Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

“Horrível tragédia”, de D. Maria de Albuquerque


Edição de Referência:

Jornal das Famílias. Tomo 5, maio de 1867, pp. 146-152.

Sim, minha boa Margarida, dizia eu largando o meu bordado ao decair de uma tarde de Setembro à santa criatura que me ajudou a criar na infância, que tanto trabalhou por consolar-me da perda de meus pais substituindo-os quando em si coube no carinho, e que até hoje tem sido sempre a minha companhia: sim, minha boa Margarida, tão moça ainda e tanto tenho já padecido no mundo! A orfandade, o isolamento, a saudade, a incerteza da minha sorte... tudo, tudo me tem enlutado a existência! E não obstante, de tudo me indeniza hoje o amor de Júlio! Tão nobre! Tão sensível! Tão dedicado!... Com que lealdade faz justiça aos meus sentimentos; com que previdente delicadeza adivinha os meus pensamentos, e satisfaz os meus menores desejos!! Depois que o amo poucas vezes me recordo de que fui tão infeliz... cerca-me de cuidados e mimo, que me não deixa pensar no passado, nem escudada do seu amor temer o futuro! E que posso eu hoje recear? Breve os nossos destinos vão formar um só, e eu acharei reunidos no meu Júlio os carinhos de amante, a proteção de esposo, e os conselhos de pai.

A minha boa Margarida, que me escutava com os olhos úmidos de lágrimas, respondeu-me comovida:

⎯ Deus abençoe o Sr. Júlio como eu o abençoo por ter enxugado as lágrimas da minha querida menina com o seu nobre e desinteressado amor... o Sr. Júlio é um bom e leal coração.

Acabava ela de proferir estas palavras quando senti bater na porta. Estremeci de prazer pensando que seria ele que viesse ver-me um pouco mais cedo da hora do costume... enganou-me o coração: era um criado que da parte da minha amiga Cecilia me oferecia um lugar no seu camarote no teatro de D. Maria Segunda.

Eu tinha expressa recomendação de Júlio para aceitar todos os convites d’esta natureza, por ele saber que de todos os divertimentos públicos o teatro é o único que me agrada.

Sempre aborreci o bulício dos bailes, aonde os que dançam se cansam para entreter e divertir os mais! Aonde nos vemos cercados pela maior parte de estranhos e indiferentes, mas que criticam e analisam minuciosamente a nossa maneira de nos apresentarmos, as nossas palavras, o nosso ar, os nossos gestos, e até o modo por que nos assentamos e voltamos a cabeça! As que se apresentam, desembaraçadas e senhoras de si, raro é que não sejam alcunhadas de desenvoltas e pouco modestas; as sisudas ou acanhadas, de desenxabidas ou insipidas! Esses encantos do baile, esse sonho dourado das doudejantes raparigas: isto é, esses apertos de mão, esses olhares estudados ao espelho, essas palavrinhas doces, mas afetadas e mentidas, essas valsas voluptuosas, esses amores finalmente semelhantes à borboleta que voa de flor em flor, sugando o mel de cada uma, pousando em todas sem fixar-se em nenhuma, e sempre em busca de outras novas e diferentes, não podem ter atrativos para a mulher sensível que só deseja encontrar um coração que aprecie o seu, e como ele saiba sentir. D’estes achados não há nos bailes... os bailes podem enfeitiçar e encantar a crédula inocente que julga ver em cada contradança pedida uma declaração... em cada olhar uma conquista... ou a mulher frívola; mas a mulher pensadora, a mulher de sentimento sem afecção, aborrece-os por força.

As companhias, regra geral, também têm seus inconvenientes, e grandes. O último que sair de uma companhia, se não for algum enfatuado maldizente que se considere ao abrigo de toda a crítica, embora seja esse o seu elemento, deve levar bem tristes recordações do que tiver observado! Cada família que se retira conta que lá lhe ficam segredando e tratando da biografia desapiedadamente! A sua maneira de viver, os seus usos, os seus costumes, a sua conversação, o que foram e o que são, a educação de seus filhos se os tem, a maneira por que recebem em sua casa... nada absolutamente escapa! Tudo é comentado, alterado, e ridicularizado!! Por último ficam os donos da casa que despenderam o seu dinheiro, e que quantas vezes, com sacrifício, franquearão a sua casa, duplicarão o trabalho de seus familiares, mas que em recompensa de consentirem que em sua presença se analisem malevolamente essas famílias cujos membros apresentarão com o sagrado título de amigos : esses lá vão por seu turno analisando o que faltou no serviço do chá, o pouco iluminada que estava a sala, a figura e vestuário caricato dos criados, a sensaboria em que passaram a noite, e sempre notando que em casa de Fuão e Fulano recebem muito melhor! Assim é o mundo... em matéria de maledicência paga sempre com usura.

