora e dissesse, que o pajem do senhor voltava com uma carta.
A escrava obedeceu; a desgraçada moça levantou-se, abriu a porta, e ao ver o marido invadir o seu quarto com ar ameaçador como um espectro surgindo da campa, que nas horas da vingança sacrifica o objeto fatal de seu desdouro, desmaiou.
Com o baque do corpo o enjeitado levantou-se assustado, e encarando com o seu patrão, passou a mão pelos olhos como para convencer-se que mão sonhava. — Miserável, bradou este, se dás um passo morres.
E escorvou a pistola.
O enjeitado nem se quer mexeu-se; cruzou os braços e esperou.
Quando porém viu o terrível marido agarrar a mísera mulher pelos cabelos, e arrastá-la para fora do quarto, deu um rugido semelhante ao do tigre, e lançou-se sobre ele.
Ouviu-se um tiro. A bala roçando pelo ombro do moço foi despedaçar um espelho, que pendia da parede.
Travou-se uma luta horrível.
Ó moço comprimia com sua mão de ferro o pulso vigoroso do fazendeiro, que empunhava a faca, e conseguira desarmá-lo, e atirá-lo ao chão.
Em vez porém de feri-lo, atirou para longe a faca.
O escravo, que estava postado de sentinela, ouvindo o barulho, acudiu.
— Mata este homem, bradou-lhe o senhor.
O escravo hesitou. Então o fazendeiro agarrando no bacamarte desfechou o tiro à queima-roupa no peito do moço quando este se atirava a ele para desarmá-lo.
O enjeitado cambaleou e caiu ao lado da moça, que jazia sem sentidos.
O marido fê-la tornar a si, e mandando buscar uma torquês de ferrar; agarrou-a pelos cabelos, e aplicando-lha nos músculos do braço, bradou-lhe com voz medonha.
— De quem são estes filhos? Fala mulher do diabo...
— São dele., balbuciou a infeliz desfalecendo. Perdão! perdão!
— Não há perdão para ti, infame!
E tirando o cinto de couro, com ele amarrou por traz os braços da pobre mulher, depois dirigiu-se ao berço onde dormião dois inocentes anjos, um de dois, e outro de um ano, agarrou-os pelas pernas, e tirou os do berço. Começaram eles a chorar, e aquela fera atirou com um deles ao chão e despedaçou-lhe o crânio!!...
Fez o mesmo à outra criança, cujo sangue salpicou o rosto da desditosa mãe. Que angústias não despedaçaram aquele coração de mulher!
— Onde está o Joãozinho, bradou ele.
— Está no curral, responderam os escravos horrorizados à vista de tanta ferocidade.
— Tragam-mo já.
O escravo que tinha ficado de sentinela, correu apressado, e saltando no cavalo que estava selado à porta, correu para o curral.
— Fuja Senhor moço, fuja, que meu senhor o mata, está louco, bradou ele ao menino, que montando em um cavalinho já vinha caminho de casa.
— Tu é que estás louco, Francisco, o que é isso?
— Fuja Senhor moço, fuja, venha comigo, meu senhor já matou o enjeitado, a seus irmãozinhos e vai matar a senhora e a vosmecê, fuja.
— Não! não fujo, quero ver o que é isso, e cravando as esporas no animal seguiu a galope para casa.
Chegando ao terreiro não se apeou; olhou espavorido para dentro de casa, e viu seus irmãozinhos mortos e seu pai, que açoitava com uma tala a sua mãe, que já então era um cadáver.
O infeliz menino saltou do cavalinho abaixou, e correndo para sua mãe, caiu ao pé dela de joelhos; o escravo fiel o acompanhava!
O algoz a quem ele chamara por tanto tempo de pai, agarrou-o pelos cabelos, sacou da faca e ia enterrá-la no peito do menino, quando sentiu-se agarrado por um braço de ferro.
— Basta meu senhor, este não há de morrer.
— Larga-me, negro, larga-me.
— Não, não largo, bradou o escravo, se o senhor matar este menino, que eu criei, eu mato-o também.
E torcendo-lhe o braço arrebatou-lhe a faca, e com outro braço segurou no menino.
O homem livre degradava-se nivelando-se com as feras; o filho da escravidão, enobrecia-se nivelando-se com os heróis!
—Desgraçado, vais morrer, bradou o fazendeiro, e correu a carregar a pistola, que jazia no chão.
