LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
“Maria, ou A menina roubada”, de Teixeira e Sousa[1]
Edição de referência:
Marmota fluminense. Nº 295; 297; 299; 301; 303; 305; 307; 309; 311;
313; 315; 317; 319; 321; 323; 325; 327; 329; 331; 333; 335; 338; 340;
setembro; outubro; novembro; dezembro de 1852; janeiro e fevereiro de 1853.
MARIA
OU
A MENINA ROUBADA[2]
I
O ROUBO
Era a última hora do dia. O sol enfiando seus raios para outro horizonte, deixava após de si a hora da saudade e da melancolia, isto é, a hora do crepúsculo, em que igual porção de luz, e igual porção de sombras, discretamente misturadas formam esse suave composto, equívoco entre a noite e o dia, doce mistura em que a luz se perdendo nas sombras e as sombras na luz, povoa o espaço de uma agradável dúvida, de claridade e de trevas, de que tão voluptuosamente resulta essa mimosa hora do dia tão cheia de saudades nos arcanos do amor, e tão cheia de melancolias nos mistérios do coração.
Era pois quase noite.
O pássaro cantava a última parte de seu hino quotidiano; porque todos os dias o pássaro entoa um hino de amor, cuja primeira parte lhe escuta a aurora, e a última a primeira hora da noite; e esse hino é uma ação de graças, que todos os dias rende ao Criador: mas o hino da criação, que os pássaros nunca mais esqueceram desde o primeiro instante em que apenas emplumados o modularam no Éden, não era a única oblação, que, nessa hora de amor, erguia-se da terra até o trono de Deus; não, que esses hinos de amor, e de agradecimentos subiam envoltos em imperceptíveis nuvens de puros e suaves aromas, com que a flor de agradecida e de amante ia perfumar o escabelo do Senhor.
A brisa, para não perturbar nem uma única nota deste hino tão suave, para não desviar nem uma molécula deste perfume tão puro; respeitosa pousava suas azas azuis sobre a grama dos vales, que parecia reverdecer ao seu toque regenerador. Era a primeira hora da noite.
Ao longe gemia melancólico o bronze sagrado, cujo som monótono perdia-se gemebundo nas solidões do espaço. Ao longe, leitor, porque o narrador vos convida a uma praia, não longe do Rio de Janeiro; e esse som deslizado por sobre a face lisa e serena dos mares vinha perder a sua derradeira nota de vida nos ouvidos dos viandantes, que por aí passavam, como um suspiro saudoso. Era a hora da oração: soavam Trindades.
Era cedo; mas, ainda assim, a Praia-Pequena estava deserta como um país desabitado. Com efeito, de certa hora por diante ninguém por ali se atrevia a transitar; tal era o terror que naqueles contornos espalhavam alguns desertores do exército e da armada.
Ou de audaz se atrevendo a afrontar o perigo, ou ignorando as sanguinolentas gentilezas dos salteadores diabólicos, montado em um possante macho, trazendo sobre a garupa uma menina, que diríeis um anjo de beleza, por essa praia viajava ao cair da noite um elegante mancebo.
A pressa com que o diligente animal escoava seus pés sobre a larga estrada, faria supor que o mancebo temia algum desarranjo, por ali passando ao cair da noite; ou que alguma pressa o urgia a concluir a sua viagem. Ele buscava a cidade.
Tudo era silêncio: o cavaleiro parecia absorvido em alguma ideia, que o ocupava, ou em alguma melancolia, que pesava sobre sua alma. Também sua inocente companheira nem um monossílabo articulava.
De repente, o eco de um tiro interrompe este silêncio de morte. O cavaleiro, murmurando um ai, tomba do animal ao chão, onde fica estendido, para, ele mesmo, nunca mais levantar-se. A menina, lançando um grito indefinível, arrastada pelo cavaleiro, cai com ele.
Algum crime se havia premeditado, e punha-se em execução.
II
A FEITICEIRA
Um pouco além do Engenho-Novo, sítio pouco apartado da cidade do Rio de janeiro, no meio de uma cerca de espinhos, já velha, mal tratada, e cujos ramos dir-se-ia que uma única vez foram dobrados, abria-se uma tosca tranqueira, que fechava mata-pastos, dormideiras, arrebenta- cavalos, etc.; mas não obstante o desleixo deste pequeno campo, notava-se da tranqueira para o centro, bordando uma pequena colina, um mal aventado caminho, tão coberto de capins e gramas, tão obstruído de ramos, que ninguém acreditaria que fosse ele frequentado.
Nesse lugar uma serra distava pouco da estrada.
Não obstante o desmazelo deste campo, e o aparente abandono de seu caminho, o narrador convida o leitor para entrar à dita tranqueira, e trilhar o caminho que borda a pequena colina. Cumpre porém desde já sabermos que esse pequeno monte, que tem ares de colina, nada mais, e nada menos é que uma ponta de serra, que partindo dela, e para ele voltando, formava um como semicírculo, abraçando em seu centro um vale circular, tão pequeno, que mais parecia uma cova aberta pela mão do homem nesse lugar da serra; mas era, com efeito, um vale, cujo diâmetro poderia ser de cem passos pouco mais ou menos. Entre a serra, e a ponta do semicírculo, destacado dela, havia uma abertura, cujas paredes, se fossem alcantiladas, mal dariam passagem a um cavaleiro: esta abertura comunicava este diminuto vale com o vale por onde serpeava a estrada do Engenho Novo.
No meio deste pequenino vale deparava logo, quem o fitasse, com um cardume de árvores, que formavam uma selvazinha não pouco basta: era depois que se penetrava. [palavra ilegível] selva, que assomava uma pequena choupana, por demais acaçapada e oculta pela turma das árvores que a rodeavam. Entremos aí.
Esta pequena, e imunda choupana não tinha senão dois repartimentos, um quarto de dormir e uma sala, que ao mesmo tempo servia de cozinha. Toda a mobília consistia em uma velha mesa, um estrado carunchoso, um mocho, uma caixa e um pote; no quarto havia um catre, e debaixo dele tantas futilidades, tantas extravagancias e cousas tão caprichosas, que fariam rir a um filósofo, e horrorizar a um supersticioso. Uma amostra desta ridícula fazenda.
Havia um cesto cheio de raízes e ramos secos; havia outro cheio de terra, que, não só pelo cheiro, mas também por alguns pedaços de ossos, parecia terra cavada em algum cemitério; noutro cesto estavam alguns ossos, humanos, entre os quais sobressaíam três caveiras; uma trança de cabelos, ainda em bom estado, uma mão humana completamente mirrada, e tantas outras cousas iguais, que enumerá-las seria fastidioso, e quase infinito.
A única habitadora desta asquerosa e medonha habitação, era uma negra velha, alta, e magra como uma palmeira; seus cabelos já não pouco brancos, suas faces em demasia rugosas e caídas, seus olhos pequenos, fundos, e ensanguentados, suas longas orelhas repuxadas, seu aspecto repugnante, tudo enfim, tudo dava a esta criatura um semblante assustador, terrível, e diabólico.
As oito horas o tropel de um cavalo quebrou o silêncio que reinava em torno desta habitação medonha. Quem quer que era apeou-se à porta e bateu discretamente. A fúria (pois outro nome mal pôde assentar em um tão feio demônio), a fúria abriu a porta. Um homem, não feio, não desengraçado, sofrivelmente vestido, que parecia ter os seus trinta e tantos anos, entrou, trazendo pela mão uma menina, que chorava, e tanta quanta seu estado e sua idade lhe permitiam, fazia uma fraca resistência. A menina, levada aos puxões pelo seu condutor, entrou, e encontrando a fúria, soltou um grito, tapou o rosto com a mão, que tinha livre, e quis fugir... quis, mas não pôde, que o cavaleiro a tinha presa pela outra mão. A fúria vendo o terror da menina, desprendeu um sorriso infernal, em que alvos e belos dentes contrastando com tanta fealdade, e horror, a tornaram mais hedionda e medonha. O cavaleiro de um modo um tanto rude falou-lhe assim:
— O que era então preciso?
— Uma menina de menos de sete anos (disse a fúria), e que se chame Maria.
— Pois aqui a tem. Pode ser hoje?
— Não. Hoje é quinta-feira.
— E então quando?
— Só ao depois de amanhã.
- Pois bem... Até sábado, disse o cavaleiro saindo.
— Até sábado, disse a fúria contemplando a menina.
III
O SOCORRO A TEMPO
O narrador, no Capitulo I, disse que o viandante, que pela Praia-Pequena passava, ferido de um tiro, murmurando um ai, tombara do animal ao chão, onde ficara estendido, para ele mesmo, nuca mais levantar-se. E é verdade; porque esse corpo que assim caíra moribundo, em breve se tornaria cadáver, se um pronto socorro não viesse estancar-lhe a vida, que de mistura com seu sangue foge por entre os lábios de uma larga ferida que sobre o ombro esquerdo lhe havia feito o chumbo, que sobre ele, de arma matadora, havia cuspido a morte entre as chamas do inferno!
Com efeito, durante um quarto de hora esse corpo ferido jazeu sobre a fria terra; e durante um quarto de hora esse corpo ali se esvaía!
Era no mês de Dezembro; os relógios deviam marcar seis horas e meia, pouco mais ou menos, quando por aquele lugar acertou de passar uma turma de cavaleiros; no lugar em que jazia o corpo do moribundo os cavalos refusam, e por mais que os hábeis cavaleiros os esporeassem, e os impelissem, não houve fazê-los caminhar, e nem romper o passo, que repugnavam. Então, dentre um curto vassoural parte um gemido, em que grandes padecimentos parece que se revelavam. Os cavaleiros tratam de sossegar os cavalos, e um deles diz:
— Escutemos, escutemos...
— Ouvi um gemido (diz um).
— E também eu — (disse outro cavaleiro)...
No mesmo instante ouvem um fraco rugir dos pequenos ramos das vassouras, e algumas leves pancadas, como batidas na terra. Por sem dúvida era alguém que por ali se debatia, vítima de alguma grande dor. Os cavaleiros não ficaram por muito tempo duvidosos acerca do que seria; porque uma voz fraca e lamentosa, certificou-lhes que alguém sofria. Eles ouviram pois isto:
— Socorro... socorro pelo amor de Deus!...
Imediatamente três dos cavaleiros põem-se pé em terra, e lançando as rédeas de seus cavalos aos companheiros, para que os contivessem, encaminharam-se direito ao ponto de onde a voz lhes pareceu ter partido; aí encontraram um homem.
— Que é isto? (disse um dos cavaleiros).
— Socorram-me em nome de Deus... Assassinaram-me...
— Quem?
— Ignoro... Talvez algum salteador... ou... Meu Deus...
— Onde está o senhor ferido?
— Sinto grandes dores sobre o ombro direito.
— Bem. Vamos ver se o recolhemos em alguma parte, para aí vermos sua ferida, e tratá-la. Eu sou médico.
Dito isto, puseram o ferido em um cavalo, e o conduziram.
À pouca distância havia uma casa de negócio, onde os cavaleiros recolheram o ferido. O médico examinou o seu ferimento, e reconheceu que não era mortal, e que o ferido em pouco tempo restabelecer-se-ia. Sem mais demora a ferida foi pensada convenientemente, e o enfermo mostrou algum alívio. Depois de tudo isto feito, disse o médico:
— Convém que por ora não fale. O seu estado reclama quietação e sossego. Amanhã nos veremos. Nós pernoitamos também nesta estalagem, e amanhã veremos como amanhece. A minha cama fica aqui perto da sua: se de alguma cousa precisar de noite; chame-me. Até amanhã.
— Até amanhã (disse o doente).
IV
QUEM ERA O ASSASSINO?
O Sr. Estevam era um mocetão, alto, gordo, claro, corado, de olhos azuis, cabelo louro, faces rechonchudas e vermelhas, testa pequena, olhos grandes, e à flor do rosto, maçãs proeminentes, lábios finos e arrebitados, fronte alegre, mas que nada inculcava. O narrador não sabe se o Sr. Estevam era, ou não estúpido; mas pode assegurar, sem medo de erro, e exageração, que o Sr. Estevam era ignorante como um africano, crédulo, como menino; mas voluptuoso como um asiático! Por felicidade não era ele tão rico que pudesse satisfazer todos os seus desejos; mas tinha patacas.
— Para completar o retrato moral deste personagem, releve o leitor que lhe digamos, que o Sr. Estevam era usurário, como um somítico; e somítico, como um usurário! capaz de praticar vilanias por um vintém, não duvidava, todavia, botar fora rios de dinheiro por uma mulher, de quem gostasse, porque um ente dessa natureza não ama, mas profana o amor; pois, que não considera em uma mulher senão, um ser feito para os gozos e caprichos do homem, rebaixando destarte o ente mais belo da criação ao aviltante grau de uma cousa sem pensamento, sem ação e sem vontade!
O narrador propondo-se a esta pequenina história, propôs-se igualmente a narrar os factos sem demorar-se na moralidade deles; salvo quando for de absoluta necessidade. Seguindo, pois, este propósito, cumpre declarar que o Sr. Estevam só tinha energia para ajuntar dinheiro, fosse como fosse, e para desperdiçá-lo com as mulheres, com as quais era teimoso, era tenaz, como aquele Leonardo, do qual falava Camões, fossem quais fossem as derrotas e desprezos, que sofresse. E com efeito, o Sr. Estevam tinha ouvido que a primeira qualidade para um namorador era o ser teimoso, o voltar sempre à carga; não desconcertar-se jamais; enfim, fazer o timbre de sem- vergonha, professar o descaramento, e não reputar senão como galantes entretenimentos o que não era menos do que uma completa derrota. Dois ou três êxitos felizes tinham confirmado o Sr. Estevam nesta opinião. Ora aqui está para que o Sr. Estevam tinha energia; quanto aos mais podia ser persuadido, como uma mulher sem luzes, e governado, como uma criança. Digamos tudo de uma vez: o Sr. Estevam era, como muita gente, e gente de primeira plana.
Por este tempo mudou-se para Irajá (onde então tinha uma casa de negócio o Sr. Estevam), uma família composta do Sr. Bento, e a Sra. Tereza: eles não tinham filhos; seus fâmulos eram uns quatro escravos. A Sra. Tereza não era casada com o Sr. Bento; mas governava-lhe a casa. Esta senhora, sem todavia ser uma beleza, era uma formosura completa: era baixa, e um pouco gorda; tinha belos e longos cabelos castanhos, grandes e brilhantes olhos pardos, não muito clara, um pouco pálida, mas de fisionomia alegre e sossegada; possuía, por cima de tudo isto, uma pequena e graciosa boca, e alvos e magníficos dentes. Esta senhora tinha sido casada desde os seus dezoito anos até aos vinte e dois; nessa idade veio para companhia do Sr. Bento (que era um bom homem), cuja casa governava há pouco mais de um ano: a Sra. Tereza, pois, conta pouco mais de vinte e quatro anos; bem empregados em uma moça tão engraçada e bonita.
Logo que esta senhora chegou ao lugar, os leões daqueles contornos apresentaram-se à porfia para lhe fazerem a corte. Uns lhe ofereceram seus serviços, outros proteção; este, seu dinheiro; aquele tudo de que podia dispor, etc. Não faltaram declarações mais ou menos estupidas, mais ou menos toscas; mas sempre em regra; enfim, a Sra. Tereza teve cultos, e gozou adorações... mas, moça fina, dotada de bastante compreensão, tinha tanto juízo que podia bem conhecer e avaliar a realidade de uma posição já ganha, e a idealidade de uma posição por vir, embora lisonjeada por mui bonitas promessas: assim, esta moça discreta quebrou nas ventas de todos os seus matutos pretendentes quanta taboa teve, e lhe aprouve quebrar; assim, todos desmontados de sua presunção, e batidos em suas pretensões, aceitaram a derrota, confessaram-se vencidos, abandonaram o campo, e deixaram a Sra. Tereza; os despeitados, como a uma mulher feia e desenxabida, ou ainda fria, e sem interesse; algum melhor intencionado, como a uma senhora exemplar; algum cínico, como a uma mulher que muito se temia do seu homem. Como quer que fosse, a moça ficou bem, e sem sarnas para se coçar, que não é lá mui agradável cousa.
Ora, digamos de passagem, se todas as moças assim procedessem, elas fariam muito bem e seriam bem felizes.
Todavia, não obstante o que deixamos dito, devemos aqui acrescentar que um dos adoradores desta senhora não aceitou a derrota; cada vez mais firme, mais pertinaz em sua louca adoração, bebia os ares pela Sra. Tereza, até por ela desadorar!
Este mortal cabeçudo era o Sr. Estevam, personagem que há pouco o narrador teve a subida honra de apresentar aos leitores.
Acabemos este capitulo declarando, que o cavaleiro, que assassinou o viandante da Praia- Pequena, que roubou a menina, e que a entregou à fúria do Engenho-Novo, era o Sr. Estevam!
V
O FERIDO
Vimos que um feliz socorro, a propósito vindo, e talvez pelo céu enviado, acertou de passar pela Praia-Pequena, quando ali jazia ferido um moribundo, e quase cadáver: se o leitor se não esqueceu do que nesse capitulo narrámos, sem dúvida estará esperando pela manhã da Sexta-feira para saber como passou a noite o ferido, e como amanheceu.
De efeito, o ferido passou a noite bem, quanto ao seu corpo; porém, mal, e muito mal quanto ao seu espírito: seus olhos lagrimejaram toda noite; os ecos da solidão das noturnas sombras repetiram os suspiros de suas saudades, os gemidos de suas dores, e os ais de seus padecimentos!
Os dourados raios de um belo sol, que conduzia um magnifico dia de primavera, infiltrando-se pelas aberturas das telhas de uma casa sem forro, espargiram no quarto do enfermo uma luz dúbia, equívoca, mas melancólica, e talvez propicia aos grandes sofrimentos de uma alma sensível, cujos seios haviam dolorosa e horrivelmente dilacerado as unhas de ferro das brônzeas mãos da desgraça! Mas essa dor em nada se minorava, apesar dessa luz melancólica, porque era uma dor suprema, uma dor santa, que se não aliviava com lágrimas, que se não consolava com suspiros, que se não suavizava com gemidos, e que se não abrandava com ais! Tais são as grandes dores para as quais não tem a sociedade uma só dose de consolação, não obstante os inúmeros milhares de suas multiformes drogas; porque as palavras de banalidade, que, a título de consolação, profere o lisonjeiro, as exasperam; as palavras da verdadeira amizade as tornam mais profundas, e as fazem mais solenes; e então a verdadeira amizade cala-se diante dessas dores, o silêncio e o respeito são as únicas consolações que lhes administra, esperando que o amigo que sofre vá pouco a pouco colhendo consolação e remédio nas pisadas, que o tempo vae vagarosamente imprimindo na incomensurável estrada da eternidade!
Assim era a dor que mirrava o coração do enfermo da Praia-Pequena!
Tinha amanhecido, e todos os viandantes, que pernoutaram na estalagem desse lugar, passaram ao quarto do enfermo: neste ensejo o médico tomando a palavra disse:
— Então, meu caro, porque chorou e gemeu toda noite? vim duas vezes ao seu quarto, disse- me que nada sofria, e não obstante, continuou a gemer...
— Ah! não era de minha ferida que eu gemia (disse o enfermo) porque a ferida do meu ombro é talvez pequena, e não mortal... A grande ferida, Sr. doutor, está aqui! (pondo a mão sobre o coração)... aqui está a morte... a morte!...
— Roubaram-lhe talvez o que trazia; não?
— Tudo o que eu tinha de mais precioso sobre a terra!...
— Dinheiro?...
— Oh! não. Roubassem-me dinheiro, fazendas, tudo... mas, ai de mim!...
— O que lhe roubaram então?
— Minha filha... (Um soluço, saído do coração, firmou a última sílaba desta frase tão dolorosa, e tão cheia de amor)!
— Sua filha!... e que idade tem ela?
— Ainda não tem sete anos!...
— Oh! uma menina de sete anos! é horrível!... E de onde vinha o senhor?
— De um sítio um pouco além da Praia Pequena...
“Eu fui talvez (continuou o enfermo, depois de breve pausa) o mais feliz de todos os homens: não rico, tendo suficientes meios para viver: um anjo, talvez baixado dos céus à terra, anjo no rosto, anjo no coração, foi por Deus destinado para abrilhantar meus dias, para aditar minha vida, e para ensinar-me que há também sobre a terra completa felicidade, quando a suficientes meios liga- se a santa virtude e a pura amizade! Esta mulher, ou antes este anjo de virtudes e de amor, que por mão de seus pais recebi diante de Deus, foi, durante a sua vida, a minha felicidade e alegria, a minha consolação e esperança, meu anjo tutelar e a providência de minha casa!... Meu Deus! obrigado meu Deus! Fui tão feliz, tão feliz, que até parece-me um atentado contra a vossa misericórdia o lembrar- me neste momento de tanta felicidade! Deus não me deu mais do que uma filha; cópia de sua mãe, cópia de meu amor, eu amava nela as graças de minha esposa, e minha esposa amava nela os ardores de meu coração!
Deus quis provar-me; mas eu não era assaz firme para suportar uma prova divina, porque as provas divinas aniquilam os corações fracos, como a cólera celeste os corações ímpios.
Deus baixou sobre minha mulher seus olhos, achou-a digna de sua glória, e abriu para ela a morada dos justos; assim, aquela que Deus achou digna de ser companheira dos anjos, desdenhando os espinhos da terra, foi coroar-se das flores do empíreo! A prova era árdua, e meu coração sucumbiu debaixo da prova! Vi pois descer minha mulher ao túmulo, e a campa fechar-se sobre a minha metade, sobre a essência da minha vida, porque fechava-se sobre a minha esperança! Chorei, como Orpheu chorou a sua cara Eurídice! Chorei quantas lágrimas tinha no meu coração, e meu coração mirrou-se de tanto chorar! e quando não pude mais carpi-la, cai numa profunda melancolia, numa dolorosa tristeza, como aquele que tem perdido a esperança, e que não pode mais chorar!... —”
Ao dizer estas palavras, o desgraçado mancebo desatou de novo o seu pranto, que impetuoso jorrava sobre suas faces. Depois de assim desafogar um pouco as suas penas, continuou:
— Mas agora eu choro! Que santa consolação não trazem as lágrimas! Como é suave o chorar no meio de uma grande dor!... Obrigado, obrigado, meu Deus!
“Como a minha metade já não vivia, a outra metade durava apenas, e como durava apenas, durando sem esperança, esta duração era dolorosa! A meus olhos a natureza se havia revestido do crepe da morte; o mundo inteiro arrastava diante de mim um cárcere sem luz, entre cujas paredes sombrias eu me definhava rapidamente, e, não obstante esta rapideza, tardio me parecia o momento em que, para todo o sempre deixando cair despedaçada sobre a terra esta frágil vasilha de desprezível pó, fosse minha alma, na morada dos anjos, juntar-se à aquela, que lhe fora no mundo seu bem, seu guia, seu anjo guardador!” —
Neste lugar, disse-lhe o médico:
— Meu amigo, o senhor tem-se fatigado bastante! Convém que descanse um pouco: por ora não consinto que fale; logo mais continuará a sua narração.
- Obedeço, senhor.
VI
O SR. ESTEVAM
Enquanto o enfermo, para obedecer ao seu médico, devia estar calado por algum tempo, nós, ilustres leitores, para fazermos alguma cousa, voltemos ao Sr. Estevam.
Sabem já os leitores que o Sr. Estevam, perdido de amores pela Sra. Tereza, anda como a cobra que perdeu a peçonha. O Sr. Estevam, moço bem apessoado, gozando de muito conceito, de boas amizades, apatacado, senhor de braço e cutelo nos seus domínios, como são todos os ricaços destes lugarejos; não podia sofrer, não podia acomodar-se com a ideia da resistência da Sra. Tereza; ele, que na sua vida de empreendedor conta tantas e tão gloriosas aventuras; como sofrer que uma mulherinha lhe resista? como sofrer que o despreze? Ou por fás, ou por nefas, há-de ser sua. Ora vamos a ver.
O Sr. Estevam, logo que viu a Sra. Tereza, disse lá com seus botões (é de supor): “Que moça! Que peixão! É uma gloriosa conquista! Mãos à obra.” Foi dito e feito. Logo que teve ocasião azada, e viu-se com a moça, apresentou-lhe os seus respeitos, ofereceu-lhe os seus obséquios, e dedicou-lhe os seus serviços. Cumpre confessar que neste primeiro tiroteio foi muito em regra, e mostrava alguma pericia; mas o inimigo nem se incomodou! O Sr. Estevam também não perdeu tempo; assestou as suas baterias, e fê-las jogar: assim fez uma declaração positiva, consagrou o seu amor, e protestou pela sua constância; mas o inimigo recebeu as balas destas pesadas baterias sem nem sequer desalojar-se de suas vantajosas posições de desprezo. O homem, já exasperado, acometeu com arma branca: depôs aos pés da bela os seus tesouros, rogou, e ameaçou; mas qual!... as suas armas embotavam-se na couraça do desprezo, que lhes opunha a moça, e nem leve mossa! Enfim, o bravo pôs em campo tudo, tudo quanto lhe era possível.
Alguns dos meus leitores sabem, e sabem perfeitamente bem, quais as armas de que em tais ocasiões servem-se esses valentes guerreiros: quanto a mim, dispensem-me de as enumerar, pois que as não conheço: nunca amei, nunca fui empreendedor, e por isso ignoro os nomes técnicos da ferramenta do ofício; mas sejam quais forem, o que é certo é que o Sr. Estevam, bem ou mal, de todas usou; mas sem o menor resultado. O negócio tornou-se de capricho em um e em outro; tanto pior para ele! e como o negócio se tornou de capricho, jurou o Sr. Estevam que havia de quebrar a aza da Sra. Tereza à custa pois de inculcas e pesquisas, soube ele que havia lá para as partes do Engenho-Novo uma preta feiticeira, que, mediante algumas patacas, sabia fazer amor no peito de quem o não tinha! Ora, se a cousa fosse verdade, valia bem a pena. Incontinente dirigiu-se o nosso homem à casa da bruxa, que depois que o ouviu, tendo recebido logo de antemão algumas patacas, começou de pôr em pratica os seus sortilégios. Apesar porém de todas as conjurações, e feitiçarias, não pode o diabo persuadir à Sra. Tereza que gostasse do Sr. Estevam! O Sr. Estevam porém, que acreditava e mui firmemente nos encantamentos, não se podia persuadir que o coração da moça resistisse ao diabo, e atribuía o mau êxito à falta de habilidade de feiticeira, e como assim pensasse, teve a franqueza de lho dizer:
— Não, meu senhor, (respondeu-lhe a bruxa) a razão não é porque eu não saiba do meu ofício, porque o sei muito bem. A razão é outra...
— E qual é (perguntou o Sr. Estevam)?
— E porque ela nasceu em Sexta-feira da Paixão...
— Oh! como trinta mil diabos! Que me diz?
— E o que lhe digo.
— Então está tudo perdido.
— Quem sabe?
— Mas o que diz você?
— Que há ainda um remédio.
— E qual é?
— E muito dificultoso.
— Não o poderei eu obter?
— Talvez... mas olhe que lhe há-de custar muito...
— Custe o que custar. Estou resolvido a tudo. Qual é o remédio?
— E preciso um crime...
— Cometerei um crime.
- — E, se for preciso uma morte?...
- — Farei uma morte.
— Mas, se for eu que a fizer?...
— Seja: é o mesmo.
— Mas porque preço farei eu essa morte?
— Seja qual for o preço.
- Dá vosmecê cinco doblas?
-
— Cinco, dez, mais... O que é preciso?
— Uma menina que se chame Maria...
— Uma menina, que se chame Maria!...
— Sim; e que não tenha sete anos...
— E que não tenha sete anos!... (repetiu o Sr. Estevam, acentuando cada uma de suas palavras, e pensando). Uma menina, que se chame Maria, e que não tenha sete anos... Pois bem, (disse ele com resolução), a menina virá. Quando a quer?
— Quando vosmecê quiser. A obra será feita em um sábado, quase à meia-noite; mas, antes, eu terei recebido as cinco doblas.
— Pois muito bem, tia Laura, a menina virá, e o dinheiro. - O Sr. Estevam disse, e saiu.
Agora o leitor sabe a causa que deu motivo ao assassinato do pai, e ao roubo da filha.
