LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
“A filha do tropeiro”, de Adolfo
Edição de referência:
Jornal das Famílias. Tomo 2, fevereiro de 1864, pp. 29-35.
I
Não só nas cidades populosas, ou no meio dos salões dourados, ao ruído dos prazeres e das galas do mundo, se deve estudar o caráter da sociedade contemporânea, e retratar a luta das paixões humanas, que constituem o fundo do grande quadro da vida. Os romancistas modernos tem explorado até quase à saciedade este assumpto, tanto pelo lado dos tipos mais elevados da escala social, como entre o povo, e sobretudo a classe média, que conta na lista de seus ilustres historiadores fisiológicos o nome do imortal Balzac.
Se os trabalhos deste gênero não estão por ventura ainda realizados entre nós, apesar de algumas tentativas felizes que recentemente se hão feito, o que diremos quanto aos costumes e ao viver do interior do país, que naturalmente muito menos atenção tem merecido até hoje daqueles que se consagram a esta natureza de estudos?
E, no entanto, é este um verdadeiro mundo novo para as descobertas dos engenhos imaginosos e das inteligências criadoras!
Se os modernos escritores pouca importância tem ligado geralmente à observação da vida dos campos, e ao circunstanciado exame de sua feição particular e distintiva, que forma um dos aspectos mais pitorescos, e talvez o mais original, apesar de sua aparente monotonia, do cunho especial da nossa civilização, não devemos de certo estranhar que entre nós, em um país novo, onde a literatura e as artes não chegaram a um satisfatório grau de florescência, poucos ou quase nenhuns tenham sido os tentames ensaiados neste sentido, e que, além dos trabalhos mais científicos que literários, concebidos e realizados a maior parte deles por viajantes estrangeiros, não contem as letras pátrias obras onde se descrevam e relatem as gigantescas maravilhas da natureza intertropical, e a epopeia não menos grandiosa, se bem que rude e selvática, do viver e das paixões dos habitantes do interior de nossas imensas e quase desconhecidas províncias.
A razão é, porém, simples. Entre nós não se viaja por estudo. Só interesses muito urgentes é que podem fazer-nos alterar os nossos hábitos de vida sedentária e arrancar-nos às comodidades do conforto burguês. Viajar é para a maior parte; senão para todos os nossos sisudos e pachorrentos burgomestres da fortuna e das posições oficiais, uma ideia extravagante e louca, que lhes inspira piedade e até quase compaixão por aqueles, raros, que o intentam. É mais apetecível rodar em carruagens, ou reclinar-se em poltronas estofadas, que expor-se às intempéries das estações e às rudezas dos caminhos; embora, quando tenham por ventura de tratar de seu próprio país, manifestem mais ignorância e menos conhecimento dele do que os hospedes estranhos que nos visitam.
É sabido por longa experiência qual a importância que infelizmente merece entre nós a iniciativa de qualquer trabalho intelectual. Aquele que não presta imediatamente serviços a qualquer dos bandos da política militante, seja embora sagrado pelo consenso da opinião pública, morre à mingua e de fome, porque os governos desconhecem a sua utilidade, e as letras no Brasil não são ainda uma profissão que garanta os meios de subsistência ao homem estudioso.
Quando isto acontece aos próprios filhos do país, o que sucederá àqueles que, tendo nascido em outro torrão, vieram buscar uma outra pátria na esperançosa e nascente civilização da América?
Esse nobre espírito de associação, e direi até de solidariedade, que liga presentemente os interesses de todas as classes sociais no mundo civilizado, e consubstancia na união coletiva das forças individuais o direito ao trabalho, a remuneração ao esforço pessoal, é ainda uma utopia entre nós. Embora as relações sejam mais ou menos cordiais entre os poucos indivíduos que no Brasil se dedicam às lucubrações intelectuais, a sua sorte, o seu destino, o seu interesse é completamente alheio ao pensamento e aos cuidados de seus confrades. Assim, o escritor isolado vê-se na rigorosa necessidade de entregar-se a qualquer ramo de indústria especulativa, para que não tem vocação nem habilitações; e muitas vezes de uma inteligência superior, de um talento eminente, faz-se um comerciante desgraçado, um instrumento passivo de alguma ambição poderosa; e todos olhão com indiferença para o astro que se sumiu, aplaudindo não raramente as mediocridades que se levantam.
