LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
“Ida”, de Viriato B. Duarte
Edição de Referência:
Jornal das Famílias. Tomo 3, junho/julho/agosto de 1865,
pp. 169-180; 193-202; 225-233.
Oh! Fresquidão amena, oh! asilo,
Onde me ia acoutar de acerbas mágoas,
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Tu guardarás no seio os meus queixumes,
Tu contarás porvindouras eras
Os segredos de amor que me escutaste.
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I
Quem sair em uma bela tarde de verão da pitoresca Vila Viçosa de Camutá, e deixar-se levar em uma dessas pequenas e velozes montarias por sobre as águas cristalinas do majestoso Tocantins; costear a vila, tendo à sua direita as ilhas inúmeras, que, como coroas brilhantes, adornam o tributário do gigante dos rios; e passar o porto da Aldeia, celebre por ter visto em 1537 a partida aventurosa de Pedro Teixeira para o Peru, e sua volta de Quito em 1538; ficará preso por magico encanto pouco além, em um sitio delicioso, de vastas praias de finíssima areia. A não ser sua alma despida de sentimento, ele dará longo tempo à contemplação desse oásis, criado pela natureza para essas existências poéticas, inimigas do tumultuar do mundo, e portando felizes, que baixam dos céus para viverem vida plácida, e depois, cumprida sua modesta missão, voam para a eternidade, bem dizendo o Criador.
É esse lugar de há muito chamado Pacajá, denominação que ainda tem hoje. Ali se despeja o rio do mesmo nome, partindo de mui longe, e misturando suas águas com o Taigipuru, abaixo da confluência do Anapu. Além da beleza de suas praias vem dar maior valor a este sitio um bosque sombrio de anosos castanheiros e alegres moitas de floridos cafezais. As tribos dos Tupinambás e dos Pacajás povoarão essas terras no passado, deixando hoje à ferocidade da conquista o silencio e a solidão! Porém poucos anos antes da revolução que assolou as férteis terras do Pará com barbaria descomunal, existia uma família no Pacajá, rica, não de bens, mas Daqueles tesouros que nos dá a felicidade da vida intima. Hoje, só fugitivas ruínas, cobertas de parasitas trepadeiras, nos mostrarão o lugar da casa onde houveram tantas venturas e tão trágicos acontecimentos!
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No ano da graça de 183... no Pacajá erguia-se elegante no meio das verde-claras palmas de açaizeiros uma casinha de construção engenhosa, e de muita novidade para quem não percorreu ainda o interior do Pará. Suas claras paredes, feitas de um tecido industrioso de talos da palmeira buriti, sustentavam a coberta de buçu, que bem aparada nas extremidades descansava na simples cornija com irreprovável igualdade. Disséreis ao ver a arquitetura leve e aérea desse pequeno edifício, que ele estava por momentos a elevar-se da terra, e a evaporar-se pelos topos dos castanheiros vizinhos. Tinha duas janelas rasgadas em forma de meia elipse na parte superior, e uma porta no centro, arremedando o gosto gótico. Uma alameda de mangueiras, plantadas em linha, partia da margem do rio, e ia morrer em frente de um pequeno jardim arruado por açaizeiros, e que formava o pátio da casinha. Alguns jasmineiros de mistura com arbúsculos da fragrante flor general se avizinhavam às janelas do engraçado edifício.
Pintava o fundo deste quadro vivo de paisagem um espesso bosque de castanheiros e de gigantescos buritizeiros, ostentando as variegadas ramagens por cima do teto, e atrás da casinha que descrevemos.
O todo desta habitação, o bem colocado de suas diferentes peças, o movimento pausado e triste das palmas dos buritizeiros, dominando arredondadas copas de arvores de um verde eterno, convidava a alma para esse recolhimento agradável, que ninguém deixará de ter sentido em alguma hora de sua existência; e durante a qual gostamos de rever o nosso passado, colhendo uma a uma recordações acre-doces, e demorando-nos nelas com saudosa melancolia. O cantor de Atala, colocado nesses paraíso e inspirado por ele, teria produzido mais outro florão para a sua coroa de gloria.
Ao primeiro lançar de olhos se conhecia que a mão da mulher havia ordenado todas essas belezas, porque só à mulher foi dado penetrar os arcanos da maravilhosa arte da produção do verdadeiro belo; porque só ela conhece a harmonia das cores, o encanto dos perfumes, o casamento das flores, todos esses pequenos detalhes, que reunidos enfeitam a vida.
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Viviam aí nessa morada de paz dous entes que se estimavam ternamente: Ida e sua mãe Loia. Esta, na tarde da existência, mostrava ainda algumas linhas de beleza por entre as rugas da velhice. Descendente de antigos Tuxauas, e pertencendo a essa raça índia indomável, havia deposto já todas as suas paixões, e só conservava um sentimento que a prendia à terra__ o amor maternal. A mão do tempo com sua implacável esponja havia absorvido toda a seve criadora das douradas emoções da mocidade. Era um velho tronco sem folhagem, já inclinado e aderente ao solo por uma só raiz, a sua Ida. A moça, na manhã da vida, era um botão de rosa que desabrochava.
Tão bela como a virgem de Raphael, tinha mais os atrativos peculiares dessas filhas do Equador, tão ardentes. Ella apresentava todos os característicos do mais perfeito tipo da raça índia com todas as suas deliciosas curvas.
O rosto oval, terminando na parte superior com a longa e expressiva fronte, deixava ver duas sobrancelhas pretas, bem pronunciadas, que irão morrer quase nas extremidades laterais dos mais fascinantes olhos que têm saído das mãos do supremo artífice. Uma pequena boca com lábios de doce cor de carmim, que ia perder-se e confundir-se em inimitável nuança com a cor moreno-forte do semblante, a furto descobria dous fios de alvos e pequenos dentes. Era o cálix da flor de maracujá com seus estames exalando embriagante aroma.
Comprida e basta coma de preto brilhante, fugindo de alva coroa de jasmim que lhe circundava a cabeça ia brincando em espalhados rolos pelo seio de virgem até tocar na delicada cintura. E todos os seus movimentos denunciavam perfeitíssimas formas, obra prima que as vestes escondiam. Era tão airosa, tão flexível, tão requebrada como a verde varinha dos palmares, batida por branda viração. Embalada em sua maqueira de bordadas pernas, era superior a voluptuosa moça do harém em dourada otomana.
A mãe e a filha tinham visto a passagem dos anos com a rapidez que traz a felicidade. Os meses, os dias, eram velozes e fugazes para elas, que os dividiam entre o trabalho e o prazer. Estavam identificadas com aquele pequeno Éden. Que lhes parecia animado e que tinha sido testemunha da vida, dos cantares e das danças de seus antepassados.
Loia comprazia-se vendo o crescimento de sua filha, o desenvolvimento de seu elegante corpo, e contava uma por uma as mudanças que trazia o tempo.
Com a solicitude e apaixonado desvelo do lavrador ao pé da pequena arvore que plantou, ela regou com extremos de mãe a fraca criatura em sua meninice; cobriu-a com os abraços meigos, e protegeu-a com o seu corpo contra a torneira dos males do mundo. Ao tempo em que sua filha fortificou-se com a idade, ela principiou a colher os frutos que tão bem sabem ao coração de mãe. Então não havia para ela gozo sobre a terra que se pudesse igualar àquele que sentia quando via o semblante de Ida, rico de mocidade e de beleza, confundir-se com as flores, tomar as cores delas, quando nos brincos mostrava o encarnado nas faces, correndo após de marchetada borboleta. Lembrava-se às vezes de sua mocidade, de seus brincos daquele tempo, e via-os todos reproduzidos por essa pequena criatura que tinha sido o fruto de sua casta união. Prolongada contemplação em êxtase de prazer trazia-lhe alguma vez o reconhecimento de uma ou mais semelhanças daquele rosto angélico com o companheiro de sua vida, que a mão da morte lhe havia arrancado. O presente era dourado e o porvir todo de esperanças.
Loia sonhava para sua filha uma existência igual à dela. Pedia a Deus que lhe desse um protetor na terra, tão bom, tão amante, como ela tinha achado no pai dessa menina, e que lhe desse, a ela Ida, uma filha, como a ela havia Deus concedido. E nesses sonhos, onde tão pouco se pedia, onde se desenhava a felicidade pelo gozo passado de quem pedia, não havia uma sombra de dúvida da bondade de Deus. Loia esperava ver realizados os seus sonhos de futuro com a fé do verdadeiro crente.
As vezes um amargo pensamento vinha misturar-se à doçura dessa vida. Ella tinha o egoísmo maternal, e sentia já a ferida que sofreria seu coração, quando a filha tivesse de partir com alguém esse tesouro e amor que ela desejava possuir só.
Assim Ida tinha crescido debaixo da proteção extremosa de Loia, e havia achado nela todo esse suavíssimo carinho que só despende coração maternal. Desde que principiou na infância a ensaiar seus mal seguros passos por aquele jardim tão querido, tão cheio de memórias agradáveis, até a puberdade, havia-se acostumado a ver nessa mulher devotada o seu gênio tutelar; e nela concentrava todo o seu pensamento, todos os seus votos. O mundo para ela resumia-se naquele pequeno espaço; o seu amor era dividido entre as flores e sua mãe.