VI
FIM DA NARRAÇÃÕ DO FERIDO
Algum tempo depois o médico e seus companheiros de viagem voltaram ao quarto do ferido para ouvirem o fim de sua história; o mancebo continuou assim:
— Eu queria morrer, porque não podia viver sem aquela que tão ternamente me havia amado, e a quem amei com um culto, pois que adorei-a! Eu não podia ser mais feliz, porque eu não podia mais amar! A única felicidade, que há sobre a terra, é amar, e ser amado! Todos os outros gozos, sem estes, são frios, tristes, monótonos, desenxabidos, e cheios de aborrecimentos! Toda a continuidade nos enjoa, exceto a da mulher que amamos, porque o amor, sempre providente, sempre artificioso, nos finge cada dia novos encantos, novas belezas e carinhos novos naquela por quem acreditamos que palpita o nosso coração e pensa nossa alma. Eu tinha amado, como Deus ensinara ao primeiro homem a amar a primeira mulher, e assim só se ama sobre a terra uma única vez! E pois, não podendo mais amar, queria morrer; mas tão desgraçado é o homem que nem lhe é licito morrer quando mais o quer, e melhor o julga! Um amigo apresenta-se diante de mim, e com a voz austera, e linguagem enérgica, repreende a minha fraqueza; e como assim me tivesse repreendido, toma minha filha em braços, e diz-me: - Vês esta menina? pois se ela conhecesse o mundo, e pesasse os quilates dos teus deveres para com ela, e dos seus direitos para contigo, ela te diria : “Meu pai, minha mãe hoje descansa no seio de Deus; e de lá, onde vive feliz, ela continuadamente vela sobre nós; mas, seja assim ou não, o que nos cumpre é orar por ela; nem outras relações são possíveis entre os espíritos, que ainda peregrinam na terra, e aqueles que vivem onde Deus só sabe; não obstante porém, se minha mãe do seio de Deus vela por mim, é mister que alguém sobre a terra vele também por mim ao depois de Deus! e, se vós me faltais, meu pai, quem se encarregará deste doce encargo ? quem preencherá esta santa missão ? Mentiu aquele que disse: - “Triste de quem morre, que quem fica sempre passa!” - E um passar aflitivo, atribulado, e doloroso equivale por ventura a paz do túmulo? Sabeis vós a que fica sujeita uma órfã pobre, ou ainda rica, dependente de caprichos de tutores? Ah, senhor! um tutor não é pai. Não é o protetor nato da pobre órfã, não é o seu defensor natural, é quase sempre o seu espoliador, graças à sociedade desmantelada em que vivemos, à sociedade em que as leis são o brinco dos potentados, em que os ladrões, e seus filhos, gozam impunemente os frutos de suas rapinas, e desfrutam as graças, e os respeitos dela! O que esperam, pois, estas filhas sem pais é o desmazelo, o abandono, as imoralidades de uma educação descuidada, e por fim a prostituição, os vícios, e os crimes! E a sociedade?... a sociedade não amaldiçoa um tutor ladrão, um sedutor descarado, o fere, com o anátema do desprezo e do escárnio a miseranda vítima destes malvados sem coração!...
“Vivei, pois, meu pai; e senão podeis viver para os prazeres do mundo, vivei para o amparo, e para o bem de vossa filha! vivei; que, se ela for boa, e virtuosa pelos vossos conselhos e diligencias, maiores serviços vos serão contados diante de Deus, e mais subido será o vosso galardão: se o não for, não vos restarão remorsos; porque o vosso dever está feito. Vivei, pois, meu pai, vivei para a vossa filha. -” Isto vos diria vossa filha; (continuou o meu amigo) agora vos digo eu ainda: - Queres morrer? o que vos vae nisso? não sabeis vós que a humanidade é um grande livro, em que cada um homem, com tinta composta de suores, de lágrimas, e sangue, escreve uma página, que é a história de sua vida? E o que representa essa página? Os trabalhos e desgostos do mundo; as injustiças, e parcialidades dos homens; as dores, e as penas da humanidade; e os padecimentos, e as misérias da vida! Os prazeres, se aí os há, são representados por três ou quatro palavras, em dois ou três parêntesis! Feliz daquele que no grande livro da humanidade, pelas sublimes virtudes, pela paciência nos trabalhos, pela coragem nos desgostos, e pelas vitórias das tentações, ali deixa seu nome imortal, não obstante a voracidade do tempo, não obstante o esquecimento dos homens! Vivei, pois, meu amigo; vossa filha o pede, vossa filha exige.” —
Basta... Eu viverei para minha filha. (tornei eu) Resignei-me, pois; mas ah! não era possível que eu continuasse a viver desgraçado onde outrora feliz havia colhido todos os doces frutos do santo himeneu, perfumados pelas alegres flores do virtuoso amor! Aqueles ares embalsamados ainda por aquela que havia tão docemente perfumado a minha existência... sufocavam-me! Aquelas flores, que ela com tanto gosto havia cultivado, e plantado, transformadas em espinhos, despedaçavam meu coração! Aquela casa, de que ela fora a única soberana, como o fora de minha alma, estava mudada em um túmulo, onde continuamente coberto de pesado luto gemia sem cessar um espectro durante os dias e ululava durante as noites! Tudo, tudo o que lhe havia servido era para mim um tormento, um suplício insuportável, um aguilhão de saudade, que pungia, que rasgava, que fazia cada vez mais sangrar a ferida, que em meu peito havia, para sempre deixado a sua dolorosa perda! Oh! eu não poderia existir assim!
Então, querendo separar de meus olhos tudo quanto atormentava minha alma, vendi quanto possuía, e a minha situação, pouco além da Praia-Pequena, resolvido a ir morar na cidade. Neste proposito, aluguei uma casa na cidade, e dispu-la para receber-me, e a minha filha; isto feito, e tudo pronto, em uma tarde, ao cair da noite, vesti minha filha, e banhado em lágrimas despedi-me daquele lugar, em que tão feliz havia sido, e tão desgraçado era.
Mergulhado no abismo de minhas penas, pensando nos meus antigos prazeres, e cismando sobre as minhas presentes dores, tomei minha filha sobre a garupa do cavalo, e comecei a viajar para a cidade. A minha dor impunha-me um doloroso silêncio; era só para não entristecer a minha inocente filha, que, uma vez por outra, trocava com ela um ligeiro monossílabo. Absorvido pois em minhas desgraças, viajando com a cabeça caída sobre o peito, não dei fé de um cavaleiro que, ou me esperava a pé firme, ou caminhava do lado oposto ao em que eu caminhava: nada sei senão que ouvi o som de um tiro; meu cavalo espantou-se, e saltando para um lado, em dois rápidos corcovos lançou-me fora da sela, e à minha filha; atordoado da queda, não senti logo a minha ferida; mas porque estava assim atordoado, não me pude levantar: em vão tentei-o, mas não pude. Então, bem distintamente vi o cavaleiro apear-se, tomar minha filha, que ora se levantava, montar com ela, e desaparecer; não obstante meus gritos, e os gritos dela, que me chamava em seu socorro!... A luz fugiu de meus olhos; disse apenas: “Minha filha!...” e um torpor gelou a todos os meus membros. Assim estive até alguns momentos antes da chegada dos senhores, que voltando a mim, mas fraco, e abatido. Reconheci que estava ferido.
— Então sua filha tem menos de sete anos? (perguntou o médico).
— Sim, Sr. Doutor.
— Como chama-se?
— Maria.
— Será bom que nos faça a descrição dela: talvez que possamos ainda encontrar.
— Um pai, Sr. Doutor não é o mais imparcial retratista de seus filhos.
— Não importa.
— Ela tem cabelos castanhos, ou quase negros; olhos também negros, e não pequenos; tem o rosto alvo, e um tanto pálido, como o marfim saído das mãos do obreiro; testa espaçosa, nariz fino, boca pequena, e não descorada; tem alvos dentes; quando ri-se, seu riso imprime em suas faces duas covinhas, sua barba também reparte-se; enfim, é magrinha...
— O nome todo dela?
— Maria Augusta dos Anjos.
— E o seu?
— Augusto dos Anjos... Servo do senhor.
— Obrigado, obrigado. E não tem algum sinal mais particular por onde se possa conhecer sem dificuldade?
O Sr. Augusto, depois de uma breve reflexão, disse:
— Tem; mas esse sinal com dificuldade se lhe pode ver.
— Mas qual é?
— E bem no alto da cabeça um molho de cabelos quase de cor de fogo; mas conquanto esse sinal a poderia dar a conhecer, é contudo quase impossível, visto que houve sempre o cuidado de cortar tão rente esse molho de cabelos, que não poderão aparecer no meio dos outros.
— Não importa: sempre é um sinal bem distinto.
— Fique certo (disse o dono da casa) que faremos tudo para descobrir sua filha, viva ou morta.
— Deus há de permitir que viva (disse um dos viajantes).
— Oh! (exclamou o Sr. Augusto) Dê o céu que um bom anjo acolha estas palavras de consolação!
VII
JOSÉ PACHOLA
Entre as pessoas que ouviram o Sr. Augusto, havia um crioulo, escravo, de nome José: era um crioulo moço, divertido, amigo de dizer ditos, chistes, rifões, etc.; além disto, tocava viola, cantava nos fados, e dançava: todas essas cousas reunidas fizeram com que todos os que conheciam o José lhe chamassem José Pachola. E preciso porém notar que o epíteto de Pachola, dado ao crioulo José, não era empregado em sua significação genuína, nem ainda em uma significação mais lata que lhe quisesse dar, sem todavia perder de vista a significação genuína; mas era dado em uma significação abusiva, absolutamente remota da significação natural, pois que nada quadrava menos à pessoa do José que a antonomásia de Pachola, visto que ele era muito diligente, qualidade que sobressaía ainda mais no seu caráter discreto, e honrado; mas há, não pouco tempo, que o vulgo abusa deste termo, deslocando-lhe, por assim dizer, da verdadeira significação, e dando-lhe outra muito estranha à sua natureza. Ora, visto que José é tido e havido por todos por José Pachola, apelido com que ele se não ofende, o narrador, nenhum inconveniente acha em assim também chamá-lo.
Disse o narrador no princípio deste capitulo que, entre as pessoas que ouviram o Sr. Augusto, era uma o José Pachola. Este tendo ouvido a história contada pelo ferido, saiu, e tomando à parte o dono da casa, disse-lhe:
— Eu sei onde está a filha deste homem...
— Ora, tu sabes de tudo (disse-lhe o dono da casa). Então onde está?
— Onde está não lhe digo eu.
— E por quê?
— Porque este homem creio que não é pobre; e trazendo-lhe eu a filha, pode ser que me dê alguma cousa.
— Disso não tenhas dúvida. Ainda te digo mais: pode até forrar-te; fica certo disso...
— Ora, isso é caçoada, Sr. Matias...
— Não; estou te falando muito sério.
— Então quem é este senhor?
— Pois não ouviste contar a sua história?
— Sim; mas ele não disse quem era.
— Ah! é verdade. Pois este moço é um moço arranjado, e, se lhe descobres a filha, ele pode-te fazer feliz.
— Pois, senhor, vou procurar a menina.
— Mas onde está ela?
— Ora... Enfim, eu fio-me no senhor...
— Essa é boa... Fala sem susto.
— Não o diga a pessoa alguma, Sr. Matias...
— Que empenho há nisso para mim?
— Pois está em casa da tia Laura...
— Que tia Laura?
— Uma feiticeira...
— Credo! Santo nome de Jesus! Verbum caro factum est!
— Pois, sim, senhor, está lá.
— E como sabes?
— Porque vi um cavaleiro ir para lá com uma menina na garupa, e voltar sem ela...
— Mas podia ser outra menina?...
— Qual?
— Mas não conheceste o cavaleiro?
— Como? se era de noite!
— Então como sabes que era uma menina?
— Porque o cavaleiro passou pela estrada rente comigo, e pelo vulto da pessoa que ia na garupa, me pareceu uma menina; e, demais, eu juraria que ela ia chorando.
— E o cavaleiro não te viu?
— Não, senhor, porque eu estava de roupa preta, e atrás de uma árvore: daí vi-o caminhar para a casa da feiticeira, e pouco depois voltou sem a pessoa que levava na garupa.
— Mas então convém que indagues isso.
— Sem dúvida alguma,
— E porque não vás já?
— Não posso: só domingo de madrugada.
— Pois então mãos à obra.
— E V. M., tome a rua e o número da casa do Sr. Augusto.
Fica por minha conta.
— Mas, se eu antes de domingo descobrir alguma cousa, cá estou.
— José Pachola, eu fico te esperando.
— Sr. Matias, até domingo, o mais tardar.
VIII.
A NOITE DE SÁBADO
Era em a noite de sábado, que deveria ter lugar o encantamento de Laura em favor do Sr. Estevam: e ele, o amante pertinaz, e caprichoso da Sra. Tereza, devia assistir a essa grande patifaria, que ia ter lugar.
Nesse dia, para o lado do oeste o céu cobriu-se de uma muralha de nuvens, em cujo centro o gênio da tormenta, com mãos de fogo, parecia fabricar os horrores de medonha trovoada. Firmando sua grossa base muito além do horizonte aparente, a nuvem elevava suas cumeadas até o cume dos céus; seus lados estendiam-se amplamente ameaçando o sul, e ameaçando o norte. Uma crespa fimbria de um alvo reluzente, como a prata ferida pelo sol, orlava os lados, e o cimo desta montanha aérea, em cujo bojo ocultava a natureza um tanto de seus horrores: no centro, onde eles mais gravitavam, e a seu pesar talvez se continham, porque a hora não era ainda chegada, nem uma cor da vida, deslizada por um só raio da luz, ostentava as suas belezas: a morte ali se embalava inquieta, rebuçada nas cores do túmulo. Os ventos tinham encolhido suas azas, e mudos e quietos espectadores, equilibrados nos ares, esperavam, como assustados, a hora tremenda do desmantelamento horrível! Das seis horas por diante alguns longínquos e roucos trovões começaram a abalar os ares; pelas dez horas da noite a tempestade proclamou-se a déspota dos elementos, e perturbou-os a seu capricho! Uma nova ordem principiou a reinar na natureza!
Os ventos da tempestade abriram suas funestas azas, e batendo com elas de encontro às nuvens, as fizeram no espaço abalroar com estampido horroroso. Ao golpe do trovão a terra estremeceu de pávida! O som retumbou nas abobadas dos céus, os abismos repercutiram seus ecos! As nuvens continuaram a quebrar-se com ribombo medonho, e de seu despedaçado bojo jorravam espadanas de fogo, que ou se despedaçavam nos ares contra as azas dos ventos, ou vinham se quebrar na terra entre seus mesmos estragos! Debalde ao redemoinhar dos furacões contrariavam as florestas com velhos troncos de seculares árvores; debalde, que suas galas de primavera lhe arrebatavam, como belos troféus, os déspotas dos ares! As aguas dos céus, ou nessa mesma forma, ou transformadas em pedras, açoutavam, com amiudado bater, a superfície da terra!
Um dia, quando os astros saudosos de uma bela e longa existência de tantos milhões de dias, empalidecerem no espaço, e forem aniquilados pela chama primitiva, que os deve consumir para entrarem, talvez para sempre, no abismo do não ser; a natureza entoará um hino de morte, e esse hino serão os gemidos dos elementos agonizantes; porque pela última vez então as nuvens, gemendo, rolarão no espaço; pela última vez os mares gemerão irados sobre as praias; pela última vez os trovões gemendo, despedaçarão as nuvens; pela última vez os raios, gemendo, chamuscarão os atmos! A natureza, pois, uma vez por outra, ensaia alguma estrofe, ou alguma nota de seu grande hino final, cântico fúnebre que deve entoar quando o Eterno, à face dos anjos, e dos justos, pronunciar para a criação a frase tremenda, já pronunciada no cimo do Calvário: Consummatum est! E pois, nesta noite temerosa tinha lugar um de seus pavorosos ensaios!
Maria, a interessante Maria, esse anjo de inocência, roubada a seu pai, estendida sobre o catre da velha Laura, dormia tranquila o sono da inocência. As rajadas impetuosas dos desabridos ventos, o celebre estampido de horríficos trovões, o sussurrar da chuva, que a cântaros se deixava cair, a bulha da saraiva, que destruía os campos, não perturbaram seu sossegado sono que só pode gozar a verdadeira inocência!
Assentada defronte da cândida menina, Laura, a feia, a feiticeira Laura, com os olhos que talvez revelavam inveja, contemplava este sono delicioso, sono que ela não podia gozar, e que jamais gozaria. Talvez que tranquilo, como Maria, seu anjo aos pés de sua cama a contemplasse com inefável prazer, tendo diante de si uma criatura tão pura como ele mesmo, e quem sabe se mais inocente! E o anjo de Laura? Deixemo-la; pode bem ser que um dia as suas culpas lhe sejam perdoadas.
Pouco depois das onze horas, apesar da tormenta, rompendo seu manto de trevas, d’água, de fogo, e de horrores, vencendo seus obstáculos, um cavaleiro, com a mesma discrição de outra noite, bateu à porta de Laura; a feiticeira ergue-se e saindo do quarto encaminhou-se para a sala; aí parou, e com os braços cruzados olhou para o teto da casa. O cavaleiro repetiu as pancadas, mas com menos discrição. Laura tossiu, sem tirar os olhos do teto, onde havia-os fitado: apenas porém, a feiticeira tossiu, o teto estremeceu! Laura sorriu-se, e tranquila foi abrir a porta ao cavaleiro, que com tanto afã, em noite tão tormentosa, com tanto empenho a buscava. O cavaleiro apeou-se, e ao cruzar o limiar da bruxa, disse-lhe ela:
— Pensei que não viesse, Sr. Estevam...
— Por quê?
— Por causa da tormenta.
— Maior é a tormenta do meu coração, e eu a suporto.
— Muito bem; muito bem.
— Mas, tia Laura, saía da porta, que quero entrar...
— Não é possível, Sr. Estevam; não podes por ora.
— Mas por quê?
— Porque será contra o senhor mesmo.
— Então ficarei aqui toda a noite, e com este tempo?!
— Não; mas vossemecê ou volta daí mesmo, ou entra.
— E o que é preciso então fazer?
— Eu lhe digo: Pedi-lhe uma menina de menos de sete anos, e que se chamasse Maria...
— E não está aí?
— Mas não lhe disse para que era essa menina...
— Seja para o que for.
— Ainda para matar?
— Pois é preciso tanto?
— Foi para o que a pedi. Há de ser degolada, o sangue aparado, e de seu sangue, e suas entranhas farei o encantamento que o deve fazer feliz junto da Sra. Tereza... Que diz?
— Que morra...
— O senhor há de assistir e ajudar a degolá-la?
— Assisto, e ajudo: - morra.
— Entre, pois.
O Sr. Estevam deu um passo para dentro; mas, apenas descobriu a sala, recuou horrorizado, exclamando:
— Oh!...
IX
MARIA E A FEITICEIR
O leitor lembrar-se-á que, quando Sr. Estevam entregou Maria à preta Laura, só lhe disse: - Aí a tem, - e retirou-se.
A feiticeira na posse da inocente menina, tendo notado o seu terror, tratou de dissipar-lho, e cumpre confessar que Laura tão bem se houve neste papel, que chegou a destruir quase todos os temores de Maria, e até a inspirar-lhe alguma confiança. Não admira; as crianças temem com facilidade, e com facilidade confiam, Maria, depois já meio tranquilizada, disse à feiticeira:
— Mas porque este homem matou meu papai, e me trouxe para aqui?
— Como! (perguntou a preta meio assustada) pois o Sr. Estevam matou seu pai?
— Sim; matou.
— Onde?
— Na Praia-Pequena.
— Mas como foi isso?
Maria narrou fielmente, e como melhor pôde, a história do assassinato de seu pai. Laura, tendo isso ouvido, ficou séria, e pensativa; e depois perguntou:
— Mas, menina, você sabe se seu pai morreu do tiro?
— Papai caiu (disse Maria): depois de estar no chão ainda falou, e gritou; mas não se levantou mais.
Está bom, minha filha, não tenha medo, que nada lhe há-de acontecer de mal; você tem algum parente?
— Eu não sei...
— E, se tiver, quer que a leve para casa dele?
— Sim, quero.
— Pois deixe, que há-de ir.
— Quando?
— Domingo, de madrugada, há-de vir aqui um rapaz, e esse rapaz há-de levá-la; descanse; não tenha medo.
— Mas, para que este homem me trouxe para aqui?
— Eu não sei (disse Laura, depois de muito pensar, e de alguma hesitação); ele me pediu que lhe guardasse aqui por alguns dias; mas, seja qual for a sua intenção, fique sossegada.
Laura deu que cear a Maria, arranjou-lhe a cama, lavou-a, e a fez deitar.
Durante o tempo da enfermidade da mulher de Augusto, mãe de Maria, Augusto, que, além de outras virtudes, era um verdadeiro cristão, recolhia-se às vezes ao seu oratório, onde passava algum tempo orando, e pedindo a Deus a vida e a saúde de sua mulher; a primeira vez que Maria surpreendeu seu pai de joelhos, e rezando, perguntou-lhe:
— Papai, o que está fazendo aí?
— Estou pedindo a Mamãe do céu que peça a Papai do céu por tua mãe, minha filha (respondeu Augusto).
— Eu também quero pedir, papai.
— Sim, minha filha.
Augusto disse: e fez sua filha pôr as mãos; depois ensinou-lhe estas palavras: “Mamãe do céu, pedi a Papai do céu por minha mamãe.”
Além disto, Maria fazia mal o Sinal da Cruz, e repetia algumas palavras vagas do Bendito, e do Padre-Nosso. Verdadeiramente falando, Maria ainda não sabia rezar.
Maria decorou as palavras que seu pai lhe ensinou, de maneira que, sempre que entrava o oratório, e via o pai de joelhos, ajoelhava-se também, e repetia as palavras que o pai lhe havia ensinado.
Um dia Maria perguntou a seu pai porque se pedia à Mamãe do céu.
— Para Mamãe do céu pedir a Papai do céu (disse o pai).
— E Mamãe do céu é a mulher de Papai do céu?
— Não, é a Mãe dele.
— E Papai do céu faz o que Mamãe do céu pede?
— Faz; mas Mamãe do céu não pede tudo o que nós lhe pedimos.
— Por quê?
— Porque às vezes nós pedimos o que não é bom.
— E quando é bom, Mamãe do céu pede?
— Sim, pede.
— E Papai do céu faz?
— Faz.
— E quem é Papai do céu?
— E Deus, é nosso Senhor, nosso Pai, que nos criou, que nos governa, que pode tudo, e nos dá tudo.
— Então Ele é que nos dá de comer?
— É.
— Ele é que dá dinheiro para as meninas comprarem bonecas?
— É.
E Ele é quem dá a chuva?
— É, sim.
— E a chuva, o vento, a trovoada, tudo, tudo, é Ele que dá?
— Tudo, minha filha.
Maria fez mais algumas destas inocentes e pueris perguntas, às quais o seu pai respondeu. O narrador deu conta destas puerilidades, para que o leitor não estranhe o que vae ver.
Logo que Maria deitou-se, Laura saiu do quarto. Maria, estando só, levantou-se e ajoelhando sobre a cama, pôs as mãos, e orou assim:
— Mamãe do céu, pedi a Papai do céu por mim.
Maria tinha visto seu pai rezar quando se levantava da cama pela manhã, e quando se deitava à noite: assim, indo ela deitar-se rezou a única oração que sabia. E para que mais? A sua idade, e o seu estado eram uma verdadeira e tocante súplica.
Maria esteve pois em companhia da feiticeira desde que lhe foi entregue, até os acontecimentos, que vamos referir, sem a menor contrariedade, afora o não poder sair do quarto. De noite, e de manhã, ao deitar-se, e ao erguer-se, a coitadinha fazia sempre a sua súplica à Santa Virgem, dizendo: - Mamãe do céu, pedi a Papai do céu por mim!
No outro dia, isto é, na manhã seguinte à noite do assassino de seu pai, e seu rapto, Maria perguntou à feiticeira:
— Chama-se Estevam, não é, tia Laura?
— Quem, menina?
— O homem, que matou papai, e me furtou dele?
— Sim, chama-se: por quê?
— Para não me esquecer. Ele tem uma filha?
— Eu não sei.
— Ele é muito mau! Também hão de matar a ele, e furtar a filha dele. Onde é que ele mora?
— É lá para a banda de Irajá.
Dali por diante, uma vez por outra, Maria dizia consigo mesma: - Chama-se Estevam: mora lá para a banda de Irajá!
X
OS MISTÉRIOS DA FEITICEIRA
Disse o narrador no capitulo VIII que o Sr. Estevam vendo o aparato da sala, recuara horrorizado, exclamando — Oh!...
Eis o que viu o nosso homem.
A um dos lados da casa havia mesa coberta de negro, a qual servia de altar, cujo ídolo estava pintado em um painel, encostado a uma parede: este painel, que chegava da mesa até o teto, era uma tosca pintura feita com grosseiras tintas, representando um demônio. Cumpre confessar que esta pintura era medonha para um supersticioso, e ridícula para quem o não fosse. O fundo deste painel feria a vista com um encarnado vivo, ou antes por purpúreo, e a figura, que representava o demônio, era negra: isto é, um homem de rosto branco, mas todo vestido de preto: sobre a cabeça avultavam-lhe duas grandes pontas, como as dos cabritos; do extremo inferior da coluna dorsal partia-lhe uma enorme cauda: em todas suas feições e membros era tão desproporcional, tão feio, e tão horrendo, que dele se podia bem dizer: “Feio, como um diabo!” A vista desta pintura, cabia bem o nosso antigo rifão: “O diabo não é tão feio como se pinta.” Sobre a mesa havia três caveiras humanas, cuja alvura sobressaía perfeitamente sobre o negro de que a mesa estava forrada. As paredes da choupana de Laura eram de paus-a-pique, barreados de um barro bastante escuro, e como não eram rebocadas, estavam quase negras. O teto era de caibros finos horizontalmente estendidos entre as quatros paredes, que formavam esta pequena sala; estes caibros estavam também enegrecidos pela continua fumaça. Assim, bem se podia dizer, teto, paredes, e pavimento desta hedionda sala, estavam cobertos de negro! Deste teto, atados em alguns fios, pendiam, muito perto uns dos outros alguns, ossos humanos, que por estarem também bastante claros, alvejavam sobre o fundo negro do teto de onde pendiam. Junto à mesa, que servia de altar, estava um banco de cinco palmos talvez de cumprimento, e palmo e meio de largura; sobre ele havia um grande alguidar de louça da Bahia, e sobre o alguidar, deitado de uma à outra borda, um grande facão, cujo gume reluzia, parecendo bastante afiado! Este banco também estava coberto de preto. Defronte do altar, e bem no meio da sala, conservava uma fraca chama de uma pequena fogueira, entretida apenas por alguns ramos secos que ardiam com alguma dificuldade. Esta dúbia luz, que mal esclarecia a estas escuras paredes, a estes embranquecidos ossos, e ao encarnado deste painel assustador, dava a este lugar um aspecto fúnebre, medonho, e terrível! Fúnebre, como o de uma câmara mortuária! medonho, como o de um solitário templo, alta noite apenas alumiado pela tíbia luz de uma única alâmpada! terrível, como o de uma gruta de feiticeiros, em noite de um dia, a eles propicio, reunidos para a feitura de algum maravilhoso amuleto, ou de algum extraordinário malefício! Assim a sala da choupana da preta Laura estava fúnebre, medonha, e terrível.
A este aspecto, o Sr. Estevam recuou como assombrado. A feiticeira, vendo o seu pavor, disse-lhe:
— Entre, Sr. Estevam.
O homem, que era supersticioso, como se fosse um grande homem, e que temia cousas sobrenaturais, como todos os ignorantes e a mor parte dos malvados, hesitava em entrar. Laura, com um sorriso sarcástico, tornou a dizer-lhe:
— Se não quer entrar, ninguém lhe obriga...
— Como é isto medonho!
Ele rosnou estas palavras, e entrou, não sem algum receio. Entrado, ficou junto à porta, com uma mão sobre a chave, e a outra sustentando o chapéu, o guarda-chuva e um chicotinho de cavalo, e numa postura equívoca, e com ares de desconfiado. A feiticeira parou junto da fogueira, cruzou os braços, e murmurou palavras ininteligíveis; depois saltou três vezes sobre a fogueira, lançando sempre o pé esquerdo primeiro: feito isto, fitou o painel, e passados dois ou três minutos de contemplação, soltou três gritos, ou antes urros, que fizeram arrepiar os cabelos ao Sr. Estevam, e percorrer-lhe o corpo um calafrio mortal. Então a bruxa tirou do seio um papel embrulhado, e abrindo-o, tomou entre as pontas dos dedos uns pós que lançou ao fogo; uma pequena explosão foi imediata, uma chama anilada ondulou sobre as brasas, e instantaneamente extinguiu-se. A sala ficou quase abismada em sombras! Laura foi ao quarto, e voltou trazendo em seus braços a inocente Maria, que estava profundamente adormecida; ela a depôs sobre o banco; a pequena não se acordou: aí colocada, Laura começou a exercitar seus membros em uma dança burlesca que faria estalar de riso o mais caprichoso misantropo, de tão ridícula que era! Esta dança, executada em redor do banco, em que estava a menina, era acompanhada dos mais extravagantes ademanes, e ridículos esgares. Entretanto, o Sr. Estevam estava sério e grave como a estátua do Silêncio! Para ele o negócio era sério, como um negócio de que dependia o seu sossego; era grave, como um negócio que lhe causava pavor ou ainda medo!
A preta suou, e suou em demasia: assim suada, parou de sua fatigosa dança, e passando por sua testa, coberta de bagas de suor, um dedo estendido, com ele colheu uma porção destas bagas, e as lançou sobre Maria: tendo-lhe lançado este magico filtro, com tanto trabalho obtido, chegou-se para ela, e aproximou um ouvido à boca inocente; assim curvada, a feiticeira esteve por algum tempo interrogando, e respondendo; bem que Maria continuando sempre a dormir nada dissesse, nem talvez ouvisse.
Findo este trabalho, Laura entrou para o quarto dizendo para o Sr. Estevam que a esperasse um pouco. O narrador julga desnecessário dizer que, durante toda esta cena, chovia a potes, trovejava a causar pavor, e relampejava horrivelmente, porque o leitor sabe que foi debaixo de uma tormenta medonha que o Sr. Estevam chegou à casa de Laura.
Laura não se demorou no quarto; tardou tanto quanto era mister para mudar de fato e arrebicar-se: assim, saiu ela do quarto com a cara pintada, e horrivelmente feia a causar medo!
Outra vez, na sala, disse-lhe o nosso homem, com voz desconcertada, a qual ele trabalhava por tornar firme:
— Então, tia Laura, quando se acaba isto?
