LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
“A flor do baile”, de Ferreira de Menezes
Edição de referência:
Jornal das Famílias. Tomo 1, abril de 1863, pp. 97-103.
Principiarei, amáveis leitoras, repetindo o que escreveu Dumas filho, na folha de um dos seus romances:
— Não tendo ainda a idade de inventar, contento-me em referir.
A minha história é velha, mas verídica, e portanto, nova sempre — como a primavera, o nascer do sol, a noite, as verduras das matas.
A redação deste jornal recomendou-me um conto simples e breve, e que pudesse entrar no vosso toucador; por essa dita muitos bem-aventurados trocariam a mansão celestes. O toucador de uma dama é um templo: ali nas dobras daquelas cortinas, quanto mistério e quanta poesia dorme em silencio; esse espelho quanto segredo tem surpreendido, e no divã quantas vezes tendes debruçado a cabeça, quantas vezes a mão de neve tem-se afogado nas ondas do vosso cabelo negro, e quantas lágrimas tem brilhado neles como outrora as de Gulnare nas correntes negras do Corsário?!!
Falei em cabelos e cabelos longos, leitoras, porque sei que os tendes e não os-sacrificastes à ridícula tonsura, não é assim? Se não, deixai-me iludido.
Luiz Antônio era um poeta, pouco mais ou menos: tinha vinte e um anos e era estudante; de fisionomia triste ou alegre segundo a atmosfera,- jovial e sarcástico algumas vezes — às horas do café;- outras melancólico, reservado — às horas do crepúsculo, quando as nuvens palejam e coram pudibundas aos beijos mornos, últimos do sol; e não era de espantar — ao acordar da natureza — às rúbidas cores da madrugada, quando tudo canta e sorri: os raios do sol na face das águas, nas folhas, nas gotas de orvalho; quando os montes se espreguiçam sonolentos e descobrem-se do véu de neblina que tomam à noite — não era de espantar, digo, - uma lágrima, deslizando pela face imberbe do mancebo até os contornos do seu buço acetinado, e porque uma lágrima — quando tudo era cantiga e hinos, quando as flores respiram e embriagam de perfumes?
— Porque o poeta considerava que todo esse dia — que alentava-se tão puro e deslumbrante, ser-lhe-ia vazio de felicidade, inútil e tedioso.
A desgraça é uma ocupação terrível na vida, mas o vácuo, o nada?!...
Luiz Antônio não procurava um romance como Paturot uma posição social, mas roía-lhe a saudade de uma cousa que ainda não conhecera na vida — a felicidade, o romance.
E por isso era poeta: tinha ingenuidades de fazer rebentar o riso: entre outras sonhava os amores eternos, poéticos, vividos à sombra das matas, e dos jequitibás frondosos, ao teto das choças, nas vertentes dos montes, na fonte das cachoeiras, nas velas brancas das canoas — ao longe, como azas de esperança — no horizonte do infinito; tinha temores que condoíam — por exemplo: não encontrar amor, renegar da poesia e tornar-se homem da época.
Era, portanto, Luiz Antônio, pouco mais ou menos, um poeta e nem para isso lhe faltava o amor das virgens, das flores e das estrelas.
Um dia Luiz, que residia em Niterói — veio para a corte mais cedo do que costumava: eram sete horas da manhã; sabeis, leitoras, o que é Niterói, de manhã e no verão; as ondas rumorejam e faíscam na areia branca, a barra é toda fogo — as águas cintilam — e circundam em banho morno, - Guanabara — a princesa do vale — que como a Vênus antiga, parece nascer das ondas... e as velas brancas como azas de garças ao longe, leitoras... e a serrania e Niterói e o bando de mocinhas à banhar-se alegres e tumultuando, como brancas gaivotas?...
Luiz chegou à Ponte das Barcas.
Estava algum tanto aborrecido, trajava simples e fumava com uma distração de tedio.
Uma risadinha franca e alegre, uma dessas risadinhas, leitoras, que só as dá quem tem boca pequena e rubra e os dentes alvos, acordou o poeta, que voltando a cabeça, viu um ancião que dava o braço à uma moreninha pálida, de dezoito anos quando muito.
A loura ria-se às palavras vagarosas mas facetas do velho; ria-se, ria de tão graciosa e voluntária o anjo — que era contagio e todos espaireciam as frontes, que a trinar do passarinho, ninguém jamais curvou-se triste.
Luiz voltou a cabeça com humor e antipatizou com aquela menina de olhos pretos e tristes, ainda que por vezes lampejassem um jubilo vivaz; vestia ela uma saia de seda sombria e um zuavo de vivos escarlates, as mãozinhas seguravam um chapéu de palha de enfeites violetas, os cabelos longos e molhados (ela vinha do banho) caíam-lhe em manto sobre as espaduas.
Luiz encostou-se ao tabuado da ponte e esperou que os dous passassem.
- E o Oliveira, o que dizes do Oliveira, Terezinha? — perguntava o velho.
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- Digo que me parece um figurino, respondia a menina.