O escravo agarrou no menino, fê-lo montar, e saltando também a cavalo, saíram a toda a brida.
Satisfeita a vingança do cruel fazendeiro, não podendo correr atrás do menino e do escravo, que fugiam à rédea solta, deitou ele fogo à casa e depois que viu tudo reduzido a cinzas, internou-se pelo sertão, acompanhado de 12 escravos e quatro camaradas, levando apenas os animais da tropa e a boiada, tendo reduzido a cinzas tudo quanto possuía.
IX
O menino e o escravo vagaram de arraial em arraial, de vila em vila, ora pedindo esmolas, ora vivendo da hospitaleira caridade dos habitantes desses matos.
Venderam os animais, que montavam, compraram outros de menos preço, e muniram-se de armas com que caçavam, para assim poderem subsistir mais independentes.
O escravo contara ao menino, que seu pai era o enjeitado, e não o fazendeiro, e que esse desgraçado moço tinha o peito esquerdo marcado com uma cruz de fogo, que ele escravo vira muitos vezes quando o moço se despia.
O menino tornou-se pensativo, e depois, dirigindo-se ao fiel escravo e abraçando-o lhe disse.
— Meu amigo, quero ter no peito o mesmo sinal que esse homem que me amava tanto, sem eu saber que era meu pai.
O escravo pegou da faca, e aquecendo a ponto de tornar-se vermelho branco, untou o peito do menino com um pouco de óleo de mamona, e fez-lhe uma cruz sobre o peito com a faca incandescente.
O menino nem pestanejou!
Estendendo depois a mão, bradou com força:
— Meu pai, minha mãe, meus pobres irmãos, eu juro pelas vossas cinzas que hei de vingar-vos.
Eu não descansarei em quanto não trincar o coração do homem que vos matou!
Menino e escravo nunca mais se separaram.
Engajavam-se de camaradas, tocavam tropas de gado, para ganharem cada um meia dobra por viagem redonda, que às vezes era de sessenta ou oitenta léguas!
X
Doze anos tinham decorrido, e já o menino contava 24 anos, e durante esse tempo o fruto de suas economias tinha crescido.
Compraram eles cada um o seu animal, bacamartes e pistolas, e seguiram caminho do sertão em procura do fazendeiro.
Sempre que podiam, pediam informações, mas tudo era em vão.
Assim viajaram pelo sertão cerca de três meses vivendo de caça e frutos silvestres, e dormindo ao relento sobre as caronas dos lombilhos, servindo-lhes os ponches de barracas, quando chovia.
Cansado de procurar em vão o matador de seus pais e irmãos, já ele desesperava de encontrá-lo quando soube, que daí a uma légua para a direita do lugar em que então se achava, morava um homem rico, que há dez para doze anos viera estabelecer-se.
Para lá se dirigiu sem demora.
Ao chegar à tronqueira da fazenda, o escravo receando ser conhecido, ficou escondido no mato, tendo de antemão ajustado, que ao primeiro tiro acudiria.
O moço dirigiu-se resoluto para a fazenda.
Estava o dono da casa entretido em mandar bater feijão.
Ao ver um cavaleiro desconhecido, os escravos pararam, e ele dirigindo-se ao dono da fazenda, a quem logo reconhecera apesar da barba grisalha.
— Bons dias senhor, venho pedir-lhe pousada por um dia.
— Não dou pousada a ninguém, meu caro; daqui a uma légua há um rancho, à beira da estrada, e o seu animal pode bem andá-la ainda.
— Então não dá pousada a um viajante nem por uma hora?
— Não senhor, nem por um minuto.
— Pois então meu caro, hoje há de você pedir um pouso ao diabo, ouviu?
— O que é que diz?
— Adeus! digo-lhe que hoje há de você pedir pousada ao diabo, entende?
— Suma-se daqui, senão meto-lhe uma bala na cabeça.
— Ora não se zangue, meu caro, eu também tenho aqui chumbo e balas, mas não são para a sua cabeça; adeus.
— Vá-se com mil diabos.
XI
VINGANÇA DE UM FILHO
Às 8 horas da noite desse mesmo dia, o moço e o escravo deixando os animais fora da tronqueira, dirigiram-se cautelosamente para a fazenda; um dos cães da casa pressentiu-os e começou a ladrar.
Foi morto logo a faca.
À meia-noite a casa, o paiol, e o moinho tudo ardia em chamas.
O fazendeiro saiu espavorido gritando pelos escravos.
