Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

“Dolores”, de Paulina Filadélfia


Edição de referência:

Jornal das Famílias. Tomo 3-4-5-6, novembro/dezembro de 1865; julho/agosto/setembro/outubro/novembro

/dezembro de 1866; fevereiro/julho/agosto/setembro/outubro de 1867; janeiro/fevereiro/abril/maio/junho de 1868.

I

O LOCUTÓRIO

Era um dia solene e de há muito esperado numa instituição de meninas. Acabava de ter lugar a distribuição dos prêmios. Uma brilhante reunião escoava-se pelos pórticos do pátio de honra.

As fisionomias animadas apresentavam ao observador um espetáculo interessante: senhoras de alta classe, com ar singelo, esperavam por suas equipagens; altas burguesas esqueciam sua dignidade chamando a seus criados; famílias atarefadas com bagagens procuravam carros de aluguel; uma extremosa mãe enxugava lágrimas de prazer, outra repreendia uma aluna por só ter obtido uma coroa, ao passo que sua prima obtivera duas, circunstância agravante, pois neste tempo de igualdades fora preciso, para bem fazer, decretar a igualdade das distinções; as autoridades que haviam ocupado a presidência enxugavam a fronte; os pais nobres bocejavam olhando para o relógio que lhes marcava a hora do jantar: os irmãos e os primos faziam com ingênua curiosidade a inspeção das educandas que desfilavam ante seus olhos com vestidos brancos, fitas azuis postas a tiracolo, e grande quantidade de coroas. É um quadro que todos podem ter presenciado.

No locutório, próximo ao palco de honra, se haviam refugiado os pais que haviam querido subtrair-se às emoções, ou quiçá à fadiga da cerimônia, e ali esperavam pelas meninas, quer para levá-las em férias, quer para saírem do colégio por haverem ultimado os estudos, que, segundo o programa, as havia tornado perfeitas.

Diversos grupos se tinham formados por famílias, ou conhecimentos. Os mais comunicativos haviam travado conversa com os que lhes ficavam próximos. Uma senhora atraía particularmente todos os olhares. Tinha pretensões de mocidade, apesar de lho poder contestar seu estado civil; não pretendia menos ser elegante; se houvesse porém submetido seus adornos ao júri dos árbitros do bom gosto, eles argumentariam o número dos recusados.

Ostentava-se pensativa sobre um divã; sua posição tinha o natural abandono de uma artista que exagera seu papel. Iluminava-se por vezes seu rosto de uma celeste alegria, porém como não queria prender a atenção dos circunstantes voltava-se para dissimular sua emoção.

Ela esperava por uma aluna que ia voltar ao teto materno; era mais do que uma filha, pois não fora do nascimento que a confiara a seus cuidados: era sua filha adotiva, a filha de sua escolha, a linda e amável Dolores, que dizia um eterno adeus ao colégio, e quem ia cercar de maternais carícias.

— É um dia bem feliz para vós, senhora, disse-lhe um assíduo que com interesse seguia sua pantomima, ides poder ocupar-vos com a felicidade de vossa cara filha. Ela faz honra à vossa escolha e à vossa solicitude: beleza, espírito, talento e graça, tudo está nela.

— Não é feia, disse a senhora em voz baixa, parecendo fazer uma concessão, mas ainda é uma criança; seus talentos são os de uma colegial. Ainda é cedo para falarmos de seu espírito, e Deus nos livre de uma moça de espírito: seja ela submissa, e é tudo o que lhe pede.

— Acaso seus olhos não respondem de seu coração? Crede-me, senhora, vos ides gozar da companhia dessa encantadora menina, que se não pode ver sem admirá-la.

Quem com tanto ardor tomava a defesa de Dolores era um homem de uma bela presença, alto, e de andar seguro e elegante. A cansada expressão de seus traços fisionômicos, contrastando com o azevichado de sua barba e cabelos, autorizava a supor-se que os progressos da química não eram estranhos a esses sinais de juventude.

Sua delicada mão ornada de anéis e as correntes de ouro que brilhavam sobre seu colete davam a medida de suas pretensões. Era nesse ponto digno de ombrear com a senhora que acompanhava.

Folgava em ser o orador do auditório, e por isso voltando-se para um homem que lhe ficava ao lado e que esperava igualmente por uma educanda disse-lhe:

— Não achais maravilhoso e providencial esse ensino dado em comum que aproxima as classes, faz desaparecer os preconceitos e estabelece entre as alunas uma verdadeira fraternidade, fazendo abstração da posição e da riqueza? É mais uma conquista da nossa revolução.

— Senhor, respondeu-lhe o interrogado, não nego a benéfica influência da fraternidade: porém a igualdade que se acha em nossas leis ainda não se introduziu em nossos costumes: e é nesse ponto de vista que não me parece um notável progresso a igualdade das pretensões. Vão sair por esta porta jovens duquesas em ricas equipagens e plebeias em tílburis. As moças destinadas a uma vida laboriosa talvez que se considerassem mais felizes se lhes houvessem dada uma educação prática mais conveniente à sua humilde condição.

O desconhecido cumprimentou com civilidade ao acabar esta curta resposta e fácil era de ver-se que desejava pôr termo à conversação.

Havia um sensível contraste entre os dous personagens que acabavam de trocar algumas palavras. Tanto o primeiro se esforçava para afetar a vivacidade da juventude, quanto o segundo folgava em dar-se a aparência da idade provecta.

Este último estava envolvido em uma comprida sobrecasaca da antiga moda; sua grossa bengala de castão de ouro parecia indispensável para armá-lo; a branca cabeleira perfeitamente harmonizaria com a palidez do seu rosto, se os supercílios demasiadamente acentuados não protestassem contra essa velhice antecipada, e houvera sido difícil verificar se seu olhar, velado por óculos de cor, conservava ainda vislumbre de sua antiga chama.

No mais, um atento observador não houvera acreditado mais na velhice aparente desse personagem do que na afetada mocidade de seu interlocutor.

No momento que acabava o diálogo que temos referido, algumas das alunas esperadas entraram no Locutório.

As primeiras que apareceram não podiam deixar de atrair a atenção dos espectadores. Uma dentre elas, mademoiselle Matilde de Hauterive, empalidecia seu tão sonoro nome. Era baixa e caquética. As vivas cores de seu vestido desfavoreciam sua tez pálida e enferma.

Em compensação, se lhe faltavam os dotes da beleza, exprimia seu olhar uma inefável doçura; e o orgulho de ter em suas mãos as de Dolores, cuja modéstia sofria com a quantidade de coroas que de seu braço pendiam, supria-lhe a falta desses distintivos de talento e aplicação.

Quanto à linda moça que fora o objeto da conversação que ouvimos, provou, pela admiração que em todos os rostos se pintou ao entrar no locutório, que nada de mais se dissera a seu respeito relativamente à sua esplêndida beleza realçada pelo esplendor de sua loura cabeleira, por sua estatura e todas as graças de sua pessoa.

Não era somente a beleza antiga que Fídias houvera tirado do mármore da Paros; havia mais esses divinos dons que o cristianismo derramou no coração da mulher, esse sentimento, essa elevação, essa ternura, essa caridade cuja inteligência colocou a arte cristã tão acima das concepções do paganismo. A beleza plástica de Dolores não era mais do que uma encantadora revelação de sua alma. É assim como que em êxtase diante de sua inesperada aparição.

É para ele que Matilde arrastou sua amiga sem dar-lhe tempo de olhar em torno de si.

— Meu querido tio, disse-lhe ela, é Dolores, é a minha inseparável amiga de que tantas vezes vos falei.

— Mademoiselle, respondeu o misterioso personagem, cujo grau de parentesco nos será ulteriormente explicado, espero que faremos mais amplo conhecimento, pois minha sobrinha não pode dispensar a vossa companhia: por ora espero que não recusareis apertar-me a mão.

— Com a melhor boa vontade, respondeu Dolores, pois devo à amizade de Matilde as horas mais felizes da minha vida. Agora, disse voltando-se para sua amiga, temos de separar-nos e quem sabe se não será para sempre!!!

— Nada poderá separar-nos, exclamou Matilde abraçando-a, e se algum dia fores infeliz lembra-te do que me prometeste.

— Não vos vexeis de mim, disse com a mais decorosa voz que lhe foi possível a mãe adotiva de Dolores aproximando-se do grupo.

— Perdão, minha tia, disse timidamente a moça a quem essa apóstrofe se dirigia, não vos tinha visto.

— Suponho que não me procuraste muito, mademoiselle; mas retiremo-nos, porque todos nos ouvem e vos olhão com uma curiosidade que julgo não vos desagradar. Como não desejo atrair a atenção acho conveniente que não prolongueis por mais tempo essa conversa. Segui-me pois e apressai-vos em mandar colocar no carro que nos espera a vossa bagagem.

A senhora, tomando o braço de seu cavaleiro, saiu com majestade. Dolores seguia-os. Lançou um derradeiro olhar a Matilde e a seu tio, que nada haviam perdido dessa significativa cena, e olhou depois com terror para o obsequioso companheiro de sua mãe adotiva

II

DE PARIS A SÉVRES.

Dous braços abertos! Os dous braços abertos de uma mãe que espera, recebe e abraça uma filha; como é terno e comovedor! É uma intima união, uma fusão duas almas que se aproximam, se encontram e se confundem.

Uma mãe que abraça sua filha é sempre bela; é o quadro vivo da eterna mocidade, o mais terno símbolo da nossa religião, e a mais sublime inspiração da arte.

O olhar de uma mãe diz sempre: “Esqueci as dores que tua primeira infância causou-me, só me lembro das dores que te reserva o futuro; estarei sempre a teu lado para defender-te?!” O olhar da filha diz: “Amo-te, sou fraca, protege-me!” é os braços de uma mãe cruzando-se com os dela num inefável complexo revelam cousas tão belas que jamais a palavra tentou exprimir.

Dolores, porém, mais infeliz que as companheiras que acabava de deixar, não ia encontrar dous braços abertos; ela era órfã.

A senhora que lhe fazia as vezes de mãe, isto é, do que nada substitui nesta vida, a pretenciosa senhora de quem acabamos de esboçar o retrato, fazia-se chamar Mme. de Louvain; fosse por modéstia, ou por prudência, contentava-se em assignar-se nos papeis: Viúva Louvain, omitindo a partícula nobiliária. Ficara encarregada do cuidado, que de bom grado dispensara, de criar a pequena Dolores, sobrinha de seu marido e órfã.

Não tendo filhos, divertiu-se a senhora de Louvain, no primeiro ano de sua viuvez, em enfeitar como a uma santa a linda menina, o que lhe atraía muitos comprimentos. Isto a remoçava, dava-lhe ares de uma jovem mãe, e proporcionava-lhe a ocasião, que nunca desprezava, de ostentar toda a sua sensibilidade; essa veleidade porém foi-se dissipando à medida que a menina crescia.

Nada é mais tocante do que ver a terna dedicação de uma mulher da sociedade, que após uma inconsolável dor encontra lenitivo na maternal afeição que dedica a uma criatura abandonada; conhecemos alguns desses admiráveis exemplos: não se imitam porém os sacrifícios do coração. Talvez que a senhora de Louvain já estivesse de representar o seu papel.

Quanto ao cavaleiro Banco, que acompanhava a tia de Dolores, ganhara sem dúvida suas esporas na secretaria de alguma ignota chancelaria estrangeira e constelava-lhe o largo peito uma fita de variadas cores.

Entrou a senhora de Louvain no carro apoiando-se no braço do cavaleiro.

Este apresentou a Dolores a mão com afetada polidez; ela porém apressou-se em subir sem tocar na mão que lhe era oferecida. Sentou-se o cavaleiro em frente das duas senhoras, e o carro dirigiu-se para a aldeia de Sèvres, habitual residência da senhora de Louvain.

Durante o trajeto o cavaleiro Banco tentou ser amável. Falava a Dolores de seus trabalhos de colégio, de seu talento, de seus triunfos colegiais, e falava-lhe de sua amiga; mas Dolores não se prestava a conversar, olhava com indiferença para o empoeirado caminho que se estende através das charnecas de Point du Jour e de Billancourt; seus olhos, assim como seu pensamento, fixavam-se com preferência na misteriosa linha do horizonte que sempre atrai as almas tristes.

A moça que entra no mundo, depois de haver gozado da afeição de suas companheiras, necessita de um apoio, de um lar, de uma família. É como uma trepadeira que procura suspender seus ramos para resistir ás futuras procelas. Dolores não tinha nem lar, nem família, estava só no mundo.

Ignorava a história de seus pais; haviam-lhe dito que era órfã; não tinha reminiscência alguma dos primeiros anos da sua infância; a mais antiga imagem que conservava sua memória era a da senhora de Louvain, que se encarregara de sua educação. Ela desejava ser grata, e lamentava não encontrar em seu amante coração um sentimento de ternura para com essa tia que parecia fazer por ela grandes sacrifícios; pois a senhora de Louvain dispunha de poucos meios, e o elegante colégio em que Dolores fora educar-se não estava em relação com seus modestos haveres.

Quando em sua mente comparava as ternas manifestações de amizade de suas companheiras, e o amigável adeus que lhe haviam dito ao separarem-se, com o glacial acolhimento que lhe estava reservado em casa de sua tia, desejava remontar o curso dos anos, e não ousava encarar o futuro.

Algumas vezes, em vez de ensoberbecer-se de seu talento e saber, lamentava com admirável bom senso de não ter sido criada com a simplicidade conveniente à sua desgraça. Inveja a sorte das órfãs da caridade, que vira passar vestidas de pano azul e touca preta, sob a vigilante guarda de uma religiosa que lhes servia de mãe.

Ignorava Dolores que depois de haver entrado no colégio como externa captara de tal modo a afeição de todos, que a diretora não consentira em apartar-se dela, quando pela morte do Sr. de Louvain sua viúva a quis retirar, por motivo de economia. Foi pois Dolores educada nesse brilhante colégio sem ônus para sua tia. Esse segredo foi guardado, por sua generosa preceptora, com extrema delicadeza, e a Sra. de Louvain não tinha pressa nem interesse em revelá-lo.

A aspereza da Sra. de Louvain provinha das perfeições da linda Dolores, que fora até então tratada como criança, mas cujo desenvolvimento de graças e beleza podia ferir o amor-próprio feminino de sua tia, ou deveremos atribuí-la ao peso e responsabilidade que lhe acarretava a volta dessa menina que por tanto tempo afastara de si. Nas relações da Sra.de Louvain para com sua sobrinha o coração não tinha parte; pois nada fazia para alcançar a afeição de Dolores, e seus exagerados excessos de ternura eram subitamente substituídos por pérfidas insinuações.

Dolores devia pois temer a existência que lhe estava reservada. Não entrevia nenhuma das perspectivas que naturalmente se apresentam à imaginação da mais inocente moça. Não podia dispor de si; e lançando um olhar para o cavaleiro Banco temia os projecto que sua tia poderia formar sobre o seu futuro.

Era seguindo com os olhos o horizonte longínquo que Dolores fazia essas reflexões, enquanto que atravessava a pulverosa planície de Billancourt o carro que arrastava o seu destino à ponte de Sèvres.

A paisagem que nesse ponto da estrada se desenha atraiu por um momento sua atenção. Tinha à sua direita as frescas sombras do parque de Saint-Cloud e os cimos do monte Valeriano, à esquerda as colinas verdejantes de Meudon e Bellevue, que dominam o rio. Lançou seus olhos sobre essas ondulosas linhas. Esse doce espetáculo serenou por um momento sua alma, aberta ao sentimento de tudo o que é belo; teve uma aspiração de liberdade, qual o pássaro que vê aberta a porta de seu cárcere. Mas que houvera a mísera feito dessa liberdade? Todavia, parecia-lhe ainda mais triste o jugo sob o qual ia viver.

Passou-se diante do parque de longas perspectivas, diante da celebre manufatura de porcelanas, e por fim parou o carro em frente a uma pequena casa da rua que serpeja o estreito vale de Sèvres, dominando por toscas penedias. Esse desfiladeiro, que viu passar as equipagens das antigas cortes, parece ter sido conservado em seu primitivo estado para contrastar com as magnificências de Paris e Versailles, a quem serve de traço de união.

O cavaleiro presidio, como era de seu dever, à descarga das bagagens, que foram silenciosamente recebidas por uma silenciosa criada da Sra. de Louvain; depois, cumprimentando com respeitosa afetação, e prometendo uma próxima visita, foi para sua residência de verão, sita na encantadora aldeia de Bellevue, que, como se sabe, senhoria de suas alturas os cachopos de Sèvres.

III

A BOA NOITE

Já ia o dia adiantado; e a Sra. de Louvain foi para seu quarto, que era no primeiro andar, sem importar-se com sua nova hospede. Deitou-se sobre um divã, esperando a hora do jantar, e pôs-se a meditar na conduta que dali em diante lhe conviria ter para com sua sobrinha.

Dolores, ajudada pela criada, colocou suas bagagens no modesto quarto que lhe fora destinado. Essa boa mulher, que era desde muitos anos o factótum da Sra. de Louvain, não tinha por certo uma sinecura essa casa. Chamavam-na Crucifixo. Nunca nome simbólico fora mais bem aplicado, pois ela carregava verdadeiramente a sua cruz.

Tinha por dever fazer todo o serviço e ouvir impassível todos os atos de acusação que lhe eram incessantemente dirigidos, sem que pudesse invocar em sua defesa circunstâncias atenuantes. Era de origem alsaciana, e falava sofrivelmente mal o Francês, o que pouco a prejudicava, pois raramente falava.