Chegou porém o dia em que Ida julgou não ser perfeitamente feliz. Vagos desejos, sentimentos que ela mesma não sabia explicar em sua mente, lhe traziam a tristeza sobre o semblante há pouco tão alegre. É que vinha a época em que ela devia concorrer para a mais sublime harmonia das cousas criadas sobre a terra, a harmonia do homem e a mulher. A mocidade e a vida arrancavam, senão todo, ao menos a mais bela parte do coração da gélida velhice e da morte para harmonizar-se com outra mocidade e vida, reproduzindo-se.
Deus não quis que bastasse para a felicidade no mundo o amor maternal, e entretanto esse amor é tão puro, tão dedicado, tão cheio de heroicos martírios!.................................................................................................................
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O acaso arrastou um dia àqueles sítios um moço na flor dos anos. Vimy (assim se chamava ele) tinha uma dessas almas doces e impressionáveis que não abrigão senão ideias de bem, e que são levadas para tudo o que é belo por atração irresistível. Até então a majestade das matas, a soberba corrente do Amazonas, o gorjeio das aves multicores haviam prendido seus sentidos em suas emigrações de prazer. Nessa mesma ocasião o encanto daquela habitação aprazível o convidara para seus gozos inocentes. De repente o roçar de um vestido pelos enlaçados ramos dos jasmineiros fez com que ele volvesse os olhos para aquele lugar. Longo tempo ficou absorto em muda contemplação para uma mulher que passava por entre os ramos. Nunca ele tinha visto cousa tão bela, jamais havia fantasiado em seus sonhos tantas perfeições reunidas. Fascinado e sem poder reter seus movimentos, foi cair de joelhos aos pés dessa mulher, que era Ida, exclamando como o condenado:
— Tupana! Tupana! Tem compaixão de mim!
E ela, assustada, voltando-se para o moço, e como que tocada pela mesma corrente elétrica, deixou cair as flores colhidas, e só pôde responder-lhe:
— Como és formoso!...
Desde então eles se amarão, como se ama na madrugada da vida.
Quadra feliz é essa em que pela primeira vez amamos!
Ainda puros, como são todas as obras saídas da mão de Deus, com a alma virgem, sem ter sofrido o toque profano dos vícios sociais, nos entregamos a esse enleio sedutor, e gozamos, por uma vez na vida, de perfeitíssima ventura.
Como o escravo no primeiro dia de liberdade, a alma no primeiro uso que faz de sua faculdade de afecções entra nesse sentimento com todo o vigor, com todas as suas faculdades. Cada uma doçura que colhemos promove um voto de graças ao Omnipotente por nos haver criado e a ela...
Depois, com o correr dos anos, já não amamos senão o maior ou menor número de cifras. Vem a afecção calculada, sem poesia, sem felicidade.
E portanto é tão forte esse primeiro movimento da alma, esse brilho de felicidade, penetra tanto a sensação, é tão pleno o gozo daquelas horas, que nunca nos deslembramos de nosso primeiro amor.
Quem há aí que, curvado pelos anos no inverno da vida, não tenha volvido os olhos para a primavera de seus passados dias, e que lá bem longe na escuridão do esquecimento não tenha enxergado a sua mimosa flor, — o seu primeiro amor?..........................................................................................................................................................
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Alguns meses eram decorridos depois do encontro que acabamos de narrar. A habitação pitoresca do Pacajá conservava a mesma forma risonha, com seu arvoredo sempre florente. O Jardim somente ostentava maior luxo no aumento de suas plantas e nos tecidos engenhosos de suas latadas, porque agora duas vontades, dous corações, intimamente ligados, ordenavam a sua cultura, e sentiam melhor a influência e poesia dos campos.
Em uma tarde, nessa hora que medeia entre à luz e as trevas, intercalar do dia à noite, propicio a saudosas lembranças, se dirigia pela alameda de mangueiras já por nós conhecida, procurando a casa de Ida, um homem de estatura elevada, que no semblante deixava entrever agitação em que laborava seu mal ferido peito.
A fisionomia desse homem, com seus pequenos olhos encobertos por bastas sobrancelhas, traduzindo por todas as linhas de suas feições o que há de mais horrível nas paixões humanas, era repulsiva.
Chegando à porta da pequena habitação, antes de passar além, demorou-se em pouco e levou uma das mãos ao coração, parecendo querer reprimir pulsações violentas de sentimento forte, e depois entrou na morada de paz e felicidade.
Antes de descrevermos a cena que aí teve lugar, introduzindo o leitor no íntimo de uma família paraense, faremos uma diversão tocando em alguns de seus usos e costumes mais dominantes, espelhos onde se refletem quase sempre a índole e alma dos povos.
A benéfica influência da vista dessas matas seculares que correm ao longo dos inumeráveis rios, que em todo o sentido cortam o solo do Pará; ao calmo e suave gozo da contemplação de tudo o que há de mais belo na terra; vem se associar, aumentando a nossa admiração e prendendo-nos mais, a hospitalidade notável dos habitantes desse torrão privilegiado! Os corações se abrem ao peregrino solitário, os lábios formão inocentes sorrisos a cada palavra que soltam. Parece que essa gente, geralmente feliz, quer e procura fazer a todos felizes. A ambição é planta exótica no Pará: basta-lhe essa existência modesta e cômoda que receberão das mãos de Deus. As portas de todas as habitações abrem-se alegremente para receberem a quem as procura. Ali encontra-se a voluptuosa maqueira, impregnada das emanações odoríferas do louro e da peperioca, e, o que vale mais que tudo, o gasalhado de irmãos. O cachimbo, como símbolo de paz e amizade, com dourados taquaris, a bonita cuia do picante tacacá, voam de mão em mão até o hospede no meio da alegria e da felicidade. Quantas horas deleitosas correm rápidas nesse doce embalar em cheirosa maqueira! Quantas dores d1alma se evaporam com esse fumo dos dourados cachimbos! Pouco importunam a caprichosa fortuna, e seus desejos não transpõem um pequeno círculo que criaram suas cândidas almas: a vida no meio das danças e cantares; a mulher bela, escolhida para companheira de seus dias; o inseparável tchibuk de aromático tabaco, são as suas aspirações na terra. Os amigos ardentes do progresso social não simpatizaram com essas existências pacificas e tão pouco exigentes; mas nós que fomos testemunhas da pura e inalterável felicidade que adeja em torno delas, fazemos votos para que bem tarde troquem o presente pelas ansiedades, consumidores cuidados, ingrato trabalho, vicissitudes e incertezas de outro existir, que só acabam com o derradeiro grão da ampulheta da vida. Gostamos desse povo que passeia pelo campo da vida, deixando os cardos e a cicuta, e colhendo só os saborosos frutos e as flores.
Quando soar a hora do infalível jugo das forças civilizadoras, quando houverem abandonado esses costumes simples que receberão de seus maiores, esses usos, essas bebidas tão amadas hoje, e que têm lugar de honra nos prazeres domésticos, soltarão amargas lágrimas de saudades no meio dos ouropéis dos sumptuosos salões.
Entre os sentimentos mais caros de seus corações tem a primazia o amor, e a este subordinam tudo. O Deus de bondade mandou-os ao mundo para colher os frutos nos campos sem trabalho, e para se amarem até que venha o sono da campa. São seres felizes, aos quais se pode aplicar os inimitáveis cantos do imortal autor de Island. Agora, depois deste imperfeito esboço acerca dos habitantes do lugar onde se passavam os factos que narramos, voltamos ao ponto em que éramos.
Aquele desconhecido, que tão agitado caminhava para a casa de Ida, achava-se já na pequena sala dessa habitação, defronte da moça. Tinha-a diante de si, bela com todas as belezas do mundo, e antevia um céu aberto se essa mulher o amasse. Porém a dúvida em que estava sobre esse amor ardentemente desejado esmagava-o com toda a sua força. Ele se sentia capaz de tudo empreender para chegar a esse supremo bem, ainda que fosse um crime.
— Ida! Alguns anos têm corrido desde a última vez que entrei nesta casa para ouvir a derradeira vontade de teu pai. Ele abençoou-nos, quando ajoelhados junto ao leito de dor e chamou-nos seus filhos. Eras então bem pequena, mas já nessa idade em que a razão começa a trabalhar, e conserva as lembranças do passado.
Assim falou esse homem a Ida. Pressentia que o coração da mulher o desterrava, pelo rápido exame que havia feito logo que se dirigiu à moça; esperava porém que o coração da filha se sujeitasse ao jugo que as palavras do pai moribundo talharão para ela. Nesse pequeno jogo do pensamento, nessa tentativa que lhe parecia de efeito infalível, ele não contou com a violenta paixão que se havia apossado da alma da moça, e que sorria no horizonte com as mais lindas cores.
Ida tremeu com essas palavras, e deixou ver em todo o seu ser o choque violento que elas produziam, como se um fantasma com sua mortalha, erguido da terra, a tivesse invocado para o cumprimento de um voto esquecido. Não achou uma palavra para responder, e ele continuou:
— Eu te considerei desde então como a mulher que devia partilhar minha felicidade, ou os meus futuros trabalhos. Afastei-me destes lugares forçado; e Deus sabe quantas vezes meus olhos se voltarão para aqui com repassada dor. Já era bela, Ida! Mas hoje excedes em formosura à estrela d’alva!
Ele calou-se, e, contemplando a moça com ávidos olhos, esperou muito tempo que ela falasse.
