Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

“Uma família modelo”, de Vitória Collona


Edição de referência:

Jornal das Famílias. Tomo 13, novembro de 1875, pp. 341-345.

Na cidade de Gênova ainda hoje existe um homem que sempre foi feliz. Nunca possuiu porém um palácio, ou sequer uma casa de campo; não teve carro, ou cavalo seu, não foi funcionário público, não gozou de honras invejadas pela maioria de nossos contemporâneos, nem desempenhou papel algum importante neste mundo. Concedeu-lhe porém a natureza o inestimável dom de ser um espírito reto, judicioso, bom e inflexível.

Todos os esforços reunidos não o houveram feito mudar de opinião em assumpto de bom senso, e probidade, e se alguém tivesse empreendido a tarefa de provar-lhe que nada possuindo tinha direito ao que os mais haviam adquirido, ou economizado, teria, com toda probabilidade, partido sua grossa bengala no dorso do socialista que tentasse convertê-lo a essas novas doutrinas.

É que além duma inteligência bem equilibrada, deu-lhe a natureza não só o amor do trabalho, mas ainda uma imperiosa necessidade de trabalhar agora, sempre, e enquanto tiver um sopro de vida.

Esse homem feliz é não obstante do número daqueles que poderiam ser tidos como deserdados da fortuna; porque se os ha – e infelizmente muitos – que são menos felizes do que ele, grande número de outros teria compaixão de sua felicidade, e se sois rica, amável leitora, talvez deixeis cair um olhar de piedade sobre a dita que empreendi fazer-vos conhecer. Julgai-o por vós mesmas.

O homem de que vos falo não tinha patrimônio; era militar, e, graças à retidão de seu espirito, e sentimento do dever, que soubera simplificar para utilizá-lo sempre, a todas as horas e em todas as circunstancias, em lugar de complicá-lo a ponto de não caber em nenhuma de suas ações, como com tão feliz resultado, fez a geração livre-pensadora de hoje, graças a uma exatidão metódica, e invariável pontualidade, foi sempre o que se designa com o nome de: um bom militar. Fora de sua irrepreensível atitude para com seus chefes e da disciplina rigorosamente observada por ele, não era tolerante sobre abusos, não era adulador, nem disposto a curvar-se uma vez que o serviço o não exigisse. Não querendo deixar a estrada real pelos atalhos, o acaso não o favoreceu; e por isso conservou-se por muito tempo nos postos subalternos. Somente ao reformar-se é que passou a capitão e foi condecorado.

Este homem tem o costume de julgar sua sorte não comparando-a com as mais brilhantes que a dele, mas sim com todas as que lha são inferiores; e é sem dúvida daí que lhe vem a felicidade de que goza.

Quando via promover um camarada, ficava satisfeito como sendo isso uma cousa justa, mas se as más línguas explicavam essa promoção por certas proteções e condescendências, ele interrogava sua consciência, sacudia a cabeça e conhecendo que nunca houvera querido subir por esses meios nada achava absolutamente que invejar a esse camarada.

Notai, com efeito, que quando muito se clama contra os abusos, quando se estigmatiza em excesso os aduladores, e se desprezam os condescendentes, abroquelando-se com uma inflexível virtude, isso não prova que se desprezariam esses mesmos abusos se fosse admitido a partilhá-los, nem que se considere a lisonja como cousa desprezível, e que se não seja capaz de certas acomodações; significava simplesmente que aflige ver o abuso cometido em favor de outrem, a lisonja em modo de bom êxito, e a complacência render alguma cousa. Nosso homem não declamava contra isso, fazia cousa melhor; abstinha-se.

Casara-se com uma moça que nada possuía: por aí vedes que era um esquisito. Em compensação tinha sua companheira um espirito de ordem que podia rivalizar com o dele, assim como o inextinguível amor ao trabalho, do qual nunca se desgostava. Era realmente a sua metade; aquela que Deus lhe destinara para sempre. A exemplo dele, não torturava o espirito procurando deveres sublimes fora dos já conhecidos, para desculpar-se a seus próprios olhos quando deixasse de cumprir esses, para acudir a aqueles.

Ficar em sua casa, cuidar dela, e de seu marido, suprir a força de trabalho, ordem e engenhosa economia à insuficiência dos meios, criar seus filhos nessas mesmas ideias e incutir-lhes a lei do dever, tal foi seu único cuidado na terra.

Como vedes, queridas leitoras, essa mulher era inteiramente simples; e se tivesse tido a infelicidade de conhecer uma das que são criadas para a civilização atual, as quais julgam que para mostrar superioridade de inteligência basta-lhes escarnecerem dos deveres morais que as almas virtuosas amam e veneram, é certo que a teriam olhando com desdenhosa compaixão; e no entanto, ela lhes houvera podido perguntar: rides do meu ideal, porque segundo vossa opinião ele é estreito? Pois bem qual é o vosso? Elas só lhe houveram podido responder: — a moda e as futilidades.

A minha heroína é boa mãe de família e por isso compreende instintivamente que a atividade lhe é prescrita; não perde o tempo em falar de si nem das outras, pois conhece que é por demais precioso para que o empregue tão mal. Não carece de logo pela manhã, preparar o almoço para a família? vestir os filhos e ensinar-lhes a ler? sentar-se depois à costura para fazer ou concertar a roupa de todos? preparar o jantar e achar ainda o tempo necessário para sair algumas vezes com o marido, ou receber visitas , e tudo isso feito convenientemente, e sem quebra de sua dignidade.