Era uma pobre rapariga desjeitosa, e dir-se-ia que era feita de uma só peça. Reservava sem dúvida para sua ama toda a elegância do seu talento de costureira, pois contentava-se com o adorno de um vestido de fazenda parda, enfeitado de um avental do mesmo estofo e cor. Parecia ter de trinta a sessenta anos; houvera sido porém difícil precisa da uma idade a esse rosto de soldado velho, para o complemento do qual tinha até um pronunciado sinal de bigodes. Quanto aos cabelos, que sem dúvida possuía, e não ocultados por uma touca chata, cujos ornatos desciam lhe sobre suas ossosas faces e orelhas de cachorro deitado.

Essa pobre mulher havia sempre estimado Dolores, apesar de vê-la só em raros intervalos, pois desde que crescera e se tornara linda, vivendo a Sra. de Louvain com parcimônia não ia buscá-la sempre que no colégio lhe facultavam a saída; contentava-se em fazer-lhe algumas cerimoniosas visitas, acompanhada pelo cavaleiro Banco, nas quais sempre deixava a infeliz menina cheia de desanimo e mau humor.

Crucifixo achava Dolores bonita e muito crescida. Ao achar-se a sós com ela em seu pequeno quarto não sabia o que lhe dissesse; ficava em admiração diante dela em vez de ajudá-la em alguma cousa.

Estava contentíssima por ver na casa um rosto novo, rosto jovem e agradável; em primeiro lugar, porque uma simpática e bela fisionomia é sempre grato ver-se; e em segundo, porque talvez que internamente dissesse: seremos duas para carregar a cruz. Arrependendo-se porém imediatamente desse mau pensamento, teve compaixão da moça.

— Que desgraça! Exclamou por fim levantando seus compridos braços. No mesmo instante, como que aterrada do que dissera, e quiçá de ouvir sua própria voz, afastou-se com assombro pondo um dedo sobre a boca e apontando com outro para o andar superior, onde residia a terrível dona do lar.

Apesar de aflita achou Dolores a alegria de seus primeiros anos, e não pode impedir-se de rir do acento estrangeiro e trágico gesto da boa mulher; estendeu-lhe a mão, fazendo-lhe um sinal de inteligência e agradecimentos, pois não era pequena ventura para a triste abandonada de achar um honrado coração que se lhe afeiçoasse.

No mesmo instante um estridente som da campainha da Sra. de Louvain veio provar a Crucifixo que por mais tempo não houvera podido ficar em silenciosa contemplação diante do amigável e sedutor semblante de Dolores.

Na precipitação com que saiu encontrou-o no portal. Ouviu-se-lhe redobrar na escada o passo militar para mais prontamente acudir ao chamado de sua ama, cuja impaciência conhecia.

Estava Dolores ocupada no arranjo do seu quarto e em mudar um vestido, quando novo som de campainha, mais estridente que o primeiro, se fez ouvir. Não supondo que a pudessem chamar por tão insólito modo, não lhe deu atenção, vendo porem que o som continuava, cada vez mais irritado, compreendeu que só a ela podia ser dirigido.

Aconselhava-lhe o amor próprio ofendido que não fosse ao chamado, mas sua razão e dever diziam-lhe que obedecesse, decidiu-se pois ir.

A Sra. de Louvain já tinha sentado à mesa. Sentou-se Dolores por sua vez diante do prato que lhe era destinado, mas com o rubor nas faces. Aceitando tão áspera hospitalidade parecia-lhe que mendigava.

— Menina, disse a Sra. de Louvain, começando seu discurso depois de ter mandado retirar a Crucifixo e achar-se a sós com sua sobrinha...

— Chamai-me Dolores, disse a moça, eu não sou mais de que uma pobre menina que socorrestes e que podeis abandonar quando vos aprouver; o título que me dais é uma ironia. Farei tudo para agradar-vos, minha tia, mas peço-vos que não me chameis de menina, pois não sou mais do que uma serva nesta casa.

— Entendo-vos, respondeu a Sra. de Louvain com malévolo sorriso, é o toque da campainha que ofendeu vosso melindre, pois minha cara, é preciso não agastar-se por tão pouca cousa, e aceitar a posição que nos dão quando não se tem onde escolher. Aqui, como vereis, não será o xadrez nosso entretenimento, assim, ainda há pouco retivestes ao pé de vós minha criada por tanto tempo.

— Porém, minha tia, foi a boa Crucifixo....

— Sei que nunca vos achareis culpada, mas já que não quereis ver em mim uma mãe, advirto-vos que vossa tia não admite respostas. No mais, já que encetámos este assumpto, tenho de fazer-vos uma observação. Não tocarei na leviandade que tivestes ocupando-vos de vossa amiga Hauterive e da pessoa que a acompanhava estando eu à vossa espera...

— Deverei repetir-vos, minha tia, que não vos tinha visto?

— Está bem. Tenho porem duas palavras para vos dizer acerca do tom que adoptastes para com o cavaleiro nas mais insignificantes cousas. Deixai esses ares de princesa ultrajada, e respondei-lhe como uma menina de colégio que ainda sois, e contai que se não fizerdes travessuras ele vos trará doces. Quanto ao trágico nome de Dolores, única herança que tendes de vossos pais, digamo-lo de passagem, vós o tomais muito ao sério, ele me fatiga; e, se não lhe achais inconvenientes, chamar-vos-emos Laura.

— E permitindo responder? perguntou Dolores humilhada pelo escárnio.

A Sra.de Louvain acendeu uma vela e deu-a a Dolores dizendo-lhe:

— Basta por hoje. Vós me fatigastes. Preciso de uma existência mais tranquila. Boa noite, Laura, apresentou a Sra. de Louvain, depois de uma curta pausa.

Dolores tomou a luz e saiu sem ter podido articular uma palavra.

Quando achou-se só e em seu quarto, entregue às tristes reflexões que lhe sugeriam os acontecimentos do dia, ouviu através da porta a voz de Crucifixo, que ousava dizer-lhe “boa noite” passando, e bem depressa. Essa boa noite amigável e sincera foi para ela um balsamo consolador.

IV

RESOLUÇÕES

A magoada Dolores não podia deitar-se. Conservava-se sentada e inativa diante de uma mesa de costura. A compaixão que inspirara a boa Crucifixo ainda mais opressivo fazia parecer-lhe o rigor daquela que dispunha de seu destino, e que tentava despojá-la de seu próprio nome, único bem que possuía de seus pais.

Achou na oração uma nova força para suportar as provações que lhe estavam reservadas; e tendo assim feito um ato de humildade, entregou-se a Providencia, como a ave que surpreendida pela tormenta luta ao princípio contra a procela, mas deixa-se depois confiantemente balouçar pelo impetuoso vento.

É forte aquele que efetua o sacrifício da sua vontade, pois já se não exaure em intermináveis lutas; acha um seguro guia na inspiração divina, e nem pode mais apartar-se do bom caminho.

Não era uma existência mais ou menos cômoda que a preocupava; não mirava à elegância nem ao triunfo, tinha a consciência de sua beleza, mas sumamente acostumada a cativar os olhares sentia-se mais confusa que orgulhosa dessa vantagem, o de bom grado se houvera apagado, se isso lhe fosse possível.

A mais humilde profissão parecia-lhe invejável. Ganhar com suas mãos o pão quotidiano e entregar a Deus o cuidado dia de amanhã que sonho encantador!!... Ignorava porém todas as artes, e quando as houvera sabido, de que lhe servirão? Ela não era livre, estava condenada a viver do pão da caridade.

Ambicionava fazer por merecer esse pão e diminuir-lhe o amargo tornando-se útil e agradável, tentando fazer-se amar, e esforçando-se por agradar à Sra. de Louvain, da qual queria estudar os gostos e fantasias.

Segredava-lhe um certo orgulho que não se deve gabar o que se desaprova, mas dizia-lhe sua indulgencia que era a Sra. de Louvain sua bem feitoria, e que enfim empreendera sua tia uma obra de caridade da qual não tirava proveito algum.

Chegou a explorar-se de não ter feito assaz para agradecer esse benefício, e formulou para o dia seguinte as melhores resoluções, sem ir com tudo até vencer a repugnância que tinha pelo cavaleiro Banco, cuja solicitude a constrangia e molestava. Havia nisso para ela uma questão de dignidade que devia sobrepujar a qualquer compromisso. Tendo acabado de meditar trançou distraidamente seus compridos e louros cabelos, de que já por mais de uma vez lastimara o brilho, e olvidando momentaneamente suas mágoas entregou-se a um pesado sono, como a criança que adormece depois de amargurado pranto.

V

APRESENTAÇÕES

Na grande rua de Sèvres, em que os habitantes vivem por gosto no limiar de suas portas, não pôde passar desapercebida a chegada de Dolores.

Os amigos e vizinhos da Sra. de Louvain transmitiam-se as notícias; tinham-na visto; contavam suas perfeições; diziam que tinha olhos grandes, cabelos da cor do sol, o andar gracioso, e que havia de ser a perola do bairro: não se saciavam enfim!

A curiosidade ajudava a simpatia; e por isso no dia seguinte viu a Sra. de Louvain sucederem-se as visitas que a vinham cumprimentar, e felicitar de ter formado com seus cuidados uma tão bela natureza, e receber feliz compensação dos trabalhos que tivera. Perguntavam-lhe se não destinava fazer aparecer essa linda menina.

De bom grado houvera a Sra. de Louvain perdoada essas efusões, se não fosse lembrar-se que devia representar o papel de terna mãe. Chamou Crucifixo ao som da campainha, e ordenou-lhe que fosse chamar a sua sobrinha. Crucifixo admirada foi executar a ordem, sem nada poder compreender do que se passava

— Ela chamava-se Dolores, disse com emoção aos circunstantes a Sra. de Louvain; mas, como esse nome serve para rememorar-lhe as desgraças de sua família, eu a chamo Laura, afim de afastar dessa pobre menina toda a ideia penosa.

— Como isso é tocante! Disse a Sra. Paintendre, uma das mais intimas amigas da Sra. de Louvain, consultando o círculo que aumentava progressivamente.

Todo foram da sua opinião.

Dolores ao entrar na sala foi saudada por um murmúrio de aprovação.

Depois do que se passara entre ela e sua tia na véspera ficou maravilhada ao ver que ela a abraçava extremosamente antes de apresentá-la ás pessoas que ali estavam.

Os exagerados elogios que lhe prodigalizara intimidaram-na excessivamente.

Não exigia tanto. Fora mais de seu gosto uma vida modesta e calma. Todas as senhoras quiseram abraçá-la, e os homens por não podê-las imitar desfaziam-se em comprimentos.

Quando a Sra. de Louvain, volteando a sala com Dolores, chegou ao lugar do padre coadjutor (seu visitador constante), ele exclamou, tocado pela nobre conduta da Sra. de Louvain e pelo ar modesto e afável de Dolores:

— É o que eu esperava! Eis mais um anjo para a nossa freguesia, acrescentou o bom pastor tomando as mãos de Dolores; mas ainda não é tudo, minha linda menina, tereis de pagar o tributo de vossa chegada. O talento e a beleza são laços que por vezes nos arma o inimigo, e também dons dados por Deus para que os apliquemos à sua glória o que não me entendeis, disse ele, eu me explicarei melhor: ouvi-me pois.

Dolores conservava-se modestamente diante do padre, ouvindo-o com respeitosa atenção. Esperavam os circunstantes com curiosidade o que ele ia dizer.

— Minha menina, disse o padre, teremos no próximo domingo uma festa de caridade, que é sem dúvida o melhor modo de honrar a Deus. Não ignoramos a perfeição com que tocáveis órgão no colégio; não façais sinais negativos, pois vossa tia traiu-vos para com o senhor cura mostrando-se orgulhosa de vosso talento, e eu já vos fui ouvir; por isso não tenteis persuadir-me do contrário. Vós não nos recusareis de substituir, por esta vez, nosso organista que se acha ausente.

— Exagerarão o meu saber, Sr. padre, disse Dolores, mas se vos contentais com a música de uma colegial, estou ás vossas ordens, uma vez que não esteja expostas ás vistas do público.

— Ganhei! disse o empreendedor padre; mas, deveis a Deus até o sacrifício de vossa modéstia. Que sejais vista é o que justamente desejamos. Nossos paroquianos são uns pobres pecadores que se atraem pelos olhos. Se vós lhes apresentardes a salva onde tenham de depor a oblata não olharão a quantia. Concordo que seja isso um mal, mas não podemos refazer a pobre humanidade; assim pois, aceitemo-la tal qual é.

— Desculpai-me, disse Dolores extremamente perturbada.

— Como? Exclamou o coadjutor, acaso recusais esmolar por nós? vossa recusa equivale a um roubo feito aos pobres órfãos de que nos ocupamos. Todas as pessoas gradas da vizinhança ali estarão presentes, e crede que os que a vos darão moedas de ouro, só terão para o pobre padre.

“Como em chumbo vil mudou-se o ouro”, diz o terno Racine, pois tenho também meu repertorio profano. – Como deverei responder ao poeta? É porque a linda Dolores recusou esmolar para os órfãos? Que dizeis a isto? acrescentou voltando-se para a mãe adotiva da moça.

Contrariava as vistas da Sra. de Louvain o colocar no primeiro plano aquela que desejara apagar, e pesava-lhe ter gabado o talento de sua sobrinha para lisonjear a cura; porém, como ter de aparecer em numerosa assembleia contrariava a Dolores, foi esse motivo suficiente para que a quisesse contrariar. Lembrava-se ao mesmo tempo que teria parte na glória que a sobrinha obtivesse quando em torno dela ouvisse dizer que fora a tia da mísera abandonada que tudo fizera em seu prol. Anuiu aos desejos do padre por antever nisso honras e considerações para si.

— Substitui-me, disse Dolores à sua tia, eu vo-lo peço. Tocando órgão não posso obstar a que meu vestuário fique inapresentável.

— Quereis dizer, interrompeu o padre, que se não tocar os sinos e acompanhar a procissão; a caridade, minha filha, não conhece impossíveis. Não são vossos adornos que nos interessam, mas sim vosso persuasivo olhar, em que está personificada a caridade. É bem verdade que seria a Sra. de Louvain uma linda coletora, acrescentou ele como um hábil diplomata que deseja manter as boas relações de ambos os lados, porém desta vez sois vós que desejamos, Deus o quer. A senhora vossa tia tem um lugar reservado na cerimônia.

— Minha filha, disse a Sra. de Louvain, quando de tão poucos meios se dispõe para fazer bem é desumano e irreligioso não aproveitar as ocasiões. Vossa modéstia sofrerá com isso; mas, como diz o nosso bom padre, deveis sacrificá-la a Deus. Demais, o bem-estar de que gozais não vos deve fazer esquecer que existem órfãos infelizes.

A quem dizia isso a Sra. de Louvain?! Não era matéria estranha à pobre Dolores.

— Não deveis constranger-vos, minha filha, disse o bom padre vendo o ar consternado da moça, Deus só quer os corações que a ele se chegam em toda liberdade.

— Dizei-o, fazeis voluntariamente?

— Eu o farei por obediência e por dever, respondeu ela.

— Nunc dimittis, exclamou o feliz coadjutor, vou transmitir tão boa nova ao Sr. cura, de quem não sou aqui senão o embaixador.

Todos os circunstantes juntarão seus agradecimentos aos do padre; e toda a população de Sèvres, desde as primeiras casas da margem do rio até os confins de Chaville, limite oposto do país, soube que no próximo domingo a sobrinha e filha adotiva da Sra. de Louvain, a linda Dolores enfim, tocaria órgão na festa da caridade, e coletaria no fim do sermão.

— Então, Laura, disse a Sra. de Louvain quando se achou a sós com sua sobrinha, estais contente? O desejo de aparecer é natural na vossa idade, mas é conveniente não manifestá-lo; começais a ajeitar-vos; bem vedes que fui boa companheira, e que vos repliquei como se me houvésseis sugerido a resposta.

— Oh! minha tia, exclamou Dolores envergonhada dessa insinuação, podereis crer?...

— Não façais de inocente, retorquiu-lhe a Sra. de Louvain com ingenuidade; e ide ver se nada falta ao que vos é preciso para brilhardes; terei grande prazer em anunciar aos vossos desejos.

Dolores nada tinha para responder; ficou pois demonstrado que ela estava encantada de representar o primeiro papel na solenidade.

VI

PREPARATIVOS

Toda a semana foi empregada em preparar-se para a cerimônia em que Dolores tinha de aparecer.

Por manobra inesperada, e com o fim de sobressair na apresentação de sua sobrinha, esqueceu a Sra. de Louvain por um momento seu habitual mau humor; e quis enfeitar a Dolores como um relicário.

A pobre menina poderia nessa ocasião supor-se voltada aos primeiros anos de sua infância, quando sua tia, que então parecia brincar com uma boneca, descobriu sempre meios de atrair as vistas dos viandantes com os excêntricos enfeites e extravagantes penteados que lhe fazia.

Teve Dolores de defender-se contra as fantasias da Sra. de Louvain, que teimava em medir um vestido de baile, notável pelo excessivo brilho das cores e inconveniente decotamento.

— É preciso sobressair, dizia a Sra. de Louvain, segurando com alfinetes as partes defeituosas do vestido; se fôsseis disforme como vossa amiga Matilde, que também escolhestes a esse respeito, eu compreenderia vossos escrúpulos; mas, já que não sois feita, e que por único dote possuis a mocidade, e o que denominam vossa beleza, é preciso não perder a propicia ocasião que tendes de patentear esses dons: e quem sabe se não haverá entre os circunstantes alguém que, aceitando-se como moeda corrente, venha pedir-vos em casamento?

— Nunca me lembrei disso, respondeu Dolores, e depois….