— Aley-açu! Não prossigas... O que disseste mata-me.
Foi só o que pôde Ida pronunciar na primeira hora de dor de sua vida. Até então tinha ela pisado sobre rosas, e nunca se havia lembrado dessa promessa imprudente de seu pai nas sombras da morte. Como a sensitiva ao primeiro toque da desventura, ela murchava e caía fulminada.
Tencionava ocultar a Aley-açu seu amor como uma joia de valor, e temia por aquele que seu coração havia escolhido. Sabia dos precedentes terríveis de Aley-açu, conhecia essa alma feroz, mas seu coração puro não sabia fingir, e essas palavras que soltara foram a expressão do sentimento intimo da alma. Aley-açu percebeu que não era amado, e que nunca o seria, porque Ida já era de outro. Restava-lhe descobrir o nome desse homem que se vinha antepor a ele para a mulher que sua vontade forte queria possuir, e continuou, empregando a dissimulação:
— Quando se fala pela primeira vez a uma mulher com tal linguagem da paixão, ela não pode sopesar a revolução que lhe produz um sentimento novo. Eu desculpo-te e dou o verdadeiro sentido às palavras que proferiste, Ida! Mas torna ao teu estado de calma e ouve-me. Há muito te amo, como nunca foi amada uma mulher sobre a terra. A sós comigo alimentei essa paixão, sorvi com deleite todas as doçuras dela, suportei todos os tormentos da ausência.
“Em meus trabalhos eu cobrava forças, lembrando-me de teu nome; e não havia para mim outro descanso, outro prazer senão sonhar contigo. Um dia venci a distância com o pensamento, e vim colocar-me aqui junto a ti, e fantasiei tudo o que de mais belo podia produzir a minha imaginação, alimentada pelo amor. Foi um sonho!... mas nesse sonho fui o mais venturoso dos homens. Hoje estou perto de ti, vejo-te, falo-te, e não posso acostumar-me a tanta felicidade. Entretanto espero ainda por tão almos dias!
— Oh! Não, não me é possível ainda cumprir a última vontade de meu pai, disse Ida na agonia do tormento.
Aley-açu não foi mais senhor da cólera que lhe assoberbava o peito, vendo-se repudiado, acostumado como era a não sofrer obstáculos a suas vontades; e, contando como certa a posse dessa mulher, que ele tinha guardado como o usurário a seu tesouro, vendo-a muitas vezes sem se mostrar, espiando todos os seus passos até o dia, infeliz para ele, da chegada de Vimy de uma de suas viagens, e quando forçadamente tinha-se afastado daqueles sítios. Chegou-se para mais perto de Ida, dominou-a com a vista, e fê-la tremer. Apertou-lhe com sua mão musculosa um dos pulsos, e como um anel de ferro roxeou-lhe a epiderme.
— Mulher! Tenteei o teu coração por todos os lados. Falei-te em amor, pintei essa existência dourada que te aguardava se a tua respondesse à minha, lembrei-te a promessa esquecida de teu pai, e que devia ser sagrada para ti. Foi tudo embalde... Não fugirás porém de mim tão facilmente como pensas, e serei tua sombra, e te possuirei apesar de tudo.
Esse homem no delírio soltou essas palavras, e saiu precipitadamente. Parou à margem do rio, e cruzando os braços sobre o largo peito, lançou vistas de ameaça para a casa que deixava.
— Mulher frágil! Quiseste lutar comigo, resistir a este amor que ferve-me no peito! Eu levo dentro em mim o inferno, mas tu serás minha, ou te quebrarei como um vidro, e te esmagarei como a planta calcada por meus pés.
Foram as últimas expressões mandadas por Aley-açu a essa família feliz até aquele momento. Como o anjo mal ele veio turbar essa superfície clara e plácida!
Ida ficou por algum tempo sem movimento com aquela ameaça, que foi um frio de morte que ecoou pelas veias, parando-lhe as pulsações todas. Depois, lembrando-se de sua mãe, como o náufrago em demanda de uma taboa de salvação na agonia, foi cair nos braços dela exclamando:
— Minha mãe!
E Loia, recebendo a filha, lhe disse:
— Minha filha! eu ouvi tudo. Desventurada! Tu já amas...
A fresca viração da noite e outros cuidados mais doces minoraram os resultados de uma tão triste entrevista. Ida foi-se colocar em uma das janelas, e não tirou os olhos do horizonte, procurando descobrir na obscuridade algum objeto esperado.
Enquanto um homem se retirava desses sítios com o coração quebrado, outro os demandava com a alma nadando em prazer.
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A lua ia já alta em horizonte claro por trás das ilhas de Coroatá e do Cacoal, que demoram defronte da Vila Viçosa de Camutá, imprimindo uma linha argentada de luz, que se espargia docemente nas águas do Tocantins, desenhando a sombra dos delegados mastros das pintadas vigilengas que se balouçavam faceiramente no largo rio; iluminando com pálida e suave claridade as frescas e aprazíveis varandas das casas da rua da Praia, debruçadas sobre o mesmo rio que vem morrer debaixo delas com sonoro murmúrio; e coroando com a sua poética luz o modesto cruzeiro, e os picos das torrinhas da capela das Mercês. Quem lançasse a vista nesse momento em direção de Entre-Ilhas perceberia distintamente, muito aquém, uma branca velinha que a olho se avizinhava. Um homem, sentado na popa, com o remo governava a pequena canoa, e com um dos pés firmado sobre a escota graduava a vela latina à feição do vento e das direções da proa. Erguia-se repetidas vezes, e atentava para o largo espaço da imensa Bahia que se estendia em frente, e pelo gesto mostrava grande insofrimento. Caçava mais a escota, e tirando-o remo do governo ajudava a veloz carreira que levava com alguns golpes na água. Com admirável habilidade manobrava a canoa, que com a obediência do fiel corcel sob as rédeas de seu senhor tomava rapidamente o rumo. Sobre os brancos rolos de espuma ela se precipitava com graça, devorando o espaço. Parecia um ser animado, confidente dos segredos do homem, e tomando parte nessa impaciência de quem a dirigia. Fendia as águas com sumido murmurar, como se temesse acordar olhos indiscretos em sua viagem noturna.
Em pouco tempo, o silencio viajante chegou ao porto do Pacajá. Levou uma das mãos aos lábios, e imitou perfeitamente o canto do yapiu-hym. Os magoados gemidos de uma rola chegaram-lhe logo de terra. Daí a pouco a pequena canoa gemia debaixo do peso de uma pessoa que da praia saltava para ela com a agilidade de suaçu. __ Ida! Disse o homem em voz cautelosa e baixa.
— Vimy! Responderam-lhe.
A canoa, movida por forte impulsão do remo, fez-se ao largo.
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Leitor! Alguma vez experimentaste o sedutor enleio de solitária contemplação do firmamento em noite clara e serena? Sentiste no íntimo d’alma a poética emoção da pálida claridade da lua sobre as cidades, sobre os campos, sobre as águas? Certo que terás gozado esse bem, porque ele se apossa de nós mesmo sem ser procurado, produzido unicamente pela ocasião; mas descuidoso talvez terás passado além sem dedicar-lhe mais que um momento de atenção. Assim são tratados alguns dos mais amenos dons do céu!
Há aí pela ventura cousa mais majestosa do que esse infinito que se desdobra sobre as nossas cabeças, brilhante de milhões de trêmulos luzeiros? Há prazer mais encantador, mais suave do que aquele, produzido por esse quadro grandioso, despertando em nós acre-doce saudade por alguém ausente, que, pela misteriosa força das simpatias, esteja talvez nessa mesma hora, nesse instante elevando olhos repassados de tristeza para esse céu, para essa lua?
Haverá sobre a terra coração de tigre, que, tendo pensado, criado, alimentado uma ideia de sangue e de morte, alçando as vistas para esse manto da noite recamado de maravilhas, iluminado pelo almo astro, não deponha temeroso a vida do crime, a ideia da destruição, abalado pelas tremendas verdades.
— Deus e eternidade?
Espetáculo mágico é este, que nunca deixa de produzir no homem sensações novas e elevadas! A alma é transportada pelo espaço sem fim; o pensamento, inspirado pelas harmonias celestes, corre livre, fazendo esquecer a vida material. É o ideal dominando soberanamente, apagando o sentimento do corpo, elevando-nos da terra, e até dourando a lembrança da morte! A alma sai pura com a consciência do seu próprio poder, regenerada pelo baptismo do grande princípio fundamental de todas as crenças — Deus.
Debaixo pois dessa influência irresistível e encantadora, embalados em casto e puro sentimento de amor, Ida e Vimy deixavam-se ir docemente pelo espelhado rio, impelidos pela fresca brisa da noite.
É tão delicioso correr por sobre prateadas águas em noite de luar, e as sós com o ente que amamos; passear sem destino à mercê do caprichoso vento, e cercado do sublime mistério das noites; entoar no enleio de gozos puros e inocentes na vida do sentimento canções como as do bardo melancólico de Albion!
O’er the glad waters of the dare blue sea
Our thoughts as umbounded as our souls are free[1].
Eles nessa hora lembravam-se só de Deus e do céu, e esqueciam-se do mundo com as suas misérias. Suas almas fundiram-se em uma única, que tinha a mesma vontade, o mesmo sentimento, o mesmo prazer.