Laura, sem dar-lhe resposta, fingindo até não o ter ouvido, lançou sobre as brasas da fogueira uns pós que, abrasados, lançaram ao ar uma coluna de fumo, que exalou um cheiro nauseante: ela perfumou-se neste displicente cheiro: depois, tomou o alguidar, e o pôs em baixo do banco, correspondendo ao pescoço de Maria, e sem mais cerimônia lançou mão do afiado facão, procurou uma atitude conveniente, e ergueu o ferro sobre o pescoço da inocente!...
Apenas a feiticeira ergueu o braço sobre a vítima, soa dentro da cabana um profundo gemido! um tremor geral agita o painel, que representava o demônio! Um estrondo, como de um pau que se quebra, atroa quase nos ouvidos do Sr. Estevam! O teto da choupana treme, e ameaça desabar! Os ossos pendentes dele agitam-se com violência, e entrechocando-se[3], produzem uma bulha sinistra! De repente uma chuva de areia cai sobre a fogueira e extingue-a completamente! Uma voz medonha, cavernosa e terrível brada desta sorte:
— Suspende o braço... Filha, não firas essa menina!!!...
A esse tempo já o Sr. Estevam tinha aberto a porta, e procurava fugir; ao vencer o portal, um impetuoso relâmpago desliza-se por entre as árvores, e arroja um resto de sua luz sulfúrea, à sala da cabana, fazendo negrejar mais o altar e branquejar os ossos! Um pavoroso trovão rola no espaço!
O cavalo do Sr. Estevam, espantado do lampejo, arrebenta as rédeas, e deita a correr; o dono, fascinado, tímido e assombrado, foge também exclamando:
— Basta... Basta... Misericórdia... Misericórdia!!!...
Ao mesmo tempo uma gargalhada de mofa, mas verdadeiramente temerosa, parte da choupana, e junta seu eco espantoso ao eco medonho da tempestade!
XI
JOSÉ PACHOLA E PEDRO MANDINGUEIRO
Pedro Mandingueiro, preto de nação (assim chamamos os pretos africanos), que teria os seus quarenta e tantos anos, era alto, bonito e bem feito, falava o Português como se fosse um crioulo, este preto era corajoso, e passava por valente, como as armas. Quase todos o temiam, porque era corrente que lhe não entrava ferro nem chumbo, era tido e havido por feiticeiro, discípulo de Laura: acreditavam ainda que eles isto é, Laura e Pedro, tinham relações mais íntimas. Como fosse, Pedro Mandingueiro, que era forro, ia muitas vezes à casa da feiticeira, e lá se demorava bastante tempo.
José Pachola não havia sido muito sincero com o Sr. Matias, o estalajadeiro da Praia- Pequena, porque ele sabia muito mais do que o havia dito a este. Com efeito, José Pachola estava junto à tranqueira do caminho da choupana de Laura, quando por ele, a toda brida, passou um cavaleiro levando de garupa uma menina. Este cavaleiro abriu uma tranqueira e caminhou para a casa de Laura, de onde voltou pouco depois sem a menina. José Pachola não o conheceu, é verdade; mas, admirado de ficar em casa da feiticeira uma menina para lá caminhou, e espreitando e ouvindo de fora, viu a menina e ouviu o que ela disse na conversa com Laura: assim, José Pachola soube quanto era bastante, isto é, quem era a menina, quem o seu roubador, o crime cometido, e que a menina seria levada a seu pai, ou a seus parentes, no Domingo de madrugada. Ciente disto, sai, chega ao campo da casa de sua senhora, toma um cavalo, põe-lhe um barbicacho de embiras de bananeiras, monta em pelo, e vae a todo galope à Praia-Pequena, que não era longe. Foi ali onde o encontramos pela primeira vez.
José Pachola podia logo dizer a Augusto o lugar onde estava sua filha; mas entendeu que levando-a ele, toda glória era sua, e por conseguinte maiores, e melhores alvíssaras lhe caberiam, dinheiro para sua liberdade talvez. Sua tenção era, como, e quando pudesse roubar a pequena, e lavá-la a seu pai; e quando de todo não pudesse subtrair à feiticeira, ele a roubaria ao portador que tinha de a levar Domingo pela manhã, segundo ouvira a feiticeira dizer à mesma Maria, como o leitor se lembrará. A cousa não era sem risco; mas, veremos como se sai dela o tal José Pachola.
O leitor prevê que lhe foi impossível roubar a menina, porque Laura nunca deixava seu lado, e ela não saía jamais da cabana. José Pachola, sem ser visto, lá estava todas as noites, lá rondava sempre em torno da choupana, e nada perdia do que lá se praticava. José Pachola andava sempre pronto para o que desse, e viesse.
Domingo pela manhã, José Pachola, trepado numa alta árvore, de onde devassava a choupana da feiticeira, espreitava o que tivesse de acontecer. Com efeito, Maria saiu acompanhada de um sujeito: este, em vez de tomar pela picada trivial, que pelo meio do campo, de que já falamos, ia dar na estrada, tomou por outra picada, só conhecida de poucas pessoas do lugar. Esta picada ia pelo meio do mato virgem até à estrada geral. O Pachola viu isto, e colheu o intento de condutor de Maria, e, conhecendo a picada por onde ele se dirigia; desceu apressadamente, e correndo por dentro do mato, foi esperar o dito condutor em um ponto onde devia por força passar. O Pachola, com um pequeno bordão na mão direita, e uma boa faca na esquerda, pôs-se a esperar.
Apenas o condutor de Maria chegou ao ponto em que estava José, este saiu do mato, e com atrevido denodo disse:
— Oh! sô Pedro Mandingueiro, dê-me essa menina.
— Estás bêbado, José Pachola? (perguntou o Pedro Mandingueiro.)
— Dê-me a menina; já lhe disse.
— Negro, sai do caminho, que quero passar, disse o Mandingueiro firmando-se no seu bordão, e desembainhando uma comprida faca.
— Eu tenho visto muito pau, e muita faca, e ainda me não meteram medo. Faca por faca, fio- me mais na minha; pau por pau, também tenho este Tingaçuíba... (isto disse o Pachola mostrando o bordão).
— Rapaz, vai-te embora... Tu estás procurando sarnas para te coçar, hem?
— Então, sô feiticeiro, não quer dar menina?
— Não; sai do caminho.
— Pois chegou a ocasião de experimentar se ponta de faca entra nessa barriga! Olha, estás vendo? (dizia o Pachola, meneando a sua faca) hei de te enterrar até onde custou dinheiro.
— Então estás com vontade de morrer?
— Oh tolo! (disse o José, soltando uma risada de mofa)... tu és capaz?
— Pois bem: não te matarei, porque quero comprar-te à tua senhora para te meter o bacalhau...
— Sim?!... pois livra-te, feiticeiro.
José Pachola assim dizendo, acometeu ao seu adversário. Os dois atacaram-se, como dois touros furiosos!
Maria, que muda havia escutado a disputa dos dois, vendo-os se acometerem com tanto furor, assustada, e dando um grito de pavor, correu pelo mato a dentro, onde desapareceu!
Qualquer dos dois a quereria seguir; mas segui-la era apresentar o costado ao ferro do inimigo: assim, à seu pesar, cada um deles viu-se obrigado a sustentar um combate, do qual nenhum proveito tirava, pois que todo o proveito do negócio lá se ia com a menina, que, tímida e medrosa, se embrenhava nos matos!
O Mandingueiro, que era mestre no jogo da faca, tendo esta na mão direita, e o bordão na esquerda, batia-se como um leão; mas o Pachola, que também era mestre no mesmo jogo, levava-lhe a melhor, porque era ambidestro: assim, com a faca na mão esquerda, e o bordão na direita, não só acometia, como não deixava o Mandingueiro aproximar-se: pode, pois, dizer-se, que este servia-se de uma só arma, enquanto o seu adversário servia-se de duas!
No fim de meia hora de um porfioso, e renhido combate, Pedro, furioso, e desejando terminá-lo, atirou ao seu contrário uma temível facada; mas o destro José, furtando o corpo à ponta do ferro, descarregou com o seu bordão, uma forte pancada na mão do agressor, fazendo-lhe destarte saltar a faca fora da mão. O Mandingueiro, assim desarmado, apelou para suas boas pernas, que eram ótimas, e deu às trancas.
— E agora! Espera, que eu te ensino, patife (dizia o José Pachola, correndo no encalço do fugitivo). Não me queres comprar para meter-me o bacalhau? Não corras... vem cá...
XII
MARIA AO DESAMPARO
Tímida, cheia de pavor, e sem tino, Maria, ao ver os dois terríveis campões desembainharem suas facas, dando talvez aos motivos da briga uma interpretação mui diversa da verdadeira, levada pelo instinto da conservação de si mesma, não fez mais do que fugir de ambos; e como fugisse sem acordo, em vez de seguir o trilho aberto por dentro do mato, ou para diante ou para traz, isto é, ou para sair à estrada real, ou para voltar para casa de Laura, estranhou-se pelo mato a dentro, fugindo ao trilho, e aos dois tigres, que desapiedadamente, com tanto furor se abatiam!
Assustada do que tinha visto, Maria, correu pelo mato enquanto teve forças para o fazer: assim, em quanto teve folego, e suas débeis pernas a sustentaram, a pobrezinha correu, até que, exausta de forças e sem folego, caiu de cansada; e não se julgando assaz segura no lugar em que havia caído, como pôde, se foi arrastando até esconder-se entre as folhas de algumas pequenas árvores: aí se deixou ficar. Passado algum tempo, talvez duas horas, Maria ouviu ao longe alguns gritos; ela pensou que ouvia pronunciar seu nome nestes gritos longínquos; mas, cortada de medo, não quis responder, e quando o quisesse, impossível lhe fora; por isso que não tinha forças para dar sinais de si. Assim, assentada entre as árvores em que se havia escondido, se conservou longo tempo, reprimindo até a respiração; tanto era o seu pavor!
A fome veio por sua vez ensinar a Maria que para conservar os dias não era bastante fugir a um perigo, era também preciso sustentar o corpo com o alimento necessário; em consequência, Maria foi constrangida a deixar seu esconderijo: ela, pois, ergueu-se, e, achando-se no meio do mato, teve medo. Maria, buscando uma saída, começou a andar; depois de ter andado quase meia hora; aqui, rasgando seu vestido nos espinhos; ali, estrepando seus mimosos pezinhos; agora, arranhando- se nos ramos; logo, espinhando-se, achou-se no mesmo lugar de onde tinha saído; era o lugar em que ela se havia escondido, quando, levada pelo medo, fugira aos dois pretos que no trilho ousadamente se ficaram batendo. Maria conheceu este lugar, porque viu as folhas amassadas, e alguns raminhos ainda dobrados: foi quando ela compreendeu que estava perdida; ela chorou então: tinha fome, tinha sede, e tinha medo. Depois de estar algum tempo parada, sem tomar resolução alguma, a pobrezinha começou a gritar com todas as suas forças. Seus débeis gritos iam-se fracamente perder nas verdes abobadas dos silenciosos bosques, que com piedosa sombra defendiam a infeliz contra os ardentes raios de um sol abrasador! e os ecos da solidão, doidos de sua desgraça, para não enganá-la, nem repetiram seus gritos! Afora o chilrar com que as impertinentes cigarras importunam as selvas, tudo em torno dela, tudo era silêncio! tudo, porque era a hora em que com luz de fogo o sol ferve e chameja no alto dos céus; e nessa hora também seus cantos, e nos mais frondosos ramos das mais copadas árvores buscam um abrigo contra o suão estival em que faz arder nosso clima tropical Amalteia! Maria, vendo que nada respondia a seus gritos, caiu de joelhos, pôs suas inocentes mãozinhas, e erguendo-as ao céu, fez sua súplica:- Mamãe do céu, pedi a Papai do céu por mim... Sim... Mamãe do céu?...
Desta vez Maria acrescentou à sua súplica esta interrogativa... Quem sabe? Quando somos pequenos, quando estamos na idade inocente, se nos diz que os anjos do céu velam brincando em torno do nosso berço, fazendo-nos sonhar sonhos dos céus! Diz-se-nos que os anjos brincam conosco, porque são inocentes como nós! Diz-se-nos que eles nos entretêm, nos acompanham, nos defendem, nos ampararam em nossas quedas, e andam sempre em nossa companhia: será isto verdade? Seja, ou não, os meninos tem suas lendas; eles gostam de as repetir; quando, reunidos, contam uns aos outros suas histórias infantis, principiando sempre pela fórmula pueril, mas engraçada, de - Foi um dia. - Os meninos, pois, sabem histórias de meninos perdidos num mato muito grande... e muito escuro!!... porque uma feiticeira os desviara de casa; mas, depois vem uma pombinha e os guia para casa. Ora, nestas lendas infantis as pombinhas são anjos assim disfarçados. Quando os meninos sabem estas historiazinhas, confiam muito na invenção dos anjos.
Maria fez sua súplica, e depois a interrogativa: ela juraria, se então soubesse jurar, que uma voz doce e afagadora lhe dissera: “Sim...” Ela ergue-se apressada, e à bulha que faz nos ramos, voam duas mimosas juritis!... Agora lembra-se das histórias que sua mãe lhe contava, dos anjos disfarçados em pombinhas, protegendo os meninos; então ela acredita que a sua Mamãe do céu a tinha ouvido, e que as duas juritis, que de junto dela voaram, eram dois anjos!
Nada se perde, antes se ganha em fazer os meninos piedosos! é bom falar-lhes em Deus sob o terno nome de Papai do céu. Os meninos até por instinto amam a este terno nome!
Maria ergueu-se e seguiu as juritis, que diante dela voavam. A alguma distância, as amorosas avezinhas poisaram em um alto ramo; Maria seguiu-as até lá. De novo ergueram seu voo, e foram assentar-se noutra árvore muito distante da primeira; a menina, sem desanimar, seguiu-as. Isto repetiu-se mais vezes até que a pobrezinha descobriu uma aberta em que o sol derramava uma enchente de luz: para essa aberta voaram os dois passarinhos, para essa aberta, seguindo-os, encaminhou-se também a menina. Nessa aberta começava uma capoeira, rareada por grandes espaços sem árvores, havendo, todavia, lugares em que era densa, e composta de grossas árvores, formando o que chamam os lavradores — capoeira de machado. - Eram mais de três horas da tarde quando Maria entrou nessa capoeira: ela exultou vendo-se livre do mato virgem. Então começou a percorrer a capoeira, sem se entranhar onde ela era densa: depois de alguns giros, procurando alguma fruta e alguma fonte, deparou com um lugar onde crescia e verdejava uma viçosa e bela grama; depois, viu um vasto goiabal onde havia algumas, e não poucas, belas goiabas. Maria comeu algumas, mas apertou-lhe a sede. Sem desanimar continuou a revistar todos os lugares onde seu instinto a levava em busca de agua. Não longe dela, saindo do mais cerrado da capoeira, deslizando seu voo à flor da grama, e enchendo os ares com seus discordes gritos, duas irerês passaram por junto dela. Maria correu ao ponto de onde as aves tinham voado, e logo no princípio do cerrado encontrou um pequeno lago de uma agua um tanto lutulenta, mas todavia potável, em falta de outra melhor. A filhinha de Augusto ajoelhou-se à beira do lago, e curvando-se sobre ele, fez do côncavo de suas mãozinhas reunidas uma vasilha, e bebeu desta água até saciar sua sede!
A menina roubada, e perdida no mato, tem diante de si uma fonte, a seu lado um goiabal com frutos... de fome e de sede ela não perecerá talvez! Deus a preserve de outros perigos; sua Mamãe do Céu vele por ela.
XIII
JOSÉ PACHOLA E A FEITICEIRA
Maria não se tinha enganado quando, escondida, supôs gritos, e nesses gritos o seu nome.
José Pachola, não podendo alcançar o seu adversário, voltou ao ponto em que havia lutado com ele, e daí seguiu o caminho, que a menina tomara, partindo em sua procura. Grande foi o empenho que pôs em achá-la; grande foi o interesse com que a procurou; mas tudo foi debalde. Na sua diligencia chamou, gritou; mas seus ecos, sem o menor efeito, perderam-se nas solidões dos desertos. Desenganado de que não achava a pequena, saiu do mato, e dirigiu-se para a casa de Laura; aí chegado, disse-lhe:
— O tia Laura, que diabo de história é esta?
— Que história, meu filho? (perguntou Laura).
— De uma menina, que furtaram, e que esteve na sua casa?
— Isso, rapaz, foi uma brincadeira.
— Brincadeira! como?
— Eu vos conto. Assentai-vos.
José Pachola assentou-se. A feiticeira prosseguiu:
— Conheceis um Estevam, que mora lá para o Irajá?
— Conheço muito.
— Pois meteu-se na cabeça desse pateta que havia mandinga, ou feitiço, para apanhar moças...
— E não há?
— Há; e até são dois feitiços...
— E quais são?
— Amor, ou dinheiro. Quando uma moça ama a um homem, ele pode apanhá-la com amor; o outro meio é apanhá-la com presentes, se ela é interesseira.
“O tal Estevam rompia seus sapatos por uma tal Tereza, que eu não conheço, e ela nenhum caso fazia dele.
“Pedro Mandingueiro, que, como todos sabem, é muito esperto, persuadiu ao homem que eu era capaz de fazer um feitiço para que a moça lhe quisesse bem. O homem acreditou; e vae senão quando entra-me Pedro com o tal Estevam, que sem mais nem mais contou-me toda a sua vida. Ora, é preciso declarar que é a primeira condição que eu imponho a quem me procura, e em consequência desta condição foi que ele me contou toda a sua vida... Vamos adiante (dizia Laura sacudindo a cabeça); vamos adiante... Têm morrido enforcados muitos, e muitos estão no dique com menos culpas! Já vedes, meu filho, que o homem é tolo, e eu não fiz mais do que comer-lhe alguns vinténs.
“Assim eu ia comendo alguma cousa do sujeito, quando Pedro me disse: - Tia Laura, você há-de dizer ao Estevam que a moça é invencível, porque nasceu em uma Sexta-feira da Paixão, e que para ele obtê-la é preciso que você cometa um crime. Ele há de querer saber qual é o crime, e você lhe há-de dizer que é matar uma menina que se chame Maria, de menos de sete anos, para, com seu sangue e suas entranhas fazer um certo feitiço... Se ele não arranjar a menina, ficamos nós livres desta sarna... - E, se ele arranjar? (perguntei eu). - Se ele arranjar, arranjaremos nós aqui um divertimento com ele, e de tal modo, que não voltará mais cá. - Mas para que tudo isto? (perguntei eu). - Eu lhe digo (respondeu-me Pedro): eu preciso muito de duas doblas e meia, e por isso você há-de pedir ao homem cinco doblas: este dinheiro há-de ser adiantado, e nós o dividiremos. Logo que você falar-lhe na menina, ele lhe dirá sim ou não: em todo o caso, saindo daqui vae me dizer tudo; se disser lhe que não, eu o influirei, e então inculco-lhe uma menina; se disser que sim, melhor.
“Eu conheço uma menina chamada Maria, que não tem sete anos; o pai é rico, que é o que nos serve. Eu farei a cousa de modo que o homem saia daqui tão assustado, que cá não volte mais; no outro dia levo a menina para a casa de seu pai, que me dará uma boa molhadura, que também dividiremos... hem?” Eu disse que sim. Veio cá o Estevam, disse a cousa; e ele, pronto. Para encurtar-lhe razões, trouxe a menina. No sábado de noite Pedro arranjou a casa para uma grande feitiçaria. Aqui pôs uma mesa coberta de preto; nesta parede pregou uma pintura de um diabo muito feio, com que engano os tolos; neste lugar estava uma fogueirinha, e naquele um banco coberto também de preto, tendo em cima um alguidar, e um facão muito amolado e muito claro. Pedro tinha me arranjado umas caveiras e uns ossos. As caveiras pusemos em cima da mesa, e os ossos ficaram pendurados naqueles paus e amarrados nuns fios. Por felicidade chovia muito, roncava trovoada, e fuzilava. Quando a menina quis dormir, eu dei-lhe uma xícara de café com remédio para ela dormir. Pedro pôs um saco de areia ali em cima, e foi pôr-se lá. Quando o homem chegou ficou com medo só do que viu. Com efeito entrou; deu-me as cinco doblas, e eu comecei a fazer quanta bobagem me deu na cabeça. Pedro, lá de cima, às vezes fazia tremer a pintura, às vezes embalançava os paus, fazia os ossos baterem uns nos outros. Por último eu trouxe a menina, e pu-la em cima do barco; peguei no facão, e fingi que ia-lhe cortar a cabeça. Quando levantei o braço, Pedro, fingindo uma voz muito feia, falou lá de cima, e ordenou-me que não matasse a menina. No mesmo tempo fez tremer a pintura, baterem os ossos, e entornando a areia, fez cair uma chuva de areia por toda a parte, com que se apagou a fogueira. Por acaso neste instante brilhou um grande fuzil, e deu um grande ronco de trovoada. O Estevam, meu filho, saiu por aqui, como um doudo, gritando — Misericórdia! — e eu, e Pedro, nos riamos como dois loucos!
Ora aqui está como foi o negócio. Já vedes que ninguém ofendeu a menina, nem levemente. Eu levei-a depois para cama; hoje acordou-se boa e sã, e Pedro foi de manhã muito cedo levá-la para casa de seu pai.”
— Está bom, tia Laura. Adeus.
— Adeus, meu filho.
José Pachola não desesperando de ainda encontrar Maria, segunda vez embrenhou-se pelo mato com o fim de descobri-la.
A feiticeira tinha contado a história com tanta ingenuidade que o Pachola acreditou-a; e inconsequência compreendeu que Pedro ia com efeito levar a menina a seu pai, em poder do qual ela a estas horas estaria, a não ser sua imprudência havida com o Mandingueiro. Este pensamento entristeceu a José Pachola, e lhe causou remorsos, e era por isso que ele redobrava as diligencias em achar Maria.
O narrador julgou necessário este tosco entretenimento entre o Pachola e a feiticeira, para que o leitor não só conheça os motivos que influíram no roubo de Maria, como as velhacadas dos encantamentos e feitiçarias de Laura.
XIV
MARIA PERDIDA NO MATO
Maria tinha descoberto frutos, e água: pois bem; ela não morrerá de fome e nem de sede: tem comida e tem agua; porém tudo o mais lhe falta... Pobre Maria!
No meio de um deserto, entregue à si mesma, não vendo debaixo de seus pés senão uma terra coberta de ervas, gramas e capins; em torno de si senão árvores, mais ou menos grandes, mais ou menos antigas, e mais ou menos verdes; acima de sua cabeça um céu, que acabava de arder, mais ainda tépido, ainda fumegante; Maria se considerava talvez desamparada dos homens; mas não de sua Mamãe do Céu, que ela sempre chamava em seu socorro!
Sobre a sua cabeça, pelos ramos das árvores, brincando, e adejando em cardumes, começavam os alegres pássaros o seu melancólico hino da reação, que uma vez aprenderam no Éden, apenas credos, e de que nunca mais se esqueceram, nem esquecer-se-ão até a consumação dos séculos. Ainda prismando cambiantes cores através da tíbia luz de um morno raio de expirante sol, que languido se debruçando por sobre os fios das serras vinha com voluptuosa melancolia estampar nos vales o derradeiro beijo, beijo de adeus da luz desse dia: enamorados insetos em derredor de amorosas florinhas agitavam suas leves azas, quase tão bonitas como essas mesmas florinhas! Maria viu esses pássaros e esses insetos, escutou seus cantares, e o sussurrar de suas azas, e prestou-lhes atenção... Se não fossem, eles, que em torno dela cantavam, ou desprendiam seus voos; a pobrezinha se consideraria talvez só no meio do universo! Esquecida, por um momento, de sua crítica posição, Maria, ferida pelas brilhantes cores de uma lépida borboleta, que negaceira descrevendo nos ares buliçosas ondulações, tocou-lhe quase com a ponta de uma aza o rosto de marfim, como uma linda pombinha correndo pelo prado, assim lançou-se atrás do lindo, fugitivo inseto, desejosa de o colher às mãos. A pequenina seguiu por algum tempo, rindo, e saltando o giro incerto do travesso volátil, que após de negacear no vale, volteando de uma para outra parte, num ímpeto mais veloz entranhou-se na mata, onde desapareceu! Maria bateu levianamente as suas mãozinhas, e com infantil pesar exclamou:- “Ora está!... lá se foi embora!...”
Feliz idade, para ti não há passados, nem futuros, porque não tens arrependimentos nem desejos, pesares, nem receios, remorsos, nem temores, saudades, nem esperanças! O teu presente, quase sem sustos, sem medos, e receios; e todo brincos, todo prazeres, e alegrias; é talvez a realidade do pensamento de Deus quando te criou! Idade feliz, tu és o perfume da vida, porque és a flor da inocência bafejada por Deus! Deus te ama, porque és cópia do ideal da criação do homem! A cor de inocência que imprimiu no primeiro casal, progenitor do gênero humano, brilha ainda com todo o esplendor da Divindade sobre tuas feições angélicas! Os anjos do Senhor te amam, porque te pareces com eles; os anjos do Senhor velam por ti, porque és o anjo da terra, pelo qual descem à ela as bênçãos do Criador! Idade feliz, se tu não fosses, onde a inocência entre os homens? Tu és o mais puro, o mais digno altar em que a humanidade oferece ao Eterno as suas inocentes oblações, e estas oblações são teus pensamentos do céu, são teus sorrisos de anjo! E por isso o Filho do Eterno, quando peregrinava entre os homens, disse um dia aos homens que o seguiam:- “Deixai que os meninos se aproximem de mim!”
Mas essa alegria de pobre inocentinha bem depressa se devia esvaecer, porque a noite se aproximava. Os homens temem as trevas, quanto mais as crianças!... as crianças, pois, as temem... Talvez este temor seja o único da infância: como for, ele dura tão somente o quanto duram as trevas.
Maria estava com a cabeça descoberta, porque na sua carreira perdera o seu chapelinho; seu pequeno xale também tinha ficado nos ramos das árvores; assim estava sem chapéu, sem xale, e com o vestido todo rasgado.
Com efeito, do céu oriental começava a noite de puxar as ruivas franjas de seu negro véu: e pouco depois a noite tranquila, melancólica e silenciosa; tranquila, como a mãe do repouso; melancólica, como a mãe da saudade; e silenciosa, como a mãe do amor; estrelou os céus, tingiu os ares de negro, e envolveu a terra. Maria teve medo, e quase maquinalmente caiu de joelhos, e fez a sua súplica. Depois ao resto de duvidosa claridade que ainda do crepúsculo restava, colheu algumas macias folhas, e pequenos ramos, e com ele arranjou uma cama debaixo de uma árvore, cuja copa era mais vasta e frondosa do que todas as outras. Felizmente a estação calorosa permitia que a pobre pequenina não tiritasse de frio. Maria ajoelhou-se sobre a sua cama de verduras, e pondo as mãos, orou: - “Mamãe do Céu, pedi a Papai do Céu por mim!”
XV
AUGUSTO
José Pachola, certo de que não achava Maria dirigiu-se para a estalagem da Praia-Pequena. O Sr. Matias, o dono da casa, logo que viu o Pachola disse-lhe:
— Então, José Pachola, descobriste alguma cousa?
— Qual... não, senhor (respondeu o Pachola).
— E a menina que foi para casa da feiticeira?
— Enganei-me. O cavaleiro não foi para casa da tia Laura, foi para outra; e não era uma menina, era uma moça já feita.
— Ora que pena! Perdeste a tua felicidade!
— Assim é... mas que remédio!
José Pachola, que atribuía à sua imprudência a desgraça de Augusto haver perdido a sua filha, quis deste modo desviar o justo ódio que por sem dúvida lhe votaria Augusto, se de tal história ficasse inteirado. Não obstante o que o narrador acaba de dizer, José Pachola, animado sempre de uma lisonjeira esperança, uma vez por outra, quando as obrigações do seu cativeiro lhe permitiram, entrava no mato e o percorria, sempre com o mesmo ardor, com a mesma diligencia, e com a mesma boa vontade, com o fim de, morta ou viva, descobrir a infeliz menina, cujo extravio ele mesmo havia causado; mas, suas diligencias, bem que por muitos dias repetidas, nem por isso tiveram bom êxito.
Augusto, cujo estado de saúde, em consequência de sua ferida, não era muito bom, fez por sua filha o quanto em tais circunstâncias lhe cabia; assim, ele socorreu-se das autoridades, que de boamente se lhe prestaram; pediu, rogou a quantas pessoas via; prometeu tudo quanto tinha e quanto não tinha; mas, nem suas lágrimas, seus pedidos, seus rogos, suas promessas, nada, enfim, nada fez com que o angustiado pai tivesse de sua querida filha a menor notícia! Pobre pai!
Logo que Augusto esteve em estado de montar, saiu ele mesmo a procurar a menina. Augusto acreditava que seu paterno coração o levaria para o ponto em que se achava o melindroso pedaço dele, e que com tanta dor lhe faltava! ele supunha que o coração de sua filha, que era um pedaço de seu coração, por uma atração divina, voaria a ligar-se ao terno pedaço de que o havia separado uma barbara, uma pérfida mão!
Firme nesta doce esperança, o desgraçado pai partiu em busca de sua filha: foi ao lugar em que caiu ferido, e daí deu começo as suas pesquisas. Aí notou o lugar em que Maria tinha caído, os sinais que ela imprimira no solo querendo escapar-se ao roubador; o ponto em que ele mesmo, caído, se debatera debalde; e, ultimamente, os rastos deixados pelo roubador, quando, senhor de sua presa, tomara a sua carreira. Augusto seguiu esses rastos, suspirando dolorosamente e enxugando as lágrimas que borbulhavam de seus olhos; mas, bem depressa esses rastos tão caros, e tão detestados desapareceram sobre um terreno mais solido.