— Pois a mim interessa bastante para que nisso pense, e de meu parecer sobre este assumpto, interrompeu a Sra. de Louvain, por isso quero que vos enfeiteis. É o que deveis fazer para me agradar; pois há aqui uma questão de amor próprio para mim. Também, se oferecesse uma ocasião conveniente….

Essa insinuação fez supor a Dolores que se tratava do cavaleiro Banco, cuja assiduidade era animada pela Sra. de Louvain, que adivinhado esse pensamento lhe disse:

— Qual é pois vossa tenção? não obstante a minha boa vontade, de que já vos dei inequívocas provas, não posso, minha cara, ter-vos eternamente a meu cargo.

— Trabalharei, respondeu timidamente Dolores.

— Trabalharei?!! como se diz isso depressa. É nas legendas e nos romances que vistes lindas meninas tirarem proveito de suas prendas? Que seria de nossos romancistas se não ocultassem suas oficinas de pintura, seus álbuns, seus cadernos de música e seu repertorio de convenção? Suponho que não tomais ao sério essa comedia. Se tivésseis um talento de primeira ordem!...

— Ai de mim! interrompeu Dolores, vejo a minha inaptidão. Coserei então, minha tia, e servir-vos-ei tanto que me conservareis em vossa companhia.

— Não vos dê isso cuidado, Laura; tornaremos a falar sobre esse assumpto; deixai-vos guiar por minha experiência, que não tereis de arrepender-vos.

Não era uma evidência para Dolores, cujo espírito era justo e o coração reto, a experiência e o bom senso de sua tia.

Desanimada entregou-se às modistas e costureiras, protestando sempre contra os exagerados adornos que lhe propunham.

Teve de fazer dous ensaios na igreja de Sèvres para experimentar o instrumento diante da cura, e escolher as peças que teria de tocar. O bom êxito dos ensaios desembaraçou-a, e inspirou-lhe confiança.

VII

O REVERSO DA MEDALHA.

Durante a primeira semana apresentou-se o cavaleiro Banco diversas vezes em casa da Sra. de Louvain. Como se mostrara cativado pela beleza de Dolores, devemos supor que conservava para com ela ainda os mesmos sentimentos, apesar de não ser-lhe estranha a desagradável impressão que causara no ânimo da moça. Como hábil tático, que era, adoptou para com ela uma nova linha de conduta.

Ostentava grande solicitude para com a Sra. de Louvain, procurando fazer sobressair uma leve tintura de melancolia. Abstinha-se de falar com Dolores, a quem só cumprimentava ao entrar, afetando esquecê-la em todo tempo que durava sua visita. Essa afetação servia de alívio à pobre moça.

Ao princípio houvera a Sra. de Louvain podido atribuir a seus encantos a assiduidade de seu vizinho, e um resto de vaidade feminina contribuiu talvez para aumentar-lhe o maior humor que ressentiu com a volta de Dolores para sua companhia.

Houve evidentemente em seu espírito uma luta, em que sucumbiu a vaidade, dando lugar a outros cálculos. Tornou-se mais razoável, e formulou ideias relativamente a um futuro pacto. Parecia-lhe muito natural exigir do pretendente uma indemnização dos gastos que fizera em dinheiro e sensibilidade para a educação de sua sobrinha.

Não era o cavaleiro Banco destituído dos bens da fortuna; assim o fazia supor a abastança com que vivia, quer na cidade, quer no campo. Inculcava-se admirador apaixonadíssimo da arte, e admirador da beleza plástica. Era oficioso amigo dos artistas celebres, e o protetor dos juvenis talentos, que ordinariamente explorava em seu proveito. Tinha por esse meio sua casa de Bellevue adornada com os mais sedutores espécimes das belezas da arte, que aos encantos do espírito e qualidade do coração; mas julgava sem dúvida uma glória possuir o tesouro que havia descoberto.

Figurava-se-lhe o efeito que faria no mundo artístico o aparecimento de Dolores, iluminando seus salões com o brilho de sua maravilhosa beleza; e que satisfação teria se ouvisse na sociedade perguntar-se: quem é este novo astro?!... e se igualmente ouvisse responder: é a jovem esposa do cavaleiro Banco.

Pensava que haveria talvez um seguro meio de ser procurado, e de chegar a tudo com um pouco de habilidade, no prestigio de uma tal beleza.

A Sra. de Louvain, como o dissemos, conhecia o valor da realização desse desejo, e entendia que era de toda justiça lucrar na transação.

Começavam esses dous personagens a entenderem-se mutuamente, e poder-se-ia prever que começaria em breve o jogo em que a pobre Dolores seria a parada.

Quem ousaria afirmar-nos que em minutos casamentos da melhor classe da sociedade a questão de mais peso não é a do dinheiro?

No vislumbre de consciência que ainda possui não achava a Sra. de Louvain o menor escrúpulo em dispor assim do futuro de sua sobrinha: julgava proporcionar-lhe um brilhante amparo, para agradecimento do qual aceitaria, em caso de necessidade, uma recompensa.

Estava pois a sagaz de Dolores satisfeita de ter uma ocasião de apresentar sua sobrinha diante de uma numerosa assembleia, para atribular deste modo o cavaleiro Banco, e obrigá-lo a declarar suas intenções, em vez de cifrar-se em improdutivas e estéreis admirações.

VIII

A COLETORA.

Não asseverámos já que é sempre bela uma mãe quando aperta em seus braços seu filho: Diremos mais. Que uma pobre igreja é sempre bela quando tem seus filhos reunidos sob suas arruinadas abobadas.

É sobretudo quando a Igreja celebra as festas da caridade que tem uma beleza inteligível, até para o menos perspicaz. A fé vacilante liga-se a esse símbolo de amor. Os que ainda não esclareceu a verdadeira luz tornam-se nesse dia fieis convictos, ao tempo que o coração vai-se-lhe abrindo à verdade.

A pequena igreja de Sèvres, que, devemos dizê-lo, não pode aspirar a ser classifica entre os monumentos históricos, nem por seu caráter, nem pelos detalhes de sua arquitetura, estava radiante nesse dia de domingo consagrado a uma boa obra. Tudo nela tomava uma significação compreensível.

Achava-se com efeito na entrada do coro o bando das órfãs abandonadas que haviam sido reunidas e abrigadas por alguma das jovens irmãs da caridade.

Por um prodígio da vontade foram essas meninas decentemente vestidas para essa circunstância; as mulheres porém, que as haviam adoptado, eram demasiadamente pobres para poderem proteger e alimentar suas pequenas disciplinas. Possuindo unicamente o coração, que haviam dado à sua juvenil família, esperavam confiadamente pelo pão do dia seguinte.

Nada nos parece mais tocante, ou digamos melhor, nada mais arrebatador do que esse milagre do amor incessantemente renovado sob nossos olhos.

Essas jovens mulheres de rosto calmo e encantador renunciaram a todos os gozos deste mundo! Educadas para o amor místico, acima de todos os interesses humanos, não se refugiam no quietismo do claustro. Preferem sofrer. Querem amar e socorrer os que sofrem. Se deram a Deus sua alma, seus braços, sua vida e coração pertencem aos desgraçados.

Aos que não é dado chegar a essa perfeição, os que são retidos pela servidão do mundo, sentem-se abalados por esse admirável quadro e inebriados pelo subtil perfume que exala o puro cálice dessa flor que desabrochou no solo cristão, é que se chama caridade.

Cumpre desculpar esta digressão que suspendeu o curso da nossa história.

É um privilégio de que por vezes abusa o narrador. Ao ver porém o interesse com que eram olhadas essas infelizes crianças, pode supor-se que eram essas as reflexões de uma parte dos assistentes.

Antes da hora da missa achava-se na igreja uma brilhante reunião de pessoas, que tinham vindo de todas as casas circunvizinhas por convites especiais. Os retardatários não achando mais lugar formavam grupos vestíbulo.

Começou o santo sacrifício. O talento dos cantores, cumpre confessá-lo, estava aquém da altura da cerimônia.

O auditório achou ampla compensação da estridente voz do fagote, que acompanhava o cantochão, na exata e expressiva execução de Dolores, que parecia gemer e implorar pelos desgraçados, cuja miséria devia comovê-la mais que aos outros. Nunca as modestas abobadas da pequena igreja haviam sido abaladas por tão verdadeiros e inteligíveis acentos.

Lamentamos por mais de uma vez em nossas lindas igrejas que os artistas que aí exibem seu talento musical se elevem por vezes a tal altura que os fiéis os não possam acompanhar.

O bom pastor havia preparado o caminho para a linda esmolar, a qual, conduzida pelo adjunto, adiantou-se precedida do porteiro com grande penacho, e seguida em distância pelo sacristão adornado com uma sotaina bipartida, preta e encarnada.

Defendendo-se da influência de sua tia, havia Dolores podido obter um vestido isento de exagerações, e convenientemente feito. Seu esbelto talhe, seu pisar graciosa, e sua incomparável beleza, tornarão a mais de um fiel culpado de distração.

Era essa a parte mais constrangedora de sua tarefa que Dolores começava. A fixidade dos olhares perscrutadores que sobre ela se fixavam não a tranquilizava. Algumas senhoras, para contemplarem por mais tempo essa doce fisionomia, essa beleza de aureola de ouro, afetavam não achar a moeda que procuravam, e depunham-na depois pausadamente na bolsa, dirigindo à moça um sorriso de simpática.

Quanto à Sra. Paintendre, estava tão comovida, que deixou cair o dinheiro, e desapareceu por baixo das cadeiras para procurá-lo, enquanto passava a linda coletora.

Dolores, um pouco deslumbrada por tão numerosa assembleia, confusa pelas meias palavras que em torno de si ouvia, e fatigada de passar no estreito caminho que lhe estava traçado, seguia maquinalmente o porteiro de brilhante trajo, e pagava com um agradecimento cada óbolo que caía em sua bolsa de veludo.

A Sra. de Louvain, em trajo de cerimônia, sentava-se na mesa do recebimento, onde causava, a seu grande aprazimento, todo o efeito que previra. Quando Dolores adiantou-se, respeitosamente, para apresentar lhe a bolsa, parecia-lhe ouvir dizer por todos os olhares: “é a mãe dessa linda menina; ou ainda mais, é sua benfeitora, a que teve cuidado da menina abandonada e a tornou uma moça completa”.

A esmola passou: e a pouca distância dali achou-se em frente de uma moça que entrevimos no começo desta história. Era Matilde de Hauterive, que achando-se com sua mãe na chácara de Chaville, tinha vindo assistir à cerimônia, por convite de seu tio.

— Que feliz encontro, disse Matilde em voz baixa e apertando a mão de Dolores. Nossas chácaras estão próximas, nós nos veremos.

— O tio de Matilde tendo na mão uma moeda de ouro levantou a cabeça, e reconheceu a esmola, que sua má vista lhe impedira de ver, e cujo aspecto o tocara de admiração, no primeiro encontro que com ela tivera, na distribuição dos prêmios.

— Desculpai-me, senhora, disse ele, eu me enganei; e tirando da carteira um bilhete do banco envolveu nele a moeda que devia ser a sua primeira oferenda.

— Vedes? disse em voz baixa a Dolores o adjunto que lhe dava a mão; o senhor coadjutor bem o havia previsto, vós mudais o cobre em ouro.

Esse encontro serviu para aumentar a perturbação de Dolores. Parecia-lhe que a oblata encerrava alguma cousa que a ela diretamente se dirigia, pois que tão altamente se lhe modificara o valor ao reconhecer-se a coletora.

Como se tratava porém de uma obra de caridade, só quis ver nisto um sinal de simpatia da parte do companheiro de sua amiga. Pensou repetidas vezes em sua bondade paternal e profunda piedade. Os que sofrem carecem tanto de consolação que lhes basta um bom olhar e uma boa palavra para atraí-los e comovê-los.

Exprobrava-se de fazer reflexões tão pessoais, em vez de pensar unicamente na obra de caridade que lhe estava confiada.

Acabada sua tarefa desapareceu, e na última parte da cerimônia só se ouviu a voz do órgão, cujas ações de graças assemelhavam-se ao concerto dos anjos; enquanto que os jovens acólitos balançavam o turíbulo diante do tabernáculo, iluminado por feixes de luzes.

A multidão escoou-se depois, e os trens desfilaram ruidosamente em todas as direções. As caridosas irmãs, e suas protegidas, esperavam na saída a coletora, que se conservara em distância, e reuniram-se-lhe em torno.

Voltando Dolores para casa, acompanhada por sua tia, consolava-se da empresa, lembrando-se do feliz encontro que tivera, e considerando que o primeiro emprego que fizera de seu pouco saber fora em proveito das pobres crianças, cuja miséria a sensibilizava profundamente, pois era a sua própria miséria.

Foi Crucifixo porém a que esteve mais orgulhosa de seu dia. Não que estivesse mais expansiva que do costume, mas é que rejeitando a louca preta pavoneara se nesse dia com uma branca, o que nela era muito significativo. Seguia em distância sua ama carregando os livros da missa e endereçando aos que encontrava um triunfante olhar, no qual parecia dizer: “eis como nós somos e como executamos a música”.

IX

A ÓRFÃ

Fora o Sr. Prieur vivamente tocado pela graça, beleza e talentos de Dolores. Teve, cumpre confessá-lo, mais de uma distração durante a cerimônia; como lhe despertassem porém só ideias de caridade não tinha remorsos delas.

Menos profunda houvera sido a impressão que Dolores lhe causara, se através dessa grande beleza não houvesse lobrigado em seu olhar e conjunto os mais elevados sentimentos. Não que sob a impressão de um primeiro olhar houvesse resolvido encher de favores da fortuna a órfão que tanto lhe gabara sua sobrinha, mas é que dotado de uma alma generosa conhecia-se inábil para a caridade, e parecia-lhe que o bem que desejava derramar teria um decuplo valor se fossem as mãos, voz e sorriso de Dolores que o dispensassem.

Figurava-se-lhe que radiante aparição seria Dolores junto ao leito dos desgraçados, quando lhes prodigalizasse, qual bom anjo, socorros e consolações em seu nome.

A caridade é uma arte; os que sofrem são por vezes susceptíveis, irritáveis e injustos. Cumpre tocar-lhes as chagas com mão extremamente delicada; é o que por vezes esqueceram benfeitores animados das melhores intenções. “Livra-me antes do perigo.

E arengar-me-ás depois, amigo”.

       Estava o Sr. Prieur persuadido de que o olhar e o sorriso de Dolores seriam a mais doce e persuasiva arenga.

Estaria acaso o tio de Matilde dominado pelo prestigio de uma ilusão, ou seria Dolores verdadeiramente digna de ser a encantadora ministra de sua caridade? É o que apressou-se em verificar; salvo aparecerem mais tarde dificuldades que se opusessem à realização de seus projetos.

Como não podia dirigir-se à Sra. de Louvain, pareceu-lhe que a mestra de Dolores estaria habilitada para dar-lhe as mais completas informações.

Receberam-no com todas as atenções devidas ao tio de Matilde de Hauterive, e deram-lhe relativamente a Dolores os mais edificantes e lisonjeiros testemunhos. A diretora do estabelecimento exprimiu-lhe o desejo que nutria de reter sua educanda junto de si, e prover a seu futuro, se acaso um dia fosse livre em suas ações. Foi igualmente nessa fonte que o Sr. Prieur colheu a narração das desgraças que afligiram a família de sua jovem protegida.

Ela nascera na Martinica, onde tinham ido seus pais em busca de fortuna. Não contava ainda um ano quando morrera seu pai, acabrunhado pela dor que lhe causara a sua ruina; pois é em casos tais que as dores do dinheiro são dores do coração. Deixava sem meio algum sua mulher e a filha, que ela ainda amamentava.

Morto seu marido, resolveu a mãe de Dolores abandonar imediatamente a ilha em que fora tão infeliz. Os fracos meios de que dispunha empregou-os em pagar a passagem. Contava achar socorros na família de seu marido, do qual nesse caso seguia as últimas instruções.

O que mais afligia a pobre senhora era julgar-se a causa principal da sua desgraça. Fora ela que induzira seu marido a ir buscar a fortuna além dos mares; ao que ele penosamente se prestara. Exprobrava-se de ter aspirado a mais do que à áurea mediocridade de que gozava em seu país.

Durante a viagem apertava de encontro a seu peito a inocente criatura, mas seu leite desaparecera com os sofrimentos; ela caiu doente. Os passageiros e a equipagem interessavam-se vivamente pelos seus males, sem que em nada a pudessem aliviar; pois não há remédio para o desespero.

Chegou enfim um dia fatal! Um dia de luto! O capitão, homem bom e generoso, exprimia sua dor por toda sorte de imprecações.

— Eis uma linda missão, dizia ele, em linguagem que obrigadamente adoçamos; e tão fácil como pôr um anel no dedo, fazer viajar a mãe e a filha! Nós lançaremos a mãe ao mar, mas a filha quem se encarregará? Quanto a mim, tenho mais que fazer, acrescentava ele tomando a mimosa Dolores em seus braços e beijando-a enternecido. Eu não sou ama seca.

— Pois dai-ma, disse-lhe uma irmã de caridade que voltava à França por ordem de sua superiora.

— Chamava-se a boa mulher irmã Marcela; em vão ela prodigalizara à infeliz mãe mil cuidados até seu último momento.

— Sei que não vo-la devo recomendar, disse-lhe o capitão, a cada qual pertence seu ofício. Não pode estar melhor que em vossas mãos. Agora, vou dar-vos todas as informações que pude obter da infeliz senhora, pois eu já antevia este fatal desfecho. Tomai, aqui tendes o endereço de seu cunhado, a quem deveis entregar a menina mais feliz em ter a sorte de sua mãe, do que em sobreviver-lhe. Mas não, acrescentou ele, arrependendo-se do mau pensamento que tivera e olhando para a inocente; fora uma lastima se morresse; é tão bonita.