Poderosos e elevados pela virtude da paixão, não baixavam até a vida real. Não! Que eram eles muito acima desse charco imundo de vícios, de hipocrisia, de ambição e de sangue que chama — vida humana.
Tão puros como as matas virgens que os cercavam, obedeciam a essa sei do coração em dor ou em prazer, buscando a soidão e o recolhimento; e porque não há quem compreenda tão bem a dor e o prazer como a soidão!
Fraternizavam com a natureza, e com ela dividiam a felicidade que os cobria com sua aureola.
— Ida! A minha vida data do dia em que pela primeira vez te vi. Tudo floresceu em mim pela magia de teus olhos. Hoje sei melhor compreender a existência de nosso pai Tupana, sua bondade, e o amor devido a ele, que te criou para mim tão bela como a madrugada em nossos campos. Não achas que tudo toma nova forma quando estamos reunidos? Não gostas das tormentas, do estampido dos trovões, quando somos juntos? Ida não amarias mesmo a morte, a morte comigo?
— Meu bem amado! O meu coração de mulher só tem sentimentos para ti. Antes de ver-te, parecia-me não compreender o fim de minha criação, a minha missão sobre a terra. Hoje conheço, com inefável gosto, que obedeço a nosso pai Tupana amando-te.
E ela já se havia esquecido do passado com o presente!
O que eles mais disseram, o que eles sentiram pode adivinhar quem no calor dos anos já teve uma paixão tão plena como essa, e tão feliz. Quando as palavras não puderam mais dizer exatamente os movimentos d’alma, eles calaram-se. E o silencio é a expressão mais eloquente da suprema felicidade, ou da suprema desventura.
As horas andam mui vagarosas para o infortunado, e correm mui rápidas na felicidade. Força era que eles se arrancassem desse paraíso, e em breve se viu a canoa procurando o porto do Pacajá.
— Ida! Repete-me pela última vez o teu juramento de amor, para que tenha a força de deixar-te!
— Vimy! Eu te amo!
Foram as últimas palavras que trocarão. E a alma da moça se exalou toda nessas notas de melodias celeste.
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II
Oh! Padre infelice!........
O veduto il mio figlio cader,
Lo veduto morir, coperto tutto
Di ferite e di sangue.......
* * *
Corria o ano de 1835, tão funesto à província do Pará. As bacanálias de sangue estavam em seu apogeu, e os gritos das vítimas do punhal do assassino consternavam todo o império. Já as duas primeiras autoridades da província tinham pago com a vida a imprudente confiança que mostravam no meio dos avisos e denúncias que lhes vinham de todas as partes.
A semente tinha produzido seus venenosos frutos! Os hipócritas da liberdade há muito espalhavam pelas turbas ignorantes ideias desorganizadora, e procuravam agitar o bom povo, que vivia na paz e felicidade, sem almejar outra existência que não fosse aquela tão plácida em suas humildes casas, e no meio dos seus. Com a palavra patriotismo já tão gasta, e quase sempre tão mentirosa, esses ambiciosos tocavam as almas puras, e assim iam colocando pedra sobre pedra em sua obra infernal. Não queriam outra cousa senão o roubo e o assassinato, e profanavam o nome santo da liberdade, e a cobriam com as vestes vermelhas do sangue de seus irmãos!
Um dia os habitantes da capital do Pará acordarão com o estampido do canhão, e com a grita de bárbaros pelas ruas, e com o estrondo das portas que caíam aos golpes de machado, e perguntavam temerosos o que era tudo aquilo? Não lhes responderão nada, porque aqueles mesmos que matavam, e se embriagavam com o sangue, não sabiam o porquê dessa carnificina! Mostravam em tudo, e para significar tudo, o punhal do assassino. Dias horríveis esses, nos quais cada hora era marcada com a morte de um homem! Os pais eram arrancados dos braços das filhas, e horrivelmente trucidados; os maridos dos braços das mulheres em dolorosa súplica, e assassinados. E esses canibais obrigavam as filhas a insultarem as cinzas ainda quentes de seus pais; e as mulheres eram levadas de rasto aos altares para se unirem com os assassinos de seus maridos.
Mais ferozes que o tigre, não sofriam as lágrimas dos parentes sobre os cadáveres insepultos.
A revolução principiando tinha tomado logo grande vulto, e estendia-se por toda a província. Nessa época infeliz a lei escrita havia desaparecido: e as pessoas mais baixas e ignorantes eram nas primeiras posições, visto que se procurava sempre para elas os mais sanguinários. A audácia do crime, a triste celebridade do assassino era o melhor título para chegar a elevado lugar. A história desses tempos, que felizmente passarão já, o conhecimento dos atos dos homens, que se diziam e eram na verdade os diretores da revolta, enluta-nos o coração, e nos rebaixa entre as nações.
Quem lançasse os olhos então para esse paraíso de outrora tão risonho, sentiria amargo sofrer contemplando a miséria e a fome. Famílias inteiras foram seminuas pedir asilo em outros lugares, abandonando a terra que lhes sorrio tanto no passado, e que ficava com o sangue e com as recordações todas da felicidade que morria. A família paranaense, tão unida antes desses tristes acontecimentos, mandava seus membros dispersos para todas as partes, pobres de tudo, até de esperança, porque então ninguém acreditava que o império da ordem fosse jamais restabelecido. E na terra de seus maiores, e no santuário do lar doméstico ficavam os assassinos, os incendiários e os réprobos!
Foi dilatada essa agonia atroz; e o cálix de amargura transbordava, quando Deus disse — basta! — Porque julgou que o sofrimento vencia a força humana. E verdade inabalável, de que a ordem pública é tão necessária à prosperidade das nações como o sangue a existência humana, mostrou-se contra a anarquia.
E todos esses sistemas falsos, que se propalavam, que dominavam, fugirão diante do poder da verdade. Ella foi embaraçada em seu eterno caminhar, mas superou tudo, e plantou o seu domínio no meio dos povos.
Foi a revolução a tempestade que passou pelo horizonte da ordem de duração efêmera... Não... não era possível que princípios e ideias que tem por si o cunho da existência de séculos, e por lábaro as maravilhas do presente nas obras do gênio protegido pela paz, cedessem e caíssem esmagados por esses homens bárbaros, por essas exceções da espécie humana.
Porém, antes que chegasse o dia da regeneração correu em ondas o sangue, e encheram-se com rapidez as páginas dos crimes. Os agentes da revolta pareciam espíritos infernais enviados pela punição de Deus para a coroa de martírio dos homens. E toda a província era um campo deserto por onde passara o fogo da destruição.
A Villa Viçosa de Camutá era entre todas a única que tinha resistido à torrente. Ella conservava-se em sossego, e servia de asilo aos infelizes que puderam salvar-se do naufrágio geral. A hospitalidade e a beneficência de seus habitantes aliviava as dores de seus irmãos, que corriam de todos os lados para essa terra de paz e de bondade. Repartiam com eles tudo o que possuirão, e sublimes atos de angélica virtude passavam a cada hora naquela vila silenciosos e ignorados, porque eles faziam sacrifícios nos bens que espargiam movidos pelo amor de irmão, e abafava o sacrifício o prazer da ação.
Sem recursos e abandonados, procurarão todos os meios de defesa, e animados pelo sentimento da boa obra alcançarão o seu fim. Criaram assim renome bem merecido, que marcara sempre essa terra com a coroa de gloria de se haver segregado dos homens sanguinários, amaldiçoando a obra de destruição, e mostrando ao Brasil que mais avançados nas vias da civilização.
Reuniram-se ali as primeiras autoridades, e escreverão o seu protesto com o povo contra a revolução, e deram-lhe a publicidade possível naquelas épocas[2].
Cercarão a vila com fortes trincheiras de madeiros; e com serem em segurança, não se esquecerão dos que sofriam fora de seus muros. Enviarão expedições contra diferentes pontos mais vizinhos, e até para defesa da mesma capital[3].
Deram mais um exemplo do que pode um povo defendendo e sustentando uma causa justa. Entre eles apareceu um homem de alma de forte tempera, que não atentava para os perigos, caminhando sempre avante, tendo por norte o dever sagrado da salvação da pátria. E ele, que não havia sido educado para a vida dos campos, e que era novel nessa ciência bárbara de destruição dos homens, dominou e venceu com coragem os inimigos da prosperidade nacional. Era um sacerdote[4]!....
Por certo quando esse homem se votou ao altar de uma religião de paz e de perdão não consultou bem seu pendor natural. O coração devia saltar-lhe, e mui dificilmente ser comprimido sob as vestes sacerdotais, todas as vezes que ouvisse o estampido do canhão ou o agudo som do clarim.
Era esse o lamentoso estado da província do Pará na época nomeada no princípio deste capitulo, e a contragosto nos demoramos nesta exposição.
Tomamos o triste trabalho de tocar em feridas que ainda sentem, porque a vida das pessoas de nossa historia esteve ligada a esses acontecimentos..................................................................................................................................
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— Estes malvados mações serão mortos sem piedade, e não descansaremos enquanto não for exterminada essa raça maldita. Não pensas com eu?
— Sim... e já tenho mandado para o inferno bom números deles. Mas ainda mesmo entre nós existem muitos suspeitos, que se enternecem com as lágrimas das mulheres desses feiticeiros. Ali está um, tão fraco como uma criança, que hoje mesmo deixou de matar esse prisioneiro, que aí temos, porque ouviu o grito de uma mulher.