O desventurado pai não teve mais o fio que o guiava! Os rastos desapareceram; mas que importa? Não é ele pai? Pois bem: a esperança nunca abandona, em tais circunstâncias, o coração de um pai!
XVI
MARIA
Voltemos à nossa pobre Maria. Ela é tão criancinha!... Bem vedes; não tem ainda sete anos!... Como pois deixá-la entregue a si mesma? como desampará-la, no meio de um deserto, sem ter quem vele por seus dias? Oh! isto é duro, muito duro! não; ela o não merece...
Pensai. Figurai-vos num bosque, ou numa capoeira de machado, mais ou menos espessa; mais ou menos rareada; composta de árvores mais ou menos grossas, mais ou menos altas, e mais ou menos copadas. Figurai que nesse deserto vai pouco a pouco emudecendo a natureza quase toda. Entre a ramagem vae pouco a pouco se adormecendo a brisa; entre as dobras do manto da noite vae gradualmente calando-se o canto das aves; e ao passo que a brisa adormece e cala-se o hino do coro alado, a noite vae tachonando o céu de brilhantes luzes, e tapizando a terra de pesadas sombras. Pouco depois tudo é noite, tudo é quase silêncio! Agora a desarmonia infernal, que perturba a solidão, é assustadora, é medonha, é tremenda! E o rebater das itanhas, o berrar dos sapos, o coaxar das rãs, e o chilrar das cigarras. Ao longe ouve-se um trêmulo sibilar, indecifrável para quem nunca o ouvira; mas que ouvido pela gente do campo lhe faz dizer que é uma serpente, que passa, ou que sai de sua toca. Além, poisado numa árvore seca, onde arma sua pérfidas ciladas aos descuidados insetos; entoa seu monótono canto o melancólico urutau. Aqui, solta seu funéreo grito a detestável coruja; ali, rompe os ares com seus estridentes guinchos a noturna cana-freixa! E tudo isto é terrível, pavoroso, e medonho; porque tudo isto é monótono, melancólico, e fúnebre; e o que é monótono, melancólico, e fúnebre, é triste, aborrecido e detestável.
Agora, no meio desta solidão, envolvida por estas trevas, que as folhagens das árvores mais carregavam ainda, rodeada desta abominável companhia; só como o cordeirinho desviado da grei, e transviado pelos bosques; só, como a ave passageira à qual a barbara mão do caçador cruento roubara a companheira, e que solitária atravessa os ares; só como na amplidão dos mares um único navio rodeado de mares e de céus; figurai a pobre Maria, e dizei se devemos, ou não ir em seu socorro? Vós o aprovais; pois bem: vamos.
Maria deitou-se sobre a sua cama de verduras: seu anjo assentou-se perto dela, e começou a velar por sua conservação. Sua Mamãe do Céu enviou-lhe o anjo do sono; pouco depois a pequenina dormia sono solto, e assim dormiu até o romper do dia.
Oito dias correram tranquilos; oito noites correram serenas. Nestes oito dias Maria teve o seu sustento certo, teve a agua da mesma fonte, e a cama no mesmo lugar. A coitadinha sabia que não longe deveria haver uma estrada, ou ao menos a picada de onde ela correra; queria procurar pois alguma saída; mas temia perder o seu sustento, e a sua agua. Assim, durante oito dias, não perdeu de vista as suas goiabeiras, nem a sua fonte. Durante estes oito dias, apesar da estação, não houve trovoadas; na tarde do nono dia, porém, o calor foi excessivo: nuvens de trovoadas amontoaram- se nos céus, e a borrasca predispôs-se para uma luta tremenda; e, com efeito, longínquos, mas grossos trovões começaram de rolar no espaço; pouco a pouco aproximaram-se precedidos pela importuna luz de repetidos relâmpagos. A chuva principiou de cair.
Maria, quando os trovões se foram tornando amiudados, e mais fortes, teve medo, ajoelhou- se, pôs as mãos e fez a sua súplica: nesse transe a triste chorou, porque tinha medo. Enquanto as gotas de chuva não puderam filtrar-se por entre a ramagem da árvore, a cuja sombra se havia ela acolhido; ali esteve, mas esse abrigo foi, por assim dizer, momentâneo; porque depois as copas das árvores gotejavam cântaros d’água. A pobrezinha, não tendo abrigo que escolher, não quis desamparar o tronco dessa árvore, que por oito noites tão hospitaleira lhe havia sido; e demais, esses longos ramos, essa espessa folhagem, roubavam à sua vista uma parte da brilhante intensidade da luz dos lampejos, que tão assiduamente nos ares se cruzavam.
Maria, ora assentada, ora de joelhos, com as mãozinhas postas rezou mais de cem vezes a sua súplica, única oração que sabia, dizendo com devoção de criança: - Mamãe do Céu, pedi a Papai do Céu por mim!
Quase sempre com os olhos fechados, tampando os ouvidos para não ouvir o estrondo dos trovões; a pobrezinha tiritava de frio, apesar da estação, porque seus vestidos não tinham um só fio enxuto!
Durante os primeiros dias da viuvez do Augusto, este terno e saudoso marido, no excesso da sua dor, exclamava: “Ah! minha Leopoldina!... Ela não virá mais!...” Maria nesta ocasião lembrou- se de sua mãe e disse:
— Mamãe!... mas mamãe não vem mais!... Eu tenho tanto frio!... tenho tanto medo!... Papai não vem me buscar!... mas papai também não vem mais!
Então Maria chorou lágrimas de medo, e quem sabe se também de saudades! Depois ajoelhou, e pondo as mãozinhas, disse em voz mais alta e quase no tom de uma exclamação:
— Mamãe do Céu... pedi a Papai do Céu por mim!...
XVII
A DOR DE AUGUSTO
Figurai uma avezinha gemendo saudosa sobre o triste ramo, em que até ali existira seu ninho, onde com tanto amor alimentara seus filhos ainda implumes pequeninos... Um travesso menino roubou-lhe o ninho e os filhos... pois nesse ramo onde esteve seu ninho, figurai a avezinha gemendo saudosa por esses filhos, que nunca mais há-de ver!... Figurai uma árvore arrancada pelo vento da tempestade, estendida sobre a terra, e pouco a pouco murchando seus tristes, mas ainda viçosos ramos! Figurai um navio desmastreado, e sem leme, próximo a naufragar no meio do oceano! Figurai, sem uma só estrela, um céu fechado, de uma medonha noite de procela! Figurai um moribundo no leito de dor, sentindo pouco a pouco morrer em seu coração o derradeiro raio de luz da esperança!... Figurai, enfim, uma cidade deserta, porque a mão do anjo de Deus soprou sobre seus habitantes o flagelo da terrível peste, flagelo com que o Senhor às vezes castiga os pecados da terra!... E, se podeis ainda figurar alguma cousa de mais triste, figurai, figurai; porque era assim que estava o coração de Augusto, quando reconheceu a dificuldade, ou talvez impossibilidade, de achar sua filha!
Augusto, no excesso de sua extrema dor, percorreu quantas estradas viu; visitou quantos trilhos, quantas picadas, e quantos arrastões[4] encontrou; entrou em todas as casas; perguntou a quantas pessoas encontrava, e ninguém, ninguém lhe dava notícia de sua filha!...
“Maria é bela como os anjos, como os anjos é inocente, e como os anjos pura! Viste-a, passageiro? Ouviste acaso no bosque algum gemido saudoso? talvez, e pensáveis que era a rolinha, que lá gemia a sua viuvez saudosa... talvez que seja Maria, que geme em seu desamparo! Talvez... a rola não sabe, não pode até gemer com mais ternura do que ela! Viste, por ventura, se escoar na selva, brincando por entre as flores, uma forma, branca, como a aza de um anjo; etérea, como os espíritos do céu; e bela, como a visão do bem-aventurado? viste, passageiro? talvez! e acreditáveis que era o anjo das florestas, que animava as flores, e fazia reverdecer os campos!... quem sabe se era Maria!... o anjo das florestas não é mais belo do que ela!”
Bem pode ser que assim questionasse Augusto a todos os passageiros... mas os passageiros não tinham visto Maria!
Astros, que passais por sobre nossas cabeças, não sois vós os olhos do universo? acaso ignorais as virtudes da terra, e os crimes dos homens? Astros, vós sabeis tudo: pois bem; vós devereis ter visto Maria... Talvez que os lamentos e as queixas da pobre pequenina, chegassem até o vosso seio! Talvez que neste momento algum de vós derrame sobre seu belo rosto pálido um benéfico raio de amor, e de consolação! Astro propicio, que assim fortaleces, e consolas o tenro coração da pobre desamparadazinha, vem com esse raio esclarecer a fronte de seu pai, e daí passa ao seu coração. O coração de um pai adivinha; porque o coração de um pai tem o instinto do amor! Ele adivinhará que esse teu raio luziu sobre o rosto de sua filha, e guiado por essa claridade irá procurar sua filha, e achá-la até no fim do mundo, se o mundo tivesse fim! Mas ah! tu és surdo, porque não podes compreender os estremecimentos deste amor, nem a sublimidade desta dor! Os homens mesmos nem todos os compreendem; só os corações dos pais, só os corações puros o podem!
Sol!, ó sol, tu, que esclareces a tantos e tão diversos mundos; tu, que sabes de todos os seus mistérios; tu, que num perene giro passas, difundido o dia, por sobre a cabeça dos homens; tu, que a teu etéreo clarão, lês sobre a terra os crimes, que uma mão facínora estampou sobre a sua face, sempre tão nodoada deles; tu, para o qual não há segredos; tu, que sabes quanto os homens; faze; ó sol, viste a filhinha de Augusto? Talvez que neste momento teus raios abrasadores caíam em turbilhões sobre essa frontezinha, tão digna de teus benefícios... Pois bem: podes tu, ó sol, por meio de um de teus raios, revelar ao saudoso pai o asilo da perdida filha? Mas ah! tu o não podes! Podes tu sentir ao menos a dor desse coração de pai tão intimamente ferido? Nem isso, porque tu não sabes sentir, e quando o soubésseis, não saberíeis sentir esta dor; porque tu não és pai!
Astro de amor, das saudades, e das sensações, ó lua, quantas vezes Maria brincando à tua melancólica claridade, vendo as nuvens que impelidas pelo vento, em mil fugitivas e fantásticas formas escorregavam por sobre a tua face de prata; quantas vezes teria ela dito à sua mãe: “Olha, mamãe, a lua como corre!” E tu, ó lua, não gostavas, não te sorrias à esta tão bela ignorância infantil? Astro de amor, das recordações, e das tristezas, os meninos te amam, porque tens a sua placidez, e sua beleza... sê grata; compadece-te da pobrezinha... e... mas ah! tu nada podes, porque tu és para os corações o astro do passado! à tua vista eles não pensam no futuro, e esquecem-se do presente!
Leitor, Augusto não encontrou nem vestígios de sua filha, e com o coração despedaçado, e a alma transida, abandonou suas pesquisas.
XVIII
MARIA SAI DO MATO
Até depois da meia noite a tormenta mugiu no espaço, e bateu o bojo da terra com suas azas de fogo. Da meia noite por diante começou de declinar; às duas horas tinha escampado; às duas horas um doce vento adejou pela face da terra, ergueu-se aos ares, e varreu a face do céu: o céu sacudiu as nuvens chuvosas que lhe toldavam a fronte, vestiu de novo seu puro e solene azul, e aprontou-se para esperar a aurora. As quatro horas o céu era puro, o ar sereno, e a terra tranquila. Os galos calaram seu crebro rebate dado à natureza adormecida: os pássaros levantaram seu hino de ação de graças: os zéfiros sussurrando nos vales despertaram as flores adormecidas debaixo das pérolas com que a aurora havia há pouco aljofrado seus belos e redolentes seios: e elas ergueram aos céus o derradeiro perfume da noite: a aurora semeou de rosas a estrada do sol, e o sol esmaltou de ouro as rosas da aurora. O dia amanheceu belo! Bem disse o épico português:
Depois de procelosa tempestade, noturna sombra, e sibilante vento, Traz a manhã serena claridade, Esperança de porto, e salvamento: Aparta o sol a negra escuridade, Removendo o temor ao pensamento.
Amanheceu, pois; tudo acordou-se, afora Maria, que não tinha dormido. Apenas o sol estendeu sobre o vale uma ponta da grande cortina de luz, que ele costuma a distender sobre a face da terra, Maria correu a aproveitá-la. Assim, tirou seus vestidos molhados, torceu-os, e depois os estendeu ao sol. Ela assentou-se também aos raios deste benéfico astro, para reanimar seus membros, quase enregelados da chuva, que com tanta abundancia sobre eles havia caído quase uma noite inteira.
O sol do nosso estio queima como o fogo: pouco foi bastante; Maria sentiu calor, e abrigou- se à sombra de uma magnifica árvore. Seus vestidos também não levaram muito tempo para ficarem enxutos. A pequenina os tomou, e vestiu-os.
O leitor compreenderá bem que Maria deve estar desagradável, porque está desgrenhada, suja, e rota; mas seu rosto é sempre belo, sempre puro, e sempre angélico, mesmo como o rosto de um anjo; é quase sempre assim o rosto da inocência!
Pela volta das oito horas da manhã Maria ouviu ao longe berrar gado; ela presta atenção, e vendo que se não engana, ergue-se precipitadamente, e encaminha-se para onde ouve o berrar do gado. O eco condutor não emudeceu. Maria não se importou mais nem com goiabas, nem com fonte; seguiu, e seguiu sem parar para o lado de onde lhe soavam os berros, que, segundo ela, a deviam tirar do mato. Os berros foram-se aproximando, até que a pequena saiu a um pequeno campo onde pastavam algumas vacas. Ela estava à beira da estrada; mas não o sabia. Correndo então com os olhos o pequeno campo, pareceu-lhe ver, não longe, um caminho. Com efeito, era um caminho de gado. Maria enfiou-se por ele, e não sem admiração sua, um momento depois estava na estrada: mas a pobrezinha não pôde entregar-se a todo o excesso de sua admiração, porque, no instante que saiu à estrada, alguns mineiros conduzindo uma tropa acertaram de por ali passar. Maria encara-os com certo receio misturado de confiança. Um deles suspendendo o seu burro, e depois de ter admirado a beleza do seu rosto, supondo talvez que era alguma mendiga, disse:
— Coitadinha!... Como é bonita!...
Maria sorriu-se, e o mineiro prosseguiu assim:
— Minha filha, você anda pedindo esmolas?
— Não, senhor (respondeu a menina).
— Então que faz aqui na estrada?
— Eu estou perdida...
— Perdida! Como perdida?
— Mataram meu pai, e fiquei perdida...
— Mataram seu pai! Quando?
— No outro dia... já há muito tempo.
— Onde mataram seu pai, minha filha?
— Lá adiante... perto do mar...
— Mas, como foi isso?
— Meu pai ia para cidade, e eu ia com ele de garupa, e vae um homem, que vinha num cavalo, deu um tiro em papai, e vae papai caiu do cavalo e morreu...
— E você onde ficou?
— O homem, que matou papai me levou, e me deixou em casa de uma preta. Depois, um preto vinha comigo; vae, saiu outro preto do mato, e disse: “Dê cá essa menina.” O preto que ia comigo não quis, e vae cada um com uma faca muito grande, começaram a brigar; foi eu fiquei com medo, e corri para o mato...
— E quantos dias esteve no mato, minha filha?
— Foi já um bando de tempo, sim, senhor...
Um mineiro, chegando-se ao ouvido do que falava, disse-lhe, de modo que Maria não ouvisse:
— Parece-me douda esta menina...
— Não... Ao contrário: suas respostas são retas; e seus vestidos, bem que sujos e rotos, mostram que ela não é pobre.
Depois, dirigindo-se a Maria, continuou:
— Minha filha, e você comia no mato?
— Eu comia goiabas.
— E como saiu do mato?
— Eu ouvi os bois estarem berrando, e vai, fui direitinho para o lugar onde os bois estavam berrando: depois, achei um caminho, vim, vim, e cheguei aqui.
— Você tem mãe?
— Mamãe já morreu.
— Como se chamava seu pai?
— Se chamava Augusto.
— E você não tem mais parentes?
— Eu não sei...
— E você agora para onde vai?
— Eu não sei.
— É pena, e até um grande mal o deixarmos esta menina aqui exposta a todas as desgraças... que diz (perguntou o mineiro, que falava a seu companheiro)?
— É verdade.
— Levemo-la?
— Não nos custa nada.
— Minha filha, você quer ir comigo (perguntou ele à Maria)?
— Para onde é?
— Para minha casa... Quer?
— Quero, sim, senhor.
O mineiro tomou a pequena de garupa, e todos prosseguiram a sua viagem.
XIX
A PROMESSA
A oeste talvez da vasta baía de Niterói, (baía do Rio de Janeiro) não muito distante de suas aguas, avulta uma enorme massa de granito. A Natureza elevou essa massa em forma de uma pirâmide cônica, para mostrar que os monumentos de pedra elevados pela mão do homem nada mais são que miseráveis copias de seus prodígios, sempre grandiosos, sempre sublimes, e sempre monólitos; em quanto os dos homens, sempre amesquinhados, sempre ridículos, são sempre o resultado de várias peças em composição.
O narrador não sabe dizer a que altura do nível do mar eleva-se essa massa cônica; mas, basta que diga que, sem ser prodigiosa, agiganta-se essa pirâmide a ponto que seu topo pode de muito longe ser em distintivamente visto. Este rochedo dista duas léguas da matriz da freguesia de Irajá.
Há mais de um século (porque já em 1734 estava edificada) existe no alto dessa rocha uma capela dedicada à Santa Virgem sob a invocação de N. S. da Penha. Balthazar de Abreu Cardoso a edificou.
A arte, combinando seus meios, ali fez prodígios de esforços. Na rocha viva o picão do canteiro aprofundou alicerces, e a colher do pedreiro ergueu paredes. Cortando por sobre o cume um plano horizontal na rigideza do granito; o escopro alisando as escabrosidades desse solo irregular, transformou-o em um pavimento, igual desempenado pela regra e pelo nível do obreiro. Por um declive, único ponto acessível do alpestre rochedo, o artista rasgou fundos vincos, esquadrou regulares degraus, e por meio deles ligou destarte a fralda do penhasco às suas cumeadas, em cujo plano brilhante, como uma coroa de rei, majestoso avultava o magnifico templo dedicado à Virgem, meditada na Mente Eterna ainda antes da criação!
O narrador julga-se dispensado de contar a poética lenda de N. S. da Penha de França, tão sabida é ela! E qual mãe ignorará essa lenda, piedoso mito do amor maternal: mito em que se interessam todos os corações das mães? Esse mito, e a natural devoção do povo fluminense à Santa
Virgem, bem depressa tornaram tão extensa e tão celebre a devoção da Virgem da Penha, que pouco tempo depois seu templo tornou-se o centro de devotas romarias, ao passo que seu altar gemia ao peso das mais piedosas oferendas!
Agora que tem o narrador dado um grosseiro esboço deste magnifico templo, sigamos nossa história.
Um dia, pouco antes de tocar o sol ao nosso meridiano, um mancebo de elegante figura, de belos cabelos negros, tez alva, e um tanto pálida, belos olhos negros, mas um tanto amortecidos, como desbotados por alguma ideia de dor, ou melancolia interna, pequena e agradável boca, brancos e pequenos dentes, decentemente trajado, de agradáveis, mas melancólicas maneiras: chegou junto a escadaria do penhasco, e fitando o templo, suspirou. Depois, com ar um tanto tranquilo, mas com a cabeça baixa, contou debaixo de seus pés mais de trezentos degraus, e chegando ao adro do templo, sem voltar-se para contemplar o poético e magnifico panorama, que se desdobrava a seus pés; como um anjo, que sobre uma nuvem, que passa, desdenha olhar para o nosso pequeno globo; entrou o templo, e ajoelhou-se sobre o granito, que compõe seu pavimento monólito. Ele vae orar: nós o conheceremos pelas suas preces. Ouçamo-lo:
— “Oh minha Mãe! eis prostrado à vossos pés o mais desgraçado de vossos filhos, e que já foi o mais feliz! Eu não venho pedir-vos venturas; não é o desejo de ser ainda feliz, como noutro tempo o fui, que me arrasta ao vosso templo, para devoto curvar-me diante de vossas piedosas aras! é mais com efeito o que venho pedir-vos, oh minha Mãe. Vós me guiastes desde o berço; porque, educado no culto de vosso bendito Filho, enamorou-me, seduziu-me, e prendeu-me a vossa tão doce devoção! Minha alma se achava deliciosamente feliz, quando minha língua, com a mais terna e a mais sublime devoção, pronunciava o vosso santo nome, e meus lábios modulavam os angélicos hinos, que a mais fervorosa dedicação havia composto aos vossos celestiais louvores! à sombra de vosso puro nome eu amava o cultivar as virtudes cristãs e praticar os tão santos, tão suaves, e tão sublimes preceitos, tão caridosamente ensinados pelo melhor de todos os homens, pelo vosso Filho Deus! Tudo por vós eu fazia, oh minha Mãe! porque tudo quanto por vós fazia me era tão doce como a vossa dulcíssima piedade! E vós, que nunca ficais devendo: vós, que pagais com tanta magnificência o que recebeis tão parcamente: vós, oh minha Mãe! pagastes de mais a minha ardente devoção pelo vosso precioso culto! Vós transformastes um anjo em uma mulher e ma destes por esposa! E para coroardes minha ventura vós permitistes que eu fosse pai! Esposo aos vinte e dois anos... oh! como fui ditoso! pai aos vinte e três, fui o mais feliz de todos os homens! Viúvo quase aos trinta, pranteei, como aquele, que perde tudo quanto sobre a terra possui... mas... bendito seja o nome de vosso Filho! cumpra-se a Sua vontade!... mas, minha filha... perdê-la!... não, não posso tanto, oh minha Mãe!...
“Junto à pia baptismal, com que jubilo, com que felicidade invoquei a vossa Proteção para minha inocente filhinha! Vós fostes sua Protetora desde a pia tomada, isto é, sua Madrinha: porque a vossa valiosa Proteção vale mais, muito mais que todos os empenhos da terra, oh minha Mãe! E para que nada faltasse à minha fervorosa devoção, foi em honra de vosso augusto nome que ela se chamou Maria! E essa Maria onde existe hoje? Vós o sabeis, oh minha Mãe!
“Eu não venho pedir-vos consolação na minha viuvez: não venho pedir-vos as minhas antigas alegrias: nada disto, nada disto apeteço! Minha filha... eis unicamente o que vos venho rogar!... Bem vedes, oh minha Mãe... bem vedes que nada mais sobre a terra possuo! Se a perco, que me restará? Quem me consolará nos taciturnos dias de minha pobre velhice? Quem, no leito da enfermidade, velará por meus dias? Quem me tornará suportável a hora do passamento? Quem sobre o meu desconhecido túmulo derramará uma lágrima de dor, uma lágrima de saudade... uma lágrima só?! E que será feito dela, tão pequenina, tão inocente, sem seus pais, sem quem dela se dá, sem quem a ampare e defenda? Talvez a miséria, a prostituição... oh minha Mãe... não permitais. Oh! se uma tal desgraça lhe está reservada... antes a morte, mil vezes antes! Antes a morte, mil vezes antes, que pecar tão feia, e tão vergonhosamente contra os preceitos de vosso justo Filho... Mas faça-se a sua vontade, porque Ele é justo.”
O devoto, que assim tão fervorosamente orava, parou neste lugar, sufocado em um amargo pranto. Pouco depois, tendo enxugado suas lágrimas, prosseguiu assim:
— “Oh minha Mãe! perdoai ao vosso filho, se no grande excesso de sua justa dor suas indiscretas palavras ofenderam a vossa piedade... mas, eu sou pai, bem sabeis, oh minha Mãe!
“Nunca a vossos pés correram lágrimas justas, sem que vós as enxugásseis; nunca a vossos ouvidos soaram razoáveis preces, sem que vós as escutásseis! Vós sois a Mãe dos órfãos, o amparo dos desvalidos, o socorro dos pobres, a esperança dos desgraçados, a consolação dos aflitos, o refúgio, enfim, de todos aqueles que confiam na vossa piedade! Restituí, pois, oh minha Mãe! restitui ao desgraçado pai a desvalida filha!
“Hoje vós sois seu Pai, porque ela é órfã; vós sois a minha esperança, porque sou desgraçado! e sempre o fostes, oh minha Mãe! Confiado na vossa piedade, ouso tudo esperar do vosso poderoso Patrocínio!
“Fazei, pois, oh minha Mãe! vós o podeis; fazei, pois, que a minha filhinha volte aos meus saudosos braços, tão inocente, tão casta, e tão pura, que seja digna das vossas graças, e do vosso amor!...
“E eu, agradecido aos vossos novos favores, não cobrirei vossas aras de imensos e sumptuosos dons, não ornarei vossos altares de preciosos festões e pomposas grinaldas de aromáticas flores... mas, fugindo para sempre ao mundo, ligado, em quanto viver as aras de vosso Filho, incensarei de continuo os venerandos altares, onde majestosamente avultam as vossas piedosas imagens!”
XX
UMA VINGANÇA
Pouco depois do roubo de Maria, algumas cousinhas aconteceram, das quais o narrador julga-se obrigado a dar estreitas contas.
À primeira vista estas cousinhas parecem desnecessárias; mas quando chegarmos ao fim de nossa história, verá o leitor que elas são de alguma maneira necessárias. Isto posto, sigamos com a nossa narração.
Pedro Mandingueiro, batido por José Pachola, e vendo seu plano malogrado por causa dele, jurou aos manes de seus pais tomar do Pachola a mais terrível e exemplar vingança; e querendo interessar nela o Sr. Estevam, como uma parte igualmente ofendida; foi ter com o homem. O Sr. Estevam apenas o viu, disse:
— Então, mestre Pedro, já sabe do que há?
— Já, sim senhor (respondeu-lhe Pedro Mandingueiro); meu senhor é que não sabe do que há.
— Então o que há?
— É que tudo perdeu-se por causa de José Pachola. Meu senhor conhece-o?
— Sim: creio que o conheço; mas que fez ele?
— Eu lhe conto. José Pachola é um feiticeiro muito habilidoso, e da força da tia Laura. Outra pessoa, que também tem muita paixão pela Sra. D. Tereza, foi ter com Pachola, e Pachola, por mais que fez, não pôde entrar com a moça, pelo motivo, que tia Laura lhe disse; mas ele conheceu também que o único remédio era o sangue, e as entranhas de uma menina chamada Maria, e que não tivesse ainda sete anos. É preciso que eu explique a meu senhor uma cousa, e é que quando se faz feitiços para obter uma moça, é preciso que ela não o saiba, que, em sabendo, está tudo perdido... a moça fica tendo a pessoa que a ama um ódio de morte. José Pachola, como pelos seus feitiços não pôde obter a moça para o seu freguês; para não ficar desacreditado, também não quis que tia Laura vencesse. Assim, por meio de uma preta da casa do Sr. Bento, fez que ela soubesse de tudo; e esta mesma preta arranjou-lhe um pouco de cabelos da Sra. Tereza, um sapato, e outras cousas, e enquanto tia Laura fazia o feitiço em seu favor, ele fazia contra. É por isso que apareceu o Diabo dizendo a tia Laura que não matasse a menina; mas isto tinha ainda remédio, e três, ou nove dias depois, podia se abrandar o diabo, matava-se a menina, e a cousa era segura: mas José Pachola, que sabia disto, que fez? roubou a menina!
— Roubou a menina!?
— Sim, senhor, roubou-a.
— Quando?
— No Domingo de manhã.
— Mas como?
— Eu lhe conto.
Com efeito, Pedro Mandingueiro contou o que se havia passado entre ele e José Pachola, torcendo todavia a verdade em favor do seu improviso atual. Mudou também a cena do combate havido entre ele, e Pachola, dizendo que Pachola entrara por casa de Laura para roubar a menina, que medrosa desta cena, fugira.
Todo o homem covarde e malvado é vingativo. O Sr. Estevam, ouvindo isto, tornou-se furioso, e fitando em Pedro olhos cintilantes de cólera, disse:
— Mestre Pedro, tudo isto que você disse é verdade?
— Oh meu senhor! Pedro nunca mentiu! O seu escravo Bonifácio é muito amigo de Pachola: mande-o vosmecê que ele pergunte a Pachola, se no Domingo de manhã ele não teve uma briga comigo por causa de uma menina que fugiu para o mato. Basta que pergunte só isto.
— Está bom, mestre Pedro: eu darei uma lição no tal Pachola!
Apenas Pedro saiu, o Sr. Estevam chamou o Bonifácio. Era este Bonifácio um preto velho, de nação Monjolo, e de um caráter seco, taciturno, e sombrio. Falava só quando com ele falavam, quando não, estava calado. Logo que Bonifácio entrou, perguntou-lhe o Sr. Estevam:
— Conheces um preto de nome José Pachola?
— Conheço, sim, senhor.
— Sabes se ele é amigo do Pedro Mandingueiro?
— Não é, não, senhor.
— Eles brigaram alguma vez?
— Brigaram, sim senhor.
— Quando?
— Domingo.
— Porque brigaram?
— Por causa de uma menina.
— Quem tinha a menina?
— Mandingueiro.
— E que fez José Pachola?
— Quis furtá-la.
— E é por isso que brigaram?
— Sim, senhor.
— Está bom: vai-te embora.