— Por que duvidais da Providencia? Perguntou a irmã Marcela recebendo a linda e infeliz menina. Talvez que Deus reserve para ela todas as suas bênçãos.

— Deus vos ouça, e me perdoe, irmã, disse o capitão descobrindo-se com humildade e fitando respeitosamente o céu.

Nessas palavras e ato mostrou que o sentimento religioso domina nos corações intrépidos.

Feitas as orações do costume, e coberto o esquife com uma vela branca, foi o corpo entregue ás vagas, que ao recebê-lo jorraram de sobre o abismo líquidas gavelas de pérolas.

Exígua foi a soma do dinheiro encontrado na bagagem da defunta. Os passageiros cotizaram-se e o produto foi entregue à irmã Marcela para com ele prover ás primeiras necessidades da menina, logo que chegasse à França.

O Sr. de Louvain, que nessa época habitava Paris, recebeu em um dia uma carta vinda de Bordéus e assignada por uma religiosa. Dava-lhe ela os tristes pormenores que acabamos de narrar, e dizia-lhe que não podendo ir a Paris punha a inocente à sua disposição.

Não tinha o Sr. de Louvain podido dissuadir a seu irmão dessa fatal viagem, mas nem por isso perdera-lhe a afeição. Aceitou pois sem hesitação a herança da desgraça, e foi buscar pessoalmente a infeliz menina, que cercou de mil cuidados durante sua vida, e recomendou-a aos de sua mulher na hora do passamento. Já vimos como sua viúva, a Sra. de Louvain respeitava as recomendações de seu marido.

A irmã Marcela viera repetidas vezes a Paris, e nelas visitara sempre a sua protegida. Foi por ela que soubera a educadora de Dolores de todas estas circunstancias.

A narração desses infortúnios ainda mais cativou o Sr. Prieur. Como ele ganhara seus haveres afrontando os perigos do mar parecia-lhe que devia uma compensação à vítima do perdido elemento. A afeição que a mestra consagrava à sua discípula era para ele uma poderosa recomendação. Entregou-se pois sem reserva à simpatia que o arrastava para Dolores, e resolveu fazê-la a ministra de suas boas obras. Traduzido por Paulina Philadelphia.

X

O CONVITE

Voltamos à austera e sombria habitação de Sèvres, onde após passageiras agitações reina uma aparente calma. A Sra. de Louvain, querendo ser amável para com sua sobrinha, dignava-se de elogiar-lhe sua música e seus triunfos. Inquietava-se Dolores com essa insólita amabilidade, pois notara que tais alterações no caráter de sua tia eram sempre precursoras de grandes tempestades. Esmerou-se em não dar suas palavras lugar a novas repreensões, ou diremos ainda melhor, em ser uma plácida ouvinte; único meio de ser poupada.

A não assistência do cavaleiro Banco a festa da caridade tranquilizara sobremodo a Dolores, que temeis ser por ele conduzida na ocasião da coleta. A ideia de dar publicamente a mão ao homem cujas assiduidades a fatigavam, e cujo silencio era-lhe ainda ofensivo, causava-lhe uma inexplicável aflição; facilitava-se pois de haver escapado de uma crise que tornaria quiçá decisiva sua obstinada recusa. Não se iludia porém prevendo nas insinuações da Sra. de Louvain que brevemente seria essa questão discutida.

Com efeito, em um dia que ambas se achavam na sala, ocupadas em trabalhos de agulha, estabeleceu-se o seguinte diálogo:

— Sabeis, Laura, disse a Sra. de Louvain largando o bordado que tinha entre as mãos, que fostes mais perspicaz do que eu?

— Não sei a que vos referis, minha tia.

— Sabei-lo tanto como eu; adivinhastes que o cavaleiro Banco tinha inclinação por vós, quando eu ainda o não queria crer.

— E por que o credes agora?

— Por quê? e ainda mo perguntais, menina? pois não é isso claro como a luz do dia? Não notais seu ar aflito e a consternação de que está possuindo desde que o trataste com glacial frieza? Houvestes-vos tão bem para com ele que a afastastes daqui, privando-me assim de um dos meus melhores amigos.

— Não ignorais, minha tia, que sou pobre de mais para pensar em casamento, e mesmo quando isso fosse possível, fora preciso...

— Vejamos, o que é que vos seria preciso? pois já vejo que quereis impor condições.

— Fora preciso, respondeu Dolores timidamente, que houvesse entre nós conveniências de idade, de sentimentos e de posição; e nada disto existe.

— Concordo nisso, se vos parece que podeis escolher; mas não vos iludais, e crede que são raríssimas as pessoas desinteressadas. Os pretendentes que aparecerem perguntarão, logo após o pedido, quanto tendes de dote; e bem sabeis, minha cara, que é facílimo fazer-se a conta. O cavaleiro nada pergunta; esse facto merece consideração.

— Mas, minha tia….

— Não vos defendais nem coreis, minha filha, não há aqui constrangimento; admitireis da minha parte o maior desinteresse, ou por outra, que não tenho outro além do de vossa felicidade.

— Não duvido, minha tia, mas ainda sou tão moça.... vós mesma no outro dia o disseste. Não posso tomar ao sério os comprimentos que o cavaleiro divertia-se em prodigalizar-me e de que hoje se abastem.

— Não falemos mais nisso, disse a Sra. de Louvain com ar agastado: desejara oferecer-vos cousa melhor. Temo que vos não hajam voltado a cabeça os triunfos que obtivestes no lindo papel de coletora que tão bem desempenhastes.

Dolores quis responder que fora mão grado seu e para obedecer-lhe que cedera ás instancias do coadjutor. Acertou porém em guardar um silencio que algumas visitas vieram felizmente interromper, e que começava a ser um tácito protesto.

Era o Sr. Cura, que vinha pessoalmente agradecer à Sra. de Louvain e à sua sobrinha o obsequio que lhes haviam feito. Seguiu-se-lhe a superiora das religiosas, cuja visita tinha um igual fim. Pouco depois soou de novo a campainha, e Crucifixo anunciou a chegada de Matilde de Hauterive e seu tio o Sr. Prieur.

Entre dous sorrisos olhou a Sra. de Louvain para Dolores com uma expressão que parecia dizer-lhe: estou reduzida a receber vossos amigos ao passo que vejo-me, por vossa causa, privada de ver os meus!

O Sr. Prieur, cuja perspicácia tudo adivinhara, afetou não compreender essa má vontade, e disse-lhe:

— Senhora, minha irmã, cuja saúde impede de sair, manda-vos cumprimentar por meu intermédio, e remeter esta carta. Ha dias tivemos a ventura de assistir a uma cerimônia cuja alma foi vossa sobrinha, ou ainda melhor, vossa filha. Minha sobrinha encontrou ali felizmente sua amiga do colégio, de quem magoadamente se apartara. Ousamos esperar que, cedendo ás instancias de minha irmã, lhe fareis a honra de passardes um dia em sua quinta de Chaville com vossa sobrinha.

— Senhor, respondeu-lhe friamente a Sra. de Louvain, penhora-me profundamente a delicadeza da senhora vossa irmã, mas a reclusão em que vivo e minha saúde exigem inumerosos cuidados, e por isso temo a fadiga; peço vos pois que vos encarregueis de agradecer-lhe em meu nome o seu gracioso convite e de desculpar-me para com ela.

Dolores, que estava sentada ao pé de sua amiga, disse-lhe num olhar: bem to havia dito, nada devemos esperar. Matilde, que compreendera essa negociação, e que não obstante a fraqueza física de que era dotada possuía uma resolução que não admitia meios resultados, nem contrariedade a seus menores desejos, pelo habito em que estava de vê-los sempre satisfeita, não saiu da arena por tão fútil motivo.

— Senhora, disse ela por sua vez, não obstante o pesar que nos causa vossa recusa, não ousamos insistir, receosos de importunar-vos; mas, se nos privais do jubilo que teríamos em possuir-vos, concedei-nos então Dolores. Minha mãe viu-a muitas vezes no colégio, e deveis estar lembrada que já tivestes a bondade de mola confiar uma vez.

Ardentemente desejava a Sra. de Louvain afirmar que sua sobrinha nunca a deixara e que a não podia entregar aos estranhos; mas o cura deu-lhe o último golpe tomando a palavra e dizendo-lhe cheio de bondade:

— Minha cara senhora, esta linda menina fez tanto pelas nossas orfãzinhas, que corre-me a obrigação de voar em seu socorro pois fácil é de adivinhar-se por seus olhos que arde em desejos de passar um dia entre os verdores do campo; não é assim, minha boa Dolores?

— Eu obedecerei à minha tia, respondeu a moça suspirando.

— Isso não é responder, exclamou o cura; mas nós vos compreendemos com meias palavras... Eia, senhora, deixai-vos omover; não a poderíeis entregar em melhores mãos.

A religiosa veio apoiar o pedido do cura. A Sra. de Louvain houvera desmanchado o papel de terna mãe resolvera representar se por mais tempo resistisse. Lamentava não poder retirar os motivos que dera para não aceitar o convite.

Cedeu pois com visível mau humor por ver quão facilmente desistiam de sua presença.

— Já que assim o quereis, disse ela dirigindo-se ao Sr. Prieur, tende a bondade de dizer-me: para que dia é o convite?

— Por que não será hoje? Exclamou alegremente Matilde, temendo algum contratempo. Vem Dolores, tua tia cede a nosso desejo.

Ela arrastava sua amiga pela mão, mas Dolores consultou com um olhar sua tia e pediu-lhe licença para ir mudar o vestido e por um chapéu.

— Tendes uma encantadora menina, disse o Sr. Prieur à Sra. de Louvain, usando do privilegio que sua idade parecia dar-lhe.

— É um verdadeiro peso para mim, replicou ela, mas terei constância até o fim da minha tarefa. Esta menina não é de minha família, como se poderia crer: é uma sobrinha de meu marido que eu quis arrancar da miséria...

Dolores entrou radiante na sala e interrompeu sem o saber uma confidencia bem pouco generosa. Trajava um vestido cor de rosa e um chapéu próprio para um passeio campestre, o que a tornava completamente linda. Foi apertar a mão de sua tia com sinais de gratidão.

— Não me abraçais, minha filha? disse-lhe a Sra. de Louvain.

Repugnava a Dolores representar essa comedia aos olhos dos espectadores. Apresentou todavia a testa para nela receber o osculo de sua terna mãe.

— A que hora deverei mandá-la buscar? Perguntou a Sra. de Louvain.

— Não vos daremos esse trabalho, disse o Sr. Prieur, nós teremos a honra de vo-la trazer: só temos um quarto de hora de caminho vindo de carro.

— É desnecessário recommendar-vo-la, disse a tia Dolores com afetada ternura.

— Velaremos sobre ela como sobre uma filha, respondeu o Sr. Prieu.

Matilde fez iguais promessas de vigilância, e mostrando-se sumamente agradecida saiu apertando as mãos de Dolores, que se não considerava inteiramente feliz prevendo que podia sair-lhe cara essa forçada concessão.

Se tivesse surpreendido o último olhar de sua tia talvez que houvesse renunciado ao prazer que esse passeio prometia.

XI

UM LINDO DIA

Como a mocidade esquece prontamente!!... O pesar é pouco natural nessa idade em que tudo são flores, primavera e luz. Um raio de sol, ou um sorriso de amizade, basta para secar num rosto juvenil o mais sentido pranto. Dolores tinha mágoas: não lhe concedera Deus as doçuras da família; vivia sob o jugo de uma tia cuja afeição era por demais duvidosa e cujos projetos a seu respeito começavam a inquietá-la. Como pôde sob tão inóspito teto desenvolver-se tão bela natureza? Era qual lírio dos Alpes florescendo sobre áridos rochedos: nada devendo à terra e recebendo dos etéreos espaços a substancia e o brilho.

Ao achar-se Dolores no carro que a devia conduzir a seu destino experimentou um salutar alívio. Não lhe ocorreu que soaria em breve a hora do regresso. Respirava sofregamente as livres ondas do ar que lhe beijava o rosto e afagava seus dourados cabelos. Matilde segurava-lhe a mão contemplando-a cheia de felicidade. Em seu magro e doentio rosto brilhava quase um raio da beleza de Dolores.

— Querida, lhe dizia ela, nós te raptamos, és nossa por todo este dia. Pudéssemos viver juntas como duas irmãs! Como velarias por mim até meu último momento! Asseguro-te que ele não se fará esperar, disse a moça pondo a mão sobre o coração que apressadamente batia.

— És muito cruel, disse o Sr. Prieur a sua sobrinha: podes falar assim? Queres afligir tua amiga no único dia que ela te pode consagrar?

— Perdão, exclamou Matilde, eu não repetirei o que acabo de dizer! Quis tornar-me interessante e provar a Dolores que a não posso dispensar.

— Minha querida, respondeu Dolores, eu te amaria tanto, e velaria sobre ti de modo tal que acharias em breve restabelecida; não sonhemos porém com tanta felicidade. Sou prisioneira; posso acaso aspirar a libertar-me? Fora esquecer tudo o que minha tia fez por mim. Procurarei obter suas boas graças à força de humildade para com ela; por ora gozemos dos curtíssimos momentos que nos foram concedidos.

— Aprovo o que dizeis, interrompeu o Sr. Prieur, e não vai errado quem segue por essa trilha. O futuro vos recompensará; mas por hoje, apreciando este belo céu e linda campina, não penseis senão nos amigos que estão felizes de vos possuir.

De há muito que o carro deixara a monótona rua de Sèvres. Tomou à esquerda, e passando por baixo de um viaduto subiu a ladeira que conduz aos acidentados e pitorescos bosques de Chaville.

A terna amizade de Matilde, a voz doce e simpática de seu tio, junto a beleza do tempo, diversidade de objetos, grata liberdade e o canto dos pássaros que passavam: tudo encantava a jovem prisioneira e dava a seu rosto uma expressão de serenidade e segurança que lhe não era habitual.

A casa da Sra. de Hauterive estava habilmente colocada junto à aba dos bosques e o jardim descia com suave pendor até o fundo do vale que mais se alargava à medida que se afastava de Sèvres.

Os arrabaldes de Paris são dos mais favorecidos. Para serem porém devidamente apreciados deverão estar mais afastados de nós. Das alturas de Chaville descortinam-se prados, bosques, e o vasto cinto do parque de Saint-Cloud; por um intervalo que há no fundo do vale descobrem-se quase que os limites da grande cidade, cujas armas são de um baixel que parece flutuar no horizonte em um mar azulado.

Achava-se a Sra. de Hauterive em um pequeno jardim que separava a casa da estrada. Levantou-se custosamente, em consequência da longa enfermidade que sofrera, e fez a Dolores um maternal acolhimento.

— Minha filha, disse ela, desejara ter ido visitar a vossa tia, talvez que assim a resolvesse a acompanhar-vos. Matilde, nossa menina querida, já não podia estar sem vós; ela desejaria ter-vos sempre a seu lado. Consagrai-lhe ao menos este dia enquanto esperamos por cousa melhor. Meu irmão fará as minhas vezes mostrando-vos o parque, ou antes o jardim, onde já encontrareis companheiras, pois se todas as meninas da vizinhança tornaram-se amigas de Matilde. Deixou-vos a liberdade até a hora do jantar.

Dolores manifestou-lhe quanto era grata a tão amigável acolhimento, e foi para o jardim, onde encontrou reunidas muitas meninas e moças que folgavam alegremente sobre a relva. Era um quadro encantador de ver-se.

A infância tem o instinto da beleza que a atrai para as belas e excepcionais naturezas. Segurava Dolores as mãos de duas das meninas, que já a não queriam deixar.

Em breve juntou-se o Sr. Prieur ao alegre bando. Tinha um livro na mão, mas não o lia atentamente; olhava com interesse para Dolores, cuja esbelta estatura dominava o grupo, parecendo uma jovem mãe de sua pequena família. Logo que as meninas perceberão o Sr. Prieur pediram-lhe que lhes contasse uma das lindas histórias que sabia. Sem muito fazer-se rogar sentou-se debaixo de umas arvores, cercando-se do alegre bando. Dolores tinha ao pé de si as duas inseparáveis.

Era formoso o aspecto de todos esses grandes e límpidos olhos fixados no narrador, como se lhes houvessem querido roubar as palavras que ia proferir ao contar-lhes a história sempre nova do Príncipe encantado.

Não foi Dolores a que achou menos graça nesse lindo conto; ela amoldava-se ao gosto de suas companheiras com toda a candidez da infância.

O encanto da varinha que transformou o monstro em lindo príncipe no momento em que a moça da história consentia em ser esposa, para salvar a seu pai, foi devidamente apreciado. Numerosos aplausos compensaram o Sr. Prieur do trabalho que tivera em diverti-las.

— O que acabais de contar, meu tio, é bom para as crianças, mas para nós, que somos grandes, devereis ler-nos alguma daquelas bonitas poesias que tendes em vosso livro.

— Talvez que vossa amiga não goste de poesias, respondeu ele.

— Nós a ouviremos com prazer, disse Dolores, porque confiamos em que sabereis escolher.

— Tendes razão, respondeu o Sr. Prieur, pois de há muito que os poetas fazem-nos duvidar da verdadeira poesia, é preciso escolher; creio porém que vos agradarão os versos que se oferecem a meus olhos nesta página.

As crianças, vendo que nada as divertiria no que se ia ler, dispersaram logo que o Sr. Prieur abriu o livro e se pôs a ler uma poesia intitulada Versos dourados.