Um vulto dele se aproximou, travou-o com mão de ferro, e arrastou-o para o escuro; outro acudiu e ambos o amarraram e amordaçaram.
A medida que fugiam de casa os moradores dela, os vultos aproximavam-se, agarravam-se e os levavam para junto do fazendeiro.
Quando clareou o dia estava tudo reduzido a cinzas.
O moço e o escravo montaram a cavalo e fizeram seguir diante de si para o mato 14 pessoas que eles sós tinham amarrado!
Pararam.
— Quem são estas crianças perguntou o moço.
— São meus filhos respondeu o fazendeiro.
— Tua mulher onde está?
— Não tenho mulher. A mãe deles fugiu com um tropeiro há seis meses; era minha amasia.
— Conheces-me?
— Sois o homem que ontem me pediu pousada:
— Não me conheces há mais tempo?
— Não me recordo.
— Não tinhas três filhos? - Nunca tive senão estes.
— E o Joãozinho, aquele cuja mãe e irmãos matastes há dose anos, não o conheces? Ei-lo aqui está! E o Francisco, a quem por ser um triste escravo quiseste tornar um assassino, mas, que foi um amigo fiel, também não o conheces?
— Perdão meu filho, perdão!
— Teu filho, eu?... Não! Eu não sou teu filho.
Meu pai era o enjeitado, a quem tu matastes.
Meu pai tinha no peito o mesmo sinal que eu tenho...vês? E abrindo a camisa mostrou-lhe a cruz sobre o peito. - Oh! maldição! maldição! exclamou o fazendeiro.
— Sim maldição, malvado é a vingança de um filho, quem te condena à morte e já.
Quem com ferro mata parecerá pelo ferro.
Matastes meu pai, minha mãe, e até meus inocentes irmãos! Tivestes animo para despedaçar-lhes as cabeças de anjos que eram. Demônio, pois bem morre e já.
O moço tirou da faca, e cravando-a no peito do fazendeiro, arrancou-a tinta de sangue, depois deu-lhe mais treze ou quatorze facadas, e no momento em que ele de rojo se debatia nas vascas da morte pôs-lhe um pé sobre o pescoço e acabou de matá-lo!...
Ajoelhou-se, rasgou-lhe o peito com a faca e arrancou-lhe o coração ainda palpitante; trincou-o e calcou-o aos pés!...
— Ajuda-me Francisco a acabar com isto, disse ele ao escravo; degola-me esta gente para que não nos denunciem.
Então começou um cena horrível. Súplicas, choros, gritos, tudo foi em vão!
Agarravam os míseros pelos cabelos e os degolavam!
Caíram os corpos trebuchando, fazendo contorções, e alagando a terra de sangue!!...
Quatorze cadáveres juncavam a terra; um deles, o do fazendeiro estava todo mutilado.
Juntaram lenha, empilharam os cadáveres, acenderam uma grande fogueira, e os reduziram a cinzas.
No dia seguinte o moço e o escravo estavam medonhos; tinham as vezes, as mãos, os rostos e as armas tintas de sangue!
Demoraram-se todo o dia em lavar as armas e limpá-las, e as vestes, nas águas de um riacho a cem passos de distância do teatro dessa cena horrível.
Por fim partiram.
XII
Viajaram eles por espaço de 15 meses noite e dia sem direção certa.
Percorreram quase toda a província de Minas Gerais; por fim cansados dessa vida nômada, resolveram fixar sua residência um pouco distante do arraial do Lambari da Campanha, nessa província, cerca de duzentos passos da encruzilhada que conduz à de Santa Isidro, celebre pelos ciganos que a povoavam.
Aí residiram eles num rancho de palha, e ocupavam-se em ferrar animais.
Durou esta vida quatro anos.
Francisco o fiel escravo, que nunca abandonara seu senhor moço e amigo, já então contava cinquenta e tantos anos e faleceu de um desastre; um cavalo em que segurava para ser ferrado deu-lhe um coice, do qual veio a morrer.
João da Cruz, depois de prestar-lhe os últimos deveres sobre a terra, dando o corpo do fiel Francisco à sepultura, abandonou o sítio em que jazia o seu salvador e único amigo, e seguiu caminho de S. Paulo.
Tinha ele então 35 anos.
Chegando a Sorocaba, engajou-se com um negociante de mulas e seguiu logo para Curitiba e província do Rio Grande do Sul, acompanhando como camarada seu patrão, que a essa província ia em busca de mulas.