O nosso homem feliz tem três filhas; e três filhas numa casa sem meios são uma penosa carga, mas como ele é muito previdente desde que nasceu-lhe a segunda entreviu a necessidade de aumentar os meios do casal para a época em que houvesse de reformar-se; impôs-se a obrigação de aprender a arte de guarda-livros, o que obteve com facilidade, graças a seu espirito metódico.

Ao nascer-lhe a terceira, morreu-lhe um parente remoto, legando-lhe uma pequena herança. Descontadas todas as despesas, ficavam líquidos 30,000 francos: era a abastança introduzidas de súbito na família, era sem dúvida, mais um, ou dois vestidos por ano, um passadio mais suculento, e uma criada para ajudar a mãe dessa família. Ides ver porém como o homem feliz entendeu as cousas. Encarou como impossível encerrar-se no presente, e só cuidar em suas conveniências, cômodos e prazeres. Eis as reflexões que fez à sua mulher:

— Não temos bens da fortuna para dar às nossas filhas; devemos dar-lhes, não só uma boa educação, mas ainda uma profissão. Empregaremos esta herança do seguinte modo. Conservando-a intacta poderíamos deixar a cada uma renda de 500 francos, mas isso não basta para viver; elas poderão aumentar seus rendimentos, se conseguirmos dar-lhes uma boa profissão que exercerão com consciência, e com habilidade, se a natureza lhes der aptidões especiais —.

A mulher, que conforme já vos disse, não tinham espirito menos reto que o dele, aprovou portanto este raciocínio.

 Nada se poupou para a educação das três meninas. Ella foi dirigida militarmente sob o regime duma disciplina sabiamente mantida. Ensinou-se-lhes cedo a amar a Deus, a respeitar seus pais, e a considerar o trabalho como partilha de toda a criatura que se estima e quer conservar-se estimável. Não julgueis que desse lar fosse banida a alegria, ao contrário havia entre essas três meninas, e seus pais, jogos, que proporcionavam-lhes risadas inextinguíveis, recreios em dias fixos, e distrações conforme as estações do ano. Como tinham muitas privações, tinham também muitas alegrias. Um passeio campestre, um acepipe ao domingo, um pequeno presente nos solenes aniversários, eram durante o ano outros tantos pontos luminosos em que se sonhava com antecedência e de que se falava ainda muito tempo depois de realizados.

Foi nesses bons hábitos que as três irmãs cresceram e fizeram sólidos estudos. A mais velha depois de fazer o último exame, manifestou uma pronunciada vocação pelo professorado.

Havia nessa família tantas qualidades solidas, dessas qualidades indispensáveis, que tão poucas vezes se encontram; tanta exatidão, ordem, e consciência, que a moça não tardou em ter muitas lições. Não ganhava somas consideráveis; mas o lucro era regular, e permanente; por conseguinte profícuo.

A segunda mostrou grandes disposições para o desenho. O pai não desdenhando essa inclinação, destinou-a ao desenho industrial. Com muito trabalho, tempo, paciência e essa grande qualidade – a exatidão – que é a verdadeira felicidade da família, a moça conseguiu ter sempre trabalho. Ocupa-se atualmente em pintar louça e desenhar sobre madeira as gravuras das modas; numa palavra, ganha largamente para as suas necessidades.

A mais moça tornar-se-á uma hábil gravadora, a julgar pelo que já executa; pois grava as madeiras que a irmã desenha e não tem menos trabalho que ela.

O pai tinha demasiada probidade, ordem, e respeito ao dever para não aproveitar seus lazeres. Reformou-se há alguns anos, e a sobriedade com que sempre vivera, preparou-lhe uma robusta velhice, e o escoamento dos anos enriqueceu-o de experiência e não de enfermidades. Fixou-se em Genova onde desempenha as funções de caixa numa grande casa de comércio.

Qual verdadeira colmeia todos trabalham nessa casa. Levantam-se ao amanhecer, às vezes mesmo no inverno, almoçam juntos, e em seguida vae cada um para o seu trabalho.

Com que satisfação reúnem-se na hora do jantar, em que contam-se reciprocamente os menores acidentes do seu dia. Comunicam-se as impressões, os resultados adquiridos, as experiências para o futuro, e discute-se longamente em família a compra dalgum objeto necessário para a casa, ou dalgum vestido. À noite o pai lê em voz alta em quanto a família cose ou borda, sentada ao redor da mesa. Só vão ao espetáculo nas grandes solenidades, depois de bem discutida a escolha da peça e do teatro. Nos Domingos assistem à primeira missa depois da qual se é tempo de verão, vão passear na Acquasola[1], e se é no inverno dirigem-se às galerias dos palácios Durazzo, Brignole, Pallavicini, Spinola, Balbi, etc. na segunda feira voltam às suas ocupações habituais.

Não tinha razão quando vos apontava esse homem como um ente verdadeiramente feliz, e essa família como um modelo?

Somando hoje o que cada membro dessa família ganha pelo seu trabalho, o soldo do pai, e o rendimento da pequena herança que tiveram, perfaz-se a soma de 12 mil francos anuais: não penseis porém que os gastem inteiramente; não devem eles prever os maus dias? estão por acaso isentos duma enfermidade, que lhes diminua forçosamente os rendimentos? não: por isso cada filha tem seu pecúlio….

O que custa é a primeira economia porque depois dela o pecúlio aumenta de dia em dia, a menos que não venha uma Comuna tirá-lo em nome da imortalidade contida no capital!



[1] Passeio público na cidade de Genova.