Esta poesia, lida com a devida expressão, deu lugar a uma séria conversa sobre os deveres, o destino e mil outras cousas.

Com admiração ouvia o Sr. Prieur as reflexões feitas por Dolores, em assumpto que parecia não estar a seu alcance ainda. A desgraça é grande mestra de ideias e reflexões, e a pobre moça fora educada nessa escola.

O tio de Matilde não quis porém reter a mocidade sob tão graves reflexões. Num quiosque pitoresco achava-se um piano; enquanto dava o Sr. Prieur os primeiros prelúdios, Matilde e Dolores trouxeram docemente para ali a Sra. de Hauterive e aposentaram-na numa poltrona de relva.

Começou então o Sr. Prieur a tocar uma tarantela, cujo alegre andamento pôs em dança todo o bando juvenil. Dolores tomou parte nesse folguedo, que só terminou quando as meninas, por extremamente cansadas, se deixaram cair sobre a relva.

Essas lindas meninas, essas moças, flores vivas e volitantes sobre as flores do campo, essa alegre música e a decoração de verdura que se via, formavam um admirável conjunto.

Pediram a Dolores que tocasse por sua vez. Ela começou uma valsa tão provocadora, que o Sr. Prieur, aproveitando-se da liberdade do campo, tomou uma das moças pela mão e pôs-se com ela a valsar em movimento rápido.

— Meu irmão, disse a Sra. de Hauterive, esqueceis a vossa idade; quando é que tereis juízo se ainda não vo-lo deram esses cabelos brancos?

Tão justa era essa observação, que contentou-se o Sr. Prieur em reparar os estragos que a rapidez da valsa produzira em seus cabelos.

Variaram-se depois as distrações: visitarão a gruta em que havia uma nascente d`água férrea, brilhante qual prata liquida. Se essa água salutar existisse longe e bem longe nossos médicos mandariam para lá todos os doentes que já se não pudessem mexer. Esse manancial alimenta um pequeno regato que é retido por mil tortuosidade no pendor do jardim para impedi-lo de chegar rapidamente ao fim do vale de Sèvres.

Dolores estava encantada, mas não apreciava o que viu como uma colegial em férias, outra cousa a preocupava. O que sobretudo a impressionava era o encanto dessa família onde houvera achado talvez uma mãe, uma irmã, e quiçá um pai disposto a amá-la. Tinha a felicidade ante seus olhos e lhe não era dado possuí-la; não era livre. Em algumas horas ia achar-se encarcerada na estreita casa de Sèvres, onde, excetuando a sincera simpatia de Crucifixo, não podia contar com mais nenhum benévolo sentimento para com ela.

Era tão lindo o dia que se não puderam decidir a entrada em casa, e por isso jantaram no jardim, junto ao sussurro da fonte; estava a mesa coberta de flores, e pássaros familiares misturavam-se aos convivas. Os corações e a natureza improvisam festas completas e encantadoras; a esta nada faltava.

Dolores estava junto de sua amiga, e o Sr. Prieur esquecia o peso dos anos em sua alegre amabilidade. Regozijava-se da feliz familiaridade que sua idade lhe proporcionava, e dela se aproveitava para fraternizar com os que eram moços.

— É pena, disse ele, que já decline o dia, que mais rápido passou do que devia. Armamos um laço para prendermos um raio do sol, mas ele nos escapa.

A perspectiva da separação sombreava com efeito o declinar do dia. Projetaram reunirem-se o maior número de vezes que fosse possível sem desagradar à Sra. de Louvain. Ao anunciar o criado que o carro estava pronto, Matilde, não obstante sua débil saúde, quis reconduzir sua amiga juntamente com seu tio.

Dolores fora tão simples e familiar, que já a consideravam como da família. A Sra. de Hauterive ao despedir-se dela disse-lhe que esperava vê-la de novo brevemente.

Quando chegavam ao viaduto do caminho de ferro espantaram-se os cavalos com o sibilo e a chama que saía de uma locomotiva que arrastava o trem com grande velocidade; perturbou-se o cocheiro e abandonou o carro a uma desenfreada carreira.

— Não vos assusteis, disse o Sr. Prieur ás duas moças, e sobretudo não tenteis sair daqui.

Esperou um momento favorável, e calculando com matemática precisão o impulso conveniente, saltou ligeiro ao chão e conseguiu apossar-se das rédeas que o cocheiro abandonara.

Depois de haver retido e acalmado os cavalos entrou ligeiro no carro, e sentou-se ao lado das duas moças, que lhe exprobraram, extremamente comovidas, a imprudência que cometera. Ele tranquilizou-as dizendo-lhes que nada era mais simples do que o que acabava de fazer, e explicou-lhes então a teoria da agilidade adquirida, que trata-se de não a contrariar para evitar-se uma queda.

Foi esse o assumpto da conversa até chegarem à casa da Sra. de Louvain, que lhes não querendo aparecer fez-lhes constar por Crucifixo que não era visível. Dolores despediu-se de seus amáveis hospedes renovando-lhes seus agradecimentos e recomendando-lhes mais cautela na volta. Traduzido por Paulina Philadelphia

XII

PACTO VERBAL.

Mal saíra Dolores da casa da Sra. de Louvain, que nela entrava o cavaleiro Banco depois de uma curta ausência.

Ficou maravilhado de não encontrar ali o lindo objeto de sua admiração e ambições matrimoniais.

— Chegastes tarde, cavaleiro, disse-lhe a Sra. de Louvain, e se não fordes mais vigilantes raptar-vos-ão vossa heroína.

— Que fizeste de Dolores? perguntou-lhe o velho namorado.

— Acaso me encarregastes de guardá-la? respondeu-lhe a tia de Dolores; alguém mais solicito do que vós veio buscá-la. Foi hoje passar o dia com Matilde de Hauterive e o Sr.: Prieur, que parece-me não desgostar dela; mas tranquilizai-vos; esse sedutor não me parece perigoso.

— Depois do que havíamos combinado não podíeis retê-la? Não tendes autoridade sobre ela?

— Era cousa bem difícil; não pude opor-me, Laura já não é criança, e dia virá em que governar-se-á por si. Meus poderes não são regulares. Se chegarmos a um acordo sobre certos pontos, quem sabe se ela não nos oporá uma resistência invencível?

— Dai-me o vosso consentimento, e eu me encarrego do resto, disse o cavaleiro. Conheceis a minha lealdade; eu sou S. João Boca de ouro. Tenho na sociedade uma honrosa posição, magnificas relações, riqueza suficiente, um bom gosto pouco comum, e creio portar-me como um perfeito cavaleiro pondo tudo quanto possuo aos pés de vossa encantadora sobrinha, pedindo-vos unicamente vosso consentimento, sem exigir de vós o menor sacrifício para o seu dote.

— E não é um sacrifício o separar-me dela, e renunciar ás doçuras de sua companhia, depois de benevolamente ter-lhe prodigalizado meus cuidados em sua infância?

— Compreendo quanto sofrerá com isso o vosso coração, mas ainda quando fosseis sua mãe não deixaria por isso de soar a hora de separação. Se é para mim que formastes esse tesouro compete-me recompensar vossos cuidados.

— É nobre de mais meu coração para que desça a especular com os benefícios que faço, disse a Sra. de Louvain com afetada dignidade. Não exijo nem as somas que despendi para fazer dessa menina uma moça completa.

— Nesse raro desinteresse vejo vossa delicadeza; mas permitir-me-eis poder-vos oferecer um pequeno testemunho de minha gratidão.

— Calai-vos, cavaleiros, o mundo é tão mão! Olhai, nós cuidamos nos interesses dessa querida menina. Eu posso morrer e não quero que ela fique sem arrimo. Recuso vossa generosa oferta, aceitando unicamente uma indemnização pelos meus cuidados; pois tudo isso pode ser mal interpretado; cumpre-nos sermos cautelosos.

— Por certo, disse o cavaleiro, só os nobres corações é que vos poderiam compreender, pois que o vulgo é incapaz de apreciar os vossos sentimentos. Que diríeis vos se eu deixasse um contrato em vossas mãos?

A Sra. de Louvain, nunca esquecendo seus interesses, ainda não descera bastante para aceitar um documento de tão gravosa demonstração para sua consciência.

— Dispenso vossa escritura e vossa palavra, disse ela com fingida indignação; ainda não possuis vossa heroína; ainda é preciso que lhe agradeis: e não serei eu que obrigue a isso essa querida menina.

— Só vos peço que sejais neutra neste negócio e me deixeis guiá-lo por mim só. Não podeis recusar-me de aceitar o convite que vos faço de passar um dia com vossa linda sobrinha na cabana suíça que tenho em Bellevue. Hei de receber qualquer destes dias uma brilhante sociedade em minha casa, julgar-me-ei feliz se vos puder apresentar a ela.

— Não é isso tão fácil como pensais. Não conheceis ainda aquela cabecinha? É capaz de fazer-nos algum escândalo.

— E por que não irão em vossa companhia algumas pessoas do vosso conhecimento? Isso a tranquilizaria.

— Refletirei sobre isso, disse a Sra. de Louvain cumprimentando o cavaleiro.

Separaram-se as duas personagens depois de haverem concluído com meias palavras o seu pacto verbal.

XIII

A REVELAÇÃO

Não supomos que o leitor creia sinceramente na provecta idade do Sr. Prieur. Não obstante a longa e branca cabeleira de que usa, a bengala de castão de ouro, os óculos azuis, que mal deixam suspeitar seus olhares, e toda a solicitude que despende para envelhecer-se, escapam-lhe por vezes laivos de mocidade que nos podem esclarecer.

Não prolongaremos por mais tempo esta incerteza, e diremos o que tem de ser mais tarde demonstrado, já que o Sr. Prieur é um mau ator, que pouco artisticamente desempenha o seu papel.

Não o vimos acaso tendo na mão um livro de poesias ler versos ás duas moças com todo o acento da mocidade? contar a história do príncipe encantado como para nos advertir que dia virá em que lançando a cabeleira ás ortigas e pondo os óculos em sua caixa se nos apresentará em toda virilidade?

Por que motivo usa o Sr. Prieur desse estratagema de opera cômica?

Devemos a esse respeito algumas breves explicações.

Tem esta aventura alguma cousa de singular e romanesca, e é por isso que merece de ser contada.

Samuel Prieur, irmão da Sra. de Hauterive, é dotado de um espírito aventureiro e empreendedor, nunca pudera sujeitar-se ao estreito círculo do comércio interno. Educado na escola da Inglaterra, tinha altas vistas, e ambições para mais vastos horizontes.

Tendo enviuvado expatriou-se com o filho Heitor, e antecipando a época. Hoje tão próxima, em que nossas relações com a China serão tão fáceis como as que temos com a feira de Beaucaire, fundou em Chandernagor um importante escritório. Inundou o oriente com os produtos franceses; e mandou para Paris diamantes, e sedas suficientes para fartarem o amor do supérfluo, se é que esse amor possa fartar-se. A fortuna acompanhou-o, quer na Europa, quer na Ásia, e uma imensa riqueza premiou sua inteligente coragem.

Dispunha-se a voltar à França para fruir em paz do fruto de seu trabalho, pois que o Francês não tende a colonizar. Espalhamos por todo o mundo o nosso espírito, mas não lhe confiamos nosso pó; olhamos incessantemente para nosso campanário; aspiramos rever a pátria; e é sobre seu seio que queremos morrer, e em seu eterno amplexo repousar. Encontrando dificuldades comerciais na definitiva liquidação da casa Prieur e C., viu-se constrangido a ficar ainda algum tempo.

Insistiu porém para que seu filho partisse sem mais demora, visto dizerem os médicos que não respondiam pela sua vida se por mais tempo se demorasse sob a influência desse maléfico clima.

Com sumo pesar cedeu Heitor ás súplicas de seu pai, que prometia-lhe ir reunir-se a ele em Paris logo que ultimasse seus negócios. Faltou-lhe porém a necessária coragem no momento decisivo. A timidez e repugnância que tinha para contrair novas relações fez-lhe encarar como tarefa acima de suas forças sua entrada no mundo parisiense, que desejara conhecer melhor antes de entregar-se-lhe indefeso. Parecia-lhe que a fortuna de que era possuidor torná-lo-ia o alvo de pretensões e cobiças.

Foi nessa ocasião que seu pai, temendo por sua vida, fez-lhe uma concessão a que podemos chamar fraqueza. Nada sabia negar a esse filho, único objeto de todo o seu afeto.

Heitor, cuja parecença com seu pai era extraordinária, obteve licença de apresentar-se em Paris, na casa de sua família, com o nome de Samuel Prieur. Sua tia, a Sra. de Hauterive, que só o vira em pequeno, não poderia suspeitar da fraude, e demais, tencionava pedir-lhe perdão do seu disfarce no dia em que por qualquer motivo quisesse, ou precisasse lançar longe de si seus supostos cabelos brancos. Encantado desse aventuroso projecto, que muito convinha a seu espírito romanesco e lhe facultava a possibilidade de tudo observar sem arriscar-se, operou contente a sua transformação, os vestígios de uma grave enfermidade, o quase total aniquilamento de suas forças e a alteração de suas feições favoreciam-lhe a fingida idade. O trajo e uma cabeleira branca completaram a ilusão.

Era das mais inocentes essa substituição, pois nada tinha de comercial, e é muito presumível que seu pai avisasse confidencialmente à sua irmã dessa fantasia de um espírito enfermo.

É por isso que desde o começo desta narrativa vimos Heitor Prieur desempenhar, ora bem, ora mal, o papel de tio de Matilde.

Como ele o previra, a Sra. de Hauterive não pareceu suspeitar de seu disfarce, o que o tranquilizava, deixando-lhe apenas o cuidado de acautelar-se contra a perspicaz curiosidade de Dolores. Traduzido por Paulina Philadelphia

XIV

UMA PERFÍDIA

Esse personagem, que por uma dessas venturas que mais se encontrarão nos romances do que na vida real e que tão a proposito chega-nos das Índias, figurará provavelmente em nossa história como um bom Gênio, cuja missão providencial é lutar sem interrupção contra o espírito do mal.

A entusiástica descrição que Matilde fazia de sua amiga, e a cândida admiração que por ela tinha, inspiraram-lhe inocente curiosidade de conhecer pessoalmente essa maravilha.

Desde o seu primeiro encontro deixou entrever um terno interesse para com Dolores, e se a prudência lhe faz conservar a máscara, não devemos supor que seja para mão fim.

Se vemos pois nossa heroína exposta sem defesa ás exigências de sua tia, e ás ambições do astucioso cavaleiro, podemos esperar que conjurará a tempestade com sua lealdade e firmeza, enquanto a não protege um incógnito protetor. Não é pois tranquilizadora a sua posição atual. Ela considera como um dever de gratidão o não libertar-se de uma sujeição voluntária, e seus amigos, cujas boas intenções nos são patentes, não têm o direito de intervirem para escudá-la com sua proteção.

A franca entrada do cavaleiro Banco na casa da Sra. De Louvain facilitava-lhe os meios para chegar a seu fim; e a tia de Dolores, cujo interesse está estreitamente ligado ao dele, não era demasiadamente escrupulosa.

A prudência aconselhava a esses dous personagens certo grão de circunspecção, e lhes fazia ver que nada obteriam pela violência; por isso modificaram seu programa.

Mediante a nova resolução, Dolores já não era tão infeliz com sua tia, que se esforçava em dissimular o natural azedume e ser amável a seu modo. A pobre moça exprobrava-se de acolher com instintiva desconfiança os primeiros passos que para ela davam.

Voltara o cavalheiro à sua habitual assiduidade para com a sua cumplice, pois refletira que se Dolores penetrasse as suas intenções nada a poderia vencer. Afetou pois para com ela a mais completa indiferença, sem contudo deixar de comprometê-la em público, para obrigá-la por esse meio a entregar-lhe a sua sorte.

Apresentou um dia o astuto cavaleiro à Sra. De Louvain um pintor de grande talento, que na sua qualidade de protetor das artes e dos artistas tomara sob sua égide, e pediu-lhe licença para que deixasse executar por esse grande artista o seu retrato.

Uma indigna maquinação encerrava-se nesse inocente pedido.

O retratista chamava-se Frank, e tinha um leve acento alemão que mostrava a sua origem. Fora recomendado ao cavaleiro Banco, o qual com a generosidade que ostentava prometera-lhe fazê-lo conhecido em Paris, no mundo das artes.

A verdade porém é que o cavaleiro, pensando unicamente em seus interesses, descobrira no pintor uma aptidão extraordinária para reter de memória as feições das pessoas que tinha de retratar. Experimentou por vezes esse talento, e quando esteve bem seguro dele fê-lo seu inocente cúmplice na traição.

— Meu filho, disse-lhe um dia, eis-vos no caminho da glória. Quero propor-vos uma aposta, e se a ganhardes está feita a vossa fortuna. Eis do que se trata. Pintastes-me uma Danae cujo admirável conjunto será devidamente apreciada na próxima exposição; mas confesso-vos que não me agrada a cabeça que lhe fizestes. É uma linda Parisiense, mas não a filha do rei de Argos, reservada a tão altos destinos, segundo a mitológica tradição.

Fiz o que pude, respondeu-lhe rindo o pintor; onde quereis vós que eu ache a filha do rei de Argos?!

— E se vos mostrar por quatro vezes uma beleza incomparável, tal ramo a escolheríeis para seduzir os Deuses, prometeis-me de apossar-vos bem de suas feições?

— Nada é mais fácil, respondeu o moço, mas fora-me preciso poder fazer ao menos um debuxo vendo de perto o original.