Os circos podem agradar a esses cavalheiros que sem lhes passarem pela mente as consequências, prezam um divertimento a que podem assistir em plena liberdade de chapéu na cabeça e charuto na boca, assobiando, rindo, gritando e dirigindo ditos picantes: a mim não. Por muito hábil que seja uma companhia, por mil pasmosas dificuldades que executem, o meu espírito não está tranquilo. Nos homens e mulheres há sempre a ideia do perigo que correm, que muitas vezes vemos iminentes e algumas realizado. Nos cavalos contrista-me em primeiro lugar a lembrança do que sofreram os pobres animais para chegarem àquele grau de ensino; depois há sempre o receio de que, na sua qualidade de animais, um dia quando menos se espere fação uma tropelia que lhes sairá cara a eles, e que pode ser fatal aos que com eles trabalhão. Os circos no meu entender são um divertimento para se ver uma vez, e essa mesma em sobressalto.

Das touradas o que direi? Senão que parece impossível que em nações que se dizem civilizadas se deem espetáculos d’esta qualidade! Custa a conceber como há que me diga ao ir para uma tourada: vou me divertir!! Bárbaro divertimento é o de ver sangue e desastres; para mim foi sempre um verdadeiro enigma ver uma criatura de alma bem formada concorrer a uma tourada! Não posso admitir que tenha alma bem formada quem se não dói nem compunge com o mal que se faz aos animais, e sobretudo aos animais tão uteis ao homem como o cavalo e o touro; mas ainda concedendo essa indiferença para com os pobres animais, não estão por ventura os homens nas touradas expostos a todo o momento a perderem a vida, e o que pior ainda, a ficarem impossibilitados para sempre, como tantas vezes tem acontecido? Será divertimento de criaturas que se dizem de sentimento e coração, o estar na expectativa de ver despedaçar e mutilar o seu semelhante? E contudo, francamente o confesso, é dos animais que eu tenho mais dó! Os homens vão por sua vontade e por ofício, a troco de algumas moedas uns, e outros apenas de alguns pintos, exasperar, enraivecer, farpear e martirizar animais que nunca lhes fizeram mal e que são agredidos; os touros vêm forçados e enganados. O homem, além da reflexão, da sagacidade, dos estratagemas, e do raciocínio n’ele muito mais desenvolvido do que em outro qualquer vivente; ainda assim aprende a arte de combater e atacar o touro! O toro sabe-se que não morde nem dá coices, que a sua única defesa são as armas ou pontas, e essas mesmas lhe inutilizam embolando-as! As touradas são pois na minha opinião um espetáculo que repugna por todos os lados encarado, um espetáculo bárbaro, imoral, de péssimos exemplos para a infância, um espetáculo a que nunca assisti, e que o ver concorrer a ele gente de reconhecida bondade é para mim um problema que nunca poderei resolver.

Portanto repito: de todos os divertimentos o único que me agrada e ao qual vou com prazer é ao teatro. «Vai, me dizia Júlio muitas vezes, vai sempre que a tua amiga te convidar; aceitando o seu obsequio lembra-te que também me obsequeias satisfazendo teu gosto». Em vista de tais recomendações aceitei; algumas vezes mesmo Júlio fazia-me a surpresa de esperar que eu voltasse do teatro.

Fui pois vestir-me recomendando a Margarida que se Júlio não pudesse esperar por mim tivesse o cuidado de pôr em agua o meu raminho. O motivo d’esta minha recomendação, é porque Júlio sabendo da minha idolatria por flores, todas as noites, fosse qual fosse a estação em que nos achássemos, a sua engenhosa ternura fazia desencantar um raminho para oferecer-me.