Na tarde do mesmo dia, um caixeiro do Sr. Estevam contava, sobre uma mesa, na casa da senhora de José Pachola, um conto de réis para o comprar. A senhora respondeu tão somente que o José era sua cria, e que por isso, e por suas qualidades, não havia dinheiro que o pagasse. Desenganado o Sr. Estevam que não podia ser senhor do Pachola, concertou outro plano de vingança. Começou de espalhar, que o Pachola era um ladrão, que dava em todas as roças e poleiros, e que também furtava cavalos. Não só ele, como seus caixeiros, como Pedro Mandingueiro espalhavam por toda a parte deste labéu. José Pachola, com efeito, com licença de suas senhora, vendia e comprava aves, ovos, e também algum cavalo que comprava magro, engordava, e depois vendia.
Um mês depois, o Sr. Estevam chamou um seu escravo, que era ladrão como rato, esperto como um caixeiro de taberna, e tratante como um cigano, e tomando um seu pequira, e muito ordinário, tendo sabido que este seu escravo se dava com o Pachola, lhe disse:
— Toma este pequira, e vende-o ao Pachola. Hás de pedir vinte mil réis. Se ele não quiser dar esse dinheiro, diz-lhe que ele o venda a quem quiser, e te dê os vinte mil réis. Se tu fores preso, por dizerem que o cavalo é furtado, confessa a verdade; dize que me furtaste...
— Eh! meu senhor! e depois?
— Não tenhas medo que nada te acontece... mas olha, que se disseres que eu é que te dei o pequira para venderes, mato-te... toma sentido!
O escravo do Sr. Estevam desempenhou perfeitamente a sua comissão. Pachola ignorava que o Sr. Estevam o tinha querido comprar, que, se o soubesse, atenta a sua viveza, talvez não caísse. O cavalo valia muito mais que vinte mil réis; mas, José Pachola prevendo que podia vender o pequira por trinta, ou vinte e cinco mil réis, e ganhar os seus cinco ou dez mil réis, ofereceu-se para o vender, e esta oferta foi aceita. O vendedor, segundo as instruções de seu senhor, perguntou quando, e onde iria vender o cavalinho. José Pachola respondeu que na estalagem da Venda-Grande, e no Domingo seguinte.
Todavia, no dia marcado apresentou-se o Pachola com o pequira para vender, e já o tinha justo por trinta mil réis, quando apareceu o Sr. Estevam, que, pondo-lhe a mão à gola da jaqueta, perguntou-lhe:
— Ó negro, de onde tiraste este cavalo?
— Meu senhor (tornou o Pachola), este cavalo deram-me para vender.
— Quem?
— Um seu escravo.
— Ó ladrão... pois os meus escravos vendem cavalos! Não é debalde que se diz que tu és um grande ladrão!...
— Ladrão eu! eu ladrão!... Meu senhor não sabe com quem fala.
— Falo contigo (sic), ladrão!
Ao mesmo tempo apareceu Pedro Mandingueiro com o escrivão do juiz de paz. O Sr. Estevam, tendo dado, por sua conta, algumas bofetadas no Pachola, só o largou depois de bem amarrado; e assim amarrado, como um porco, foi metido em um tronco. O Sr. Estevam, seguido do escrivão, foi para a casa do juiz de paz dar a sua queixa, e justificar a sua propriedade.
XXI
OUTRA VINGANÇA
Bem dizia uma matrona, que conhecemos, senhora bem respeitável pelas suas qualidades. Esta senhora costumava sempre dizer, que não acreditava em juras de amantes e jogadores. Pelo lado dos amantes o Sr. Estevam nos prova a verdade do dito da tal matrona.
No capitulo decimo de nossa história viu o leitor o Sr. Estevam sair da casa de Laura trêmulo, medroso, e todo arrepiado, gritando: - “Basta... Misericórdia... misericórdia!” — e quem ouvisse isto, julgaria que o nosso homem ficaria daí por diante detestando a Sra. Tereza, para nunca mais querer saber dela. Ora, dizei, não vos parece assim? mas, qual! Vejamos.
Dois ou três dias antes da conversa que teve o Mandingueiro com o Sr. Estevam a respeito do Pachola, acertou o Sr. Estevam de encontrar-se por acaso com a Sra. Tereza. Aqueles cabelos negros prenderam ainda mais o amor do moço; aqueles olhos onde brilhava o fogo de amor inflamaram-lhe mais o coração apaixonado; aquele rosto belo e voluptuoso, aquele corpo engraçado, enfim, aquele todo, tão cheio de encantos, despertou um tropel de paixões no coração do Sr. Estevam. O diabo do teimoso, que se não podia resolver a esquecer-se da Sra. Tereza, com uns quebrados olhos, cheios de amor, disse-lhe:
— É possível que uma mulher tão bela tenha um coração tão mau!
— O Sr. Estevam (tornou-lhe a caprichosa moça) é preciso que se desengane... Quando eu não tiver pão onde estou, prefiro recebê-lo do homem mais ordinário do mundo... de um negro até... a pedi-lo de porta em porta, do que recebê-lo de sua mão!
Esta descomunal e audaciosa resposta foi seguida de um longo escarro, e de um rude virar de costas.
De passagem: esta resposta não é lá muito para louvar-se. A melhor e mais eloquente resposta que uma senhora grave deve dar a uma declaração, é o voltar costas ao atrevido, sem gestos, sem palavras, e sem rudeza: no caso de se tornar ele pertinaz e impertinente, como o Sr. Estevam, o melhor meio é evitá-lo, e evitá-lo à todo o custo; mas nós desculpamos uma moça, que timbrava de ser honesta (e o era), que aborrecia a um demônio, que a importunava sempre, acrescendo que sua educação não era lá mito fina e muito cuidada.
O Sr. Estevam ouvindo esta terrível resposta, fez: - Hã?!... — e depois de a contemplar em silêncio por algum tempo, disse:
— Deixa-te estar, malcriada... marquinha de Judas do inferno, que tu me pagarás... Juro por estas quatro barbas, que Deus me deu, que te hei quebrar a proa...
Dias depois, um caixeiro do Sr. Estevam, rapagão dos seus vinte e quatro anos, e bonito, achando melhor arrumação na cidade, deu parte ao patrão que se despedia.
— Quanto leva você? (perguntou-lhe o Sr. Estevam).
— Quanto levo, como? (perguntou também o caixeiro).
— Em dinheiro?
— Levarei o que tenho ganho, que vosmecê me deve, porque ainda não me pagou.
— Bem sei, filho; mas quanto?
— São quatrocentos e tantos mil réis.
— E não levas seiscentos e tantos, ou setecentos, porque não queres.
— Como?
— Eu te darei os duzentos, ou arredondarei os setecentos. Queres?
— Oh lá! se quero? O que é preciso fazer?
— Pouca cousa.
— Então vejamos.
— Hás-de estar pronto para partir, apenas to diga. Em uma noite, que eu determinar, tomarás duas pistolas carregadas, e as meterás nos bolsos. Irás comigo a uma casa, aí entrarás por uma janela, e depois de estares em uma alcova, te meterás debaixo de uma cama, ou atrás de uma porta. Algum tempo depois o dono da casa, eu e outros iremos ao quarto, e aí te encontrando, faremos grande barulho; supor-te-ão um ladrão: disso te ofenderei eu, e tu dirás que não és ladrão, que foste ali para falares à tua namorada. Se te perguntarem que é essa namorada, dize que é a Sra. D. Fulana...
— Mas quem é essa D. Fulana?
— Eu te direi depois. Findo isto, fugirás, abrindo caminho por entre nós com as tais pistolas, ou uma faca. Tendo saído da casa, esperar-me-ás no lugar que convencionarmos.
— Mas se eles me forem ao vulto?
— Não vês que eu lá estou para o que der e vier?
— Ó meu amo... isso a modo que não me parece agradável...
— Vae por minha conta e risco... Ao contrário não pago a tua soldada... Bem sabes que aqui ninguém pode comigo...
— Está bom, senhor, irei; mas, além da soldada.
— Devo-te quatrocentos e tantos mil réis, não?
— Sim, senhor.
— Pois arredondo-te os setecentos.
— Pois bem, senhor, está dito.
O Sr. Estevam dava-se um pouco com o Sr. Bento, e em casa deste juntavam-se algumas pessoas, em algumas noites, a jogarem o Trinta e Um, o Bacau, ou a Ronda. O Sr. Estevam sabendo disto procurou ser introduzido nestas reuniões, e foi: cumpre, porém, declarar que a admissão do Sr. Estevam nestas reuniões não foi por muito bom gosto dos parceiros, nem do Sr. Bento (que ignorava as pretensões do Sr. Estevam a respeito da Sra. Tereza); pois que todos sabiam que o homem não era lá muito boa peça... mas esta peste destas etiquetas, e formalidades, e asneiras da sociedade, além de tomarem à gente um tempo bem mal perdido, estragam o brio, e destroem uma boa parte dos bons sentimentos d’alma. Enfim, a civilidade fez aceitar o Sr. Estevam entre os parceiros, apesar deles e do dono da casa. O homem não falhava uma só noite de reunião; jogava um pouco mal, mas forte, e até com generosidade. Era um parceirão!
Escusado é dizer que a Sra. Tereza não aparecia enquanto lá estava o nosso homem. Poucos dias depois o Sr. Estevam tinha, com uma preta do Sr. Bento, o seguinte diálogo:
— Pois, Domingas, ela é tão má assim? (perguntou o Sr. Estevam).
— Eh! Seu Estevam!... aquela mulher é muito má (respondeu a preta).
— Mas por quê?
— Porque por qualquer cousa está batendo na gente.
— E tu, porque não te vês livre dela?
— Como? Se eu fugir hão de me apanhar.
— Põe a sujeita na rua.
— Como, sô Estevam?
— Queres tu pô-la na rua?
— Quem me dera...
— Pois deixa o negócio por minha conta.
— Mas como é que vosmecê faz isso?
— Escuta. O quarto dela não tem uma janela para a rua?
— Tem.
— Pois amanhã de noite deixa a janela aberta, e deixa o mais. Domingas, muito segredo... e depois conta comigo.
— Mas o que é que vosmecê quer fazer?
O Sr. Estevam, pretextando que seu fim era unicamente salvar Domingas das garras da Sra.
Tereza, comunicou-lhe o seu plano, que Domingas aprovou sem a menor contrariedade.
Este dialogo era em um pequeno pasto, fechado por um bardo de espinhos, com uma tranqueira que dava para a estrada. O pasto pertencia à casa do Sr. Estevam. Este, durante a sua conversa, estava junto de uma pequena mouta. Domingas, tendo aprovado o plano, retirou-se e com alguma lentidão. Um instante depois, um vulto, todo de preto, surge de dentro da mouta, como um fantasma da meia noite, e desaparece, como uma visão!
Do dialogo destes dois personagens o narrador só pôs debaixo dos olhos do leitor o que diz respeito a nossa história. O leitor compreendera bem que o tal dialogo já deveria vir mais detrás: quanto porém o que a Domingas disse acerca de ser a Sra. Tereza muito má; não era tão verdade como ela o afirmava. Com efeito, a moça batia, não poucas vezes, na Domingas, porque esta preta, além de ser o diabo em carne e osso, era por demais atrevida para a Sra. Tereza. Algumas travessuras do Sr. Bento tinham dado anso aos desaforos da preta: por causa dessas travessuras à preta não podia sofrer a Sra. Tereza, e eis o porquê a moça batia-lhe.
No outro dia tudo correu como o Sr. Estevam havia disposto. Em uma hora convencionada, e a um sinal do patife, Domingas chamou seu senhor a parte, e soprou-lhe no ouvido que no quarto da senhora estava um preto detrás da porta. O Sr. Bento crendo que fosse algum ladrão, disse aos parceiros:
— Que engraçada cousa! Diz-me a preta que no meu quarto está um preto detrás da porta!...
— Algum miserável ladrão (disse o Sr. Estevam).
— Sem dúvida; mas peço a dois dos senhores para irem por fora, e cortarem-lhe a passagem pela janela, caso ele queira por ali evadir-se. Eu, e os mais senhores, vamos ao quarto.
Todavia dois saíram, e foram postar-se junto à janela, tendo cada um bom cacete. O Sr.
Bento, tomando uma luz e um cacete, seguido pelos demais senhores, dirigiu-se para o quarto.
Quando o Sr. Bento se achou frente à frente com um moço bonito, e bem vestido, recuou um passo, dizendo:
— Não é um miserável ladrão!... é mais alguma cousa...
— Ladrão, não, senhor (disse o sujeito, que o leitor já sabem que é). É por uma fraqueza humana que o senhor me acha em sua casa... por ladrão não.
— Então que veio fazer aqui? (perguntou o dono da casa, trêmulo de raiva).
— Vim falar com uma pessoa.
— Que pessoa?
— Que se lhe importa?
— Não está mau desembaraço! Pois, meu amigo, se quiser sair são, e salvo, diga que pessoa é.
Nisto o Sr. Estevam, que tinha ficado na sala, adiantou-se para o quarto, dizendo:
— Eu conheço esta fala...
Chegando-se e vendo o seu caixeiro, disse com assombro:
— Que fazes aqui?
— Conhece-o? (perguntou o Sr. Bento).
— Sim: é um meu caixeiro.
O rapaz abaixou a cabeça a estas palavras. O Sr. Bento continuou:
— Pois, meu caro, se veio aqui por causa de alguma pessoa, diga o nome dessa pessoa: quando não, amarro-o como a um ladrão... Escolha.
— Fala, rapaz (disse o Sr. Estevam).
— Quem me mandou vir cá foi a senhora D. Tereza...
A Sra. Tereza, que estava na sala, ouvindo isto, precipitou-se no quarto bradando:
— Mentiroso... Impostor...
— Impostora és tu, mulher falsa, mulher pérfida...
Isto dizia o Sr. Bento, investindo, com os punhos fechados, e os dentes cerrados, contra a pobre moça, quase desmaiada por estas palavras. O caixeiro, aproveitando-se deste distúrbio, fugiu. O Sr. Estevam pondo-se entre o Sr. Bento, e a moça, que estava pasmada, interdita, e como louca, disse:
— Oh Sr. Bento! é indigno de um homem de bem pôr as suas mãos sobre uma fraca mulher.
— Sim; tem razão, Sr. Estevam... Saia de minha casa... saia, para nunca mais pisar nela.
Assim dizia o Sr. Bento, puxando brutalmente a moça pelo braço até a porta da rua, apesar destas palavras dela:
— Pelo amor de Deus... ouça-me por um instante...
O enfurecido ciumento, levando-a quase de rastos até a porta da rua, aí empurrou-a com força. O corpo da desgraçada tombou sobre o chão, e ele, batendo a porta sobre os batentes, trancou-a com desespero!
A Sra. Tereza ergueu-se. O Sr. Bento, e os outros ouviram estas palavras:
— Não me importa o enxotar-me de sua casa... Mas a mancha sobre a reputação... Meu Deus!...
Um soluço sufocou a voz da desgraçada.
O Sr. Estevam saiu. O Sr. Bento, que em verdade era um bom homem, mas que tinha o grande defeito de ser ciumento, fingindo-se muito senhor de si, o que era uma grande mentira, convidou os companheiros para continuarem o jogo, o que efetivamente fizeram, para distraírem o Sr. Bento.
Alguns instantes depois os jogadores ouviram, não longe, estes gritos:
— Socorro!... Aqui d’Lerei! Quem me socorre?!
— É a voz dela!!! (disse o Sr. Bento, erguendo-se).
— Socorramo-la... socorramo-la!
A casa do Sr. Bento era pouco distante da estrada; e não contigua a casa alguma. Os gritos tinham partido da estrada; para lá correram os que iam em socorro de quem o pedia. Chegando à estrada encaminharam-se para a cancela da casa mais vizinha, talvez para aí perguntarem, ou terem alguma notícia. Não muito distante da dita cancela um tiro é ouvido por eles: se contra eles foi disparado, um bom anjo desviou a bala, que não feriu a pessoa alguma. Alguns da companhia suspendem-se assustados: o Sr. Bento, porém, sem outra arma que um pau, avança intrepidamente. Os outros o imitam. Alguns gemidos abafados, como de pessoa que quer gritar e não pode, soam já perto deles! Ao mesmo tempo ouvem o estalo de uma espoleta de arma fulminante. Dois vultos fogem, e salvam se pelo mato a dentro. Eles chegam ao lugar de onde os dois vultos tem fugido, e encontram no chão um corpo, que lança fracos e sufocados gemidos; levantam esse corpo do chão, e veem que estava amarrado de pés e mãos, tendo na boca um lenço servindo de mordaça... Era a Sra. Tereza!!!
XXII
SUPLÍCIO DE JOSÉ PACHOLA
O Sr. Estevam teve a suma habilidade de intentar e prosseguir duas vinganças ao mesmo tempo: uma, contra José Pachola, e outra, contra a Sra. Tereza. O leitor viu, que, apesar da grosseria destas duas vinganças, elas tiveram o efeito desejado pelo infame.
Ora, visto que o nosso homem ocupava-se ao mesmo tempo de Pachola, e da Sra.
Tereza, bem é que o narrador leve estes dois acontecimentos a par e passo.
José Pachola ficou no tronco, e em seguro, todo o resto daquele dia, que era um domingo, e toda a noite: na segunda-feira, pela manhã, um meirinho do juiz de paz entrou no lugar onde estava ele preso, e lhe disse que o juiz de paz lhe mandava dar trezentos açoutes, cem em cada dia. José Pachola, com uma paciência verdadeiramente evangélica, com uma resignação sublime, apenas respondeu: - Paciência.
Nessa mesma tarde Pedro Mandingueiro, com ar triunfante e insultador, entrou na prisão de José, trazendo em uma mão um volumoso embrulho, e na outra três bacalhaus novos. Tendo assim entrado, com uma pachorra, que era um doloroso insulto, pousou no chão o seu embrulho, e os bacalhaus, abriu a boca com aborrecimento, espreguiçou-se todo, e no meio deste bocejo fez: - Ha... ha... ha...
José Pachola levantou a cabeça, e com olhos tranquilos contemplou-o por algum tempo. Pedro, sempre com a mesma pachorra, assentou-se no chão, tomou os três bacalhaus, e separou-os, pondo todos três equidistantes; feito isto, tomou o seu embrulho abriu-o, e tirou dele uma grande porção de pimenta, limões, e um papel que continha sal. Depois, separou este sal em três partes, e pôs cada uma junto de um dos bacalhaus; fez o mesmo com as pimentas, e com os limões. Tendo, pois, reunido cada um dos bacalhaus a uma porção de sal, pimenta, e limões, começou a falar com sigo (sic) mesmo, dizendo:
— Bem. Dezoito limões, estas pimentas, este sal, e este bacalhau, para a primeira surra, que é amanhã. Estes outros dezoito limões, este sal, estas pimentas, e este bacalhau, para a segunda surra; e estes outros dezoito limões, sal, pimentas e bacalhau para a terceira. Bem. Ora, pois, estes limões hão de ser espremidos numa panela, estas pimentas bem machucadinhas, e este molhinho há-de ser bem temperado com sal. Lá perto do Pau já tem areia. Põe-se a panela do molho (que há-de temperar a carne do Pachola), perto do Pau, e toca: de dez em dez açoutes molha-se o bacalhau na areia... Ora, falta-me ver se estes bacalhaus estão bons.
Dizendo isto, o insultador começou a puxar pelos bacalhaus, e a experimentá-los, mirando bem cada perna por sua vez.
Sendo José Pachola um preto de honra, cheio de estímulos, e de brio, tendo de mais a mais orgulho de ser verdadeiro e leal, não tendo jamais em sua vida recebido um insulto, ou uma afronta; bem pode o leitor ajuizar por quais tormentos não passaria aquele coração neste momento tão pesado de afrontas, tão carregado de insultos!
Com efeito, Pedro Mandingueiro, sabendo que José Pachola era um preto de brio, e que não sofria impunemente um desacato, havia calculado a dose de suas afrontas; havia de tal sorte pesado os quilates de seus insultos, de modo que levassem à aquele coração o envenenado amargor de todos os suplícios do inferno, para ele com a mais barbara, e diabólica pachorra, gozar com um prazer desprezador e satânico, instante por instante, todos os efeitos deste suplício de Tântalo! Era preciso a coragem de Sócrates para um homem de brio beber todo o cálix de amarguras, e não morrer depois de exaurido!
Pedro, depois de experimentar as pernas dos bacalhaus, fitou os olhos em José Pachola, que mudo e quedo o tinha ouvido com admirável sangue frio, e invejável tranquilidade: e com insultante piedade murmurou um ai, dizendo:
— Ai Jesus! José Pachola, meu filho, vós já sabeis o que há?
— Não, mestre Pedro. Então o que há?
— Pois vós não sabeis?
— Não, senhor...
— Ora vejam só! Pois, meu filho, vós não sabeis que ides ser surrado amanhã?
— Eu!?
— Sim... E de que vos admirais?
— Mas, surrado pelo quê?
— Pois vós não sabeis?
— Eu, não!... Mas o que é que eu fiz?
— Ora, agora estais-vos fazendo de inocente! — Pois não vos lembrais daquele cavalinho que furtastes?
— Ah!... não furtei: não, mestre Pedro...
— Eu cá, meu filho, se furtastes, ou não, não tenho nada com isso. O Sr. juiz de paz vos manda dar trezentos açoutes em três dias, cem em cada um... e me escolheu para vos surrar. O Sr. Estevam mandou logo à cidade buscar estes bacalhaus... Olhai, são novinhos em folha... Eu colhi quantas pimentas e limões tinha na minha roça; comprei este sal, e amanhã... tende paciência, meu filho. Ora, o juiz de paz vos manda dar trezentos; mas, eu, como sou vosso amigo... vós bem sabeis... tenho tenção de vos dar seiscentos, isto é, duzentos por cada vez. Tendes ouvido?
— Tenho, mestre Pedro, mas se o Sr. juiz de paz manda-me dar só trezentos açoutes, como é que vosmecê há-de dar seiscentos?
— Não, meu filho, lá por isso, não. Eu tenho ouvido dizer que nesta vossa terra, que vos viu nascer, e onde vós sois escravo, quem tem dinheiro faz o que quer: é por isso que vós levareis seiscentos em vez de trezentos. Olhai, o oficial de Justiça que há-de contar os açoutes já está com as mãos untadas, e em vez de contar um por um, conta dois por um; quando ele disser: “Cem... basta” já vos estais com duzentos, que no fim de três dias fazem seiscentos, não é? Um dia duzentos, outro dia duzentos, são quatrocentos; o outro dia duzentos, são seiscentos justinhos. A conta não mente... Sabeis mais, meu filho: eu já tenho ensaiado. Pelas minhas contas, depois dos seiscentos, vós não haveis de viver muitos dias!
— Mestre Pedro, eu não posso ser castigado amanhã.
— Porque, meu filho?
— Porque estou doente.
— Doente de quê?
— De reumatismo. Tenho este joelho muito inchado, e tão cheio de dores, que não me posso ter em pé, nem um instante.
— Não; lá por isso, não. Vós ireis carregado por dois negros, e depois nos lá no Pau vos amarraremos.
— Está bom, mestre Pedro... talvez não seja assim... eu ainda tenho alguém por mim.
— Quem, meu filho? quem?
— Deus, Nossa Senhora, e a minha inocência.
— A vossa inocência, meu filho, fugiu no cavalinho do Sr. Estevam. Deus importa-se tanto convosco, como a primeira camisa que vestiu! Nossa Senhora nunca fez nada do que eu lhe pedi, e por isso não creio nela... mas rezai; vamos a ver se ela vem vos soltar desse tronco.
— Mas, mestre Pedro, vosmecê tem ido com bem bons aumentos!
— Então como?
— Principiou livre na sua terra, que lhe viu nascer; veio escravo para a minha; de escravo passou a ser forro; de forro a ladrão; de ladrão a feiticeiro; de feiticeiro a mentiroso, impostor e embusteiro, a surrador; e pelas suas tenções de surrador à carrasco, ou assassino... Eu lhe dou meus parabéns. Deveras, mestre Pedro.
— Ah, negrinho!... tu se hás de ter humilhar, tu ainda grimpas comigo?! Deixa estar, que eu amanhã te conversarei!
— Sim, senhor... agora, mestre Pedro, você é homem porque eu estou neste tronco...
— E dele para cova, meu filho. Até amanhã.
José Pachola seguiu com a vista o seu insultante inimigo, e tendo-o visto sair, pôs as mãos, e exclamou:
— Meu Deus! só em Vós me fio, porque estou inocente!
Pouco depois do cair da noite um escravo do juiz de paz trouxe uma pequena porção de carne seca assada, e um prato de pirão para José: este recebeu, e pediu ao portador para comprar-lhe uma vela de sebo, o portador comprou-lha e a trouxe. José Pachola estando só, devorou a sua ceia.
Tinha este preto, com efeito, um joelho algum tanto inchado, e assim a perna. Logo que amanheceu o dia, José Pachola começou a esfregar o sebo da vela na sua inchação. Pelas oito horas da manhã José Pachola tinha gasto toda a sua vela nestas esfregações; mas ele esfregava, e limpava, de modo que a perna ficasse lustrosa, e não aparecesse a menor partícula de sebo.
Entre as nove, e dez horas da manhã entraram o carcereiro do preso, adiante, o Sr. Estevam, com o ridículo ar de um homem pequeno, que baixa e degradantemente se vinga, e à custa de indignidades e vilezas triunfa em sua vingança! Depois dele, dois meirinhos do juiz de paz, cujas caras, como quase as de todos os meirinhos, revelavam a crápula, a devassidão, a mentira, a libertinagem, todos os desaforos de uma vida desregrada e imoral, e a degradação a mais abjeta e desprezível do gênero humano; trazendo sobre a fronte a condenação proferida pelos homens, e a reprovação firmada por Deus, e sobre os lábios o sorriso de Satã sobre as dores dos réprobos! Atrás, fechando este pequeno préstito, Pedro Mandingueiro com o mesmo aparato e orgulho da véspera!
José Pachola, tendo a calça regaçada, ostentava a lustrosa inchação da perna, que ele pretendia estar doente. À entrada dos quatro, grandes eram os gemidos, que ele soltava.
— O que tens, negro? perguntou-lhe ativamente o bom do Sr. Estevam.
— Reumatismo, meu senhor!... Olhe, como tenho esta perna!
— Coitado!... Sim... estou vendo... Está bem inchada!...
— Muito, meu senhor!... Não posso com dores...
— Coitado!... Ora, vejamos...
Dizendo isto, o Sr. Estevam firmou um pé sobre o joelho inchado do Pachola, levantou o outro, como quem fazia um passo de dança, firmado sempre no joelho de José Pachola... O Sr. Estevam acompanhou esta horrível ação com uma espécie de modulação:
— La... ra... la...
José Pachola estorcendo-se todo, lançou um doloroso grito:
— Ai Jesus, que morro!...
Os dois meirinhos, e Pedro Mandingueiro, batendo palmas, soltaram uma gargalhada infernal. Cumpre advertir que os meirinhos nem-uma indisposição tinham com o Pachola; mas esta gente ri de tudo: ri quando vê rir, e ri ainda quando vê chorar. São os cínicos da sociedade moderna!
O Sr. Estevam, saindo de cima do joelho do Pachola, disse:
— Então, negro, não te podes levantar?
— Não posso, meu senhor, respondeu o Pachola.
— Pois vamos ver. Sr. Antônio João (continuou o nosso homem, voltando-se para um dos meirinhos) abra o tronco.
O Sr. Antônio João, atirando para traz a ponta de sua espada, que, metida numa velha e suja bainha, pendia-lhe de um tosco cinturão de couro cru, ajoelhou-se, e abriu o tronco.
Apenas José Pachola sentiu o pé solto, fez três movimentos tão rápidos, que é impossível descrevê-los! O pensamento mal pode acompanhá-los! Foi o abater-se duma ave de rapina, o empolgar a presa, e o elevar-se aos ares! José Pachola curvou-se, arrebatou a espada ao meirinho, e saltou no meio da casa armado para acometer, e defender-se!
Os quatro recuaram tímidos e medrosos; mas, Mandingueiro, recobrando-se do primeiro ímpeto, disse:
— Ah sô Chico Inácio, de que diabo lhe serve essa espada, homem?
Isto dizia para o outro meirinho, que se escoava por detrás dos três; e como assim tivesse falado, quis arrancar a espada ao Sr. Chico Inácio, que procurando a porta, rosnava:
— Quem as armou, que as desarme!
José Pachola, vendo o Mandingueiro querer armar-se, investiu com ele, e desandando-lhe um golpe, fez voar-lhe ao ar uma orelha; a espada desceu-lhe ao braço, onde abriu um tremendo golpe. Pedro caiu gritando:
— Acudam-me, que morro...
— Boa espada! disse o Pachola.
Os dois meirinhos, temendo algum engano, safaram-se. O Sr. Estevam fazia o mesmo, quando o Pachola lhe disse:
— Eu não o quero matar agora, para que nos encontremos com mais vagar. — José Pachola disse e saiu.
XXIII
REABILITAÇÃO
Lembrar-se-á o leitor que no fim do capitulo XXI disse o narrador que o Sr. Bento, e seus companheiros, tirando o lenço, que servia de mordaça, e desatando a pessoa que pedira socorro, acharam-se cara à cara com a Sra. Tereza! Os espectadores desta cena, os quais eram ao mesmo tempo atores, não se espantaram, pois que o Sr. Bento havia dito que a voz era dela.
A Sra. Tereza estava desmaiada, e o Sr. Bento e os seus amigos a tomaram em braços e levaram-na para sua casa. Bem depressa a moça voltou à si, e seus olhos espantados, e seus gestos, exprimiram assaz a admiração que lhe causava o achar-se outra vez, e sem saber como, em casa de Sr. Bento. A pobre moça tinha os cabelos espalhados, e em desordem sobre seus ombros; seus olhos estavam espantados, e alguns arranhões de seu rosto, seus braços, e suas mãos demonstravam que não foi sem resistência que fora amarrada, e que se lhe havia imposto a mordaça. Diante desta imagem do sofrimento, e do insulto, o Sr. Bento envergonhou-se de sua cólera, e com voz compassiva, e afetuosa, perguntou-lhe:
— Que é isto, Sra. Tereza?