Foi então que o cavaleiro, recomendando todo o cuidado a seu cúmplice, tiver a ideia de fazê-lo retratar a Sra. De Louvain, prevendo que Dolores não consentiria em servir de modelo.

No primeiro encontro a Sra. De Louvain, que ainda não estava na confidencia, mas cuja vaidade se achava sobremodo lisonjeada com essa preferência, escusou-se com encantadora modéstia, dizendo que sua sobrinha seria um modelo mais favorável ao artista.

Se o amor da arte e a admiração do belo não fossem predicados dos pintores fora temerário o olhar que Frank fixara no rosto de Dolores.

— Concordo, disse ele, respondendo à Sra. De Louvain, que esta linda menina fornecer-me-ia um incomparável modelo, mas é fácil de adivinhar, pela expressão de seus olhos, que me não permitiria ensaiar uma tão difícil empresa; e demais, senhora, é vosso retrato que me foi encomendado pelo Sr. Cavaleiro, e acho em vossa fisionomia finíssimos e delicados matizes dos mais elevados sentimentos de extrema ternura a caridade que me encarrego de exprimir em algumas sessões.

Essa linguagem ia diretamente tocá-la em seu lado fraco. O cavaleiro foi inteiramente da opinião de Frank.

O pintor, que durante o estio tinha uma oficina provisória no alto de Bellevue, para estar mais próximo de seu Mecenas, mudou para a casa da Sra. De Louvain toda sua bagagem de pintura, cavaletes, tela, cores, e marcou o dia da primeira sessão

Começou-se o retrato, mas notou o pintor que seu modelo se entristecia sempre que não via Dolores; por isso pediu à moça que fizesse a leitura de algum livro interessante, para alegrar a Sra. De Louvain enquanto ele a retratava. Obteve com esse estratagema a presença constante de Dolores, se escondido atrás da tela, que aproximara da janela, fez um rápido esboço dessa inocente beleza, e escondeu-o rapidamente em sua caixa de cores.

Dolores não podia negar-se ao inocente pedido que lhe era feito, sob pena de pouco delicada; prestou-se pois a fazer a pedida leitura, e levada por vezes pelo interesse que tomava no que lia dava a suas feições uma expressão mas viva, e iluminava-se seu rosto com fugitivos matizes que o pintor aproveitava sem que ela o suspeitasse.

Progredia-se maravilhosamente o retrato da Sra. De Louvain. A diminuição de alguns anos, o argumento de alguns cabelos que já lhe rareavam, olhos um pouco maiores que os modelos, uma boca mais pequena, e contornos mais puros e menos ásperos, todas essas transições enfim devidas à polidez do artista, pareciam à Sra. De Louvain as provas da mais viva semelhança.

O cavaleiro aplaudia-se do estratagema que imaginária. Não lhe importava a efígie da Sra. De Louvain, mas achava fielmente copiadas as feições da linda Dolores. O brilho de seus louros cabelos molduravam como uma aureola de ouro sua refulgente tez e suas nobres feições.

Antolhava-se ao cavaleiro o efeito que produziria em sua sala o quadro de Danae, quando explicasse a seus numerosos amigos que esse era o retrato da sua noiva. Esperava que Dolores assim comprometida e privada de qualquer socorro não insistiria por mais tempo na recusa de sua mão, e que o faria arbitro da sua sorte. Quanto ao pintor, não devia esperar remuneração alguma pelo seu trabalho. Não estava ele generosamente pago?! Quem falaria em seu nome, ainda ontem desconhecido se o cavaleiro lhe não tivesse aplanado as dificuldades de sua carreira?!

Como leitor não ignora, era mui seriamente que o cavaleiro dava se ares de Francisco fazendo-se por ofício e por interesse o protetor das artes. Traduzido por Paulina Philadelphia

XV

O CASO DE CONSCIÊNCIA

Eu seria deste conto se o nosso pintor fosse digno do cavaleiro Banco? Felizmente porém é Frank um moço honesto. É belo ver-se reunido em um só ente o talento e um coração honesto e probo. Ele estudou a astuciosa fisionomia da Sra. De Louvain. Raramente um artista se equivoca, e por isso não foi o pintor por muito tempo iludido por sua afetada doçura.

Começava também a conhecer melhor o cavaleiro, grande fazedor de promessas e empalmador de quadros, que ainda lhe não havia procurado uma dessas grandes encomendas que lhe prometera, mas que, em sua substituição das marquesas e duquesas de que lhe falara, incumbira-o de fazer o retrato de uma dúzia de heroínas que irão popularizar seu nome numa sociedade um tanto menos escolhida.

Frank admirou, em sua qualidade de artista, o encanto profundo, a candura, a submissão e a tristeza mal dissimulada dessa linda menina criada para felicidade.

Ele observara esse lar, e notara a afetação do cavaleiro, o intermitente azedume da Sra. De Louvain, a palidez de sua sobrinha, e os terrores da pobre Crucifixo, que, embora nada dissesse, via-se andar qual uma sombra protetora de alguma existência ameaçada.

Passando a vida em procura do ideal da beleza, compreenderia a inspiração de um admirável modelo de que se utilizasse para um quadro; mas perguntava por vezes a si mesmo qual podia ser o interesse do cavaleiro em obter por uma fraude a imagem de uma moça, para reproduzi-la numa pintura mitológica, que devia ser exposta aos olhos de um numeroso público.

Suspeitou que houvesse ali outro interesse além do da arte, e pareceu-lhe descobrir gradualmente uma intenção comprometedora, e uma próxima infâmia.

O que ao princípio escapara à sua inexperiência tornava-se uma realidade à medida que mais atentamente examinava a moça exposta a seus olhares, sem a menor desconfiança.

Já não podia duvidar de que assistia a um drama íntimo, que resolveu esclarecer, sem suscitar suspeitas, antes que mais se adiantasse.

Frank poderia perder um protetor, e o preço da Danae, que, conforme lhe comprometera o cavaleiro, devia admirar a todos na próxima exposição das belas-artes; mas teria em compensação a sua independência, o prazer de frustrar um odioso trama, e o de salvar, enfim, de um imenso perigo a essa moça que, além de possuir uma rara beleza, de que era admirador, inspirava-lhe o mais sincero e vivo interesse.

Desastrado cavaleiro que escolheu tal cúmplice para seus tenebrosos desígnios! Quos vult perdere Jupiter dementat :isto quer aproximadamente dizer que os maus perdem o uso da razão, e entregam-se por si mesmos.

Não era sem algum remorso que o pintor continuava com o misterioso esboço, ao qual lançou o último olhar antes de encerrá-lo na mencionada caixa das cores.

Olvidámos talvez de dizer que a sala onde Frank postara sua ambulante oficina de pintura era ao do chão, e que colocara o cavalete próximo à janela.

Crucifixo passando pelo jardim próximo à dita sala lançara os olhos para o quadro, e vira ao lado dele um pequeno esboço, reproduzindo maravilhosamente as feições da linda Dolores, cheia de vida e cercada de sua loura e radiante coma.

A muda Crucifixo abriu uma enorme boca, arregalou os olhos, e distendeu os enormes braços, assemelhando-se nessa ocasião ao sinal da Redenção, de que traziam venerado nome.

A Sra. de Louvain viu toda essa pantomima, mas atribuiu-a à fidelidade com que o pintor reproduzia a sua

Imagem, e dignou-se de sorrir-se.

A posição em que Frank se sentara não lhe permitia ver o que se acabava de passar, e por isso cria sempre que esse segredo só era conhecido por ele e o traidor cavaleiro, que estava em continua vigilância para obstar a que Dolores e a Sra. De Louvain se aproximassem do pintor, antes que ele tivesse o tempo necessário de esconder a linda cópia que fazia por contrabando, em prejuízo do modelo que orgulhosamente ostentava suas envelhecidas graças.

Grande é o prazer de um coração honesto quando pode mistificar um traidor. Frank prometia-se essa doce satisfação, no caso que lhe não fosse muito e muito provado que a inexplicável conduta do cavaleiro em nada podia comprometer essa pobre moça, que começava a tomar debaixo de sua proteção.

O que Frank experimentava por Dolores era uma cândida simpatia, que lhe inspirava admiração e respeito, pois seu coração estava dado, e tinha, como um honesto alemão que era, uma noiva que o esperava além do Reno, e cujos olhos azuis o seguiam por toda a parte.

Parecia-lhe que tornando-se defensor de uma beleza oprimida prestava homenagem à sua noiva, a quem contaria em sua volta este episódio de sua vida de artista.

O nosso pintor anunciou à Sra. De Louvain que acabaria seu retrato com mais duas ou três sessões, o que lhe permitia de considerar ainda sob diversos aspectos a fisionomia de Dolores, de quem já não temia atrair as vistas agora que já fizera desaparecer a sua imagem (seu corpo de delito). O cavaleiro fez-lhe um sinal de inteligência; dirigiu-lhe muitos comprimentos sobre a perfeição da obra e prometeu-lhe de novo um brilhantíssimo futuro.

Ao sair, o pintor cumprimentou Dolores mais respeitosamente que do costume, como para pedir-lhe perdão de levar ocultamente o seu retrato, e prometeu-lhe tacitamente, no íntimo de sua alma, que não seria cúmplice de uma traição.

XVI

ESTRADA SINUOSA

Deixando a larga estrada que do fundo de Sèvres conduz ao cimo de Meudon, encontra-se, serpejando à direita, um atalho que encurta o caminho.

Frank, todo pensativo entranhou-se nessa vereda para ir ter à sua oficina, onde ia guardar a caixa das cores e retocar o esboço que fizera de Dolores enquanto tinha presentes na memória as feições do modelo.

Estava absorvido nessa contemplação intima do pintor que tem a faculdade de ver tão fielmente como num espelho a imagem que passou diante de seus olhos. Nesse estado concentra toda sua atenção ao espetáculo interior, torna-se estranho à vida real e nada vê do que se passa em torno dele.

O céu estava sombrio, o caminho deserto, e o vento d’oeste, prenuncio de uma próxima tempestade, soprava entre as sarças espinheiros e roseiras bravas que ornavam a escarpa do barranco.

No atalho por que vai Frank há um lugar que, contornando um campo vizinho, torna-se mais estreito e íngreme. Foi nessa volta que o pintor viu surgir diante de si uma estranha aparição.

Vendo à margem do caminho um velha acocorada a despeito da próxima borrasca, e os arbustos vergando em desordem na quebrada, poderia crer em sua fantástica e pensativa imaginação na presença de uma dessas feiticeiras que saem deitar má sorte aos viajantes. Seria uma sílfide ou uma náiade que quisesse assustá-lo sob a máscara da velhice, no intento de arrastá-lo ao seu palácio de esmeralda?

Contemplando essa magra e silenciosa criatura que para ele estendia os braços, como se lhe quisesse obstar a passagem, figurou-se-lhe esses quadros em que o esfinge está acocorado ao pé de um rochedo, ao passo que Édipo procura decifrar o enigma, que é para ele uma questão de vida ou de morte. Frank, porém, menos feliz que Édipo, não sabia a explicação do enigma, e por isso procurava passar adiante segurando vigorosamente na caixa em que lavava a prova de sua fraude.

A feiticeira levantou-se então, e com um de seus longos braços acenou-lhe para a caixa que sobraçava, como para indicar-lhe que existia ali a causa de sua cólera.

Frank, olhando-a atentamente, reconheceu, sob a manta que pusera na cabeça para se resguardar da chuva, a cômica figura de Crucifixo.

— Que fazeis aqui com esse tempo, minha boa mulher? lhe disse ele. O vento é demasiadamente rijo, antes da chuva só teremos o tempo necessário para regressarmos ás nossas casas.

— Não, respondeu a velha acenando com a cabeça.

— Não, dizeis vós?!! e quem me há de impedir que eu vá para minha casa?

— Eu, disse Crucifixo.

— É curiosa esta notícia! Mas poderei saber com que direito me quereis impedir de passar? será pelo direito do mais forte?

— Sim, respondeu, ela, pondo a mão sobre o coração.

— É pois o vosso coração que é mais forte do que eu?

— Sim, retorquiu-lhe sem perturbar-se.

— Mas que fiz eu, boa mulher, para que estejais tão contra mim?

Crucifixo apontou novamente para a acusadora caixinha.

Esse novo aceno foi para Frank como um raio de luz.

— Pois bem, disse ele rindo-se, esta caixa é das minhas cores.

A velha fez um sinal negativo.

— Sabeis então que há aqui alguma cousa?

— Sei-o tão bem como vós, pareceu responder-lhe o esfinge.

— Ah! é isso que vos molesta, disse o moço pintor, sentando-se no declive do caminho; então a linda Dolores não permite que a retratem?

— Não.

— E sabeis vós por que fiz seu retrato? É para mim, por ter encontrado um incomparável modelo, do qual quero conservar a lembrança para meus futuros trabalhos.

— Não, tornou a repetir Crucifixo.

— Supondes que seja para o cavaleiro? Acaso a formosa Dolores o não ama?

— Oh! não! não! Exclamou Crucifixo erguendo os braços.

— E a Sra. de Louvain quer casar sua sobrinha com o cavaleiro?

— Sim, mas não é isso, pareceu dizer a velha.

— E vós, boa mulher, tendes amizade àquela menina?

— Se lhe quero?!! disse ela.

— E que podeis vós fazer em favor dela?

— Nada, respondeu Crucifixo, deixando cair seus enormes braços com desanimo.

— Tem ela ao menos alguns amigos com os quais possa contar?

— Sim, alguns, respondeu a velha apontando para Chaville.

— Ah! estão perto daqui? Pois bem, boa mulher, eu vou tranquilizar-vos para que me deixeis passar. Crede-me, eu não sou tão mão como pareço.

Pedi aos amigos dessa moça que me venham falar qualquer destas manhãs, antes do meio-dia. Eis o meu endereço, dai-lho, e guardai-me segredo.

— Obrigada, disse Crucifixo, pondo o dedo sobre a boca e afastando-se com uma rapidez que se não houvera atribuído à sua idade, mas que se explica pelo terror que lhe inspirava sua ama (Traduzido por Paulina Philadelphia)

XVII

ASTÚCIA POR ASTÚCIA

Frank, apesar de não ter prática da sociedade compreendeu instintivamente que nem à sua idade, nem à modesta condição que tinha assentava o convidar os sinceros amigos de Dolores para virem à sua casa, embora fosse para um fim que a todos interessava.

Levantara-se muito cedo lembrando se do singular encontro que tivera na véspera, na estrada sinuosa, quando se erguera diante dele uma fantástica aparição como o espectro de sua consciência.

Vestiu-se e foi apressadamente para Chaville, enquanto tudo ainda estava silencioso na casa da Sra. Louvain. A vigilante Crucifixo porém estava de pé, lavando a porta da entrada com tão copiosa porção d’água, que ao aproximar-se foi Frank quase que inundado por ela, o que provocou o riso de Crucifixo, à qual pediu o endereço da casa da Sra. d’Hauterive, e mais alguns esclarecimentos que ela lhe deu, sempre temerosa de ser surpreendida, por sua terrível ama, nessa criminosa conversação.

Frank, sem perda de tempo, dirigiu-se para Chaville.

Foi recebido pelo Sr. Prieu, que ouviu com tanta admiração quanto interesse a estranha narração do retratista.

— Senhor, disse por fim o tio de Matilde, a vossa lealdade conduziu-vos ao bom caminho. Somos realmente os únicos amigos da simpática Dolores. Minha sobrinha, que logo vos apresentarei foi por muito tempo sua companheira no colégio. Vistes por vós mesmo em que maléficas mãos caiu a pobre órfã. Nós somos, é verdade, conhecidos da Sra. de Louvain, mas com que direito iremos nós intervir? Todavia, se essa infeliz menina correr algum risco far-me-ei um dever de socorrê-la.

— Se precisais, disse Frank, de minha cooperação, contai com ela; pois interessa-me vivamente a posição dessa menina; e como testemunho de minha boa vontade, aqui trouxe, para dar à vossa sobrinha, o retrato que fiz de sua amiga. Não devo possuir esse esboço que obtive fraudulentamente.

— Mas que dirá então ao cavaleiro Banco? Que fareis vós da Danaide que ele vos encomendou? Se tiverdes de ficar com ela peço-vos que me deis a preferência na compra; disse o Sr. Prieur.

— Não me inquieto com o que há de acontecer, disse Frank negligentemente. Quanto à Danaide, eu me encarrego de causar com ela uma surpresa divertida.

— No momento em que Frank tirava de sua carteira a imagem de Dolores, entrou Matilde na Sala. Ao ver a esse retrato soltou um grito de admiração e alegria, e não sabia como agradecesse a seu tio a agradável surpresa que lhe preparara.

— É a este senhor que deves esta linda pintura, disse o Sr. Prieur à sua sobrinha, e muito mais devemos à sua lealdade. Espero que teremos ocasiões de provar-lhe o nosso reconhecimento. Pelo espécime que aqui tenho, disse Heitor a Frank, julgo não poder-me dirigir melhor do que a vós para uma encomenda de alguns quadros de que preciso para adornar o meu novo aposento de Paris.

Foi mister contar a Matilde a singular história desse retrato clandestino, e as maléficas intenções do desleal cavaleiro, neutralizadas felizmente pela lealdade do pintor.

— Crede, senhor, disse Frank, que quando aqui vim, não foi para negócio. Foi para cumprir com um dever; mas se quiserdes ter a bondade de visitar a minha oficina, que pouco dista de vossa casa, tereis talvez ocasião de confiar mais um pouco em meu talento, ou pelo menos em minha boa vontade.