— Para que todas essas mortes? Que mal nos fazem esses homens, que são por nós sacrificados mesmo em suas casas, no meio de seus filhos? Ouve-me!..... Há momentos para mim de arrependimento doloroso por ter trocado a vida passada em minha montaria na pesca, por esta tão má de caçar homens e de os matar, como fazíamos antes as maracajás. Se não fosse o amor da pátria!...
— É melhor que te retires de nós, porque não prestas para nada. Então não sabes que todos esses malhados ou mações queriam escraviza-nos, renegavam os santos, e tomavam a figura de lobisomem para matar nossos filhos? Não sabes que eles empregavam suas feitiçarias sempre contra nós?
Tinha este dialogo um grupo de homens de hediondas figuras, em redor de uma fogueira, sobre a qual colocavam alguns espetos com peças de diversas caças. Mais adiante estava uma centena de outros ocupados em diferentes misteres. Era um acampamento de rebeldes, formando no seu todo um quadro interessante.
A margem do Tocantins, barrancosa nesse lugar, era coberta de castanheiros e açacuzeiros. Havia porém um abrigo por trás do arvoredo em uma chapada extensa, escondido inteiramente aos que passavam pelo rio. Era preciso ser conhecedor do segredo de uma estreita picada, que, partindo da riba, e mui encoberta por arbúsculos, ia ter à esplanada, para chegar a esse asilo.
Jaziam dispersas pelo chão muitas peças de chitas desdobradas, e fazendas de algodão de toda a qualidade. Aqui eram pilhas desses pequenos espelhos de tanto consumo no Brasil; ali eram chapéus de pelo de seda, avariados pela chuva e maltratados; mais longe ricos lenços de seda, de mistura com enfeites e fitas de vestidos confundidos com ferrugentos terçados e velhas lazarinas.
Esta reunião era pouco distante do lugar já conhecido por nós, o Pacajá. Depois de completa refeição esses homens estenderam-se sobre a relva, uns inteiramente embriagados, e outros conservando alguns restos de razão.
Dous homens únicos estavam acordados, e pareciam velar, guardando esse desordenado aquartelamento. Um dele mostrava-se superior ao outro. Seu semblante carregado seu olhar seguro revelava um pensamento único, dominando todos os movimentos da alma. Para o observador atento era fácil descortinar sob as dobras do véu que lhe cobria o coração uma sombra de amarga melancolia, senão de remorso, trabalhando sempre aquele ser forte, porém accessível aos golpes das paixões. Ambos pertenciam a essa classe ignorante, que mais avultava nas fileiras da revolta. A ignorância porém não exclui certos dotes que a natureza caprichosa espalha por todas as gradações da hierarquia social, e dentre a baixa esfera erguem-se caracteres notáveis por qualidade elevadas, que, favorecidos pelas ocasiões, tomam desenvolvimento admirável. São como o diamante saído do álveo dos rios, que, sem o lapidar, brilha e tem valor.
Assim, esse homem superior aos outros lhes havia imposto seu domínio, e os arrastava consigo. Para melhor conhecê-los ouçamos suas palavras...
— Jaituba! Tudo cede as nossas forças, e hoje cobrimos toda a província com as nossas hostes. Possuímos os mais fortes e ricos pontos do Pará; e, senhores dessa vastidão de terras, que outrora ocupada por nossos inimigos, faremos o nosso futuro de felicidade, sem termos ninguém que nos governe e agrilhoe nossas vontades. Pensarás talvez que é vindo o termo de meus desejos? Enganas-te... Ainda ali está uma nuvem carregada que despede ardentes raios sobre a minha cabeça. Camutá e seus arredores não se rende, e continua a afrontar todo o nosso poder.
— Mas devemos esperar por feliz e completo triunfo. Sabes que fortes expedições estão em caminho contra esse ponto único que ousa resistir aos patriotas.
— Eles serão esmagados, esses Brasileiros degenerados, que não quiseram abraçar a causa santa que nos anima... Sim, eu não duvido do resultado; mas como tarda-me esse dia de Victoria!
— Amigo! Não são as nossas vitórias ou os nossos revezes que te movem o peito. Há muito hei lido com os olhos da amizade as páginas de tua alma. Ocultas a todos alguma dor que surdamente vai minando-te a existência. Ouvi dizer a alguém que a confiança do homem em coração amigo, se não destrói, mitiga muito os sofrimentos. Conta-me os teus males!
— Sim... eu sofro, e vou depositar no seio da amizade o acerbo tormento que me persegue. Amo mais que tudo neste mundo a uma mulher que habita esses lugares, ainda agora em poder de nossos inimigos. Possuí-la é para mim o supremo bem, e eu desespero longe dela, e as minhas forças quebram-se todas diante dessa muralha de demônios que defendem Camutá.
— Espera!... e conta com o amigo para alcançares a felicidade de tua vida. O que é preciso que eu faça?
— Por agora, amigo, vás servir para a vingança. Corre até esse prisioneiro que aí temos, e leva-o à morte, enquanto dormem essas almas fracas. Talvez algum deles tenha sonhado protegê-lo...
— Tanto sangue, meu amigo! Esse prisioneiro era teu inimigo?
— Sim!... e deves obedecer-me quando eu mando, sem procurar as razões de minhas ordens. Adeus!
O leitor terá conhecido que um desses homens era Aley-Açu. Desesperado pelo seu amor infeliz arremessou-se na revolta, onde tomou logo uma das primeiras posições pela sua coragem e energia pouco comuns. Julgou, dando esse passo, que seria por ventura mais fácil alcançar com o poder da força a posse da mulher que desprezava. No meio porém de seus sucessos lhe aparecia de continuo a negra lembrança da impossibilidade de vencer aquele coração, já dado a outrem. E ele não se contentava só com a mulher; queria ser amado tão ardentemente como a amava. Aquela natureza inculta conhecia que no amor não há gozo perene sem a mutua correspondência do afeto.
Aquele que se achava com Aley-Açu ao tempo em que houve o diálogo que acabamos de narrar era o seu amigo fiel, e principal cabo do bando às suas ordens. Dotado de uma alma fraca para a resistência, tinha sido arrastado para esses homens sanguinários, e batia-se a favor de uma causa que ele mesmo não amava. Sentia as dores produzidas pelos seus companheiros em suas empresas de sangue como próprias; mas não tinha a coragem de fugir dele.
No mundo conhecemos muitos desses caracteres, que seriam os símbolos da bondade, se a sua própria razão e instinto os guiassem. Quando o destino os coloca em uma senda lisa, plana e seguida para o bem, sem um só desvio, eles formão uma cadeia não interrompida de boas obras até o descanso da campa.
Esse homem, incapaz de guiar-se pela sua vontade própria, facilmente se deixou prender logo pelas qualidades extraordinárias de Aley-Açu. Ele o seguia por todas as partes, e, com o cão fiel e obediente, curvava-se ao jugo estranho sem revoltar-se jamais.
Os espíritos elevados, os homens celebres pela virtude ou pelo crime, produzem sempre amizades devotadas nessas pobres almas, vítimas reais do estado social. Parece que a vida nelas não é capaz de sustentar-se pelas próprias forças, e sem o apoio externo.
São como essas produções do reino vegetal, que procuram as vizinhanças de altivos troncos para serem protegidas em sua breve e miserável existência. As vezes vencem os bons instintos dessas criaturas, quando são longe da imediata influencia que as tiraniza. Assim Jaituba, entregue a seus próprios pensamentos com a retirada de Aley-Açu, hesitou no cumprimento dessa missão de sangue, e à proporção que avançava para o sitio em que devia estar o desgraçado votado a morte, mais se abria seu coração a indulgência e à bondade...................................................................................................................................................................
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Em uma das extremidades do acampamentos dos rebeldes, onde o terreno formava uma alcantilada descida, que ia perde-se em um profundo Valle, pelo qual corria por antepostas rochas, com medonha violência, um desvio das águas do rio, estava um homem ligado a um forte poste por cordas que lhe passavam pelo meio do corpo, arrochadas com violência tal, que o faziam dobrar para a terra, cedendo as agudas dores que lhe torturavam as entranhas. As mãos, atadas para trás, abraçavam o poste, impossibilitando qualquer tentativa de evasão. Esse desgraçado era Vimy, o prisioneiro de Aley-Açu.
Naquelas lutas lamentosas todos os prisioneiros eram mortos; e os gêneros de suplícios variavam segundo a índole mais ou menos feroz dos vencedores. Horrorosas torturas precediam à morte, e as continuadas cenas de sangue e de crueldade haviam desterrado a compaixão e os impulsos nobres daquelas almas incultas. Eram engenhosos na escolha dos tormentos, e cada dia inventavam mais uma dor, mais um martírio para os seus condenados.
Entre a gente de Aley-Açu era mais usado o suplício que em sua bárbara gíria chamavam o derradeiro banho. Eram os prisioneiros maniatados de forma que não tivessem a faculdade do movimento, e depois precipitados nos rios, ou despedidos dos elevados picos de fervidas cachoeiras. Esse gênero de morte estava ordenado para Vimy, e para isso o haviam colocado nas vizinhanças da corrente.
Antes porém de prosseguir, remontemos um pouco para relatar sua prisão.