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- Ora, figurino! Figurino como vocês outras figurinas.
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- Não é só no trajar, meu tio — que ele parece figurino, é também na expressão do rosto: aquele bigode do doutor Oliveira e aquelas barbas inglesas, são tão perfeitas como as dos figurinos; nós outras, vestimo-nos como os figurinos, mas não temos o nariz, nem os olhos como eles. Possuímos um que de irregular, mas que é nosso, e que não se pode retratar. E a travessa riu-se tão graciosa, e respondeu tão airosamente ao comprimento de Luiz quando ela e o velho passaram junto dele, que o poeta sorriu também e murmurou consigo: - Que diabinho!
-
Leitoras, esse termo aqui é um sacrilégio, mas lembre-se de que Luiz Antônio era estudante.
Chegados ao fim da ponte, Terezinha e o velho pararam — mas por que seria? A menina ainda não lhe esvaecera o sorriso e já pendera a cabeça na mãozinha, os cílios cerraram-se um pouco, e uma cor leve de tristeza tingiu aqueles olhos, à instante tão vivos.
Leitoras, quanto é linda, docemente linda, a beleza pensativa, a meninice num quebro langoroso, nublar-se em cismas, como as estrelas límpidas nos vapores da noite!
Por que seria, leitoras?
Acaso a louquinha, pretendeu ler um nome, a sina, no cintilar das águas?
Por que seria?
Não sei, nem também soube o poeta. O certo, porém, é que ele dobrou de atenção, e que no seu rosto refletiu-se a melancolia de anjo, a melancolia dourada de um riso tênue e frouxo... iriando-lhe a expressão, como através das gotas da chuva os raios do sol.
Os sonhos durão menos do que os pesadelos, e Luiz Antônio viu bem contrariado chegar o vapor e teve de abandonar, quem sabe se para sempre, o sonho?
Ai! quantos lampejam um instante na vida, na imaginação do poeta, e logo somem-se nas trevas, como os vagalumes na noite? Sonhos e ilusões! Sois tão puros, mas tão amargos!
Leitoras, como cada um de nós não concorda do sistema de levar o herói à casa, entrar com ele, e segui-lo, e explicar-lhe as palavras, e nomear-lhe a ascendência, e descortinar-lhe a alma, findaremos aqui este primeiro capitulo, e passaremos ao segundo.
II
A cena deste meu segundo capitulo deve representar os salões de um baile, de cuja descrição dispenso-me, pois que fora ocioso à imaginação das leitoras.
O baile já vai em meio; a orquestra descansa; cruzam-se os pares, os ditérios e as douradas banalidades.
Aposto que todo o mundo conhece, entre todos estes mancebos risonhos, acessórios forçados de todas as festas, aquele tristonho e vestido de preto?
Sua fronte está carregada; nos seus lábios contrai-se um riso amargo, e no entanto nem por um momento esquecesse de ser amável e cavalheiro.
Todos conhecem pois o moço.
É Luiz Antônio.
Está inquieto, e seu olhar investiga sôfrego a entrada dos salões: os poetastros da moda, os glosadores de sobremesa, diriam em prosa arrebicada a proposito dele: “Está o baile um perfumado buquê, das mais escolhidas flores, mas à Luiz Antônio ainda falta uma.”
Esta flor, pelas leis forçadas do romance, e pela lógica dos factos comuns da vida, adivinhão já todos quem deve.
É a moça de Niterói; é Terezinha.
Para economizar lances e palavras, e períodos arredondados e floreios de figuras, declaremos: Luiz Antônio estava apaixonado por Terezinha, e esperava por ela.
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Tereza entrou nas salas. Era uma menina débil e mórbida, vinha de branco, uma fita cor de cana apertava-lhe a cintura; na cabeça, dentre as bastas tranças do cabelo, uma rosa branca como ela, aparecia risonha.
Um que de doentio anuviava-lhe a fronte; um sorrir frouxo lhe transparecia nos lábios.
Oh! já não era aquela travessa Terezinha de Niterói!
No ofegar daquele seio sentia-se o amor, os sonhos da virgem e a morte, cuja sentença, melhor do que ninguém, Luiz Antônio lia-lhe na palidez da fronte, no rubor atrabiliário e passageiro das roscas das faces.
À que barbara sina estavas condenada, ideal mimoso!
Tereza entrou pelo braço do velho tio. Luiz correu à eles, e no olhar que dirigiu à Tereza e no movimento da cabeça traduziu uma dor e um desengano.
Ah! pobres daqueles que assim vêm finar a ventura, que assistem impotentes e desesperados do despegar de folha por folha das rosas da esperança!
Pobres!
Luiz Antônio deu o braço à Tereza.
Ao vê-los houve um murmúrio na sala, desse murmúrio que saúda os tribunos, as testas coroadas e as rainhas da beleza.
Houve um murmúrio e vozes que diziam:
— Chegou a Flor do Baile!
E outras que foram repetindo:
- Chegou a Flor do Baile!