Apesar de tudo isto, o fogo sagrado não se extingue na alma dos verdadeiros crentes. A imprensa é um sacerdócio augusto, que exige, como os cultos da antiguidade, sacrifícios incruentos. O homem que se sente inspirado pelo espírito de Deus, e devorado pela sede do saber, devassa os domínios do pensamento, encosta os lábios sequiosos às fontes da vida e da verdade, e não se abate ante as contrariedades mesquinhas do seu tempo, nem sucumbe às acintosas provocações da maldade ou dos preconceitos do dia; caminha, porque a sua missão não é da terra, e não podem pagar-lhe o salário da obra que desconhecem os poderosos que o cercam; caminha, só embora, mas com fé ardente no futuro, com esperança na justiça da posteridade; caminha, e, em qualquer combro da estrada, em qualquer praça da cidade, em qualquer encruzilhada do caminho, em qualquer solidão do deserto, como os antigos missionários do catolicismo, levanta um púlpito, sobe a uma cadeira, e proclama com o entusiasmo de sua crença e o ardor de suas convicções a interpretação dos oráculos, as revelações da sibila, que em palavras de fogo derrama na atmosfera inquieta, embora pesada e nebulosa, do seu século!
O autor destes ligeiros contos não tem a vaidosa pretensão de apresentar os seus trabalhos como provas para corroborar estas suas reflexões; espera que lhe não atribuam tão estólida vaidade; mas crê que não será de todo perdido o seu esforço em convidar os bons engenhos brasileiros para esta senda tão pouco explorada e tão original da nossa literatura. Assim sairemos do caminho trilhado das imitações do estrangeiro, para entrarmos no terreno das criações nacionais, e ocuparmos o lugar que nos compete no mundo das letras, embora os afãs individuais continuem a não encontrar proteção nem auxilio naqueles que os deviam instigar.
II
O tropeiro da Fazenda Velha, situada nas proximidades da vila da Paraíba do sul, era um homem de quarenta anos, filho da província de Minas, de estatura corpulenta, aspecto varonil, peito descoberto, e mãos calosas requeimadas pelo ar dos sertões e pelo sol ardente das estradas e das montanhas.
Era o tropeiro um verdadeiro homem do povo na sua acepção mais genuína. Laborioso e honrado, valente e generoso, os seus sentimentos naturais haviam conservado nele todo o seu primitivo ascendente, sem que o trato rude de sua vida avezada aos mais grosseiros misteres, e o contato com os homens pela maior parte semibárbaros de sua classe, lograssem afrouxar a sua virtude ou desvia-lo da senda direita da probidade e do bem.
Estes exemplos não são dos mais frequentes nestas asperezas dos últimos elos sociais; por isso registramos com cuidado uma das raras exceções destes infatigáveis e quase sempre desgraçados operários das desconhecidas e inglórias missões da existência humana.
Manuel Ventura, que assim se chamava ele, tinha por única propriedade, depois de trinta e tantos anos de uma vida fadigosa, um pequeno quarto apenas no extremo do terreiro da fazenda, onde morava com sua filha Emília, único fruto que lhe ficara de sua união conjugal, pois havia seis anos que tinha perdido sua mulher.
Emília era uma moça de dezoito anos, alta e esbelta, de rosto moreno e cabelos pretos, e esse ar indolente e requebrado que dá uma particular expressão de voluptuosa graça às filhas do país.
Seu pai tinha nela um tesouro, e ela no rustico tropeiro um amparo e um arrimo seguro aos seus anos inexperientes.