Essas viagens eram perigosíssimas por causa dos Bugres, que ainda hoje infestam o sertão. Só no fim de um ano, e ás vezes mais, volta-se à feira de Sorocaba, onde se vendem as mulas que daí se espalham para diversas províncias.
Nessa ocupação passou João da Cruz 17 anos.
Esquecia-me dizer-vos, que desde o dia da horrorosa matança do fazendeiro e seus filhos e escravos, o sono de João da Cruz era povoado de fantasmas ameaçadores, e que esse homem, que mais de uma vez encarara a morte, esse homem que procurava pelos campos as cobras cascavéis e as matava a faca para tirar-lhes o guiso e vendê-las, acordava sobressaltando durante a noite e passava-as em vigílias prolongadas!
Os anos o fizeram pensar na morte e ele resolveu antes que chegasse a hora incerta, saber a origem do nascimento de seu pai.
De volta a S. Paulo dirigiu-se à Vila de Mogi das Cruzes, e procurou informações de João da Nóbrega e sua mulher – o peão que criara seu pai.
O primeiro tinha morrido, havia vinte anos, e a segunda o precedera a mais de oito, deixando uma filha, da qual ninguém dava notícias pois na idade de 16 anos ficara órfã e um viajante a levara consigo.
Desesperado João da Cruz viajou por muito tempo em busca dessa moça sem poder encontrá-la.
XIII
A vida agitada e nômade de João da Cruz prolongava-se.
As enfermidades próprias do homem expostas sempre aos raios do sol abrasador do Brasil, e ás intempéries do tempo, assaltavam-no de quando em quando, e o misero vagou por longos anos pelas províncias de S. Paulo e Minas, até que chegou aos confins da de Goiás, ao arraial de S. Domingos de Araxá, que fica entre as províncias de Minas e S. Paulo, e onde hoje existem numerosas fontes de águas sulfurosas, abandonadas, devido isso a negligência, incúria e talvez ignorância dos nossos homens de Estado.
Ouviu ele a um velho que tinha sido tropeiro, a história da Cruz de Fogo, história, que o velho tropeiro asseverava ser verdadeira, pois a ouvira da boca de seu pai, que fora boieiro.
João da Cruz, durante a narração do velho tropeiro era todo ouvidos, pediu-lhe que o guiasse a fim de poder descobrir esse manuscrito de que fazia menção a história, pois tinha grande interesse em vê-lo.
O velho tropeiro admirado de ver outro velho como ele, e coberto de chagas, e como se diz com um pé na sepultura, e outro no mundo, ter tanto empenho em aprofundar essa misteriosa história, perguntou-lhe, que motivo a isso o obrigava, a ele pobre mendigo, que não tinha onde cair morto, quanto mais para empreender uma longa viagem em busca desse tesouro.
— É por que esse manuscrito era de meu pai, lhe retorquiu João da Cruz, de meu Pai que como eu tinha o peito marcado com a cruz de fogo!
E mostrou ao velho tropeiro a tradicional e hereditária marca!
O velho tropeiro encarou-o por largo tempo em silêncio e tomando-o à parte lhe disse.
— Se poderes ir a S. Paulo algum dia, procura na Vila de Mogi das Cruzes por Anastásia Margarida, filha de Jerônimo Mendes da Nóbrega, que saberás o que desejas; porque essa mulher é neta de João da Nóbrega, a qual esteve muito tempo em Jacareí e há cerca de dez anos, mudou-se para Mogi das Cruzes, terra de seus pai.
No dia seguinte João da Cruz desapareceu do arraial de S. Domingos do Araxá.
XIV
MISÉRIA E CRIME
A miséria cercava-o por todos os lados. A calça e camisa de grosseiro algodão, remendada em mais de vinte lugares, caía aos pedaços.
O infeliz sustentava-se quase exclusivamente de raízes e frutos silvestres.
Dores agudas lhe torturavam o corpo coberto de chagas, e ele caminhava sempre, qual outro Judeu Errante.
Compreendereis quanto tempo teve ele de gastar para caminhar centenas de léguas.
Tinha a muito custo chegado à serra da Boa Morte, que fica distante três léguas de Congonhas do Campo na província de Minas.
Aí cometeu ele mais um crime depois de tantos anos.
Armado de um pau atacou um viajante, derribou-o do cavalo; acabou de matá-lo, apoderou-se do animal, vestiu a roupa do morto, e pôs-se a caminho.