Na embriaguez do amor, na posse de plena ventura, Ida e Vimy não deram um só instante para a lembrança de um caso qualquer que pudesse lhes vir toldar a taça do prazer. Não lhes chegava o gemido do infeliz, ou o ronco da tormenta revolucionaria. O incêndio lavrava em redor deles, eles nada sentiam a não ser a felicidade própria. Como não esquecer o mundo e os homens nessas magas horas de amor? Mas alguém havia infortunado sem sua paixão, que não se deslembrava deles para a vingança.
Aley-Açu tinha ordenado tudo para acabar com o maior obstáculo de seus ardentes desejos. O homem que Ida escolhera em seu coração devia desaparecer do mundo. Um dia em que Ida e Vimy vagavam pelas vizinhanças da habitação do Pacajá, embebidos nos gozos da paixão feliz, admirando da criação as mais pequenas produções, e achando tudo belo, porque tudo era visto com os olhos da alma em plena satisfação, foram repentinamente cercados por um bando de rebeldes, com suas roupas vermelhas, tinta com o urucu. E eles, que eram estranhos as agitações do mundo, e que só pediam a continuação do presente tão doce, foram fulminados pela infelicidade no caminhar tão rápida como o raio! Vimy tentou resistir, mas cedeu ao número, e caiu, gritando a Ida que fugisse. E ela, perturbada pelo inesperado acontecimento, seguiu o primeiro impulso que lhe criou o medo, e pôde salvar-se a tempo dos bárbaros, que na perseguição não podiam avançar muito, receosos das forças legais que ocupavam aqueles sítios.........................................................................................................................................................................
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A morte é um descanso eterno das lidas do mundo, ou um belo sono sem fim, na frase de Shakespeare. Talvez o habito de temer essa passagem rápida da vida para a eternidade, habito que nasce quase com o homem, e o acompanha até a hora do desengano, seja a razão única de chamar-se um mal ao que pode ser um bem. Quem sabe?...
Ao primeiro grito da existência aparece o cortejo numeroso das dores, que não desacompanha nunca o homem. Principia essa luta atroz da criação com as forças desorganizadoras, e que se prolonga. O corpo resiste e acaba vencido; a alma luta e sai vencedora, mas alquebrada, inanida, quase sem poder subir à sua verdadeira morada. E quão mudada a deixam os crepitantes rolos das vagas do existir!
Quem não terá aspirado, ao entrar no mundo, as aromáticas flores de uma alma virgem? Corremos tão alegres nessa época, vivendo vida de irmãos entre os nossos semelhantes, emprestando-lhes todos os sentimentos nobres que então possuímos, confiando neles como em Deus. E depois? ...... Ah! Como é amargo o conhecimento da verdade, aquilo que o mundo mal cabidamente chama sabedoria!
Uma por uma caem as folhas murchas dessas flores que nos enfeitavam a vida. O amor da mulher não tem as cores, que a imaginação preparara, frescas, suaves e harmoniosas; é o baixo e infame cálculo do interesse, ou a imagem do vício. A amizade do homem, que a mocidade borda com poéticos enlaces, com sublimes abnegações, é a perfídia, o egoísmo, e uma continua cadeia de refalsado fingir. É quando nossa alma, novel e cândida, resiste ao contagio, e passa pura por entre a turba dos réprobos, o mundo não a conhece, e procura esmagá-la pela calúnia. A virtude não é compreendida pelos homens, e, planta exótica sobre a terra, desfalece, vegetando entre martírios.
O mundo merece tanto amor, e a morte tanto horror? É um problema que só resolve a lousa sepulcral..................................................................................................................................................................
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— Morrer tão moço, quando apenas tomava assento no banquete da vida! Deixar tão cedo o mundo com suas galas, a mulher que tão ternamente amava-me! Oh! É horrível! Pela última vez contemplei o brilhante sol de minha terra, as flores do campo, e ouvi o alegre canto das aves. E nem ao menos poder dizer-lhe o extremo adeus!...
Vimy soltava aos ventos estas magoadas palavras, abatido com a ideia da morte. Na hora extrema se recordava do passado com saudade, e contava cada uma das venturas perdidas. A memória para mais pena lhe representava as delicias gozadas, servindo como sempre de verdugo na calamidade com a recordação do que já se não logra.
Por algum tempo conservou-se em profunda meditação com a fronte caída para a terra.
Nessa hora tremenda, com a rapidez do pensamento percorreu as páginas todas de sua breve existência. Sentiu como se deve sentir na hora passamento o que deixava após si. Inspirado pela proximidade da morte descobriu na criação de Deus beleza que não havia nunca sonhado; e admirava-se de haver passado por elas com o descuido do caminhante apressado em fadigosa jornada. Ele queria viver para colher os frutos, que então se desenhavam rápidos diante de seus olhos! Parecia acordar de um belo sonho; mas acordava desesperado com os pés na sepultura. Soltou um agudo grito, último esforço da vida, e ficou prostrado pelo sofrimento, abatido e quase morto.
Nessa ocasião sentiu que alguém se aproximava, e disse:
— Barbosa! Venha já a morte, e não se dilate esta agonia, mais dura que a morte.
— Tupana seré-catu[5]! Pesa-te tanto a vida, que tenhas pressa para morrer? Respondeu Jaituba, a pessoa que caminhava para junto do condenado, e que foi por ele sentida.
III
..........................................Eu só a via;
Eu só por entre o horror da tempestade
Via brilhar a luz da meiga estrela,
Único norte meu.
* * *
Deus, lançado o homem sobre a terra, permitiu que ele em sua mocidade pudesse amar com paixão, para que compreendesse a existência celeste. Deu-lhe essas horas de delicias que não se reproduzem mais no meio dia e na tarde da vida, para que ele soubesse amar ao seu Deus, ao seu criador. De feito jamais prova ele no caminhar do mundo prazer tão inefável como na paixão, que arrasta para a escolhida do coração. Nascemos solitários, e com o correr dos anos sentimos que o nosso ser é completo sem estar ligado a um ente que nos seja caro. Daí a origem dos mais suaves gozos da vida humana. A ambição, a fome de glória, o ódio, as paixões que cansam, e cedem ao tempo; o sentimento do amor não se fatiga, e conserva em si mesmo o alimento das forças que o vigoram. Todas as paixões são egoístas, o amor só é cheio de sublimes abnegações. Gozamos tanto nos bens que espalhamos sobre outrem, que nos esquecemos do nosso eu, dedicados inteiramente a felicidade estranha. É o complemento da perfeição humana, porque revela a natureza imortal do homem, fazendo estimar a existência física unicamente pela posse da felicidade moral. Este sentimento é grande e poderoso no homem, mas toma maior intensidade e duração na mulher. É a história inteira na vida da mulher, e um episódio na vida do homem.
Pela gravidade da paixão podemos medir o grão do sofrimento da perda do objeto do nossas caras afeições. A não ser Deus, que vela sempre por nós, mostrando sua bondade em nossos sofrimentos, criando até doçuras nas penas do coração, enviando o tempo para mitigar e cicatrizar as mais dolentes feridas, essa dor seria superior à força humana. Com a morte do ente que amamos aparece primeiramente a dor extrema, que nos fulmina; depois chega o sentimento calmo da perda; e finalmente nos recebe a dor melancólica, mas suave das recordações. Neste estado a vida alimenta-se unicamente com o passado; e quem lhe arrancasse uma só dessas lembranças saudosas deixaria a morte em seu lugar. Corre ela no tumulto do mundo solitária, e lembra-se do futuro somente para saudar nele o realizar de uma esperança: a reunião de além-túmulo na eternidade com o ser que temos amado sobre a terra.
Neste último período da dor achava Ida depois dos factos que narramos. Para atar porém o fio dos acontecimentos convém que o leitor nos acompanhe a Pacajá...........................................................................................................
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Quem houvesse conhecido no passado a pitoresca habitação do Pacajá, vendo-a então bela, risonha e respirando o prazer por todos os lados, a desconheceria agora. Os lugares onde vivemos, testemunhas mudas dos diferentes estados de nossa vida, se ressentem das mudanças que o tempo opera em nós. A felicidade não se concentra na pessoa que a goza, costuma espalhar seus reflexos pelos objetos que nos cercam. A dor é recolhida, e foge do ruído, levada por força irresistível para a soidão, e produz o abandono das cousas externas, de tudo o que não tem ligação com ela. Assim atentando para qualquer lugar onde habite o homem, podemos ler nele, como em um livro aberto, longas páginas da vida desse homem.
O asseio de todas as peças, a elegância delas, uma espécie de luxo na matéria, nas formas e nas cores, que desce mesmo até a modesta pobreza alegra-nos sempre, porque a alma tem pressentido a felicidade no autor de todas essas cousas. O abandono das peças, a falta de asseio, a confusão em todas as partes, a desarmonia das colocações e das cores, entristece-nos, porque a alma tem conhecido a desgraça no habitador desse lugar, e à primeira vista. O verde arvoredo, erguendo-se de um solo limpo e bem tratado, ostentava em outro tempo toda a beleza de suas formas; agora confundiam-se os altivos troncos com os rebentões nocivos, e eram escondidos pelo mato, que a força da vegetação havia feito nascer e crescer sem obstáculo. Os galhos secos, deixados por entre a viçosa ramagem, desagradavam os olhos e tiravam todo o brilho das cores das copadas arvores. A erva invadia os passeios e cobria quase toda a área fronteira à casa. As flores, mal tratadas, curvavam-se para a terra, e pareciam prever seu próximo fim; e abriam-se, e emurcheciam sem as caricias de mão amiga. A casa tomava a aparência triste de tudo o que a cercava; e as trepadeiras chegavam-lhe até o teto. As janelas não tinham mais o delicioso ornato de aromáticas flores, que outrora espalhavam a poesia e a vida. Ninguém diria que ali viviam os mesmos seres de outro tempo. O silencio mesmo faria crer que o sítio fora abandonado pelos seus antigos possuidores. Parecia que a negra peste, ou a gelada mão da morte, tinha passado por aqueles lugares, transformando-os um deserto.