Quando o sertanejo saía com a tropa, Emília acompanhava-o até à porteira, e, depois de lhe dizer um afetuoso adeus, regressava, não para o seu quarto, mas para o interior da fazenda, onde a família do proprietário a recebia como parenta, e ali se demorava até que voltasse o tropeiro, fazendo-lhe companhia em todo o tempo que ele se demorava em descanso até a próxima jornada.
A singular harmonia destas duas existências tão divergentes na aparência, mas tão estreitamente unidas nos íntimos sentimentos de suas almas, era um desses fenômenos que não devem passar desapercebidos, mesmo quando todos os laços do sangue parecem cimentar estas santas e doces uniões dos espíritos na convivência doméstica.
Emília estremecia seu pai com todo o afetuoso carinho do mais acrisolado amor filial: velava por ele e junto dele como o seu verdadeiro anjo da guarda. Manuel Ventura acreditava que sua filha era um transunto da divindade, um incentivo sagrado aos labores de sua existência, e uma garantia antecipada da salvação que esperava merecer a datar a vida futura.
Manuel Ventura, quando se ausentava da fazenda, sentia involuntariamente angustiar-se-lhe o coração, apertar-se-lhe a alma, e, depois de perder de vista a porteira do vasto terreiro, seguia vagaroso e pensativo atrás do último lote da tropa, que ora desfilava pelas picadas desiguais das extensas várzeas, ora subia preguiçosa as curvas escabrosas e as abas estéreis dos grandes morros do caminho.
Quando às vezes, ao passar em algum córrego, os animais se demoravam alguns momentos a refrigerar-se bebendo a agua corrente, Manuel Ventura apeava-se de sua besta pangaré, sentava-se em uma pedra solta da estrada ou encostava-se ao tronco de alguma arvore, puxava a faca do cinto, cortava o fumo, e, enrolando o seu cigarro, fumava passando as mãos pelas barbas, ou limpando o suor da fronte, embebido em profundas reflexões.
Emília era o seu pensamento constante.
Quando ele tapava uma cruz na encosta do monte ou na quebrada da serra, ou passava em face da igreja da freguesia, o bom tropeiro tirava religiosamente o seu chapéu, e pedia mentalmente a Deus que vigiasse pela sua filha abençoada e querida.
Ilimitada era a confiança que Manuel Ventura tinha na segurança em que estava Emília, confiada aos cuidados de seus amos, que muito os estimavam, e a quem eles retribuíam com sincera dedicação; uma moça está, porém, exposta a tantas ciladas, corre ela tantos perigos, que todos os cuidados são poucos para que se não exponha às desgraças que por ventura podem sobrevir, por mais calma e tranquila que corra a existência de uma donzela.
Emília havia já sido pedida em casamento por diferentes rapazes da sua classe, a quem ela não podia deixar de cativar pela sua formosura, e pelos dotes e prendas que a faziam sobressair entre todas as companheiras das circunvizinhanças. Ella, porém, mostrara-se insensível sempre a todas estas demonstrações de amor, e dizia a todos que estava resolvida a não sair da companhia de seu pai, pois este reclamava os cuidados que não podia nem devia negar-lhe como seu único parente no mundo.
Assim se passava há muitos anos a existência destes dous entes tão dignos de apreço, quando a fatalidade do destino, que nos persegue com tanto mais acinte quanto mais contamos com a felicidade, veio um dia romper a paz daqueles corações, no meio de uma catástrofe que não podia ser conjurada pela mais prudente previsão.
III
Celebrava-se a festa de S. João na Fazenda Velha.
Por uma deplorável coincidência, Manuel Ventura havia partido poucos dias antes para o porto da Estrela, e não podia este ano, em companhia de sua filha, festejar o santo de mais popular devoção que se conhece em nosso calendário.