Era mais um fantasma ameaçador, que tinha de aparecer-lhe em sonhos.
Em sonhos? Não! Mesmo acordado, para qualquer parte que ele volvia os olhos ele os via banhados em sangue!...
Mas esse homem, que envelhecia pouco a pouco já não temia as visões, que o atormentavam.
Caminhava sempre.
Quando lhe faltava dinheiro, roubava; quando precisava comer, e que os remorsos e perseguiam, matava o primeiro homem que encontrava.
Ao chegar a S. Paulo tinha ele morto quatro viajantes!
Em Mogi das Cruzes soube ele, que a mulher que procurava, Anastásia Margarida, já aí não estava, por ter ido para a vila de S. Roque consultar a feiticeira. Escolástica Mendes, denominada Cara Mendes, que morava nos subúrbios dessa vila, a qual nessa época e ainda em 1820 era tida por grande feiticeira[2].
Para aí se dirigiu João da Cruz.
XV
Era alta noite: em frente de um miserável casebre passavam e repassavam vultos embuçados.
Uns entravam e outros saíam do casebre.
Homens e mulheres iam consultar a misteriosa e solitária feiticeira, que se dizia que lia no livro do destino e operava milagres!
João da Cruz esperou largas horas, e quando viu que nenhum vulto mais aparecia, bateu Resoluto à porta do casebre.
Uma mulher já idosa abriu-lhe.
Era Cara Mendes, a feiticeira.
Esse homem que tinha derramado tanto sangue humano, esse homem indômito estremeceu diante dessa fraca velha, e frio suor bandou-lhe o bronzeado rosto!
Tal é o poder da imaginação, que de preferência exerce seu domínio sobre o homem solitário que habita países montanhosos.
XVI
A FEITICEIRA
Mulher misteriosa, que lês no passado, e que adivinhas o futuro se queres que te dê credito, dize-me – quem sou eu?
A feiticeira lançou sobre João da Cruz um olhar investigador, e depois sorrindo-se respondeu.
— És um homem desgraçado, um homem que treme, um criminoso!...
João da Cruz passou a mão pelos olhos. Cuidava estar sonhando.
— Que sinal tenho eu para que assim fales?
— Tu vens em busca do mistério, viajante transviado, mas nada saberás, eu estou cansada hoje.
Fala mulher, fala, dize-me quem tem o manuscrito que eu procuro, retorquiu João da Cruz impacientado.
A estas palavras o rosto da feiticeira exprimiu secreto contentamento.
O manuscrito que procuras já não existe; as traças o despedaçaram e o tempo o consumo; mas ele está todo aqui, e a velha bateu na testa.
Como se chamas homem?
— João da Cruz.
— Que idade tens?
— Sessenta e tanto anos.
— Que sinal tens no peito?
— Uma cruz feita com um ferro em brasa, respondeu João da Cruz esquecendo, de que era ela que era o interrogado em vez de interrogar a velha.
É isso mesmo. Escuta-me.
A velha contou-lhe a história que ele ouvira ao velho tropeiro no arraial de S. Domingos do Araxá, e que acabei de contar-vos, até o desaparecimento do filho adotivo de João da Nóbrega, o enjeitado.
Mas como veio parar esse manuscrito ás mãos da neta de João da Nóbrega, se João da Cruz, o filho adotivo dele o levara consigo? perguntou-lhe João da Cruz. Eu to digo, meu velho.
Esse manuscrito ele o perdeu em viagem de S. Paulo para Minas e o avô de Anastásia Margarida, João da Nóbrega o achou, tendo saído em busca do fugitivo.
A filha e a neta o conservaram por longo tempo até que se destruiu.
Mas tu, que lês no futuro, boa mulher, dize-me, quem era meu avô?
— Deixa os mortos sossegados. Que te importa agora isso? Trata da tua salvação, que não fazes pouco, pois que ainda tens de cumprir teu fadário por longo tempo.
— E como morrerei eu?
— Hás-de morrer como morreu teu avô, disse a feiticeira, hás-de morrer na estrada devorado pelos corvos!!...
João da Cruz caiu desmaiado. Quando acordou, a feiticeira mostrou-lhe a porta, dizendo:
Saí, nada mais tendes que fazer aqui.
Ele, desatou o cinto, tirou dele cinco ou seis moedas de ouro, e deitou-as sobre a mesa da velha dizendo:
— Tomai boa mulher; adeus.