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Tereza era apelidada a — Flor do Baile — pelo seguinte: bela e pálida como essa delicada flor; era uma dor vê-la de dia. Tão funda e triste era a sua melancolia, tão frequentes eram as lágrimas, que ela própria chorava sobre a sua sorte; à noite, porém, e nos bailes, que ela estremecia em delírio, aquele corpo franzino lançava-se fremente nas loucuras da valsa. As faces incolores tingiam-se de escarlate e afogueavam-se, e era antes uma visão do que uma mulher aquela menina: ajuntai à isso, as luzes, os perfumes, as harmonias, mil hálitos inflamados, o magnetismo de mil olhares, a poeira dourada e eletrizadora que envolve a todos, e sairíeis fascinadas e concordaria em chamá-la a — Flor do Baile. –
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- Teimas então em dançar? disse o velho à Terezinha.
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- É o meu único prazer, meu tio! respondeu ela num sorriso leviano.
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- Faz-te tanto mal!
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- Que importa! Não estou já condenada!...
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- Não digas...
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- Vamos, Luiz, uma valsa! Quem sabe se não será a última?
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E ao sinal da música, a louquinha já batia com o pé de impaciência.
Sumiram-se ambos no turbilhão... Por vezes aparecia e fugia mais rápida uma menina que inclinava a cabeça no ombro de um galante cavalheiro... mas dama e cavalheiro... rápidos fugiam!...
- O que há? disse Luiz Antônio parando.
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- Nada! respondeu Tereza; estou cansada. Ai! como é tão bela a valsa! Se no céu... interrompeu-se, porém, num sorriso.
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E levou aos lábios o lencinho branco.
- O que temos? perguntou correndo o velho.
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- Nada... a tosse intercortou-lhe a palavra.
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E com uma triste meiguice escondeu o lenço e debruçou a cabeça no ombro do velho.
- Vamos, estás cansada, disse este.
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- Vamos, murmurou ela. — Adeus, Luiz, foi a última!
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E volveu rápida a cabeça, para que ele não lhe visse a lágrima — a perola.
O poeta ficou extático no mesmo lugar; viu-a envolver-se na capa, acenar-lhe de novo o adeus num sorriso, e desaparecer...
— Oh! haverá Deus?! blasfemou o misero.
“Bem tristes os nossos amores, Luiz... Pobre de ti!... Que aí ficas no mundo sem luz e sem conforto... Que a tua estrela fui eu... eu que vou te deixar em trevas...
“Tereza!...
“Oh! não!... Pobres sim dos que morrem... A terra deve pesar tanto... E que azas terá a alma para voar aos céus, se as-corta a dor, a saudade da terra!... Sou tão moça, tenho tanto amor no peito!...
“Tereza! ouves?... Vês aquela estrela tão límpida, tão fulgurante... Pois bem... essa foi a tua, enquanto eu viver; sempre conversarei com ela. Pois me parecerá que conversarei com a tua alma? E tu me responderás?...
“ Oh! minha vida! porque nasci, se tão cedo devera morrer!... Mas não; quem diz que eu vou morrer?... Não tenho nada no peito; o que aqui palpita é o amor de Deus, do mundo e de ti, Luiz... Louco!... que acreditaste na fabula de todos esses médicos...
“Não vês como é franco e argentino o meu riso, tanto... tanto, como nos dias da vida...
“Ah! ah! seremos muito felizes... De hoje a um mês estaremos casados!... Habitaremos uma casinha à sombra das jabuticabeiras; as águas das cachoeiras segredarão mistérios nos seixos e nas pedrinhas douradas... Quanta felicidade!... Luiz, ajoelha e ora... que sinto-me toda do céu... e tenho vontade de chorar. Mas vês?... É um choro que se mistura de riso... Amava-te tanto! Deus!...
“Minha Virgem santa!...
“Tereza! Tereza!
“Não respondes?... Socorro! socorro!... Tereza morre! Tereza morre!”
Toda esta cena dolorosa e intercortada dava-se numa varanda ou terraço que avançava-se para o mar.
A noite era de ardentias, as ondas mugiam batendo nas pedras da praia; uma orla de fogo era como as franjas de ouro de um manto verde-azul. O ar ia tépido e morno; a estrela Vésper brilhava no horizonte. Nuvens azuis lhe serviam de leito. Ao longe nas salas, o piano soluçava aos dedos de algum inspirado... Tudo era cântico, harmonia e mistério, quando Tereza morria e voava aos céus.
EPILOGO
Entre as lousas do cemitério de S. João Baptista, uma existe simples e sem epitáfio. A onze de todos os meses um mocinho triste e simpático espalha sobre ela saudades perpetuas e flores do baile. É uma excentricidade: mas não ria-se ninguém dela; nem queira conhecer as causas. O moço passa o dia inteiro no cemitério, e muita gente tem-lhe visto lágrimas bem abundantes. O que faz invejar a sorte da finada, lembrando-nos dos versos de Gonçalves Dias:
Feliz quem dorme sob a lousa amiga, tépida talvez com o pranto amargo dos olhos da aflição...
J. F. MENEZES.