Ida saía todos os dias dessa melancólica casa, apoiada em Loia, e se dirigia para um lugar sito na margem do rio. Com a justeza e regularidade de uma máquina, a hora certa da tarde chegava-se a pobre mãe, e lhe pedia que a acompanhasse em seu costumado passeio. Ali, entregue toda à sua saudade, esquecia-se de Loia, de tudo. Vivia naquelas horas só com os seus pensamentos, e com as mudas testemunhas da ventura passada. As águas do rio, o horizonte oposto, as pedras, as arvores, tudo tinha uma linguagem para ela. E uma doce ligação com os dias de felicidade. Foi sobre aquelas águas em deleitosos passeios, debaixo da influência daquelas vistas encantadoras, a sombra do florente arvoredo, e reclinada sobre as toscas pedras da riba, que ela experimentou suprema ventura pela primeira vez na vida. Desde a fatal prisão de seu amante ela o julgou perdido para sempre, porque entre aqueles selvagens não havia esperança de salvação para um só prisioneiro. Já não era a mesma moça que pintamos ao despontar da vida; as cores do rosto eram extintas, e a vivacidade dos olhos substituída pelo movimento lento, preguiçoso, da dor meditativa. O mundo era perdido para ela, e sua alma ansiava a hora da partida, como o desterrado a pátria. Em sua dor não soltava uma só queixa contra a bondade de Deus. Ele havia-lhe dado naqueles dias de amor todos os bens da vida, e ela, gozando-os, tinha sentido tanta felicidade, que uma existência de séculos não compensaria.
Loia, assim como tinha adivinhado o amor em sua filha, conhecia a força da dor, e silenciosa respeitava essa dor. Dava-lhe todo o afeto e consolação de mãe, e perdoava nela o esquecimento de sua terna amizade, porque sabia que no mundo há dores que não podem ser curadas, nem mesmo com o amor maternal.
Um dia Ida encontrou em seu passeio um pequeno tecido de sensitivas, representando uma cruz, o que, na singela linguagem de sinais, usada entre os seus, queria dizer: acautela-te! Certo que algum ente misterioso a guardava e protegia contra inimigo desconhecido. Naquele abandono do existir em que se achava, pouca sensação lhe produziu este acontecimento. Demais, a ninguém temia ou tinha por inimigo, segregada dos homens naquele solitário retiro. Porém parou defronte da cruz e levantou-a. As folhinhas com o toque dos dedos murcharão logo; e ela banhou-as com suas lágrimas, lembrando-se que, como elas, murchavam também seus viçosos dias com o toque da desventura. Uma força oculta obrigou-a a conservar-se por algum tempo atenta sobre esse sinal, como formado por mão querida, e ali depositado pela amizade. Não pôde mais deixá-lo e guardou-o, movida talvez pela virtude da gratidão. Desde então misturava-se ao sentimento melancólico dos passeios algum outro desejo, ou esperança vaga, que ela mesma não podia explicar. Seus olhos volviam-se com mais curiosidade para os lugares vizinhos, como se procurasse alguma cousa esperada. Como este misterioso aviso repetiram-se outros, que eram recebidos já com fé e confiança. Ida perdia-se em suas ideias quando procurava conhecer o ente amigo que velava por ela. Enquanto aos perigos que corria, segundo os avisos, não era tanta a dificuldade para achar o autor deles, pois que em tudo lia o nome de Aley-Açu. Se bem que ela não o visse entre os rebeldes na ocasião da prisão de Vimy, bastante o conhecia e temia para fazer logo este juízo sobre ele. A sua ausência mesmo daqueles lugares em tempos tão agitados, a prisão do amante e a perseguição contra ela claro o diziam. Mas a quem podia mais ter por amigo sobre a terra depois da perda de Vimy?
Assim correram alguns meses nesse viver entre a dor e a dúvida..............................................................................
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Em uma tarde, na mesma época em que apareciam os avisos Misteriosos, e no mesmo lugar de Pacajá, achava-se Aley-Açu sentado sobre a relva, perto de uma tosca pedra, onde se recostava Ida em seus passeios. Tinha deixado as vestes vermelhas, distintivo das forças rebeldes, e parecia mesmo querer cobrir o aspecto feroz que havia tomado entre aquela gente, com fingida cor de brandura e timidez. Olhava fixo para a quebrada da estreita picada donde esperava ver Ida; levantava-se ao menor ruído produzido pela queda de uma folha, ou pelo vento nas ramagens do arvoredo. Defronte dele, e inteiramente encoberto pelo mato, estava um homem não menos agitado; mas ao contrário deixava este mostrar-se livremente no semblante a paixão que o dominava. Estava armado com uma clavina, e a encostava ao tronco de uma arvore com a mira na direção de Aley-Açu. Não desfitava os olhos dele; e ao menor movimento que sentia enfiava a vista pela mira, e tomava logo a posição de quem queria fazer partir o tiro. Havia no semblante desse homem tanta expressão de ódio e vingança, que não padecia duvida que um drama horrível estava próximo a dar-se. O suor lhe caía em bagas do rosto, e o peito arfava-lhe com amiudado palpitar de violento sentimento. A vida de um deste homens pendia por delgado fio da boca do cano da clavina; e uma leve pressão do dedo no gatilho podia mudar a marcha do destino de muitas pessoas!
Ida e sua mãe apareceram logo, demandando o sitio onde costumavam descansar, entregando-se ambas à meditação do passado por aturado tempo. Se volvêssemos os olhos nessa ocasião para o homem de clavina, o veríamos todo tremulo, como se a vinda dessas mulheres lhe anunciasse a hora derradeira da vida. Aley-Açu encaminhou-se para elas, que não puderam ocultar o choque que sentirão quando se aperceberão de sua presença.
— Os dias correm bem maus e arriscados na época atual, ninguém se pode julgar seguro hoje. Duas pobres mulheres sem defesa, como sois, precisão de um homem que vele por elas. Aqui estou, e derramarei por vós o meu sangue. Serei ainda mal recebido?
— Não precisamos de ti, Aley-Açu! Respondeu Ida com o semblante carregado. Eu creio que o único inimigo que temos está agora diante de nós. Tupana te julgará, quando deixares a morada dos crimes; e então não poderás suster a máscara que hoje trazes.
— És injusta para mim. Pensei que a morte do homem que amavas houvesse arrancado a venda que te ocultava o amor mais apaixonado que é possível votar a uma mulher. Dei-te o tempo e a liberdade precisa para me julgares em minha ausência. Deixei correr livremente tuas lágrimas sobre a memória do desgraçado, e quando as julguei secas me abalancei a dizer-te outra vez: — Eu te amo! — Um homem que te conhece e te ama pode ser teu inimigo?
Loia se conservava muda entre a filha e Aley-Açu; mas antevendo os resultados dessa luta, e percebendo os primeiros indícios de cólera, que mal eram contidos por Aley-Açu, quis adoçar o amargo de tão desagradável entrevista, e disse:
— Não conheces bem o coração da mulher, pedindo um segundo amor a quem ainda tem mal curadas as mágoas do primeiro. Poderias sofrer nas horas de doce amor uma só lembrança daquele que foi teu rival no coração da mulher que apertas em teus braços? Não procures agravar teus tormentos, criando em estado tão doloroso; esquece-te de Ida, foge destes lugares, e se não podes dar a felicidade a mulher que amas, dá-lhe ao menos a paz e a liberdade das lágrimas.
— Mal pensarão, se esperam que eu hoje me retire tão facilmente como outrora. Lembro-me que então jurei que te havia de possuir. A fé que sim! Tu serás hoje minha.
— Assassino! Lhe replicou Ida, o meu coração diz-me que tuas mãos estão vertendo sangue de meu amante. Nunca me possuirás. Olha para o céu! ele ali está, e chama-me para junto de si. Ele, que foi tão feliz aqui na terra comigo, o será também na eternidade. Maldito que és, que não gozaste, e que nunca gozarás ventura igual.
Aley-Açu deu um rugido horrível, e no auge da desesperação levou aos lábios uma tosca buzina que trazia, e tirou dela um som que retumbou pela mata.
Outro rugido lhe respondeu do lado oposto, e logo se ouviu o estampido de um tiro, e uma bala sibilou-lhe nos ouvidos no momento em que ele se precipitava sobre Ida para arrebatá-la dos braços da mãe. Não teve tempo para consumar seu danado intento, e de um salto embrenhou-se por uma moita vizinha.
Ele e seu bando, que perto estava, pensarão que eram cercados pelas tropas imperiais, e procuraram a salvação em precipitada fuga.
IV
Engano lisonjeiro da existência,
Que verdade cruel te há dissipado?
Que ímpia mão te ceifou no ardor da sesta.