A Sra. Tereza, encarando-o com um ar em que se revelava o ressentimento e ao mesmo tempo a compaixão, disse-lhe:
— Que lhe importa, senhor? Des de que fui tão vergonhosamente expelida de sua casa nada mais há de comum entre nós.
— Mas, à vista de uma acusação formal... de um homem introduzido em minha casa...
— Maldito seja quem o introduziu.
— Em todo o caso...
— Em todo o caso é que, vítima da prepotência de meus pais, fui levada quase de rastos ao altar para unir-me a um homem a quem não tinha amado, não amava, e nunca amei; porque o homem a quem havia amado, de dos meus quatorze (sic) anos, havia sido o senhor. Casada com um homem, ao qual não amava, e ao qual tinha motivos de aborrecer; o homem a quem sempre eu havia amado, o Sr. Bento, julgou achar-me fraca neste amor, e mais fraca no aborrecimento que eu votava a meu marido; e não obstante amar o Sr. Bento, as caricias, oferecimentos, conselhos, pedidos, rogos, tudo quanto o Sr. Bento empregou para seduzir-me, para desviar-me de minhas obrigações, foram debalde! O aborrecimento ao meu marido, imposto pelo interesse, achou-me firme em meus deveres, a paixão, e as sugestões do meu primeiro amante não me puderam abalar! Isto, senhor, valia alguma cousa... Só ao depois de viúva é que, fiel à minha primeira afeição, lancei-me nos braços do Sr. Bento, com a minha pequena fortuna, que bem me chegava. Não foi a necessidade que me impeliu, foi o amor... e a mulher que não foi falsa a um marido não amado, sê-lo-ia a um amante tão querido, e tão desejado sempre?... Sr. Bento, sou de mais nesta casa... Adeus!...
— Não... não... Ambos nós fomos vítimas de uma grande perfídia, é preciso que nos vinguemos.
— Pois vingue-se... Que tenho eu com isso?
— É preciso que a senhora me diga quanto sabe a respeito, para orientar-me.
— Um homem vil, que introduziu-se em sua casa, e em quem vosmecê acreditou, deve merecer-lhe mais conceito do que eu: pergunte-lhe.
Um respeitável ancião, que ali também se achava, tomando a palavra, disse:
— Minha senhora, perdoe-me se me intrometo em um assumpto que me é estranho; mas a minha idade dá-me esse direito. Perdoe-me a senhora: vejo bem que o Sr. Bento foi precipitado; mas vejo também que fez o que faria qualquer homem de honra em tal posição. Um homem, bem parecido, e decentemente trajado aparece em sua casa; este homem, diante de algumas pessoas, declara que aqui veio por sua causa: ainda que isto fosse verdade a senhora não confirmaria. O Sr. Bento irrita-se, é natural... Agora, que o negócio toma outra face, a senhora D. Tereza deve declarar o que houve antes do que agora aconteceu. Esta declaração serve tanto para orientar o Sr. Bento, como para sua justificação. É pela sua honra, minha senhora, que assim deve proceder.
— Pois bem: se a minha honra o exige, direi alguma cousa.
Com efeito, a moça contou aos circunstantes tudo quanto sabia acerca das diligencias, que o Sr. Estevam por ela havia feito. O leitor sabe de tudo isto. A Sra. Tereza concluiu assim:
— Eis tudo quanto sei deste homem. Agora, como aqui entrou o seu caixeiro, por onde entrou, e quem o introduziu, não sei...
— Sei eu...
A porta tinha ficado aberta, e ao mesmo tempo que soaram estas palavras, as pessoas que se achavam em roda da Sra. Tereza viram no meio da sala um preto decente e respeitoso. O preto continuou:
— Peço perdão a meus senhores de entrar sem pedir licença, e de vir meter-me nesta conversa. Se meus senhores quiserem, direi tudo quanto sei a este respeito; mas olhem, meus senhores, que eu sei tudo.
— Pois sim, rapaz (disse o Sr. Bento), dize o que sabes.
Sem mais exórdio, nem preâmbulo, nem cerimônia, começou o preto a contar todas as patifarias do Sr. Estevam desde que viu a Sra. Tereza. Contou tudo acerca das velhacadas de Laura, e de Pedro Mandingueiro, do assassinato de Augusto, do roubo de Maria, etc. A narração do preto era animada, viva, e cheia de entusiasmo. O leitor adivinha que um tal preto, tão bem enfronhado nesta horrível meada, só podia ser José Pachola. Assim era; e ele fez a fiel narrativa de todos os acontecimentos, até a sua prisão, sem omitir os insultos do Mandingueiro e do Sr. Estevam. Então prosseguiu destarte.
— A perna e joelho, que eu tinha inchados, não era de reumatismo; mas eu pensei que fingindo doente, a ponto de me não poder pôr em pé, eles me acreditariam, e, abrindo o tronco, me mandriam erguer-me a ver se eu podia andar; e era o que eu queria; porque eles poderiam matar-me, mas surrar-me, não... se eu estivesse culpado, sim; mas estando inocente... qual!... Com efeito, o meu fingido reumatismo me deu a liberdade, e logo que escapei, fui à casa do Sr. Estevam, agarrei o moleque, que me tinha dado o cavalo para vender, e obriguei-o a me confessar a verdade. O moleque confessou-me que seu senhor é que lhe tinha dado o cavalo para me dar para eu vender!... Vejam, meus senhores, quem é que se pode livrar de uma destas?! Desde então pus-me no socairo do Sr. Estevam... Todas as noites eu lhe rondava a casa, e sempre rente com ele, nunca o perdia de vista... Mas meu senhor não tem uma escrava chamada Domingas? (perguntou José Pachola ao Sr. Bento).
— Sim, tenho (respondeu este).
— Pois chame-a, meu senhor.
O Sr. Bento fez chamar a Domingas; mas debalde, que a esperta não estava mais em casa.
— Não importa (disse o Sr. Bento). Ela aparecerá. Continua a tua história, meu filho...
— É que ela (disse o Pachola) é que introduziu aqui o caixeiro do Sr. Estevam...
— A Domingas?! (exclamaram a um tempo e Sr. Bento e a Sra. Tereza).
— Sim, minha senhora, a Domingas; e é por isso que ela fugiu.
— Mas, como?
José Pachola referiu miudamente tudo o mais que sabia sobre as entrevistas do Sr. Estevam, e da Domingas, revelando tudo quanto nelas havia ouvido. O leitor pode bem figurar-se o pasmo, que imprimiriam no auditório as revelações do Pachola, revelações, que a fuga da Domingas tinha tornado infalíveis.
O vulto vestido de preto, que surgira de uma mouta, como um fantasma da meia noite, que desaparecera como uma visão, e que parece ter assistido àquela entrevista do Sr. Estevam, e Domingas, que o narrador apresentou ao leitor, era José Pachola!
Não custou pouco aos amigos do Sr. Bento aplacarem os ressentimentos da Sra. Tereza. No outro dia o juiz de paz recebeu uma denúncia dos crimes do Sr. Estevam. Ele sabia que
Augusto, que o não conhecia pessoalmente, seria capaz de persegui-lo até nos infernos, por causa do roubo de sua filha; assim, nesse dia o Sr. Estevam anoiteceu em Irajá, e amanheceu... Deus sabe onde.
José Pachola, criminoso, não só pela fuga das mãos dos meirinhos, e resistência armada, mas também pelo ferimento do Mandingueiro, esteve oculto algum tempo, até que sua senhora achou ocasião de o remeter para as bandas de Minas, para casa de um seu irmão, que fora criado com o José Pachola.
Laura foi também perseguida pela justiça, e para salvar-se, fugiu, e tal sumiço levou, que nunca mais dela se soube.
Pedro Mandingueiro morreu do ferimento, que lhe fez o Pachola, mês e meio depois desse acontecimento.
Quinze dias depois do desaparecimento do Sr. Estevam, o Vigário de Irajá, na Igreja de N. S. da Apresentação, abençoava um novo casal! Destarte o honrado Sr. Bento reparava a injuria feita à constante e formosa Sra. D. Tereza!
XXIV
NOVE ANOS DEPOIS
Olhai para o mostrador de um relógio; contemplai com alguma atenção um pequeno ponteiro a que chamamos — ponteiro dos segundos -, e admirai a rapideza com que esse ponteiro salta de um a outro ponto sessenta vezes, e percorre um círculo, cuja medida circular forma um minuto, uma das grandes divisões arbitrarias em que o homem calculado quis dividir o tempo. Pois bem, sessenta vezes percorrido esse círculo, é uma hora; porque, uma vez percorrido ele, é um minuto; vinte e quatro, porém, dessas nihilidades do tempo, ou moléculas (venia ao neologismo, ou antes maneira menos vulgar de exprimir-me) constituem o que chamamos — um dia; trezentos e sessenta e cinco destes, ou sessenta e seis, fazem um ano, os quais em número de cem completam século! e este período, que nos parece tão grande, é menos, muito menos para o tempo, que uma gota d’água para o oceano! Vós não acreditais na rapideza do tempo, porque não calculares nela; não importa; fitai os olhos sobre o mostrador de um relógio; contemplai a velocidade com que se volve sobre seu eixo o ponteiro dos segundos, e meditando um pouco nessa velocidade, ver-vos-eis obrigados a pasmar da carreira do tempo! e, se não, perguntai ao tempo o que fez dos mais belos dez, ou quinze anos de vossa existência! O tempo não vos saberá dizer; apelai para vossas lembranças; fatigai vossa memória; chamai as vossas recordações, e procurai saber o que fizestes dos ossos vinte aos trinta, ou ainda trinta e cinco anos!... Era um belo dia, tínheis os vossos vinte anos, e vos deitastes a dormir; dormistes, e doce foi o vosso sono! doce, como o ciciar da aragem à entrada de uma deliciosa noite! doce, como o som da frauta tangida na solidão de alta noite! doce, como palavras de amor em mavioso colóquio proferidas, e esperançosamente escutadas! Dormistes, e sonhastes! Em sonhos gozastes o perfume de escolhidas flores! os sons de agradável melodia, os êxtases, de sentimental poesia, e os arroubos de apaixonados colóquios; porque vós sonhastes as delícias da amizade, e os encantos do amor! Era, pois, um belo dia, e dormistes, e sonhastes; dormistes um doce, mas ligeiro sono; sonhastes felizes, mas lúbricos sonhos! E os sonos foram dormidos e sonhados em um momento. Tínheis vinte anos quando assim começastes a dormir e a sonhar! dormistes e sonhastes um instante... acordastes-vos... tínheis trinta, ou trinta e cinco anos!
Oh! eis um tempo que vós quereríeis que nunca passasse, ou ao menos que passasse tão vagaroso como um século! e entretanto, um século passa bem depressa! E assim se passaram dez ou quinze anos, sem que vós o sentísseis, sem que vos apercebêsseis de sua rápida passagem, tão fugitiva como a passagem do aroma das flores; porque essa idade é o aroma da flor da existência! E se ainda o duvidais, vede: não foi ontem que Maria foi roubada a seu pai? assim o parece... e no entanto, já lá vão nove anos bem contados, contados dia por dia!
O narrador sabe, e o sabe perfeitamente, que todos os corações sensíveis se tem interessado por Maria. E como não? aos sete anos de sua idade, e já tão desgraçada, é quase impossível não reunir em seu favor todas as simpatias dos bons corações. Vós vistes esta criatura desgraçada, jovem como a flor, inocente como a rola, pura como o orvalho da manhã, formosa como um anjo, e bela como um sorriso de Deus, ainda na aurora de sua existência já tão acabrunhada de tantos e tamanhos trabalhos! Repassai pela imaginação todos os trabalhos sofridos por esta pobre criaturinha, desde que viu seu pai assassinado, até ser levada por alguns mineiros; repassai-os, e dizei se Maria não tinha sido assaz desgraçada, e se não é bem digna de toda a compaixão! Pois bem: Maria merece até nossas lágrimas; o que, não obstante, é preciso abandoná-la a seus destinos.
Também mostrámos por ela uma tão indizível solicitude, porque sua idade, seu estado de inocência o exigiam; hoje Maria conta os seus dezesseis anos; e, portanto, bem é que tome conta de si, e que por si mesma se dirija no caminho da vida. Assim, caros leitores, levai a bem, e permiti até que o narrador deixe Maria, e que de outras cousas se ocupe.
É verdade que vos julgais com direito de perguntar-me: - Onde esteve Maria nestes nove anos? o que fez? como foi educada? como viveu, etc.? — mas também é verdade que o narrador não o sabe, e assim, ainda que quisesse responder, o não poderia. Não nos desconsolemos: o tempo aclarar-nos-á estes mistérios. O narrador pensa que eles não serão tão profundos, que não possam ser perscrutados e conhecidos.
Agora o narrador convida o leitor a entrar com ele em uma casa numa das ruas da Cidade- Nova. Eu não indico a rua, nem o número da casa, porque sendo este facto contemporâneo, temo ofender algum melindre, ou alguma destas irascíveis susceptibilidades.
Entremos, pois, esta casa, cujo arranjo manifesta que pobre não é quem a habita. Figurai que estais em uma magnifica sala, cujas paredes são asseadamente forradas de papel adamascado, de uma bela cor de purpura, cujo fundo é elegantemente recamado de uma ramagem de outro caprichosamente desenhada. Alguns quadros sumptuosamente moldurados de ouro, representando a entrada de Cortês do México, cujo desenho, e colorido, nada deixam que desejar; por entrançados cordões de purpura, terminados por borlas de ouro, estavam pendentes do gessado teto, que não tinha de que envergonhar-se pela brancura do alabastro. Dois grandes espelhos, assim moldurados, também assim pendiam. Uma elegante, e bem acabada mobília da jacarandá, parecia ter naquele momento saído das mãos do lustrador, de tão brilhante que então se ostentava! O pavimento, forrado de fina esteira, tornava-se digno da purpura das paredes, da brancura do teto, e do gosto da mobília. Sobre o mármore da mesa redonda, que no meio da sala avultava, em um magnifico lampião, entretida por azeite de oliveiras, ondulava majestosa uma grande chama, cuja viva luz caindo em ondas sobre o pavimento, inundava todo o espaço da sala.
Um homem, ainda moço, que deveria ter sido formoso, e até belo; de faces rugosas, pálido, e quase completamente coberto de cãs; de aberta e agradável fisionomia; mas que revelava que grandes padecimentos a tinham prematuramente envelhecido; estava assentado junto à mesa redonda, sobre cujo branco mármore descansavam seus cotovelos, tendo o rosto apoiado sobre o côncavo das duas mãos, em cujas palmas se reclinavam suas faces. Sinais de grandes sofrimentos pareciam deslumbrar um pouco a luz de seus grandes olhos, que deveriam ter sido brilhantes, e amorosos no tempo de suas felicidades e de seus amores; mas o sombrio da paciência e da resignação dava a seu rosto uma majestade quase celeste. Diante desta imagem do sofrimento, e da resignação, estava aberto um livro, cuja forma era um quarto grande, dividido em duas colunas. O homem, com os olhos embebidos em seus caracteres, sem pestanejar, sem mover seus lábios, parecia absorto, ou em profundos pensamentos, ou nas ideias que lia sobre a página direita do livro, e primeira coluna. Pelos diversos e desiguais comprimentos das linhas, que ele tinha diante de si, podia dizer-se, sem medo de errar, que estas linhas eram versos. Em cima, como título distintivo desses versos, havia estas palavras em três pequenas linhas:
GETHSEMANI OU
LA MORT DE JULIA
Gethsemani!... Compreendeis vós todas as relações desta palavra Gethsemani? Gethsemani!... é um lugar onde os anjos testemunharam sublimes padecimentos, augustas dores, e solenes angustias, porque eram os supremos sofrimentos de um Deus! Foi ali onde Jesus, o filho de Maria, Jesus, o filho de Deus, Jesus, o Salvador, na véspera de seu passamento, sentiu todos os tormentos de sua paixão, e todas as amarguras de sua morte! Foi ali onde o homem Deus coberto de sangue, que transpiravam seus divinos poros, em forma de bagas de suor, pedira a seu Eterno Pai que removesse dele, se era possível, o cálix da amargura! Foi ali onde com peso de morte pesou em sua divina cabeça o gênero humano inteiro, porque ele sabia que a mor parte de seu sangue seria desperdiçado! Sabia que tantas lições de amor, desinteresse e caridade; tanta e tão sublime abnegação, tanta e tão suprema dedicação; tantos e tão solenes exemplos de humildade, fraternidade e clemencia, tudo para felicidade dos homens; tanto, e tão precioso sangue, que se ia derramar até a última gota; tudo seria olvidado, tudo perdido, e tudo desprezado, porque os homens, por excesso de um diabólico orgulho, amariam a sua desgraça, para não serem agradecidos aos benefícios de seu Salvador!
É pois o Gethsemani um lugar de angustias. Afora os malvados, afora os patifes, os demais homens, tem na vida o seu Gethsemani; e mais, ou menos longo, mais de uma vez as almas boas sofrem no seu Gethsemani. O homem que tinha diante de se esta poesia com este título, estava também no seu, e por demais longo lhe era ele.
Enxugando uma vez por outra as lágrimas que vagarosas de seus olhos pendiam, o homem, que se havia feito velho antes do tempo, pareceu ler as duas colunas cheias de versos, e voltou a página. O interesse, e até a dedicação com que ele tinha os olhos presos nestas letras, faria acreditar que estes versos eram um doloroso punhal, que rasgava seu peito, e fazia sangrar a sua dolorosa chaga! Gosta disto o coração! Com efeito, quando uma dor destas dores imensas, uma dor augusta, uma dor santa, despedaça uma alma sensível, essa alma assim atormentada, gosta de imagens de luto, que a atormentem, e que tornem mais vivos os seus padecimentos! Não é a horrível ideia de uma consolação nos males alheios, não: essa ideia seria a profanação de uma dor santa. É que uma alma enferma conhece bem os medicamentos para sua enfermidade. Como aquele que sufocado no gelo volta a vida por meio de fricções do mesmo gelo; como aquele que perdera a razão no meio de uma espantosa cena de desolação e de luto, para fazê-lo recobrar a razão, fazem a sua vista representar a mesma cena; assim, uma alma atormentada de uma extraordinária dor gosta, e ama lutuosas imagens onde aparecem os traços de seus padecimentos, para pouco a pouco se ir curando de seus imensos males!
O homem, pois, que lia, tendo voltado a página, exclamou com uma voz triste, pesada, e ofegante:
— Sim... também eu não tinha senão ela!... — Depois de uma breve pausa, ele leu alto:
“Et je sentis ainsi, dans une heure éternelle,[5]
Passer des mers d’angoisse et des siècles d’horreur,
Et la douleur combla la place où fut mon coeur,
Et je dis à mon Dieu: « Mon Dieu! je n’avais qu’elle!
Tous mes amours s’étaient noyés dans cet amour ;
Elle avait remplacé ceux que la mort retranche,
C’etait l’unique fruit demeuré sur la branche
Après les vents d’un mauvais jour.
C’était le seul anneau de ma chaîne brisée,
Le seul coin pur et bleu dans tout mon horizon ;
Pour que son nom sonnât plus doux dans la maison,
D’un nom mélodieux nous l’avions baptisée.
C’était mon univers, mon mouvement, mon bruit,
La voix qui m’enchantait dans toutes mes demeures,
Le charme ou le souci de mes yeux, de mes heures,
Mon matin, mon soir et ma nuit. »
O homem que havia envelhecido antes do tempo não pôde continuar, porque sua voz perdeu-se entre dolorosos soluços: sua cabeça, pesada de sofrimentos, caiu sobre a mesa, e seu pranto continuou a correr.
XXV
OS AMIGOS DA INFÂNCIA
O homem moço ainda nos anos, e velho já nos trabalhos, e que o leitor por sem dúvida terá conhecido (e se não conhecem, não é culpa nossa), estava na postura em que o deixamos no capitulo passado, havia cinco minutos, quando alguém com alguma indiscrição, ou talvez familiaridade, bateu palmas no topo da escada. Um escravo acudiu a ver quem batia. O dono da casa levantou languidamente sua pesada fronte, e ouviu esta pergunta:
— Não mora aqui o Sr. Augusto?
— Mora, sim senhor (respondeu o escravo).
— Está ele em casa?
— Esta, sim senhor.
— Pois dize-lhe que alguém o procura.
O escravo veio anunciar isto ao dono da casa, que em quanto se passava o pequeno diálogo entre seu escravo, e quem o procurava, apenas murmurou duas vezes, e muito baixo:
— Eu conheço esta fala?... Esta fala não me é estranha!...
O escravo participou a seu senhor que alguém o procurava, e o senhor disse-lhe que mandasse entrar. Com efeito, um homem moço, bem parecido, de elegante figura, trazendo na mão esquerda um chapéu como os que usam os nossos tropeiros de serra acima, calçado de grandes botas de montar, coberto com um largo ponche, e tendo pendente do braço direito um grande azorrague, entrou a sala, e apenas viu o dono da casa, correu para ele com os braços abertos, exclamando:
— Augusto!!!
— Floriano!!!
Assim exclamou também Augusto, e caíram nos braços um do outro. Depois que estes dois amigos, neste terno abraço deram toda a expansão ao jubilo de suas almas. Augusto desprendendo-se dos braços, que o apertavam, recuou alguns passos, e fitando o amigo, disse:
— Mas tu de luto! Que luto é esse?
— Trago-o por minha madrinha...
— Que madrinha?
— Tua tia, a Sra. D. Cândida...
— É morta minha tia?!
— Sim, é morta.
— É morta!... Foi tão virtuosa... tão boa... O meu coração não tem uma lágrima para dar à sua memória.
— Sim, sempre foi boa; e nem nos cabe dizer outra cousa.
— Tu, meu amigo, a serviste sempre, e com dedicação.
— O que dei por bem empregado...
— Deixou-te ela alguma cousa?
— Eu nada ambicionava; porém ela deixou-me quanto podia.
— Dou-te os parabéns.
— E eu também a ti.
— A mim?!... E por quê?
— Porque ficaste seu primeiro testamenteiro e universal herdeiro.
— Eu?!
— Sim; tu mesmo.
— E a ti? que te deixou ela?
— A sua terça, que em muito deve avultar; e recomenda no seu testamento que uma bela situação com meia légua de testada, e uma de fundos, com vinte e tantos escravos que tem, e todos os seus utensis, entrem na terça.
— Ela devia fazer-te seu universal herdeiro... nem era muito para quem tanto a serviu...
— Ela fez o que era de seu dever; porque se chegou a possuir tamanha fortuna, a teu pai a devia. Não fez mais que pagar no filho as virtudes do pai.
— E para que me serve essa fortuna?
— Para quê?
— Ela de nada me serve. Quando eu tinha a minha querida filha, bem que não cobiçasse amontoar tesouros, contudo não desestimaria tê-los para que minha filha fosse feliz... mas hoje...
— Tens tu perdido todas as esperanças?
— Todas... oh! todas...
— Como?! Tu, que és tão bom, tão justo, tão virtuoso; tu, que tens tanta piedade, é possível que assim desconfies da misericórdia divina?
— Não, meu amigo, não desconfio...
— E então?
- E que merecimentos tenho eu aos olhos de Deus, para que Deus opere um milagre em meu favor?
— Um milagre!!!
— Sim... um milagre!
— Não, Augusto; tu podes ainda haver tua filha por maneiras bem naturais. Um milagre é um transtorno na ordem natural, e a ordem providencial não a altera por tão pouco...
— Meu amigo, presentemente o haver eu minha filha, é um impossível; e, se não é impossível, ao menos é muito, muito difícil, e ao vencimento desta dificuldade é que chamo milagres.
— Mas porque julgas tão difícil?
— Porque Maria, se vive, deve ter os seus dezesseis anos. Tu sabes que notáveis mudanças faz nosso corpo e nosso espírito nesse tempo veloz que separa correndo os dias da infância dos dias da adolescência! Minha filha já não pode ter seus engraçados cabelos castanhos; seus olhos já não podem ter essa chama de pureza, que tão docemente refletiam nos dias de sua infância; sua boca já não pode adornar-se desse sorriso de inocência, que a tornava tão pura nos seus primeiros anos; seu corpo já não pode ter essa delicadeza, que só têm as moças debaixo do teto paternal! Como, pois, reconhecê-la? Quanto a mim, como me reconhecer ela? Tinha apenas sete anos. Sete anos! E quando guarde em sua memória, se lhe for fiel, as notas que em meu rosto conheceu no tempo de sua infância, essas notas fugiram com a minha alegria! Estou completamente mudado; sou outro, bem o estás vendo! A dor embaciou meus olhos; com os desgostos empalideceram meu rosto! e no meio desta dor, sepultado nestes desgostos, os meus cabelos se encaneceram, encovaram-se meus olhos, enrugaram-se minhas faces, e meu rosto se tornou cadavérico! Todo, eu não sou senão um cadáver ambulante! Quando minha pobre filha se encontrasse comigo, como poderia reconhecer- me?...
— Mas, Augusto, porque tanto desânimo? Onde está a tua filosofia?
— Filosofia!... palavra pomposa! É verdade... a cabeça a conhece e a compreende, o coração a desconhece e não a sente! Filosofia! é uma palavra inteligente para uma cabeça altiva, e estupida para um coração sensível! Filosofia! amoroso sonho do preso; que acorda no som de seus ferros! mesquinha taboa do naufrago, que se afunda com ele! nuvem dourada da aurora, que se esvai no sopro da tempestade! rosa da manhã, que o sol do meio-dia murcha, e que o vento da tarde derrota! fantasmagoria de um encantador ideal, desmentida por uma terrível verdade! Filosofia! impostura da cabeça, mentira do coração! impostura e mentira do orgulho humano, sempre desmentidas pelas desgraças do homem, e pela fraqueza do coração! Mentira, e sempre mentira!
Pode-se ser filósofo, pode-se ser estoico, e até se pode ser um Zenon, quando o egoísmo tem petrificado o coração; quando as relações sociais não são mais que meras cortesias, ou formalidades humanas; quando se não ama; quando se não tem filhos, parentes, e amigos; por que um tal coração não vive! A vida do coração é como a vida da sociedade; a vida do coração é o amor, e este amor é nascido da fé; por ela cresce, por ela vigora, por ela floresce, e por ela frutifica! porque a fé é a única filosofia do amor, seu único princípio, único meio, único alvo de suas ações sempre cheias de fé! Gostamos de amar aqueles em quem cremos, e de quem somos cridos; gostamos de crer naqueles que amamos, e dos quais somos amados! Esta crença gera em nós uma fé, esta fé gera e mantem em nós um amor; este amor gera, mantem, e desenvolve a vida do coração e a confiança d’alma! Desta arte, sem crença, sem fé, e sem amor, a vida do coração e a confiança d’alma são impossíveis; por isso que esta vida, e esta confiança são os necessários efeitos da crença, da fé, e do amor! se a vida fosse o único fenômeno de uma existência, qualquer que fosse e como fosse; os vegetais viveriam, e viveriam talvez vida mais feliz que a nossa! A vida é a inteligência d’alma, a sensibilidade do coração, e a vontade de amigos; porque esta inteligência entende esta sensibilidade sente, e esta vontade quer; e quando esta inteligência está morta para entender, esta sensibilidade morta para sentir; a alma está perdida, porque não tem uma crença, que a salve; o coração está morto, porque não tem uma fé que o vivifique; e a vontade está sem ação, e suas tíbias resoluções não são mais do que simples veleidades; porque não há um amor que a anime, que a mova, e que a dirija!
Quando se tem um coração assim, quando o egoísmo tem, por assim dizer, materializado toda a espiritualidade de nossa alma; pode-se ser filósofo; mas um ente destes pode ser filósofo, pode ser estoico, pode ser tudo, tudo; mas homem... não; nunca... nunca; porque o homem foi feito para sentir, crer, e amar; sentir por sua própria consciência, crer, em consequência do sentimento, e amar em consequência do sentimento e da fé! Assim sentir a si mesmo, crer em seu Criador, e amar a seus semelhantes, são três factos psicológicos que só podem ser destruídos por uma educação libertina, e pelos atentados do egoísmo. Quando finalmente o homem não sente, não crê, e não ama, tem estupida, e miseravelmente falseado o grande plano da Divindade, que plasmou em nossa alma esta trindade para que o homem jamais se isole da sociedade, para que, pelo sentimento, ele esteja ligado ao mundo exterior, pela fé, ao seu Deus, e pelo amor, a Deus, e aos seus semelhantes.
— Augusto, eu não quero, nem posso, nem devo contrariar nem-um dos teus raciocínios; mas julgo que és um pouco desanimado. Talvez que tua filha seja viva, e que viva bem feliz...
— Eis a minha dor.
— A tua dor?
— Sim.
— Qual é?
— É esse talvez!
— Compreendo-te...