O criado da minha amiga esperava por mim para acompanhar-me. Quando acabei de vestir-me parti para o teatro. Representava-se n’esta noite Joanna a douda, desempenhada pela eximia atriz Emília das Neves e Souza.

De todos os três dramas que deram até hoje maior nome a esta distinta atriz, Judith, A mulher que deita as cartas, e Joanna a douda, prefiro esta. Se me nomeassem, qual outro Páris, para juiz n’estas peças, adjudicava o pomo a Joanna a douda.

Judith é um belo drama trágico, perfeitamente bem escrito, e magnificamente bem desempenhado; porém um pouco exagerado. Há na Judith uma exaltação, um fogo, um zelo religioso, e milagres mesmo (como por exemplo depois da oração brandir como se fosse um pequeno brinco a enorme espada de Holofernes que antes mal podia arrastar) só próprios ou concedidos a uma Santa, o que Judith não era. Além d’isso os fins não justificam os meios quando estes são a fraude e a traição, porque repugnam ao espírito reto. Por muito bárbaro que fosse Holofernes, e por muito justa que fosse a causa de Judith, nem por isso deixou ela de valer-se da sua beleza para fascinar, e assassiná-lo quando embriagado e adormecido!! A traição é sempre a traição. Se Judith quando pediu e obteve do Senhor forças para manejar como um punhal a pesada arma de Holofernes, lhe tivesse pedido valor e forças para cara a cara, em luta leal, poder medir-se com ele, creio que teria pedido muito melhor e agradado muito mais.

Na Mulher que deita as cartas notam-se as mesmas belezas, mas também bastantes exagerações; principalmente na parte da Duquesa, mãe adoptiva de Maria. E para mim tudo o que passa os limites do possível perde uma grande parte do seu merecimento.

Não assim em Joanna a douda. Qual será o ente poético e sensível que duvide do extremo d’aquela mulher apaixonada? Se é certo que nem todos são capazes de sentir o verdadeiro amor, também ninguém ignora que a criatura dominada por este sentimento nobre e sublime, que a nenhum outro pode ser comparado, por muito que trabalhe, por muito que expresse, por muito que faça, tudo fica muito aquém do que sente o coração. Convencida d’isto fácil foi possuir-me das cenas tocantes que a via desempenhar com tanta naturalidade e mimo! Eu estava profundamente comovida! O amor d’aquela mulher entusiasmava-me porque o compreendia... amando tanto como ela, sentia-me fortemente impressionada! Sobretudo no último ato quando lhe morre o esposo, e que Joanna então realmente douda ajoelha junto do cadáver que crê apenas adormecido, dizendo-lhe – dorme, meu filho... dorme, que eu velo por ti – as minhas lágrimas correrão em abundância! Eu não admirava... avaliava aquela imensa dor!... Lembrava-me que se perdesse Júlio, não perdendo a vida, como Joanna perderia a razão, e esta ideia aflitiva atormentava-me o coração!

Quando acabou o teatro achava-me bastante incomodada pelas vivas sensações que tinha experimentado.

Joanna a douda tem cinco atos e um prologo, o teatro acabou depois de uma hora da noite, O tempo, que estava belo quando saímos de casa, tinha mudado de repente. Ao sair do teatro, começava a chover o que nos obrigou a apressar o passo.

As comoções por que havia passado, as lágrimas que tinha chorado, a grande distância que vai do teatro à minha casa, o mau tempo que me forçou a caminhar apressada, e a hora adiantada da noite, tudo concorreu para que chegasse completamente prostrada.

Quando entrei em casa pareceu-me que Margarida tinha o semblante demudado! Perguntei-lhe por Júlio, mas não me respondeu! Entrei par ao meu quarto do toucador e assentei-me abatida sobre um sofá. Margarida colocou um castiçal sobre o toucador: como não visse o meu raminho, perguntei se Júlio o não tinha trazido? Margarida, que ia a sair do quarto, também não respondeu a isto! Entendi que estava enfadada de ter passado toda a noite sozinha, e ter esperado por mim até tão tarde! Admirei-me por ser a primeira vez que se mostrava como amuada; mas por isso mesmo tive dó d’ela, e protestei não lhe fazer mais perguntas por essa noite.