— Nós lá iremos, disse o Sr. Prieur, e vós conhecereis no prosseguimento de nossa amizade que é sempre a retidão a melhor de todas as negociações.

Foi nesse tom que continuou ainda por algum tempo a conversa, recaindo a cada momento sobre Dolores, cuja imagem parecia praticar com eles a pedir-lhes proteção.

No dia seguinte, preocupado pelas comunicações que recebera, foi muito cedo o Sr. Prieur à oficina de Frank. O famoso quadro da Danaide ocupava o primeiro lugar. Esse assumpto tantas vezes reproduzido, por todos os pintores, de todas as escolas, era ali tratado de uma maneira magistral. O elevado sentimento que predominava no trabalho do artista fazia esquecer a frivolidade do assumpto, pois a arte é sempre casta. Sustentou o Sr. Prieur que a cabeça tão criticada pelo exímio conhecedor, o cavaleiro Banco, devia ser conservada, e que se não podia sem perigo modificar a concepção do artista.

— Não senhor, respondeu Frank com essa prodigalidade do moço que sente sua força, abro mão de minha Danaide, abandono-lha. Far-lhe-ei um trabalho correspondente à remuneração que dele espero; já que assim o quis, será o Sr. cavaleiro servido a seu aprazimento.

A zombaria de Frank fazia pressentir um projecto decidido.

Não procurou o Sr. Prieur participar do segredo do retratista, mas como entra sempre um pouco de egoísmo ainda nas melhores intenções, quis ele certificar-se de que o interesse de Frank por Dolores não provinha de um sentimento mais terno do que a retidão de sua consciência. Procurou captar a confiança do artista, e ouvindo-lhe a narração de sua vida soube que deixara na Alemanha uma sincera afeição.

— Já que não quereis receber remuneração alguma pelo admirável esboço que fizestes. E que tem para nós um valor incalculável, espero ao menos que não recusareis vender-me estas duas lindas paisagens, nas quais encontro os mais pitorescos sítios deste lugar.

Com dificuldade consentiu Frank em aceitar a avultada soma que lhe dava o Sr. Prieur pelos dous quadros, repugnando-lhe ver transformar-se em um negócio o que fizera unicamente para tranquilizar a sua consciência.

Retirou-se o visitante assegurando ainda uma vez ao pintor a sua amizade e instando-o para que repetisse suas visitas a Chaville.

— Agora nós Sr. cavaleiro, disse Frank sentando-se para trabalhar no quadro do protetor das artes. Traduzido por Paulina Philadelphia

XVIII

CRESCENDO

À medida que o rio, depois de inúmeros rodeios, aproxima-se do termo de sua carreira, mais rápida é a sua corrente.

No ponto a que as cousas chegaram, Dolores tem de sucumbir ás maquinações que a ameaçam, ou aparecer qual a estatura do Comendador impelindo para o terceiro plano, como no festim de Pedro, a esse velho D. João.

O Cavaleiro tem igualmente pressa de aceitar o desfecho; qual o lenhador que cavou ao redor de um olmo e julga só faltar-lhe um derradeiro golpe para derribá-lo triunfantemente. Por isso logo que viu acabado o retrato da Sra. de Louvain o seu primeiro cuidado foi, não de pagar a Frank o importante de seu trabalho, mas sim o de ir perguntar-lhe se a Danaide tinha passado por uma feliz transformação.

Frank, que já se impacientava com os artísticos conselhos desse perfeito conhecedor das artes, não o recebeu em sua oficina, mas sim na sala que a precedia.

Meu caro mestre, disse o pintor, deve deixar-se ao artista alguma iniciativa; achastes que a minha Danaide tinha ares de uma costureira parisiense, e vistes que não me formalizei com isto; mas quanto à filha do rei de Argos, que me encomendastes, desejo não ser influenciado relativamente a ela. Asseguro-vos que nada perdereis com isso; mas preciso de tempo, e de uma absoluta liberdade.

— Apraz-me esta independência, disse o Cavaleiro, eu fio-me de vós. Com o lindo modelo que vos proporcionei, espero que me fareis um primor de arte. Sabeis que vosso quadro tem de aparecer na festa campestre que vou dar em Bellevue na próxima semana; haverá nela artistas, amadores, e pessoas da alta sociedade, que folgarão de conhecer-vos; será enfim para vós um magnífico ensejo de apresentação. Não me agradeçais. Isto me ofende. Tenho passado a minha vida a sacrificar-me pelos outros; não me posso gabar de ter sido por isso devidamente abençoado; mas que importa? Está na minha natureza. Faço o meu dever. É a minha divisa. Enfim, meu caro Frank, conto convosco; sempre em vosso interesse.

— Podeis contar, disse o pintor conduzindo-o até à porta, e crede que se não ficardes contente a culpa não será minha.

Satisfeito com a resposta do artista, pôs-se a caminho para ir visitar a Sra. de Louvain, que ainda não admitira na confidencia, temendo seus escrúpulos. Ficou o Cavaleiro desagradavelmente surpreendido de encontrar em seu caminho com um carro no qual viu Dolores e outra moça.

Dificilmente fez-lhe a Sra. de Louvain compreender que sua autoridade sobre Dolores podia ser-lhe contestada, e que não pudera deixar de conceder-lhe licença para passar alguns dias em casa de uma família honesta.

— Alguns dias? exclamou o Cavaleiro. Bem, já que sois tão tolerante não me recusareis de levar vossa sobrinha à festa que tenciono dar na próxima semana em Bellevue; é indispensável para o bom êxito de nossos projetos; já anunciei a sua presença ali; se hesitardes faltareis ás nossas convenções e eu duvidarei da vossa boa vontade.

— Julgais-me tão imprevidente que eu acedesse ao seu pedido sem ser com a condição de ela comparecer em vossa casa?

Ao passo que esses dous personagens meditavam seus honestíssimos projetos, os moradores de Chaville estavam loucos de alegria pela posse que tinham de Dolores por alguns dias.

O Sr. Prieur mostrou-se surpreendido dessa visita, que provocou talvez, mandando como hábil parlamentaria a empreendedora Matilde.

— Ah! minha boa Dolores, dizia Matilde abraçando sua amiga, se estivéssemos sempre assim! que bonitos dias para nós! que felicidade para mim! Tu me restituirias a vida, querida, e eu ficaria tranquila sobre o teu futuro sabendo-te ao abrigo dos mãos. Não poderemos apossar-nos dessa felicidade que nos está tão perto?

— Talvez que tua amiga tenha outros projetos, disse o Sr. Prieur à sua sobrinha. Quem te assegura que ela se acharia feliz em nossa companhia? Talvez que ela considerasse ter mudado tão somente de prisão.

— Não me tenteis, exclamou Dolores, é para junto de vós que o coração me impele. Sabeis que sois meus únicos amigos, e que sem vós estaria só no mundo; mas não me aconselheis que falte ao meu dever! No caso de tornar-se-me impossível a residência em casa de minha tia, com que título poderia eu trocá-la pela de vossa casa?

— E que farás então? perguntou Matilde.

— Trabalharei, respondeu alegremente Dolores, e depois irei ver-vos a miúdo. Não preciso de muito para viver.

— Entendo, entendo, é por orgulho que rejeitas nossa casa. Julgas não precisar de nós, sem te inquietares com o pesar que isso nos causaria! Dizei alguma cousa. Falai vós, meu tio, disse Matilde.

— Eu bem o quisera, disse hesitando o Sr. Prieur, mas é por demais difícil de exprimir o que teria de dizer-lhe.

— Há muito que eu o sei, disse inconsideradamente Matilde.

— Não senhora, disse gravemente o Sr. Prieur; vós não o podeis saber. Sois ainda muito criança para falardes em cousas sérias.

— Julgais isso, meu tio? Pois bem, quereis que eu vos diga desde que dia é que pensais em cousas sérias? Eu vo-lo digo, mas é preciso que Dolores não nos ouça; e falando ao ouvido de seu tio disse-lhe pausadamente: é desde o dia...

— Não, disse o Sr. Prieur, não quero saber das tuas suposições.

Tudo isto era bastante para corações que adivinhão. Essa reticencia fizera compreender a Dolores que se tratava de sua pessoa. Dolores compreendera de há muito tempo o afeto que lhe consagrava o Sr. Prieur.

A despeito da idade que ostentava havia tanta mocidade em seu olhar e sua voz, e manifestava-lhe em suas palavras um tão terno e respeitoso interesse, que ela sentia-se protegida com a sua presença; ela que estava só no mundo, e que fora sempre privada de uma sincera afeição! Com que prazer lhe houvera dedicado a sua vida. Se achasse uma irmã como Matilde, e um pai como o Sr. Prieur, que faltaria à pobre órfã? Talvez que o coração de Dolores se encarregasse de dar a resposta que o tio de Matilde não quis ouvir.

Por uma admirável previsão da Providencia há flores fecundadas pelo dourado pó que um alado inseto suga num cálice e vai depositá-lo loucamente no seio de outra, sem o que ficarão estéreis essas flores isoladas.

É assim que Matilde confundia o dourado pó que existia oculto no fundo desses dous corações e os havia fecundado com uma só palavra que nem mesmo pronunciara.

Grande era o encanto que dava esse mistério ás conversações que se seguirão. Falou-se em cousas indiferentes, mas a conversação parecia-se com essas vagas sinfonias nas quais a imaginação do auditor encontra como que um eco de seus mais íntimos sentimentos.

Para Dolores, escoavam-se com demasiada rapidez os poucos dias de que obtivera de passar nessa doce intimidade.

Matilde, que não queria separar-se de sua amiga nem durante a noite, fazia-lhe partilhar de seu quarto, e a Sra. d’Hauterive testemunhava-lhe uma extremosa amizade. Obstada por seus padecimentos de tomar parte em todos os passeios que Matilde proporcionava a Dolores, fazia-se substituir pelo Sr. Prieur

Um dia em que estes três inseparáveis se achavam no jardim foi Matilde chamada por sua mãe, ficando assim Dolores involuntariamente a sós com o Sr. Prieur, que absteve-se de aproveitar-se desse colóquio para pronunciar as três palavras que lhe roçavam os lábios. Quase que já sabia o que desejava saber. A afeição que Dolores lhe deixava conhecer era tão cândida, tão pura e tão filial, que ele se exprobraria de agitar essa tão bela alma por um sentimento mais forte. Versou pois a conversação, como que naturalmente, sobre motivos frívolos. Essa segurança que dispensa os interlocutores de todo o constrangimento e esforço de espírito é uma felicidade que foi por vezes apreciada pelos verdadeiros amigos. Ainda uma vez porém veio a louca Matilde lançar uma pedra nesse límpido lago, perturbando com um palavra a calma dessa amizade.

Chegou correndo e lançou-se ofegante nos braços de Dolores dizendo-lhe a meia voz: “Querida tia, fica conosco, nós te queremos tanto!”

Cruel palavra para a pobre órfã. Sentiu-se ferida por ela como por uma lamina, talvez porque nada nos perturba mais do que a revelação de um sentimento de que nos queremos defender. Quem poderá sondar os mistérios do coração humano!

Talvez que atraída pela amizade que lhe testemunhava o Sr. Prieur, e sabendo que ele antolhava venturosos dias, mas bem depressa afastou essa ideia. Por isso, ao ouvir Matilde chamá-la de tia, viu nessas palavras uma cruel ironia à sua sorte; e tão abalada ficou que pôs um dedo sobre os lábios de sua amiga e conservou-se pálida e sem movimentos.

— Que tendes? perguntou-lhe o Sr. Prieur com interesse; e tu, Matilde; que lhe fizeste?

— Estou com frio, disse Dolores levantando-se com esforço. Voltemos para casa, disse ela apoiando-se no braço de Matilde. Recusara instintivamente o braço do Sr. Prieur, que seguia extremamente inquieto.

Passou a noite agitada e amanheceu com febre.

Imediatamente foi o Sr. Prieur buscar um médico, que em vão tentou descobrir a causa desse acidente. Fez a competente receita, recomendando muito repouso, e retirou-se convencido de que essa indisposição não era das que a Faculdade sabe curar.

XIX

DANAIDE

Próximo estava o dia marcado pelo protetor das artes para a festa campestre projetada. Os convites haviam já sido feitos, e todos aceitados. Já não podia recuar. Nada porém ia a seu aprazimento.

A Sra. de Louvain fora informada do grave incômodo que acometera sua sobrinha, e nas insolentes cartas que escreveu ao Sr. Prieur disse-lhe que sabia devidamente apreciar a suposta enfermidade de Dolores, e na ultima que lhe dirigiu ousou traçar a palavra desviamento.

O tio de Matilde não se dignou de responder-lhe; mas não querendo vergar ao peso dessas insinuações, e para salvar a sua responsabilidade, consultou a um magistrado, seu amigo, a quem fez parte de seus projetos. Nessa ocasião soube mais alguns detalhes relativamente ao Cavaleiro; de quem já conhecia as intenções por Frank e Crucifixo, e compreendeu que havia chegado a ocasião de desmascará-lo.

O Cavaleiro esperava sempre pelo quadro da Danaide, que o pintor dizia estar retocando para aperfeiçoa-la. Chegou o dia da festa e o quadro não apareceu; mas como Frank lhe prometera ser exato, sob sua palavra, ele contava com a sua encomenda até à última hora.

Com muita antecedência chegarão os numerosos convidados do Cavaleiro, que foram logo admirar a magnificência do jardim e do pavilhão, que ornavam grande profusão de flores, grinaldas, lanternas, inscrições e emblemas.

Era uma sociedade heterogênea. Muito familiar com seu anfitrião e assaz livre em suas palavras; o que evidentemente mostrava não ser ela composta em seu todo de notabilidade da boa sociedade.

Se Dolores ali estivesse não sabemos qual seria seu papel em uma tal reunião. A Sra.de Louvain ostentava orgulhosa o brilho de seus lindos adornos.

Uma sineta reuniu todos os convivas na sala de jantar para satisfazerem o apetite que lhes aumentara o passeio. O almoço foi esplêndido, muito animado, e mesmo tumultuoso logo que a variedade dos vinhos influenciou os convivas.

Para tranquilizar a Dolores, com quem contavam nesse dia, haviam sido convidadas algumas pessoas de Sèvres; e é por isso que aí vemos figurar a Sra. de Paintendre, inseparável amiga da Sra. de Louvain.

O Cavaleiro; que se animara gradualmente para dar o exemplo, propôs uma saúde à sua noiva, de quem prometi fazer admirar o retrato antes de anoitecer, se o pintor que estava incumbido de fazê-lo não lhe faltasse com a palavra.

Frank não perdia no entanto seu tempo. Aproveitou-se do tumulto produzido pelo estribilho de uma canção cantada em coro, fez conduzir e colocar na sala em que os convidados tinham de tomar café o tão suspirado quadro. Recomendou grande silencio aos criados, dizendo-lhes que queria causar uma surpresa ao Cavaleiro afim de alegrar a festa.

O quadro estava coberto com um véu que só devia ser desprendido pelo Cavaleiro.

Tendo tudo disposto, Frank fez sua entrada na sala de jantar, pedindo muita desculpa pela demora, e anunciou aos convidados que a Danaide já os esperava na sala.

Esta notícia foi entusiasticamente aplaudida pela ruidosa assembleia, que ativou o fim do banquete para ir contemplar a tão gabada pintura.

Logo que todos se acharam reunidos o Cavaleiro fez cair com um gesto magistral o véu que encobria a Danaide.

Houve um momento de atenção, depois de surpresa, alguns sorrisos, e por fim alguns cerimoniosos comprimentos dirigidos à Sra. de Louvain, que estava extraordinariamente confusa.

Nenhum dos circunstantes hesitou em reconhecê-la, tal era a fidelidade dos traços. Todos falavam nesse assumpto, e dava cada um seu parecer.

Era doloroso de ver-se essa jovem beleza de Danaide desfigurada sob a pretenciosa máscara da Sra. de Louvain. Havia um irritante contraste entre esse estilo largo e severo desse lindo esboço de mulher, e a afetação desse rosto demasiadamente burguês, que parecia sair da tela com os cabelos encrespados, as maçãs do rosto iluminadas, e os olhos chamejando qual a explosão de uma pistola de dous canos. Só um gaiato se lembraria de uma tal profanação.

— Que maravilhosa fidelidade! exclamou a Sra. Paintendre que sentia a necessidade de aprovar sempre; mas eu não quereria me retratar sob a figura de uma danada, com o receio de que isso me acarretasse alguma desgraça. A infeliz senhora tomara uma chuva de ouro que caía do alto do quadro, segundo indica a mitologia, pelas chamas do inferno, e entendera danada em vez de Danaide.

O consternado Cavaleiro não teve a coragem necessária para explicar-lhe que se tratava da filha do rei de Argos. Algumas das moças que ali estavam, e das quais Frank já fizera o retrato, ofenderam-se de que as não houvesse escolhido para modelo, e motejavam da escolha que fizera para a sua Danaide.

A observação da Sra. Paintendre fez reaparecer a hilaridade.

O cavaleiro procurava com os olhos o pérfido pintor para descarregar sobre ele todo o peso de sua cólera; mas Frank, contente com o efeito que produzira a sua obra, já não se achava ali.

O desgraçado anfitrião dissimulou o seu ressentimento; mas teve muito a proposito uma indisposição que o obrigou a retirar-se para seu quarto, abandonando a casa à sua ruidosa e imprudente assembleia.

Em sua ausência foi a Sra. de Louvain considerada como a dona da casa; e ela aceitou esse papel com uma

Calculada modéstia; ficando assim evidente para todos os convidados que era ela realmente a noiva do Cavaleiro.