— Se minha filha tivesse morrido, eu teria chorado sobre o seu cadáver todas as lágrimas de um pai, e sobre seu túmulo o resto das lágrimas, que a morte de minha esposa havia ainda deixado em meu coração! Teria chorado, e chorado muito... mas depois consolar-me-ia. A lembrança de que tinha eu um anjo no céu velando, e pedindo a Deus por mim, iria pouco a pouco minorando a minha dor, e distraindo a minha saudade... mas a incerteza de sua existência, de seu estado, de suas dores, e prazeres; de suas tristezas, e alegrias; de seus males, e seus bens; de suas desgraças, e felicidades... oh! a dor desta incerteza só pode ser avaliada por aquele que a sente! Esta incerteza é um estado dubio, mas odioso entre a vida, e a morte! É uma esperança, que nos faz esgares, e nos negaceia com a felicidade, e uma desesperação, que nos retém, e nos conduz para a desgraça! É um crepúsculo detestável, em que se misturam as sombras do túmulo, e a luz dos céus! É uma dúvida piedosa, e ímpia, que nos faz confiar na Bondade infinita, e desconfiar de sua Providência! É uma dor sem interrupção, e sem fim, e um prazer sem consolação e alegria! É uma desesperação sem limites, e uma esperança fantástica. Finalmente, meu amigo, é um caminho que percorremos de continuo, sem jamais chegarmos ao fim da viagem! É uma fome que nos devora, e que nunca podemos saciar! É pois o rochedo de Sísifo, e o tonel das Danaides!
Quem sabe se minha pobre filha teria hoje tido um pão para comer! Quem sabe si, como uma desprezível criada, se abrigue ela hoje debaixo de um teto desprezador, e orgulhoso! Quem sabe si, vítima de uma sociedade imoral e corrompida, caísse nos torpes laços urdidos pelos impudicos ardores de um sedutor libertino; e que decaída no meio dessa sociedade farisaica, sem leis, e sem pudor, que não guia a mulher, que não a defende, que não a ampara, e que não a socorre; se veja hoje desprezada, escarnecida, e infamada nessa sociedade, que vitória a mentira, aplaude o crime do enganador, para com diabólico cinismo, com satânico desprezo cuspir esse mesmo crime à cara da miseranda enganada!...
Meu amigo, tu és bom, tens raras e subidas virtudes; mas por grande que seja a bondade do teu coração, tu não podes compreender a força suprema do amor paternal! não podes compreender a sublimidade de suas delicadezas, nem a santidade de seus estremecimentos! Para qualquer homem compreender isto, não basta ser bom, é preciso ser pai.
Vê, meu Floriano, quais não serão meus tormentos! Quando vejo alguma moça na idade dos seus dezesseis anos, digo entre mim: “É a idade de minha filha... se ela vive, deve ser mais bela do que esta moça!” Quando vejo alguma turma de moças, rindo e brincando, invejo a felicidade de seus pais! Então indago de suas idades, busco saber se todas têm pai; porque digo entre mim: “Quem sabe se alguma delas será a minha pobre filha!” Em alguma destas moças, que tem os seus dezesseis anos, busco encontrar os traços da minha Maria. Então, falando comigo mesmo, digo: “Quem sabe se ela não é também desta altura! Se não tem também assim os olhos! Se não são também assim as suas belas faces! Se não é assim esbelta, engraçada, e formosa...” Mas nada disto serve senão para tornar mais funda a minha ferida, e mais insuportável a minha dor!...
E quem sabe se minha filha, à mingua e ao desamparo, morreria miseravelmente! Oh meu Deus! meu Deus!
As lágrimas de Augusto (que o leitor conheceu logo no princípio deste capitulo) o sufocaram a ponto que não o deixaram ir por diante.
XXVI
NOVO TEATRO — NOVAS CENAS
Os escritores, ainda os mais feios, têm seus caprichos, como as moças belas; e senão, aqui estou eu, que assim mesmo, como todos me veem, e me conhecem, sou caprichoso como uma moça bonita! Algumas tenho eu conhecido, bonitas como o anjo S. Miguel, ou outro qualquer anjo, e caprichosas como Satã, ou outro qualquer demônio... Parece-me estar agora ouvindo alguma bonitinha, e amável leitora, dizer: “Ah, linguarudo!” Nesse caso, silêncio; e não continuo o episódio dos lindos e adoráveis caprichozinhos.
Com efeito, parece um capricho a velocidade com que um escritor faz escoar-se o tempo debaixo dos acelerados bicos de sua lubrica pena! mas não é; porque não é o escritor que presta ao tempo essas azas de fogo com que parece devorar o espaço; é o tempo que foge, e tão rápido foge, que é mister ao escritor voar após dele, não para alcançá-lo (o que seria impossível), mas para contar-lhes as pegadas ligeiramente impressas sobre os eventos de que se compõe a história da humanidade!
Há pouco o narrador fez deslizar-se, num momento, com um só rasgo de sua pena, uma bagatela, é verdade, nove anos. O narrador fez o leitor dar um saltinho, e nesse saltinho transpôs esses nove anos! Ora, pois, o narrador, com a boca doce do seu primeiro êxito feliz, anima-se a empreender segundo. Se o leitor foi tão bom que, a convite do narrador, arriscou-se a um salto de nove anos; porque não há-de agora ainda saltar dois? Quem concede o muito, concede o pouco. Isto posto, fiquemos na certeza de que há dois anos que Augusto mudou-se para perto da vila da Paraíba do Sul, onde tomou conta da rica herança que lhe deixou sua boa e amável tia. Santa Mulher!
Então não resta dúvida de que há onze anos que Maria foi roubada a seu pai: ora, tendo ela sete anos quando isso lhe aconteceu, podemos asseverar (se é que neste mundo alguma cousa se pode asseverar) que Maria, se é viva, tem os seus dezoito anos, muito bem feitos, e muito bem contados.
Agora o leitor sabe que a mor parte dos nossos principais personagens têm desaparecido, ao menos do primeiro plano, em que no começo de nossa história os havíamos colocado. Augusto mudou-se pra a Paraíba do Sul, Maria foi roubada a seu pai, e dela não sabemos. O Sr. Estevam desapareceu, José Pachola, o mesmo. Laura, da mesma sorte, Pedro Mandingueiro, morreu... Assim, convém que procuremos gente nova com a qual nos haveremos até o fim de nossa história; porque gente nova é toda aquela com a qual vamos nos encontrar, visto serem novas todas as situações que vão agora aparecer.
Suponde, caro leitor, que não longe da vila da Paraíba do Sul, à beira da estrada pública, há uma magnifica estalagem, bem surtida, bem arranjada, e decente. Os viandantes, que por aí passam, ali pernoutam. O dono desta casa, personagem afável, e que põe grande empenho em ser delicado, é, não obstante, antipático como um usurário (que é gente que se conhece pela fachada). O Sr. João Esteves (o dono da estalagem) é um senhor de quarenta e tantos anos, gordo como eram os Franciscanos, aqui há dez anos atrás; devoto como uma beata; mas... esperto como um taberneiro!... fino como um negociante de cavalos! O Sr. João Esteves ouvia missa todos os domingos, dias-santos, quer de guarda, quer dispensados! jejuava todos os sábados, e em todas as vigílias do Senhor, da Senhora, e dos Santos! finalmente, o Sr. João Esteves tinha Horas Marianas, e rezava o Oficio de Nossa Senhora! Apesar de tudo isto, havia muita gente má (porque em toda a parte a ha) que não se fiava no homem, que o temia, que fugia de o ver, e que não queria com ele negócio, fosse pelo que fosse. O Sr. João Esteves era tão grave, e tão amigo da honra que, quando repreendia seus caixeiros, dizia-lhes sempre: - “Sejam homens de honra; porque a honra é tudo! Sem honra não se deve viver!” — Com estes dados sobre o Sr. João Esteves, sigamos a nossa história.
Eram pouco mais de seis horas da tarde, de um estuoso dia de verão em que o sol queimava com luz de fogo, quando um lindo, um belo, um encantador mancebo dirigia-se para a estalagem do Sr. João Esteves. Este gracioso mancebo devia contar nem menos de dezesseis anos, nem mais de vinte. Seus cabelos negros eram graciosamente ondulados e de um admirável lustroso: seus olhos também negros e bastante grandes, brilhavam com um reflexo de celeste inocência, que só podem ter olhos ainda não empanados pelas sombras das paixões, ainda não obscurecidos pela noite dos vícios: seu rosto, não tão alvo, como o rosto dos filhos dos países frios, não tão moreno que revelasse uma mescla de raça africana; tinha esse feiticeiro moreno, que sábios pintores tão destramente sabem espalhar nos engraçados rostos das lindas filhas da Judeia: não obstante; esse moreno todo natural, havia também nesse magico rosto um enamorado tostadinho, suavemente impresso pelos mormaços tropicais: através dessa encantadora cor brilhavam em suas lisas e macias faces, com todo o seu esplendor, duas vivas rosas, que fariam inveja às rosas, que de manhã tão viçosas se ostentam em nossos cuidados jardins! Uma remota palidez, apenas percebida por quem com olho de artista estudasse este rosto maravilhoso, nele se deparava timidamente, lutando com este encantador moreno, e medrosamente se ocultando entre o belo vermelho destas sublimes rosas. Dois lábios, que podiam sem medo pleitear ao carmim sua bela cor, formavam uma perfeita boca, que bem podia honrar um prodígio de arte das mãos milagrosas de Rafael ou de Canova! Dir-se-ia que a natureza talhara caprichosa o seu mais bem escolhido marfim para com ele formar seus alvos, seus pequeninos, seus bem compassados dentes! O narrador graduou a idade deste menino dos dezesseis aos vinte anos, porque, positivamente falando, nem buço ainda tinha, bem que um dourado pelo apenas longemente lhe assombrasse o lábio superior. A altura de seu corpo correspondia a de um menino de doze, ou quatorze anos, quando muito: este corpo era fino, delicado e esbelto: o olhar deste jovem era sereno, seu rosto tranquilo, sua fisionomia aberta, seu modo altivo, suas maneiras nobres, e todo ele interessante: trazia um par de esporas de casquinha, mas bem fornidas; calçava calças de pano azul-ferrete, mas alguma cousa grosso; colete de cassineta branca, abotoado desde baixo até a gola; jaqueta do mesmo pano da calça, de gola em pé, como as jaquetas que chamamos — jaquetas de polícia -, trazia na cabeça um chapéu de pelo cor de rato, já usado; enfim, o facto deste mancebo revelava um pajem, e se o era, era um pajem bem perigoso... porque era bonito, encantador, e belo como tudo o que se pode imaginar de mais belo, encantador e bonito! Além de se não poder olhar para este lindo rosto sem surpresa, interesse e amor, três cousas ainda roubavam a atenção, a saber: o cuidado, delicadeza, e esmero com que atara a sua gravata, branca como o arminho; as pequenas e mimosas mãozinhas enfiadas num par de luvas de algodão, e o magnifico alazão claro, em que com tanta graça, agilidade e destreza montava! Com efeito, era um cavalo digno de um herói! Sendo alazão claro, como disse o narrador, tinha os quatro pés calçados, e uma estrela na testa; as crinas, e a cauda eram negras, e da mesma cor prolongava-se uma listra desde entre as pequenas orelhas, por sobre o dorso, até a raiz da cauda. Ventas abertas, olhos grandes, fogosos, e arrogantes, cabeça de carneiro, pescoço largo, anca de porco, etc., era, finalmente, um cavalo perfeito em tudo! Na Inglaterra seria solenemente aclamado com três Hips e um Hurrah, pelo mais bem feito, forte, diligente, ardido, fogoso, e nobre cavalo de todo o mundo! e o mais é que ele o era! para, porém, domar e sofrear um animal assim, era mister ser não só cavaleiro, mas muito hábil, e muito destro, na arte da picaria; e, com efeito, o mancebo que cavalgava, tão belo e brioso corcel, o era, absolutamente falando.
Apenas o mancebo parou à porta da estalagem, um caixeiro veio tomar o seu cavalo. O Sr. João Esteves saudou o mancebo, e por uma ligeira surpresa pareceu sentir o belo desse rosto angélico, e render-lhe esse culto, que o belo exige, e reclama de todos, sem exceção; mas, como pouco admirador do formoso, e do belo humano, o nosso homem voltou-se para o cavalo, e começou de contemplá-lo com admiração, e êxtase, como mais entendedor do formoso e do belo cabalino. Depois, voltando-se para o mancebo, disse-lhe:
— Quer vender o seu cavalo, meu menino?
— Não, meu senhor (respondeu o jovem).
— Então pelo quê?
— Porque não tenho outro para continuar a minha viagem.
— Podemos fazer uma braganha.
— Também não, meu senhor.
— Para onde se bota?
— Para o Rio de Janeiro.
— Pois se há-de lá vender o cavalo, melhor o venderia aqui.
— Não tenho tenção de vendê-lo aqui, nem lá.
— Está bom: então perdoe.
— Não há de quê.
O mancebo pediu alguma cousa para jantar, e assentou-se numa cadeira, e, sempre que podia, fitava os olhos no Sr. João Esteves, e o contemplava com indizível curiosidade; depois, sem pestanejar, pregava os olhos num ponto, franzia sua larga testa, arqueava mais suas lindas sobrancelhas, regalava seus bonitos olhos, mordia seu belo lábio inferior, apertava, ou dilatava sua boca, passava a mão por seus cabelos e testa, e apertando depois estas mimosas mãos fazia estalar os seus torneados dedos! Dir-se-ia que este coração ainda tão virgem batia de encontro a alguma grande dor, de onde partiam sons melancólicos, lúgubres, e tristes; ou que esta cabeça ainda tão jovem lutava com o enorme peso de uma grande ideia, com a qual não podia; ou que esta memória ainda tão nova achava em si algumas vagas lembranças de que se queria recordar, desfilando assim uma serie de fugitivas reminiscências, até achar claras, discretas e positivas as ideias, e as notas de pessoas e cousas, que queria agora reproduzir!
Ainda mais: é preciso confessar que entre estas duas criaturas, que formavam uma perfeita antítese, o Sr. João Esteves, e o mancebo, havia alguma cousa de sombrio, terrível, e misterioso, como o há entre o senhor e o escravo, porque o Sr. Esteves contemplava o moço de uma maneira indecifrável, e o moço, quando o Sr. Esteves se aproximava, ou falava, tremia todo, e a seu pesar!
Pouco depois chegaram mais viandantes, e entre eles um que trazia por pajem um preto, já não criança. O mancebo olhou para o preto, e experimentou alguma surpresa, e fez, como quem se deseja lembrar. Meia hora depois o preto e o jovem conversavam calorosa e familiarmente, como se fossem conhecidos velhos. Esta conversação durou seguramente uma hora.
Das sete horas em diante trovejou e choveu, de modo que os viandantes não puderam seguir o seu caminho, se é que o queriam. De noite, cada um tomou o seu aposento, e o mancebo só o fez depois que teve em particular uma conversa com o senhor do preto com quem conversara. O dono da estalagem, declarando que todos os quartos estavam ocupados, o que na realidade assim era, deu ao mancebo uma cama que estava em um grande salão, acrescentando que podia fechar por dentro todas as postas e janelas. O mancebo o fez.
Pouco depois da meia noite os hospedes da estalagem, caixeiros, e escravos, acordaram-se ao eco de dois tiros, um pouco depois do outro, e dos gritos do Sr. João Esteves, que pedia socorro, gritando que o tinham matado.
Todos, os que isto ouviram, correram para o lugar de onde os ecos eram partidos; e de um em um foram obrigados a entrar para a sala, onde dormira o mancebo, por uma espécie de postiço aberto em uma porta que comunicava esta sala com o quarto de dormir do dono da estalagem. Chegados a esta sala viram o mancebo vestido, como se não se tivesse despido para deitar-se, em pé, tendo na mão uma pistola. O Sr. João Esteves no chão, envolto em sangue, quase moribundo, e tendo junto de si também um pistola!
Entre os que haviam acudido, era o preto com quem o mancebo havia tanto conversado; este chegando-se ao ferido, ergueu-lhe a cabeça e disse-lhe:
— Conhece-me, meu senhor?
— Não (respondeu ele com voz já moribunda).
— Pois, Sr. Estevam... quem deve a Deus paga ao diabo... Sou José Pachola... — O moribundo fez um esforço para erguer-se, exclamando:
— Ah!!!
José Pachola continuou:
— Lembra-se do Sr. Augusto, em quem deu um tiro na Praia-Pequena? Lembra-se da menina Maria, que roubou de seu pai?...
O ferido, fazendo um último esforço, caiu de joelhos, e com as mãos postas, e erguidas aos céus, bradou:
— Perdão... pelo amor... de De...
Expirou! O mancebo, deixando cair a pistola, ajoelhou-se, e levantando as mãos aos céus, exclamou:
— Meu Deus, perdão para sua alma!
XXVII
O JUIZ DE PAZ E O CRIMINOSO
O mancebo tinha feito sua súplica a Deus pela alma do Sr. Estevam, e levantava-se, quando José Pachola, disfarçadamente passando por detrás dele, soprou-lhe ao ouvido estas palavras:
— Fuja, meu senhor moço... fuja...
—
— Não — (respondeu o mancebo).
Então os caixeiros da casa, estupefatos até ali, bradaram:
— Prendamos este assassino... prendamos...
E dizendo isto, avançaram um passo para o jovem, que, sossegado e tranquilo, apenas levantou a mão, fazendo-lhes sinal para que parassem, e disse:
— Suspendam-se, meus senhores... Aqui não está um assassino... Matei, é verdade, este homem, mas matei-o nobremente em um duelo muito leal...
— Mas um duelo sem testemunhas, meu menino?
Perguntou o homem, que tinha vindo com José Pachola, ao que respondeu o mancebo:
— Deus foi testemunha. Este papel (dizia ele, mostrando um papel colocado sobre a mesa), e aquela pistola, que ali está junto do falecido, provam a minha lealdade. Foi um combate leal... homem por homem, braço por braço, arma por arma, bala por bala, sucesso por sucesso, vida por vida, vingança por afronta: eis-aqui tudo! Fui mais feliz! Deus assim o permitiu... Aqui está a bala, que contra mim enviou a arma do Sr. Estevam: errou a sua pontaria... Deus o quis, seja Ele louvado.
E dizendo isto, o mancebo mostrou em uma parede o buraco, que havia, feito a bala, que conta ele havia disparado a arma nas mãos do Sr. Estevam. Essa bala, apesar do Sr. Estevam não saber atirar à pistola, lhe havia passado uma, ou duas polegadas distante do ombro esquerdo, e se tinha empregado na parede.
— Eis o lugar onde entrou a bala (dizia o mancebo). Agora, peço a um dos senhores o obsequio de mandar, ou ir chamar o Sr. juiz de paz, ao qual farei as minhas declarações, e me entregarei. Não é preciso que algum dos senhores me ponha a mão. Matei como um homem de honra, e não fugirei como um assassino vil e covarde.
Se eu quisesse fugir já o teria feito. Enquanto os senhores procurassem lugar para entrar para esta sala, teria eu carregado as minhas pistolas, saído por uma destas janelas, e me evadido; mas tal não foi, nem é a minha tenção. Matei sem premeditação alguma, e tanto que nem sei em que lugar ficou o meu cavalo.
Quanto aos senhores, se quiserem ficar nesta sala, ou se retirarem, é-me indiferente; eu porém esperarei o Sr. juiz de paz aqui mesmo.
Ao romper do dia foi chegado o Sr. juiz de paz, acompanhado pelo seu escrivão, dois oficiais de sua alçada, e um médico.
O ancião, que havia ali pernoutado, referiu ao juiz de paz o que sabia, acrescentando que o criminoso não fugira porque não quisera. O juiz de paz mandou pelos dois meirinhos prender o jovem delinquente, e tratou de fazer corpo de delito. O criminoso enviou um dos meirinhos ao Juiz dizendo-lhe que ele se considerava preso, e debaixo da lei, desde o (sic) momento em que matara o Sr. Estevam; mas que tinha que falar a S. S., e fazer-lhe algumas declarações. Ao que o juiz de paz respondeu, que isso era de seu dever, e que ele sabia bem os seus deveres, que findo o corpo de delito lá iria.
Com efeito, findo o corpo de delito, o juiz de paz passou à sala em que estava o preso. Apenas dele o encarou, recuando alguns passos, e sem dissimular a sua admiração, murmurou: - Meu Deus!...
O mancebo, notando o espanto do homem da lei, disse:
— Horroriza-se de me ver, Sr. Juiz?!...
— Até a fala! Meu Deus! até a fala!!!
O juiz de paz não murmurou estas palavras tão baixo que o criminoso não as ouvisse, e ouvindo-as disse:
— Porque esse espanto, senhor? Pois até na fala serei eu criminoso!
O criminoso pronunciou estas palavras com um acento de dor tão notável, com um ar de melancolia tão profunda, e com uma resignação tão sublime, tão visível, e tão cristã, que o juiz de paz arrependeu-se de sua surpresa involuntária, como se tivesse sido a obra do proposito: e então respondeu:
— Não, meu filho. A minha admiração é unicamente por ter diante de mim uma criança, e com sentimentos tão nobres! Quando o senhor falou, até na fala me pareceu uma criança! Eis o motivo de minha exclamação: e admiro-me, porque não posso conciliar tanta mocidade, tanta honra, e tão mau coração...
— Mau coração! (exclamou o preso), e porque, senhor?
— Um assassinato, meu filho! (disse o juiz de paz, apontando para o lugar onde tinha caído, e expirado o Sr. Estevam, cujo corpo havia sido levado para outra sala) Um assassinato revela...
— Nem sempre, senhor... Matei em um duelo.
— As nossas leis não permitem o duelo.
— As nossas leis?!
— Sim, meu filho.
— E nós temos isso?
— Isso o quê?
Leis?
— Pois nós não temos leis?
— Não, Sr. Juiz.
— Como, meu menino?!
— Em verdade, senhor, eu sou um pobre menino, que nada sei; mas, onde fui criado, ouvi algumas vezes pessoas sabias e experientes, e a essas pessoas ouvi, que tínhamos meia dúzia de mentiras escritas a que os magnates, os ignorantes, e ainda a gente de boa-fé chamam leis; mas que estas indignas mentiras, quando boas só têm ação para os grandes; quando más, para os pequenos. Ouvi ainda, que quem tem dinheiro, ou poder, está acima da lei; isto é, que pode fazer o que quiser: que quem o não tem está fora da lei; isto é, que pode ser espancado, espoliado, defraudado, e até morto, sem o menor resultado para quem o fizer. Logo, em um país onde tal se pratica, é impossível haver leis; e se alguma cousa aí existe escrita, tudo pode ser, tudo, exceto leis! e para que demos a esse escrito algum nome, chamemos-lhe mentiras, imposturas, escândalos, tudo; mas não leis, que seria profanar uma palavra augusta...
— Menino, estou pasmado de ouvi-lo!
— Acredito, senhor; não pela cousa, mas pela pessoa, porque sou uma criança; o que, não obstante, a cousa não deixa de ser verdadeira; mas já disse a V. S.: na casa onde fui criado em tudo se conversava, e eu nada perdia. Além disto, tínhamos a mor parte dos jornais, e eu os lia, e sobre eles meditava... De que se admira, Sr. Juiz? Aí está morto um grande malvado... Não lhe sirva de pena... está morto, e Deus lhe perdoe... Um grande malvado, um extraordinário criminoso, que a Justiça deixou sempre viver em paz, porque, além de muito criminoso, era também muito vil... eu, porém, serei rigorosamente punido porque matei um grande malvado, e porque tenho uma alma nobre. Isto porém me não admira; porque é tal a corrupção entre nós, que quando queremos elogiar alguém dizemos que não é ladrão...
— É verdade! é verdade!
Isto dizia o juiz de paz, meneando a sua respeitável cabeça quase toda coberta de cabelos brancos; e depois, fitando o jovem, disse-lhe:
— Mas, meu filho, que idade tem?
— Não sei ao certo, Sr. Juiz; mas penso que já fiz dezoito anos...
— Ah! dezoito anos? dezoito anos!...
O juiz de paz soltando um suspiro, e fazendo esta exclamação, não pôde continuar, que o pranto sufocou-lhe a voz.
— O Sr. juiz de paz chora? pelo que, meu senhor?
Disse o mancebo, chegando-se ao Juiz, e tomando-lhe respeitosamente a mão.
— Pelo que chora? (tornou ele a perguntar).
— Compadecido de tanta candura, e mocidade!
— Senhor... perdão... mas eu não quero compaixão, quero justiça...
— E justiça será feita, ainda que esta justiça despedace o meu coração... Menino... Não sei porque vos amo?!
— Porque talvez é pai, e tem bom coração...
— Ah! meu filho!...
— Pois bem, senhor! Não fique prejudicada a justiça da terra, e me chame seu filho... Também eu não sei porque sinto prazer em ouvir essa palavra. Quando a pronuncia, ela cai em meu peito transformada em um balsamo de celeste consolação! Sou criminoso, e no entanto eu me sinto feliz neste momento! Também choro... Oh! pensei que na minha idade se não chorava de prazer e de ternura!... Mas ah! eu conheço a razão de minhas lágrimas: é porque não está diante de mim o homem da lei, severo, terrível e implacável; mas sim o homem da natureza, o amigo da humanidade, o ser, que tem entranhas de pai! Obrigado, meu Deus! como me são caras as lágrimas, que verto, e as que faço verter!
— Mas, meu filho, sendo vós tão moço, e me parecendo tão bom; que motivo tiveste pra cometer um assassínio?
— Senhor, para que eu pudesse dar uma razão plausível do meu procedimento, era mister contar-lhe uma história longa, fastidiosa, e talvez sem o menor interesse para V. S.
— Não importa, eu a ouvirei. Pode essa história justificar o seu procedimento, ou, ao menos, minorar a intensidade do que por ora me parece um crime?
— Eu o creio, senhor.
— Pois, meu filho, contai-me a vossa história.
— Com uma condição...
— Qual é?
— Que me há-de jurar um inviolável segredo sobre o que é particular. V. S. poderá no meu processo dizer quanto quiser do que eu lhe declarar acerca do procedimento do Sr. Estevam, havido comigo nesta casa; mas, sobre o que me é particular, V. S. jurará segredo.
— Juro-o pelo Santo Nome de Deus.
— Obrigado. Agora cumpre-me declarar-lhe, que não era de minha intenção revelar à pessoa alguma estes segredos, e só sim o que diz respeito a mim, e ao Sr. Esteves, acontecido esta noite; mas V. S. adquiriu tal império em meu coração, que com ele atraiu toda a minha confiança. Si, sem saber dos motivos do meu procedimento, deu algumas lágrimas à minha desgraça, estou certo que os sabendo, talvez me louve. Aconteça o que acontecer, será para mim uma bem doce consolação a lembrança de suas lágrimas e a de seus louvores! Essas lágrimas e louvores tem para mim o valor de minha inocência. Ignoro a fonte dos meus sentimentos; mas seja qual for, é tal a confiança e simpatia, que me inspira, que se os homens me tivessem ofendido a ponto de aborrecê-los a todos, eu hoje a todos perdoaria só em atenção a esta confiança e simpatia! Eu vou principiar a história. Estamos sós?
O juiz de paz saiu fora, e disse ao seu escrivão e aos meirinhos, que o esperassem; que não deixassem pessoa alguma penetrar a sala onde ele estava com o criminoso; e que nem-um deles lá fosse senão a seu chamado. Dito isto, cerrou a porta, e ficou com o criminoso.
Um instante depois, seriam quase seis horas da manhã, um mancebo, que teria os seus vinte anos, não bonito, mas muito simpático, e até agradável, vestido com luxo, montado em um belo macho, e acompanhado de um asseado pajem, chegou à hospedaria em que se achava o juiz de paz encerrado com o criminoso. Aí soube da boca do escrivão o acontecido, e sabendo-o, quis ver o acusado: sendo, porém isso impossível, pediu os sinais dele. Este mancebo mostrava grande aflição, e esta se mesclou com algum receio, principalmente quando lhe deram os sinais do cavalo em que viera o jovem criminoso, e o qual ele quis ver. O mancebo não era conhecido no lugar, mas tinha dinheiro; e como era conhecido do escrivão, este fez o quanto ele quis. Apenas viu o cavalo, soltou um grito indecifrável. Felizmente ele estava só com o escrivão; mas, apesar das perguntas deste, o mancebo só lhe disse:
— Pinto, se és meu amigo, deixa-me introduzir nalgum quarto de onde eu ouça o que conversam o juiz de paz com o criminoso.
O escrivão, depois de pensar um pouco, como conhecia a casa, fê-lo saltar por uma janela, e deixou-o num quarto, do qual poderia ouvir alguma cousa. Feito isto, o escrivão retirou-se, recomendando ao seu amigo silêncio, prudência, e discrição.
Deixemo-los aí ficar.
XXVIII
COUSAS PASSADAS
— “Senhor (disse o criminoso), há perto de doze anos que em um lugar chamado Praia- Pequena, pouco distante da cidade do Rio de Janeiro, foi cometido um assassinato...
— Na pessoa de quem? (perguntou o juiz de paz).
— De um santo homem chamado Augus...
O juiz de paz, dando um salto de sua cadeira, e tomando as mãos do mancebo, perguntou- lhe, sacudindo-lhas:
— Como sabeis disto, meu filho? como sabeis?
— V. S. saberá no fim.
— Pois bem, pois bem: continuai.
— Este assassinato foi perpetrado só com o fim de lhe roubarem sua única filha, Maria, que então tinha se...
— Sete anos, não?
— V. S. sabe disto?
— Tenho uma entrelembrança de ouvir falar nisso: mas para que roubar uma menina de sete anos?
— Para matá-la, senhor!...
— Oh!!!...
O juiz de paz erguendo-se de sua cadeira, em uma espécie de delírio, pálido e trêmulo, levantou as mãos em uma convulsão horrível, e com ambas elas tapando o rosto, exclamou:
— Matar uma inocente!
— Horroriza-se, doutor, de uma tal ação?
— E quem se não há-de horrorizar?
— É verdade!
— E mataram-na?
— Não, senhor. Há nesta casa quem saiba miudamente das velhacadas, infâmias, e indignidades então praticadas.
— Quem é?
— Permite-me V. S. que lhe apresente essa pessoa?
— Pois não? e até desejo.