— Leva o teu ouro, homem desgraçado, ele está tinto de sangue. Não o quero.
João da Cruz pegou do ouro, guardou-o, e lançando um olhar de espanto para a feiticeira saiu silencioso.
XVII
No dia seguinte deixou a província de S. Paulo e dirigiu-se para o Rio de Janeiro.
O pouco dinheiro que lhe restava deu-o de esmolas aos pobres.
Abandonou a cidade e internou-se primeiro pelas matas de Tijuca.
Vendo que elas eram muito devassadas, seguiu para a serra que fica fronteira à da Tijuca, e ali (apontou o velho) entre a serra do Cipó e a da Baitaraca, no alto daquele braço, que separa o Lamarão da serra da escada d’Agora, e das dois Irmãos, no lugar que os quilombolas ao depois chamaram casa do homem, passou ele largos dias, dormindo nessa caverna como um selvagem, evitando encontrar-se com um ou outro temerário caçador, que se aventurava a deixar a picada da serra, temido pelos quilombolas, que o chamavam – feiticeiro – por vê-lo pegar em cobras vivas e comer raízes e folhas cruas.
O velho calou-se, eu olhava para ele admirado. – E que foi feito desse homem, lhe perguntamos, e como soubésseis essa história meu velho?
— Esse homem... João da Cruz, o filho do enjeitado, o neto de João da Cruz, cujo cadáver os boiadeiros encontraram devorado pelos corvos...
Esse homem que matou o assassino de seu pai, mãe e irmãos, que na sua vingança degolou os míseros escravos, que roubou e matou para descobrir a origem de seus antepassados, que vagou pelas solidões, devorado de ansiedade, atormentado de remorsos, visões e fantasmas mãos o seu colete de baeta, mostrou-me sobre o peito esquerdo o sinal fatal. – A cruz de Fogo!
XVIII
Levantei-me horrorizado! ...
Eram quase seis horas.
Os últimos raios do sol douravam ainda o pináculo das montanhas.
Apenas se ouvia ao longe o grito surdo e triste do grilo, o piar das avezinhas, que se aninhavam nas selvas, e o monótono canto do escravo que abatido de fatiga largava do serviço.
O velho tinha-se calado.
Eu preparava-me para partir, quando ele estendendo a mão, me disse em tom suplicante.
— Senhor! um último favor. Não vos esqueça o juramento que fizestes, e dizei-me antes de partir, não haverá no mundo um homem que em nome de Deus me absolva dos meus pecados? Eu sinto que morrerei em breve.
Mais de cem anos pesam sobre meu corpo.
Olhei em torno de mim, cheguei-me ao velho, ajoelhei e pegando no crucifixo que pendia do seu peito lhe disse.
— Se o vosso arrependimento é sincero, irmão, em nome do Redentor dos homens eu vos absolvo, possa Ele perdoar-vos e compadecer-se de vós.
— Amém! murmurou o velho. Obrigada Senhor, Deus vos acompanhe, sede feliz...Adeus!
O velho seguiu para o lado da Freguesia, eu parti a galope.
Chegando a casa escrevi esta história tal qual a ouvi de sua boca.
XIX
DEVORADO PELOS CORVOS
Um cadáver atirado ao nada!...
Seis meses depois vindo para a cidade em companhia de um amigo, vimos a duzentos passos de distância do lugar em que estivera o velho que me contou a história de sua vida, um bando de corvo, que esvoaçavam.
Apeei-me e dando as rédeas ao amigo lhe disse.
— Deixa-me ver que carniça aqui está, e dirigi-me para o lugar onde estavam os corvos.
A margem do riacho, com a cabeça meia coberta d'água jazia um cadáver. Aproximei-me. Os corvos fugiram levando nos bicos alguns pedaços de carne ou antes de pele do cadáver.
Reconheci o cadáver do velho mendigo pelo rosário que lhe pendia sobre o peito.
Tinha ele a mão esquerda toda espicaçada pelos corvos, sobre o coração e com a direita tapava os
olhos!...
A Feiticeira Paulista dissera a verdade?
João da Cruz, tinha morrido na estrada, e como seu avô, seu cadáver era pasto dos corvos!!
[1] Atualmente a capital da Província de São Paulo.
[2] Era tão notável e conhecida esta celebre mulher, que o Iris, jornal de S. Paulo dela se ocupou largamente. (Nota do Autor)