Assim resolvida reclinei-me no sofá e comecei a tirar as flores com que tinha ornado o cabelo.    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    . de repente lancei os olhos em torno do quarto e pasmei da desordem que observei em tudo! O meu guarda-vestidos estava aberto e dentro tudo revolvido! Um cofre que tinha no toucador e no qual ninguém mexia senão eu estava também aberto! Não sei porque, mas sobressaltei-me... corri ao cofre que continha algumas joias e dinheiro... estava completamente vazio!... Senti como uma vertigem... mais assustada passei à sala...ali a desordem era horrorosa! As bambinelas estavam rasgadas! O espelho despedaçado! As cadeiras caídas e algumas quebradas! Os tapetes em monte! As mesas fora do seu lugar! Tudo anunciava que uma terrível luta se tinha travado! Meu Deus, que horrível drama se tinha representado também em minha casa?! Mas por que razão me não tinha Margarida dito nada?! Por que era este misterioso silencio? Só ela me podia esclarecer. Chamei-a aflita... nem veio nem me respondeu! Fui eu mesma procurá-la: achei-a no seu quarto assentada sobre uma cadeira, com os olhos fitos no chão, imóvel como uma estátua! Não deu pela minha entrada precipitada! Aproximei-me d’ela, e com voz alterada interroguei a sobre o que se tinha passado de terrível na minha ausência. Olhou-me sem expressão alguma; ouviu-me sem me compreender nem responder, e recaiu na mesma imobilidade! Aterrada puxei-a por um braço bradando-lhe que se explicasse... encolheu os ombros, e sorriu-se como faria uma criança!... Então compreendi tudo! Não só estava roubada, senão que a minha pobre Margarida com o susto tinha ficado idiota.

Há situações que não podem descrever-se... a minha era uma d’elas! Um suor frio me inundava o rosto... sentia-me possuída do maior terror! Era pavoroso quanto me acontecia! E contudo tinha um vago pressentimento de que a maior desgraça me aguardava ainda... tudo me denunciava que tinha havido uma desesperada luta n’esta casa que me inspirava horror! Mas com quem? Com Margarida não decerto... Não sei que ideia súbita mas horrorosa me passou pela mente... reuni as minhas forças quase extintas... fiz um violento esforço sobre mim mesma, e pegando em uma luz resolvi-me a ir ver o resto das casas.

Com passos mal seguros dirigi-me ao meu quarto de cama... ninguém ali tinha entrado. Passei ao meu gabinete de lavor... Céus! que vi eu?! Júlio, o meu Júlio no chão banhado em sangue!... Corri a ele como louca, ajoelhei-me junto de seu corpo, coloquei a mão sobre o seu coração... estava parado! Frio! Morto, meu Deus! E eu via, eu sabia, eu conhecia que estava morto!... Ah! como invejei Joanna! Deus meu, bradei, por piedade restitui-me Júlio ou tirai-me a razão!

O excesso de dor deu-me forças sobrenaturais! Tomei Júlio nos meus braços pretendendo chamá-lo à vida com os meus afagos, reanimá-lo com os meus beijos, aquecê-lo com o meu calor!

Puxando-o para mim vi que conservava apertado na mão esquerda o raminho que tinha por costume trazer-me!... Este ramo que me provava o delicado amor de Júlio, elevou a minha dor ao seu maior auge... peguei no ramo, beijei-o com ânsia, apertei-o freneticamente ao coração, e soltei um grito doloroso em que parecia exalar-se a minha alma! N’este momento senti que me puxavam violentamente, e que um peso enorme se retirava de sobre mim.    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    . abri os olhos: achava-me recostada no meu sofá tendo apertado contra o peito o ramo de rosas que levara ao teatro no cabelo, e junto de mim a minha boa Margarida com a mão sobre o meu ombro, que me perguntava a causa do meu grito, e me trazia o chá! Então respirei: conheci que tinha sido vítima de um sonho filho das tristes impressões d’essa noite.

Margarida sozinha tinha adormecido, e só acordou sobressaltada no momento em que bati à porta: o que explica a mudança que lhe notei no rosto, e o não ter ouvido as perguntas que lhe dirigi. O retirar-se apressadamente do quarto logo que entrei, explica-o a sua solícita amizade, entendendo que depois do frio e chuva que eu tinha apanhado, a primeira cousa de que precisava e de que ela devia tratar era de fazer-me uma chávena de chá bem quente.