É uma noite de prazer e alegria a noite abençoada das sortes e das danças, que nos recorda os animados folguedos de outro tempo, e nos incita ao júbilo e à felicidade.
Na roça, mais que nas cidades, são este dia e esta noite animados. Abundantes refeições são oferecidas aos hospedes, que, às vezes de longes distancias, vem tomar parte nos divertimentos do campo e passar alguns dias na fazenda. As danças e as pantomimas dos escravos, a quem nesse dia são concedidas algumas horas de liberdade, os fogos de artificio, os toques da música, as cantorias, os fados, tudo isto forma um conjunto de agradáveis distrações que contrasta agradavelmente com a paz e sossego habitual do interior das nossas vivendas campestres.
Grande era o concurso de pessoas que este ano tinham vindo passar a festa de S. João na Fazenda Velha. Tudo ali parecia respirar o contentamento, tão animado era o movimento, e cordial a intimidade em que todos viviam.
Apesar de muitos fogos que se haviam queimado na véspera do dia do santo, era nesta noite que devia ser mais estrondoso o divertimento. Na sala, na varanda, no terraço da casa, em toda a parte se dançava, cantava, conversava, passeava, e comentava os episódios chistosos, os acontecimentos mais vulgares da vida, que, nesses momentos, porém, de geral entusiasmo, tomam proporções que ninguém se lembraria de lhes dar nas horas de tranquilo remanso da vida doméstica.
Emília tinha sido o alvo de todos os cortejadores de uma certa ordem, que, se bem não tomassem parte ativa nos folguedos, na intimidade da família, vagueavam no terreiro, e faziam parte da chusma dos concorrentes que costumam tomar parte nestes fastos de um certo cunho popular.
É tempo de dizer aqui que, entre os que mostravam tão grande predileção pela filha do tropeiro, havia um moço de condição mais elevada, que não era indiferente à terna e formosa Emília.
Ele, porém, era modesto, e não fazia ostentação desta quase desconhecida preferência, como os outros, que julgavam desse modo chamar com mais direito a atenção da moça. Pelo contrário, Justino, que assim se chamava ele, guardava o seu segredo, como o seu amor, no íntimo do coração.
A reciproca afeição destes dous entes, que se estimavam sem quase haverem ainda revelado os seus sentimentos um ao outro, e que escapava perfeitamente a todos, tal era a discrição de Emília e a prudência de Justino, foi por assim dizer adivinhada por um dos mais atrevidos cortejadores dela, o qual reunia a todas as más condições de uma vida desregrada um aspecto repugnante, e modos tão grosseiros que bastariam por si para o arredar de toda a concorrência com Justino.
Foi entre estes dous que se travou uma renhida luta, perto da porteira da fazenda, na noite que se festejava o S. João na Fazenda Velha, onde há pouco introduzi os leitores.
O feroz adversário de Justino provocou o seu rival a serias explicações acerca das relações que supunha existirem entre ele e Emília, e deste conflito resultou ser barbaramente assassinado com uma porção de facadas o infeliz mancebo, que nem ao menos teve tempo de defender-se da inopinada agressão do malvado assassino.
É fácil imaginar qual seria a sensação que tal acontecimento, e em semelhante dia, produziu na família do fazendeiro e entre os seus convidados!
O facinoroso escapou-se a todas as pesquisas, e não foi possível encontra-lo para o entregar à justa punição da justiça.
Emília caiu como fulminada de um raio!
IV
Quem ainda há poucos anos passava junto do cemitério da Fazenda Velha, nas tardes de algum dia bem triste, quando parece que a natureza chora com os homens como amorável companheira, encontrava, ajoelhado diante de uma cruz de madeira pintada de preto, um velho calvo e de cabelos brancos, com a fronte descoberta, e os olhos escondidos entre uma das mãos, em quanto a outra lhe pendia desanimada ao longo do corpo.
O velho era Manuel Ventura, e a sepultura em que ele orava a de sua filha Emília.