XX

O DESAFIO

A eterna amizade de que estava Dolores cercada pouco e pouco restituo-lhe o sossego de espírito. Durante a sua convalescença, o Sr. Prieur tornou-se mais assíduo e expansivo; à moça já não era licito duvidar dos seus projetos. Ousou ele perguntar-lhe um dia, na presença de Matilde, se não teria ela demasiado aversão à sua idade e cabelos brancos; se, com a sua mocidade, espírito e beleza, não teria outras aspirações; e finalmente se ela seria assaz generosa para consagrar-lhe sua vida, com o consentimento de sua mãe adotiva.

Em extremo comovida, conservava-se Dolores silenciosa; a afouta Matilde, porém, encarregou-se da resposta.

— Meu caro tio, disse ela com alegria, se Dolores gostasse dos cabelos pretos, não tinha ela bom ensejo? Não podia encontrar melhor que o cavaleiro Banco. Não obrigues esta pobre menina a falar; se ela não vos disse não, quer isto dizer sim. É pois necessário explicar-vos tudo?

Dolores, meio vencida, estendeu a mão para Matilde e reclinou a cabeça sobre o ombro da sua amiga. O Sr. Prieur tomou a mão que ficara livre, e Dolores não a retirou.

Entretanto a moça, logo que sentiu-se capaz de suportar a viagem de carro de Chaville a Sèvres, quis tornar para casa de sua tia. Por decoro não se podia opor a isso o Sr. Prieur, apesar de que essa casa, aberta ao cavaleiro, se lhe tornasse odiosa.

A família de Hauterive, flutuando em grande incerteza, considerava tão difícil conservar Dolores como entregá-la em mãos perigosas, quando o tinir da campainha veio muito a proposito pôr termo a tal embaraço.

Era a Sra. de Louvain, a qual, acompanhada do cavaleiro Banco, vinha reclamar sua sobrinha.

O primeiro ímpeto do Sr. Prieur fora despedir sem mais cerimônia o Sr. Banco; lembrou-se porém que tinha de dirigir-lhe um breve discurso, e que não encontraria melhor oportunidade.

Não julgou todavia este personagem digno de pisar o lumiar da casa, e foi no jardim que deu audiência aos visitantes.

O cavaleiro viu-se obrigado a passar em frente do pintor Frank, que se tornara frequentador da casa de Chaville; fulminou o traidor com um olhar de desprezo, e o gaiato Frank respondeu com uma cortesia tão respeitosa como irônica.

— Compreendo, disse o Sr. Prieur, a presença da senhora; podereis porém dizer-me, senhor, com que título vos apresentais?

Com o título de amigo da família, replicou mui sério o Sr. Banco. Demais, não vos ocultarei que eu formara alguns projecto sobre o futuro da Sra. Dolores; tinha também direitos que me concedera o consentimento da senhora, sua terna mãe adotiva. Mas desde a sua ausência e estada prolongada na vossa casa, é-me licito mudar de resolução, e os meus votos volveram-se para outro lado.

Ao ouvir estas palavras, a Sra. de Louvain, recordando-se da Danaide, julgou dever abaixar os olhos com modéstia.

— Mas, Sr. Banco, tornou o Sr. Prieur com vivacidade, não vos perguntamos quais são os vossos projetos e no que possam estar mudados; a vossa presença aqui deve ter motivo.

— Poderíeis tomar a minha presença por um desafio, se a vossa idade não vos pusesse ao abrigo de qualquer perigo.

— Sr. Banco, interrompeu o Sr. Prieur rindo, sou eu que vos farei logo um desafio, se me derdes licença. Primeiro, porém, tenho de dar-vos um conselho; é o de pagar, em bem da vossa liberdade, certas letras protestadas que não duvidei aceitar, convencido de que fareis honra à firma do cavaleiro Banco.

— Não sei o que quereis dizer, respondeu o cavaleiro com embaraço; há de haver algum equívoco.

— Não senhor, é claro como o dia; o meirinho dar-vos-á a explicação. Agora prestai-me ainda um instante de atenção, e depois podereis retirar-vos: eu vos desafio a que atireis a vossa cabeleira tão longe como eu vou atirar a minha.

E desatando sem cerimônia a sua comprida cabeleira branca, atirou-a por trás das sarças, com grande surpresa dos espectadores. Não podia ter a pretensão de reclamar a prioridade deste desafio, que recorda uma anedota muito conhecida; cada qual, porém, toma seu aonde o encontra.

O cavaleiro Banco pudera suportar a injuria que lhe fizera o pintor, a propósito da Danaide; vira-se ameaçado sem corar da prisão por dividas; este golpe, porém, este último golpe o aterrava. Punha a sua maior vaidade no falso cabelo, que tratava com tanta arte, e quem casava, por meio de matizes tão felizmente combinados, com as suas largas suíças. Via-se traído, estava vencido. Fez a sua retirada em desordem. Passando ao lado do malicioso Frank, que presenciava feliz esta festa de família, enterrou o chapéu na cabeça, como se receasse alguma zombaria ou via de facto. A Sra. de Louvain, que não era absolutamente má, mas a quem faltava retidão e bom senso, perdoara talvez ao cavaleiro a sua cobardia; desculpara-lhe ainda o não fazer honra à sua firma, ao passo que esbanjava o dinheiro em festas a indiferentes na casa de Bellevue; absolvera-o em qualquer ocasião; mas ela que, depois da cena da Danaide, começava a tornar ao sério o seu papel de noiva do cavaleiro Banco, não lhe perdoou a sua cabeleira.

— Como enganou-me esse homem! disse ela ao Sr. Prieur com amargura e indignação.

O Sr. Heitor Prieur despira o grande sobretudo, e, com o seu vestuário elegante, seu talhe esbelto, sua fronte descoberta, sua fisionomia aberta; não parecia ter mais de trinta anos.

— Sim senhora, disse ele, este cavaleiro de indústria, que captara a vossa confiança, nutria detestáveis projetos; prová-lo-emos. Agora que não vos resta ilusões a seu respeito, pergunto-vos se consentireis que a Sra. Dolores case conforme as inclinações de seu coração. A menos, acrescentou tomando a mão de Dolores, que a senhora não se digne perdoar o meu ardil e a minha transformação.

Dolores estava mais confusa que feliz com este incidente inesperado; compreendia que fora enganada; porém a sua verdadeira alegria era ver-se livre para sempre das assiduidades do cavaleiro.

— Não era o senhor que eu amava, disse ela com hesitação ao Sr. Prieur, era o tio de Matilde.

— Cara Dolores, tornou Heitor, sossegai, que os meus cabelos brancos voltarão; até então, porém, ainda tenho muitos anos para servir-vos e amar-vos.

A Sra. de Louvain, que perdera toda autoridade trilhando por caminho errado, pouco estava em estado de opor-se; além de que, não deixava de resultar-lhe algum interesse em ligar-se a essa rica família. Empreendeu pois fazer crer que fora ela quem combinara este casamento, e Deus sabe se não acabou por acreditá-lo.

— Bem vedes, disse ela, que não foi sem alguma previsão se eu permiti à minha sobrinha demorar-se junto de sua amiga. Não me dava cuidado algum o deixá-la em vossa casa. Não vo-la podia entretanto lançar nos braços. Mas ainda ontem eu dizia à Sra. Paintendre: Verá a senhora que breve lhe dei de apresentar a Sra. Prieur. Então, enganei-me? As várias personagens que assistirão a esta cena nenhuma vontade tinham de contradizê-la: olhavam com olhos arregalados, e esse olhar parecia dizer:

— É muito descaramento, mas deixemo-la fazer; assim vai a cousa pelo melhor.

Ficou convencionada que era a Sra. de Louvain que casava sua sobrinha com um dos mais ricos e dos mais honrados proprietários de Chaville. A Sra. Paintendre encarregou-se de exaltar, por toda a comprida rua de Sèvres, as virtudes dessa terna mãe, que arranjara com tanta solicitude um rico estabelecimento para sua filha adotiva.

XXI

PAINEL

Um estatístico sustentou que a conversação de uma família poderia formar um volume em um só dia.

Agora que só temos algumas páginas à nossa disposição não nos demoraremos para ouvir todos os discurso que provocou, na casa de Chaville, a inesperada transformação que ali se operou.

Dolores, vendo-se livre de todos os seus pesares e constrangimento, gozava de uma doce serenidade. As lindas cores de seu rosto haviam reaparecido em suas pálidas faces, e sua esplêndida beleza tinha o brilho do primeiro desabrochar da flor.

Extremamente admirada ficou quando Heitor Prieur mostrou-lhe a sua imagem tão fielmente reproduzida por Frank; e perguntou a si mesma por que sortilégio pudera ele obter o seu retrato, não se tendo nunca feito retratar.

Matilde apresentou-lhe o pintor que ela conhecera em casa de sua tia, e que lhe manifestara tanto interesse; lembrou-se então da fixidade com que a olhava, quando devera estar todo absorvido no rosto da pessoa de quem fazia o retrato.

— Eis o mágico disse Matilde; mas o que não sabes, minha querida, é que esse lindo retrato foi encomendado pelo cavaleiro Banco. Felizmente o nosso Frank não quis ser cúmplice de uma traição.

— Senhora, disse Frank, desde que tive a ventura de conhecer-vos compreendi que o Cavaleiro não era digno de possuir a vossa imagem. Observando-o com atenção surpreendi-lhe projetos que me indignaram a ponto de resolver frustrá-los. Nunca eu me poderei esquecer da cômica ocasião que o acaso me deparou de fazer justiça ao meu modo; e quando voltar ao meu país terei grande satisfação em contar à minha noiva este alegre episódio da minha vida de artista.

— Não há acaso nisso, disse o Sr. Prieur, só há a dedução rigorosa da honra e da retidão. Quanto ao vosso regresso para a Alemanha, meu caro artista, ainda dista muito; pois que apenas principiastes as paisagens que vos encomendei, e previno-vos também que minha sobrinha é quase tão magica como vós, pois compromete-se a mostrar-vos o retrato fiel da vossa noiva.

— Seu retrato? disse Frank. Ah! compreendo agora o porquê me fizeste dar tantos esclarecimento relativamente a ela, e à sua família; porém nós, os artistas, não cremos muito na fotografia. Agradeço-vos sinceramente esta prova de amizade, mas crede que esta fria imagem só fracamente me poderá recordar a graça da minha doce Margarida, esta linda filha da floresta Negra.

— Peço-vos, Sr. incrédulo, que não condeneis o meu retrato antes de vê-lo, disse Matilde agastada; emprazo-vos para jantardes conosco ai mesmo, hoje, ás cinco horas da tarde.

Heitor Prieur, feliz com o desfecho de sua aventura, de que devia o triunfo à retidão de Frank, abria alegremente sua alma ao reconhecimento e à expansão. Queria recompensar por uma agradável surpresa a honradez de Frank e retê-lo ao pé de si.

Nisso não fizera mais do que obedecer à iniciativa Matilde, essa flor da caridade que definhando-se derramava seu derradeiro perfume, e que queria ver desabrochar em torno de si as efêmeras flores da felicidade.

Nada é impossível ao desejo de servirmos àqueles que nos são caros.

Matilde tinha em Bade uma família reconhecida que ia regressar a Paris, à qual pediu que trouxesses em sua companhia Margarida e sua mãe.

Os parentes de Margarida, ricos estalajadeiros das margens do Reno, sabedores da proteção que Frank encontrara na família Hauterive, não se recusaram a coadjuvar a surpresa que seus amigos queriam proporcionar.

Tudo estava pronto; Margarida e sua mãe achavam-se em Paris, de posse da amizade de toda a família pela sua graça e conduta. Crucifixo estava aos seus serviços. Em sua qualidade de Alsaciana vivia perfeitamente com renanas, com as quais era menos silenciosa do que nas precedentes cenas em que a vimos figurar.

Não há noiva alemã sem uma florinha azul à beira d`água. Abundavam felizmente os miosótis nas margens do pequeno rio que serpejava no sombreado jardim de Chaville. Foi aí que na hora aprazada aposentou misteriosamente o Sr. Prieur as duas senhoras alemãs, e onde Frank foi pontual em comparecer.

— Vinde, disse-lhe Matilde tomando-o pela mão, dizei-me se o meu quadro não é superior ao vosso.

Dolores, radiante de felicidade, acompanhava sua amiga. A débil Sra. d`Hauterive, apoiada no braço de Heitor, quis assistir ao reconhecimento dos noivos, e a Sra. de Louvain, que conservara intacto toda sua sensibilidade, fazia parte da comitiva.

Frank deixava-se conduzir sorrindo. Ele que tantas vezes se rira em prejuízo alheio, esperava ver mistificado por seus amigos, pois via através da folhagem uma senhora idosa vestida como as camponesas da floresta Negra, com seu rico toucado bordado de ouro, que fiava tranquilamente debaixo dos salgueiros.

— É sua mãe, exclamou alegremente Frank fitando a dita senhora, mas vos enganastes numa geração, pois sua filha (minha noiva) é mais moça do que ela.

— Não duvido, disse Matilde, mas chegai mais perto Sr. incrédulo, e não façais barulho.

Margarida, que se achava curvada na margem do rio, levantou-se e apresentou a Frank um ramo dessas flores azuis cujo o nome é não te esqueças de mim.

O magnífico efeito desse quadro fora imaginado por Matilde.

Essa fresca e loura alemã erguia as flores acima de sua cabeça, ria-se desse bom riso que descobre todos os dentes, estendia a mão a Frank e fala-lhe numa língua ignorada pelos espectadores, mas da qual apreciavam a harmonia e compreendiam aproximadamente o sentido.

A mãe de Margarida veio juntar seu animado dialogo ao dos dous felizes noivos, e Crucifixo, encantada desse encontro, fez em seu dialeto um comentário tão desarmonioso, que mais de uma circunstantes lamentou o tempo em que parecia muda.

Ao passo que esse par ditoso continuava sua doce conversação, debaixo dos salgueiros, Dolores apreciava nessa empresa toda a bondade de sua amiga.

— Por que, perguntou ela ao Sr. Prieur, vos escondeis para praticardes o bem? Por que não me dissestes com franqueza quais eram vossas ideias a meu respeito e dissimulastes por tanto tempo vossos projetos afetando a gravidade de um velho?

— Foi para melhor vos conhecer e amar, e também porque tereis receado da minha mocidade. Não vos teria podido atrair para esta casa, ao passo que meus cabelos brancos vos inspiravam confiança. Meu pai, que conhece meus projetos, vai chegar em breve para amar-vos como mereceis.

— Não foi sem premeditação, meu tio, disse Matilde, que há tempo nos contastes uma linda história de fadas. Lembras-te, Dolores? Tua amizade quebrou-o encanto e restituíste a beleza e a mocidade a este tio de comedia.

— Enfim, disse Heitor Prieur à Sra. d’Hauterive, confessai, minha querida tia, que não desempenhei mal o meu papel.

— Meu filho, respondeu a boa senhora, fizestes tudo para o bem. Vossas intenções eram tão puras que só temos de aplaudir-vos e ajudar-vos. Matilde, a quem vosso disfarce divertia, rogou-me de não opor ás vossas intenções; por isso é que vos dei plena liberdade.

— Como? disse Heitor Prieur, quereis fazer-me crer que me havíeis reconhecido apesar do meu disfarce?

— Nada suspeitámos, meu sobrinho; porém nada mais fácil de saber-se, visto que vosso pai nos preveniu por uma carta. Ha pouco recebemos notícias desse bom pai, de que vos tendes descuidado ultimamente e que ignorais ter de abraçá-lo em breve.

— Assim, disse o Sr. Prieur, ao passo que o julgava lograr a Matilde, era ela que mofava de mim?

— Ingrato primo, disse ela. A mim competiria fazer-vos essa exprobração pela vossa falta de confiança. Não é a mim que deveis o conhecimento de Matilde? Não vos dou eu o que tenho de mais caro, depois de minha mãe?

O contentamento geral obstava a que fossem sérias essas recriminações.

A vida humana compõe-se de acontecimentos inverossímeis tão contestáveis como as ficções dos romancistas. O que o autor deste quase verídico romance nunca se exprobará, sempre no interesse de seu bom êxito, é o feliz desfecho de suas pequenas histórias.

A pluralidade dos livros celebres, quer se refiram à verdade, que à ficção acabam de uma modo lastimável; desde a Ilíada, o Paraiso Perdido, o poema de Rolando, a Epopeia napoleônica, até Clara Harlowe, Manon Lescaut, Paulo e Virginia, Fausto, Werther, etc., etc., poder-se-ia dizer que tudo o que é bom acaba mal.

O autor das Legendas quis poupar o delicado temperamento de seus leitores, e é graças a essa atenção, que ele, em sua humildade, explica o bom acolhimento de suas obras literárias.

Vê-se cair o pano sobre a última cena deste drama, mas se lançarmos um derradeiro olhar sobre esses personagens que se retiram, saudando os espectadores, veremos a fraca Matilde, que só viveu para felicidade alheia, dando a mão a Dolores e Margarida; Frank e Heitor Prieur acompanhando suas noivas e sonhando venturas para o futuro; e a Sra. d’Hauterive, que olhando compassivamente para sua filha sente-se feliz de dar-lhe por companheira a terna e encantadora Dolores. Quanto à Sra. de Louvain, tranquila sobre o seu futuro, enxuga uma imaginaria lágrima, figurando-se ter ela mesma combinado esse feliz consorcio. (Todavia, a condescendência de Heitor não se estendia até conservar sob seu teto a ex-cúmplice do Cavaleiro.)

A dedicada Crucifixo vemo-la ficando ao serviço de sua querida Dolores, e o traidor Cavaleiro perseguido pelos credores e repelido para o último plano, para grande satisfação das almas bem formadas