Rosa de amor, rosa purpúrea e bela?
* * *
Entrava o ano de 1836 sob felizes auspícios para a província do Pará; aproximava-se o memorável dia 13 de Maio, no qual foi restaurada a sua capital. Antes porém desse faustíssimo acontecimento os rebeldes já eram batidos em muitos pontos do interior da província, e desanimados pouca resistência apresentavam às forças imperiais. Não eram protegidos mais pela vitória, porque passado o primeiro torpor, produzido pelo inesperado movimento revolucionário, havia surgido dentre os povos a coragem e a resolução da defesa. E os próprios insurgentes apressavam a sua queda com as frequentes divisões que criavam a inveja e a ambição entre eles. Eram mui repetidos os assassinatos nos seus principais chefes com o próprio punhal da revolta. Assim Deus os exterminava. Dirigindo contra o assassino a sua mesma arma.
Aley-Açu era um dos chefes que tinham sofrido muitas derrotas, e a esse mal se ajuntava a pena, maior para ele, de não haver podido chegar a possuir Ida. Conhecia que a hora a queda estava próxima a soar, e não via depois dela uma só esperança de felicidade para seu amor. Tudo se tinha voltado contra ele, e depois de tanta luta era tão longe de seu fim como na primeira hora em que soube que não era amado. Não se lembrava de outro meio de alcançar Ida a não ser pela força. Era mister empregar quando antes os seus últimos recursos...................................................................................................................................................................
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Quando encetamos esta história pintamos a existência plácida e feliz das duas principais personagens dela; e quem não invejou então esse viver descuidado e venturoso de duas almas puras, amando-se no meio de uma natureza bela e grandiosa? Bastou porém a passagem de alguns meses sobre essa mansão deliciosa, para que se trocassem as cores de tão suave quadro! Agora que havemos chegado ao desfecho dos acontecimentos, é triste a comparação do passado com o presente. Testemunhando tanta inocência e ventura ninguém pensaria entretanto que a desgraça pousasse um dia sobre aquela casa! Ali viviam nessa época dous seres; um no fim da inocência, e outro no princípio dela. No insondável futuro estava escrito que o mais belo deles, o que apenas passava os umbrais da vida, cairia logo esmagado pela dór. Ha porém sobre a terra existências votadas desde o berço à infelicidade: uma cadeia de amargo sofrimento as liga à morte. Para essas criaturas, estrangeiras na pátria dos prazeres, é a vida um presente bem pesado. Coube-lhes todavia um dom, que não possuem os felizes da terra: conhecer com mais perfeição a alma humana. Como o enfermo que se revolve no leito de dor procura, e a final encontra a posição menos penível, assim os infelizes, separados pelo infortúnio das distrações do prazer, asilam-se em seus próprios pensamentos, e trabalhando-os familiarizam-se com a alma. E ela, a alma, acaba sua penosa viagem, regenerada pelos padecimentos morais.
Tudo mudou, dissemos nós, nessa habitação do Pacajá; mas a natureza conservou a mesma vida e alegria. Nos dramas humanos existe quase sempre esse contraste entre a natureza e as dores do mundo.
Revolta-nos nessas horas de amargura a indiferença de um sol brilhante e alegre, como era nos dias de doces gozos, de uma manhã com seu horizonte puro e trajado com as mais ricas galas, quando é negra nossa alma. Insensatos!.... Queremos que tudo sinta, quando nós sofremos. Nunca se deu pois um dia mais almo do que aquele no qual houve a cena lamentosa que vamos narrar. Ella se passou na habitação de Ida....................................................................
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Pouco tempo depois do último acontecimento descrito no precedente capitulo, muitos homens armados ocupavam a sala principal da casa, tendo à sua testa Aley-Açu. Aos pés dele estava Loia em dolorosa súplica ajoelhada, sem poder arrancar daquele semblante frio e liso como a pedra um único sinal de compaixão.
Ida achava-se em outro aposento imediato, entregue ao sono da inocência.
— Por piedade deixa-me a triste filha, não me roubes com ela a vida... dizia Loia a Aley-Açu, banhada em lágrimas.
— Não!... Retira-te, mulher! Não podes mudar minha vontade. Foram todos bárbaros comigo quando humildemente pedia que respondessem à minha paixão. Desprezaram-me, aviltaram-me a ponto de fazerem-me testemunha de estranhos amores com um outro, que certo não podia despender tanto afeto, tanta paixão, como esta alma dava. Sofri muito, bebi o cálix de amargura até esgotá-lo. E ela era feliz com ele, enquanto eu carpia acerbas dores! Não, não mais.
— Porém, desgraçado! Tu a matas. Se a levares não resistirá essa alma enferma a tanta desventura. Perdes a mulher com a honra.
— Embora... Não será de ninguém mais.
— Oh! Este homem é um tigre..................................................................................................................................
Depois desta palavras Loia ergueu-se, e pareceu pensar em um meio de salvação; e por algum tempo ficou calada com os olhos baixos. Abandonou porém a ideia de abrandar aquele coração de fera; conheceu que a desgraça era infalível. O que lhe doía mais, a ela, descendente de honrada tribu, era ver profanada a santidade desse primeiro amor de sua filha. Nunca um só de seus maiores desceu tão baixo, que quebrasse um voto, ainda mesmo sob a influência de força irresistível, e também nunca um só desses havia temido a morte, quando a extrema dor e a continuada infelicidade lhe dizia que ele era um conviva importuno no mundo, mostrando-lhe a aguda ponta de uma flecha. Levantou a cabeça com nobre orgulho, e fixou vista segura em Aley-Açu. O reflexo de um pensamento elevado derramou-se por aquele rosto, e emprestou-lhe um aspecto varonil.
— Espera um pouco, Aley-Açu, lhe disse ela, eu vou preparar minha filha pra receber-te.
E saiu da sala............................................................................................................................................................
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Nesta hora em que Aley-Açu, seguro da Victoria, concedia alguns momentos à infeliz mãe de Ida para despedir-se da filha, três montarias, pejadas de gente armada, aportavam no sitio de Pacajá. Mal chegavam à praia, saltou de uma delas um homem, e correu para a porta principal da casa, enquanto os outros se preparavam para acompanhá-lo, com as vestes molhadas, e os cabelos em desordem. Alcançou logo a sala, e mostrou-se entre os rebeldes, como uma aparição sobrenatural. Um grito geral o recebeu em sua entrada.
— Vimy! Exclamou Aley-Açu com os olhos espantados, deixaste a morada dos finados para meu martírio?
— Assassino!... tuas ordens não foram cumpridas. Teu amigo não pode matar-me, porque a compaixão embargou-lhe o passo. Nem todos são feras como tu.... Mais cedo me terias encontrado em teu caminho, se eu não tivesse jurado, a pedido de teu amigo, esconder-me a todas as vistas. Hoje foi necessário que eu me achasse diante de ti para opor-me a uma infâmia. Cheguei ainda a tempo...............................................................................................................
Mal eram ditas essas palavras apareceu Loia com uma faca ensanguentada na mão direita, e abrindo a porta do aposento de Ida de par em par descobriu às vistas assombradas dos rebeldes um quadro lastimoso.
— Aley-Açu! Ali tens a mulher que pretendes roubar. Entra, toma-a, não tremas!
Nessas palavras Loia gastou o último esforço da inteligência. Olhou espantada para todos os lados, arremessou a faca para longe de si, e chegando-se para uma das janelas saltou para o jardim. A desgraçada estava douda......................................................................................................................................................................
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Ida era deitada em um Topet no meio de um lago de sangue. No lugar do coração se via uma larga ferida, donde corria em borbotões o sangue. Em um dos braços estava a cabeça reclinada, saindo ainda bela do fundo negro armado pelo cabelo disperso. Com os olhos cerrados ela parecia dormir ainda o sono da vida.
Leitor! Não duvides da existência e verdade da ação principal e dominante desta história. Só os lugares e os nomes foram mudados.
Factos como estes, de súbito esforço moral, se deram no Pará, e passarão obscuros por entre a confusão e ondas de sangue daquela lutuosa época.
[1] Tradução encontrada na narrativa: “Livres, corramos sobre as ondas livres!”
[2] Foi um passo esse mui ousado! Era uma pequena fração da Província, que se animava a provocar a maioria, convocando as vilas todas para a aliança da ordem. Citaremos tópicos da celebre ata de 20 de março de 1833:
“A vila de Camutá e seu termo protesta não consentir que a constituição do Estado seja violada, e não reconhece autoridade em governo algum intruso... Convido-o (o presidente interino) a trabalhar e bem assim a todas as mais autoridades da capital, a favor do império da lei... E no caso inesperado de subversão da ordem, Camutá tomará a atitude que lhe compete, adotando as medidas que julgar convenientes para manter a tranquilidade... E para esse efeito convidará as vilas circunvizinhas a fim de se oporem às tentativas de anarquia, e ajudarem-se mutuamente para a sustentação do império da lei e da ordem pública.”
Era então presidente da câmara José Raimundo Furtado.
[3] Uma expedição tomou o lugar de Breves depois de trabalhado combate, e outras fizeram o mesmo em alguns lugares. O vice-presidente, o Dr. Ângelo Custódio Correia, foi com um reforço para a Capital.
[4] O padre Prudêncio José das Mercês Tavares.
[5] Jura índio, e muito usada.