— Pois então, mande chamar um preto que aqui está, chamado José Pachola, que chegou ontem em companhia de um seu senhor moço, o Sr. Silva.
O juiz de paz chamou um seu oficial, por ele mandou buscar o Pachola, que a pedido do mancebo contou a história do roubo de Maria, as velhacadas de Laura, malvadezas e patifarias do Sr. Estevam. Todavia, o Pachola teve o cuidado de desviar de si a culpa da fugida da menina para o mato; e nisto bem se houve, porque hábil diplomata era ele! Durante esta narração do Pachola, o juiz de paz, mudo e quedo, só deu alguns não equívocos sinais de veemente furor, que ele comprimia; e bem o teria feito se o iroso flamejar de seus olhos o não traísse mais de uma vez!
Finda a narração do Pachola, disse-lhe o juiz de paz: - Está bom, meu filho, retira-te; logo falaremos.
José Pachola saiu. O jovem criminoso continuou assim:
— Agora, senhor, vou continuar a minha história.
— Sim, meu filho. Dotado eu de um bom coração, sendo compadecido, e tendo entranhas de pai, tenho tomado por Maria um interesse, como se fosse seu pai... Coitadinha! (dizia ele, enxugando suas lágrimas). Coitadinha! tão criança, e já tão desgraçada! Meu Deus! Como era malvado esse homem, cujo cadáver aí está! Pobre pai! Quanto não sofreria por sua infeliz filha! Continuai, meu filho, continuai; eu vos suplico.
Qual o enfermo, que, por esse maravilhoso instinto da natureza, suspeita que seus dias correm perigo, encara o médico, e nos seus olhos, seus gestos, e modos busca estudar a sua vida ou sua morte, não vivendo senão nesses lábios, ou nessa mão, que vae ainda traçar um — Recife — que o deve salvar, ou que não terá efeito; assim, o juiz de paz, com os olhos embebidos nos olhos do criminoso, vivia unicamente nesses formosos lábios, de onde ia cair a história de Maria. O mancebo, tendo arrancado um suspiro, que, por mui prolongado e estremecido, parecia ter-se escapado à força de lá tão do fundo do coração, prosseguiu desta sorte:
— Maria ficou perdida no mato! Descalça, sem chapéu, e com seus vestidos rasgados, desamparada, de todos, sem saber caminho, nem carreira, começou a gritar: mas, debalde...
— Mas foi de Maria mesmo que soubestes estas cousas, meu filho?
— Deixe V. S. seguir a minha história metodicamente, que de tudo saberá.
— Pois sim, meu filho; prossegui.
— Maria teve fome, e Deus lhe mostrou um goiabal: teve sede, e Deus lhe mostrou água. Maria acreditou que duas lindas juritis eram dois anjinhos de Deus, que velavam por ela. À noite a filhinha de Augusto arranjou uma cama de folhas secas, onde deitou-se, e dormiu: e a única filha de Augusto, sua rica e tão querida herdeira, só teve por companheiros os bichos dos matos, talvez compadecidos de sua miséria! Sede-me testemunhas, ó astros, que ardeis na morada de Deus, e que com vossos olhos de fogo veláveis sobre a desgraçada filhinha do saudoso Augusto!
O mancebo pronunciou esta exclamação com as mãos postas e erguidas para o céu, tendo seu rosto inundado de lágrimas. O juiz de paz, assentado em sua cadeira, tal tremor o agitava, que dificultosamente se podia ter. Assim, ora procurava firmar-se no seu assento, e ora tapava o rosto com seu lenço, para melhor e mais a seu gosto prantear e soluçar.
— V. S. chora? soluça? (dizia o criminoso). Maria é bem digna dessas lágrimas. Obrigado!... (dizia ele tomando as mãos do juiz de paz e beijando-as) Obrigado!... Seja abençoado... seja abençoado por essas lágrimas de compaixão!
Assim correram alguns dias sem novidade. Todas as manhãs, todas as tardes, e sempre que Maria tinha medo, ela ajoelhava-se, punha as mãozinhas, e orava assim: “Mamãe do Céu, pedi a Papai do Céu por mim...”
O juiz de paz, com voz intercortada de soluços, repetiu maquinalmente as palavras dessa súplica, acompanhando o mancebo, e dizendo: “Mamãe do Céu, pedi a Papai do Céu por mim!”
— Assim, sem novidade, passaram-se alguns dias (continuou o mancebo); mas em uma tarde começou a trovejar, e pouco depois a chover. Veio a noite, medonha como noite de tempestade. Os relâmpagos cruzavam os ares, os trovões batiam o céu, o vento arrancava as árvores, e a chuva açoutava a terra...
— Ela? que fazia ela?
— Acolheu-se à sombra amiga da árvore hospitaleira, que por oito noites lhe havia dado abrigo. Bem depressa as aguas do céu, infiltradas por entre os ramos e folhas dessa árvore, deixaram seus vestidos escorrendo agua; mas, a coitadinha, assim mesmo ali se conservou. Às vezes assentada, às vezes de joelhos, rezou muitas vezes a sua oração. Maria nesta ocasião lembrou-se das palavras de seu pai, quando, apenas viúvo, exclamava no excesso de sua imensa dor: - “Ah! minha Leopoldina!... Ela não virá mais!...” Maria, lembrando-se disto, tendo frio, e medo, exclamou: “Mamãe!... mas mamãe não vem mais!... Eu tenho tanto frio!... tenho tanto medo...
O juiz de paz, como um possesso, balbuciante, e com as mãos erguidas para o ar, foi-se levantando da cadeira, como para falar; mas, ou fosse que seu pranto lhe não desse lugar, ou que não quisesse interromper as palavras do jovem, deixou-se outra vez cair na cadeira em silêncio, tapando o rosto com as tremulas mãos. O jovem prosseguiu:
— Papai não vem me buscar!... mas papai...
O juiz de paz saltando da cadeira, como um louco, agarrou o mancebo, e cerrando-o sobre o seu peito, exclamou em uma voz delirante:
— Menino... menino... queres matar-me? queres que eu morra de sofrer, e chorar? queres que eu morra?...
— Pois bem, senhor, paremos com a história de Maria...
— Cruel que dizes?! Não vês que eu gosto de chorar?! mas vós chorais também, e chorais muito, chorais tanto, como eu; por quê?
— Por quê? porque...
— Eu vos compreendo... Chorais por Maria?
— Sim, senhor, choro...
— Velhaquinho... velhaquinho... Vós a amais?
— Eu, senhor!... Pois sim; amo-a.
— E vós sabeis dela?
— Sim, senhor, sei; e eu pedi a V. S. que me deixasse ir até o fim...
— Sim... sim: é verdade; mas quero que também me ameis. As vossas palavras caem em meu coração, como punhais; elas me retalham o coração, e eu gosto de seus golpes! As vossas lágrimas caem em minha alma, como um incêndio; elas abrasam a minha alma, e eu gosto deste fogo. Falai... falai de Maria... só dela... falai muito... muitas vezes... falai... Chorais por Maria? Pois bem: chorai... Apertai-me bem em vossos braços... Repousai a vossa cabeça de anjo sobre meu seio dilacerado... derramai as vossas lágrimas sobre o meu coração... Gosto dos golpes, que me dão vossas palavras angélicas... Gosto do fogo que me ateiam vossas lágrimas celestes... Derramai aqui as vossas lágrimas; derramai-as sobre o meu coração... e no entanto eu gosto que minhas lágrimas corram sobre a vossa cabeça, porque já vos amo, e muito...
— Mas, senhor, porque chora tanto V. S. por uma infeliz que não conhece?
— Porque gosto de chorar. Continuai a vossa história. Maria tinha dito: - “Papai não vem me buscar...” E que mais?
O criminoso continuou:
— “Papai não vem me buscar!... mas papai também não vem mais!...” Então Maria chorou lágrimas de medo, e de saudades! Ajoelhou-se, e fez a sua oração.
Enfim, senhor, para abreviar esta narração, cumpre-me dizer-lhe que Maria saiu do mato depois de alguns dias...
— Mas como? como saiu?
— Ouviu, não muito distante, berrar gado; seguiu direito a esse eco; e com efeito, em um pequeno campo encontrou uma pequena manada; nesse campo havia um estreito trilho; ela enfiou- se por ele, e a poucos passos saiu a estrada. Aí achou uns mineiros, que então passavam; estes fizeram algumas questões a que ela respondeu, e compadecidos de seu desamparo, tomaram-na de garupa, e levaram-na consigo.
Neste ponto o jovem disse ao juiz de paz que carecia tomar uma xícara de café. O Juiz mandou imediatamente dar ordem a isso, e voltou para seu lugar a ouvir o resto da história de Maria, que é o de que o narrador dará conta no seguinte capitulo.
XXIX
O CRIMINOSO CONTINUA A HISTÓRIA DE MARIA E CONTA COMO FOI ELA RECEBIDA EM CASA DA SRA. D. LORDECENE
— Os mineiros (disse o jovem reatando o fio de sua interrompida narrativa) fizeram a sua viagem passando pela vila de Paraíba do Sul, aonde chegaram sem novidade alguma. Eles foram pernoutar em casa da Sra. D. Lordecene...
— Tenho ouvido falar da Sra. D. Lordecene (disse o juiz de paz).
— Ela mora não muito distante daqui. O mineiro, que parecia dono da tropa, que se mostrava superior aos outros, o Sr. Cea, era parente, e bem próximo, da Sra. D. Lordecene. Esta, vendo Maria, perguntou a seu parente, que menina era aquela. O Sr. Cea contou-lhe em poucas palavras o que sabia. A boa senhora tomou Maria no seu colo, fez-lhe algumas perguntas, as quais Maria respondera, como havia respondido aos mineiros. A Sra. D. Lordecene beijou-a muitas vezes, e cobriu-a de caricias, e depois perguntou-lhe se queria ficar com ela. Maria respondeu pela afirmativa. Então esta amável e compadecida senhora pediu à seu parente que lhe deixasse a menina, que ela a criaria como se fosse sua mãe. O Sr. Cea consentiu gostoso. Imediatamente a Sra. D. Lordecene mandou fazer, para Maria, toda a roupa precisa. Vinha então, todos os dias, à casa um senhor ensinar a ler ao Sr. Alfredo, filho da senhora, que era um menino dos seus nove para dez anos. Maria foi também entregue a seu cuidado. A Sra. Lordecene levou a sua bondade até querer que Maria lhe chamasse sua mãe. Esta boa senhora nada poupava pra a educação moral e religiosa de sua filha adoptiva. Ah! é impossível pintar a solicitude e o amor desta alma virtuosa por esta infeliz menina!
Meu Deus... já que sois tão bom, meu Deus! (O mancebo, ao pronunciar estas palavras, levantou-se da cadeira, e pondo as mãos, e erguendo-as aos céus, onde pregou seus olhos, foi lentamente curvando os joelhos, de modo que, quando pela segunda vez disse — meu Deus! — estava de joelhos, com as mãos erguidas, como quem ora, e com os olhos presos no céu; neste êxtase ele dizia):
— Meu Deus, abençoai a Sra. D. Lordecene! abençoai-a, meu Deus! Derramai sobre ela a enchente de vossa Graças! Oxalá que a vossa Misericórdia lhe aumente os bens, lhe avigore a saúde, e lhe prolongue a vida! Possa ela ser por imensos dias a providência do pobre, a protetora dos desvalidos, e a consolação dos aflitos! Abençoai-a, abençoai-a, meu Deus!
Enquanto o jovem fazia esta piedosa súplica, o juiz de paz, como um homem desvairado, com os olhos inundados de lágrimas, se foi manso e manso aproximando dele, como compassando seus passos pelas palavras, que ouvia, de modo que, quando o moço teve terminado a sua prece, o juiz de paz estava junto dele. O criminoso, tendo orado, quis erguer-se; mas o juiz de paz, pondo- lhe suavemente uma de suas mãos sobre seu ombro esquerdo, disse-lhe:
— Esperai, meu filho... É bom orar pelos justos, porque Deus converte em nosso favor metade dessa oração. Também quero orar pela Sra. D. Lordecene. Unamos pois as nossas preces; supliquemos ambos. A súplica é sempre grata aos olhos de Deus.
Assim falando o homem da lei, ajoelhou-se à direita do mancebo, e ambos alternando a sua súplica, oraram assim:
— Meu Deus (disse o juiz de paz), por falta de fé eu não serei repreendido, como repreendestes a Pedro a que dissestes: - “Homem de fé mesquinha, porque duvidastes?” — Meu Deus, acredito sem ver; e por isso não serei repreendido, como repreendestes a Thomé à quem dissestes: - “Felizes dos que não viram, e creram!” — Se alguma vez duvidei foi dos meus merecimentos! Se não acreditei, foi unicamente em mim! Meu Deus, a vossa Misericórdia jamais se desmentiu, ainda para as vossas mais mesquinhas criaturas; e como assim é, fazei a Sra. Lordecene a mais feliz de todas as mulheres! Sim, permiti que cada um instante dos que Maria viveu, ou vive à sua sombra, seja para ela uma graça diante de vossos olhos! Que suas venturas sejam tantas, como as horas que Maria passara em sua casa! Que seus anos sejam contados pelos meses que Maria contara a seu lado! E que na morada dos justos as flores de sua aureola excedam em número ao número dos dias que a pobre Maria estivera junto dela!
— Meu Deus (disse o mancebo), permiti que as felicidades da Sra. D. Lordecene sejam tantas quantas têm sido as minhas lágrimas, desde ontem até este momento derramadas.
Era para ver este quadro verdadeiramente interessante, nobremente patético, e curiosamente sublime! Um ancião, e um menino, que pela primeira vez se encontravam, e em consequência de um facto à primeira vista detestável, e que já se queriam com um amor verdadeiro, misterioso e santo; verdadeiro, porque com veras se amavam; misterioso, porque não sabiam a razão deste amor; santo, porque seu amor tinha a santidade do amor paternal e filial!
Era para ver este contraste maravilhoso, esta antítese magnifica da eloquência da Sorte! Um ancião, e um menino! O ancião juiz, e o menino réu! A inocência, e o crime! O ancião inocente e o menino criminoso! O presente, que caminhava para o passado, sem levar consigo uma mancha! O futuro, que caminhava para o presente, trazendo consigo um crime! E estas duas entidades, que se deviam repelir, aborrecer e detestar, achavam-se unidas pelo mesmo motivo que os devia odiosamente separá-las! É bem caprichoso o Destino; mas bem sublimes são alguns de seus caprichos!
Era para ver estes dois entes inteiramente opostos, ajoelhado um ao lado do outro, ambos com as mãos postas, com os olhos nos céus, orando por uma mulher, que um conhecia apenas de nome; não podendo nós ainda afiançar se o outro melhor a conhecia!
Este encontro parece bem digno de uma nota particularíssima; por parecer o facto mais notável da vida destas duas criaturas, isto é, o único facto estrondoso. Único estrondoso, porque o narrador pensa que assim como na vida do coração não há senão um amor (porque só uma única vez se ama); assim na vida do homem não há senão um único facto de estrondo; porque todos os outros são consequência deste, ainda que o não pareçam.
Finda a súplica, os dois ergueram-se, o jovem continuou:
- Maria, senhor, mostrou-se digna de amor, e solicitude da Sra. D. Lordecene. Mostrando alguma aptidão, e talento, aprendeu com facilidade a ler, escrever e contar, quando Maria teve doze para treze anos; além disto, sabia um tanto ou quanto de gramática e Francês. A Sra. D. Lordecene não se descuidou de sua educação familiar; aplicou-a a todos os trabalhos de agulha, e a tudo quanto deve saber uma mãe de família. Além destas cousas, como Maria tinha coragem, aprendeu a montar, e tão ágil e destra se fez neste exercício, que, até em um cavalo ainda potro, montava com agilidade, destreza e segurança! Aprendeu a atirar, não só de espingarda como de pistola, em que adquiriu bastante facilidade apostando quase sempre ao alvo com o Sr. Alfredo, e com este exercício ganhou tal firmeza, que à trinta e quarenta palmos de distância, raras vezes sua bala não feria o alvo! Maria apostava a carreira com o Sr. Alfredo, tanto a pé, como a cavalo, caçava com ele, e fazia todos os exercícios que a tornassem ágil, destra e robusta: foi assim que ela cresceu, e se tornou forte e hábil para quase todos os exercícios do corpo.
-
Algum tempo depois da estada de Maria em casa da Sra. D. Lordecene, aconteceu que veio para sua casa uma sua irmã, viúva, e aí ficou morando. Quando esta senhora morreu tinha Maria já os seus treze anos. A Sra. D. Águeda (a irmã da Sra. D. Lordecene) deixou, por sua morte, quase todo o seu ouro a Maria, um casal de escravos, um belo cavalo, com os competentes arreios, e um par de pistolas de algibeira, com um rico polvarinho de prata e um chumbeiro de lã bordado à seda. Cumpre declarar que estas pistolas, polvarinho, e chumbeiro, já ela lhos havia dado em sua vida. Pouco tempo depois o casal de escravos apresentou dinheiro para sua liberdade, Maria conveio nisso, e aceitou pela liberdade deles a quantia de quatrocentos mil réis.
- Tão pouco (disse o juiz de paz)!
-
- Maria não quis mais do que isso (continuou o jovem), porque era para sua liberdade. A Sra.
-
D. Lordecene não quis ficar com este dinheiro, não obstante Maria lho pedir, e Maria foi obrigada a guardá-lo ela mesma.
E.
Tinha-me esquecido de dizer-lhe, que, logo que o Sr. Alfredo teve quatorze anos (tendo Maria doze por conseguinte), foi para o Rio de Janeiro estudar preparatórios, e então só vinha para casa no tempo das férias do Natal. Quando ele teve dezenove anos, resolveu-se a não se formar, e voltou para casa; tinha então Maria dezessete. Nesta idade diziam muita cousa dela...
- Que cousas?!!!
-
- Banalidades, senhor. Uns diziam que ela era formosa; outros, que era bela; estes, que era bem-feita; aqueles, que era engraçada; aqueloutros, enfim, que era espirituosa, ágil, destra, forte, talentosa, etc., etc....
-
- Ela os acreditava?
-
- As moças, ainda as mais discretas, gostam sempre de louvores!
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- Pelo que tenho ouvido, vós a conheceis, meu filho; como a acháveis?
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- Sou suspeito: porém ela me agradava.
-
- Bem. Continuai.
-
- Tinha então o Sr. Alfredo dezenove anos, e Maria dezessete.
-
Desde que o Sr. Alfredo chegou os seus brincos com Maria começaram de ser novos, e um tanto misteriosos; o que, notado por Maria, começou também de evitá-lo; mas, ou seja porque Maria gostasse dos brincos do Sr. Alfredo, ou seja porque não o pudesse evitar completamente, o certo é que o moço achava sempre ocasião de lhe falar de amor, e algumas vezes ele, e Maria chegaram a divagar sobre este ponto; Maria advogando o consorcio, e Alfredo falando contra. Maria, ao depois julgando melhor evitar discussões a este respeito, ou sorria-se, ou ficava muda, ou respondia por meio de evasivas. Um dia, porém, o Sr. Alfredo chegou a ser tão explicito e positivo, que obrigou a que a moça igualmente o fosse: Maria disse-lhe pouco mais ou menos isto:
- Alfredo (eles se tratavam com familiaridade), eu não sei quais são os vossos sentidos a meu respeito... o que porém sei é que, vista minha posição em casa de vossa boa a virtuosa mãe, eu não posso sair dela senão com um marido...
-
- Ou continuar a viver nela, casada; não é assim? (perguntou Alfredo).
-
- Sim, (respondeu Maria).
-
- Comigo? (perguntou o moço).
-
- Ou com quem Deus me destinar, (tornou ela).
-
- Comigo, não, Maria! (disse Alfredo). É impossível!...
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- Alfredo, eu não vos compreendo... explicai-vos (disse Maria)...
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- Como é que hei-de casar convosco? (tornou o moço). Quem sois vós? de onde viestes? quem são vossos pais? de que país sois? qual é o nome de vossa família? Eu não me hei-de casar com uma...
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- Vagabunda... acabe, Sr. Alfredo (disse Maria curvando-se, e afetando uma mentirosa humildade, que era a expressão de altiveza, ou a simulação do orgulho ofendido, que se finge humilhado, porque se não pode vingar, como a cobra ofendida, mais impossibilitada de vibrar seu dente).
-
- Sim (disse o Sr. Alfredo). Já que o dissestes, sim... Minha mãe já notou que eu gosto de vós, e disse-me que eu visse o que fazia; que ela se não importava com cousa alguma que eu fizesse; mas que jamais consentiria que vós fosseis minha mulher... vede, pois...
-
Enquanto o Sr. Alfredo assim falava, Maria, com os braços cruzados diante dele, contemplava-o com soberania e desprezo. Depois consentindo que seus lábios esmagassem entre eles uma parte desta injuria transformada em um sorriso irônico, disse:
- Então a Sra. D. Lordecene disse isso?
-
- Sim... disse (respondeu o Sr. Alfredo também com um sorriso)...
-
- Pois, Sr. Alfredo, sou tão grata à senhora sua mãe, que nem por isso lhe quero mal. Faça- me o obsequio de dizer-lhe que Maria rogará sempre a Deus por ela; e que de hoje em diante a vagabunda pedira mais a Deus pela Sra. D. Lordecene, e seu filho, que por si própria. Adeus, Sr. Alfredo.
-
Maria disse estas palavras nobremente, e voltou as costas ao mancebo. Então ouviu o moço chamá-la mais de uma vez, dizendo:
- Maria, ouvi... um só instante... ouvi Maria...
-
A moça não se voltou mais, e entrou para seu quarto. Des desse instante até o cair da noite o Sr. Alfredo procurou falar a Maria, que não saiu mais do seu quarto. A essa hora o Sr. Alfredo saiu. A hora da ceia Maria pretextando um ligeiro incômodo, não veio para mesa. Durante a noite, em casa da Sra. D. Lordecene nada ocorreu: de manhã, porém, Maria não estava em casa.
XXX
CONTRA A EXPECTAÇÃO DO JUIZ DE PAZ O JOVEM CRIMINOSO DEIXA A HISTÓRIA DE MARIA E COMEÇA A FALAR DE SI
Quando o mancebo, que contava estas cousas, falou do insulto, que à Maria fizera o Sr. Alfredo, o juiz de paz franziu sua larga testa, carregou o sobrolho, cruzou os braços, e num silêncio sombrio aguardou até o fim o desfecho desta história! Quando o mancebo disse que Maria tinha deixado a casa da Sra. D. Lordecene, o juiz de paz desenrugou um pouco sua fronte, uma chama inqualificável brilhou instantaneamente em seus olhos, e um ligeiro, mas gracioso sorriso, roçou levemente seus lábios, e desapareceu debaixo das rugas de suas faces. Esse sorriso era intraduzível; podia ser a expressão irônica de uma dor, ou um sinal fugitivo de um prazer interno! O mancebo fez então também uma parada, e pouco depois prosseguiu:
- Ontem, senhor, eram talvez mais de seis horas da tarde, quando parei nesta estalagem. Logo que aqui cheguei tomaram-me o meu cavalo. O dono da casa apareceu, e não sei porque seu rosto e sua voz me incomodaram. Ele cometeu-me negócios sobre o meu cavalo, que eu não quis aceitar. Pedi comida; e sempre que eu podia, fitava este homem, que minha alma repelia com todas as forças. Parecia-me que já o tinha visto e ouvido; porém, por mais que eu chamasse as minhas recordações, não me podia lembrar do tempo, lugar, e circunstâncias em que vira este homem. Não obstante, uma ideia horrível me afligia; mas, essa ideia me parecia uma tentação, e como tal eu procurava expeli-la de minha cabeça.
-
Algum tempo depois novos hospedes entraram a estalagem, e um deles era acompanhado por um preto, que me pareceu conhecê-lo; mas as mesmas dúvidas... como? de onde? por quê? Este preto, tendo arranjado o que pertencia a seu senhor, saiu, e deitou-se à sombra de uma árvore aí junto à casa. Procurei-o, e puxei conversa com ele. Principiei por perguntar-lhe se era daqui, ou do Rio de Janeiro; perguntou-me porque lhe fazia eu essa pergunta; respondi-lhe que me parecia que já o tinha visto, mas que me não lembrava onde. Então perguntei-lhe se tinha vindo para cá vendido; ele suspirou, sacodiu a cabeça, e disse: “Qual, meu senhor moço... foi uma história que me arranjaram, porque eu quis fazer um bem.” A estas palavras mostrei-me admirado, e pedi ao preto que me contasse essa história. O preto fez muitas cerimônias, e não se resolveu a contar os seus acontecimentos senão depois que lhe permitisse guardar segredo; eu lho prometi, salvo todavia algum acontecimento imprevisto. Dada a minha palavra debaixo desta condição, contou-me ele a história do assassinato de Augusto, e do roubo de Maria, o que eu não ignorava; o que porém não sabia, e que fiquei então sabendo, foi que o pai de Maria não morrera do tiro. Maria, senhor, quando contou esta história aos mineiros, à Sra. D. Lordecene, e aos mais que lhe perguntavam, dizia que seu pai havia morrido do tiro. O preto, além disto, contou a perseguição que lhe havia feito o Sr. Estevam, e a Sra. D. Tereza, e acabou dizendo que o Sr. Estevam desaparecera da noite para o dia. À vista desta história compreendi que não me havia enganado: com efeito, eu tinha visto o preto, e já me lembrava onde, como, e por quê; mas, quanto ao Sr. Estevam, não tinha certeza. Então perguntei ao preto se nunca mais tinha havido notícias do Sr. Estevam: “Andou algum tempo oculto, até que depois apareceu por aqui, com casa de negócio” (me disse ele). — Por aqui onde? (perguntei eu) pela Paraíba? — O preto sorriu-se maliciosamente, e eu continuei: - Sou capaz de adivinhar onde está o Sr. Estevam... “— Qual!...” (tornou ele) e eu lhe disse: - E, se eu lhe disser onde está, e for verdade? — O preto olhou-me fixamente, e disse: - Se meu senhor moço disser, e for verdade, eu não negarei.” — Pois é o sujeito que aqui está nesta casa. — Disse eu, e o preto tornou-me: “Mas, quem lhe disse? como sabe?” — Mestre José (lhe disse eu), sei tanto da história de Maria, como você, e desde que aqui entrei, e que lhe vi, desconfiei que você era o José Pachola, e que o Sr. João Esteves era o Sr. Estevam. O que eu não sabia é que seu pai não morrera do tiro. Os sinais que me deram do Sr. Estevam, de José Pachola, e de Pedro Mandingueiro, foram tão positivos, que jamais me escapariam.” — Mas, meu senhor moço, quem lhe contou tudo isso? Seria tia Laura mesmo?” (perguntou o preto). — Sim, a mesma tia Laura (respondi eu).
Em consequência da chuva, que ontem caíra, eu, e os demais hospedes desta casa, não pudemos prosseguir nossa viagem, e força nos foi aqui pernoutarmos. Antes de nos agasalhar tive uma conversa com o Sr. Silva, que é, não senhor do Pachola, mas irmão de sua senhora, e o tem à sua conta, e perguntei-lhe se a senhora do José o forraria; ele disse-me, que como forro vivia ele em sua casa, não fazendo mais que tratar de seus cavalos, e acompanhá-lo em alguma pequena viagem. Perguntou-me porque queria eu forrar o preto: pretextei o que pareceu-me, e pedi-lhe que me dissesse onde, no Rio, poderia encontrar a dita senhora. Ensinou-me, e eu despedi-me.
À hora de agasalharmo-nos disse-me o Sr. Estevam que todos os quartos estavam ocupados, e que por isso eu dormiria nesta cama. O Sr. Estevam acompanhou-me até aqui, e ao retirar-se disse- me que eu podia fechar por dentro as portas e janelas. Logo que ele retirou-se, fi-lo. Quando fiquei só, assentei-me sobre esta cama, e recostado a esta grande mesa, comecei a pensar sobre este homem, e as desgraças que ele havia causado à infeliz Maria. Confesso, eu tinha medo dele, e por isso não me quis despir. Depois tomei a minha pequena mala, que nunca larguei, abria-a (sic), e para contar e fazer meus cálculos, tirei o dinheiro que nela trazia, porque uma porção era em prata, e ouro, e contei-o. Findo isto, guardei o dinheiro, quando me ia outra vez assentar no mesmo lugar da cama em que estivera assentado, ouvi um rumorzinho naquela porta, e não sem grande admiração minha, e susto, vi abrir-se na mesma porta aquele postigo, e aparecer nele a cabeça do Sr. Estevam. Tremi, porque sempre se treme diante dos malvados! mas chamei Deus e a Virgem Santíssima em meu socorro, e esperei o resultado. Cumpre acrescentar aqui que, como tinha nos bolsos de minha larga calça as minhas pequenas pistolas, assentei de, fiado nelas, impor ao Sr. Estevam o respeito que eu queria manter, se ele se atrevesse a alguma cousa; é porém verdade que eu não penetrava as suas intenções, que me pareciam não boas, visto o caminho por onde vinha.
O Sr. Estevam entrou para esta sala, e serrou o postigo. Eu continuei assentado no mesmo lugar. Felizmente para mim o homem não podia chegar à minha cama sem rodear esta grande mesa, o que me dava tempo de salvar-me, rodeando-a pelo lado oposto. O Sr. Estevam assentou-se defronte de mim, do outro lado da mesa, ficando esta entre mim e ele. Aí assentado, disse-me: “Então o menino não quis se despir?” — Não, senhor (lhe tornei eu). “Por quê? (perguntou-me ele)”
— Como tenho de sair muito cedo (lhe respondi), quero já estar pronto para viagem. — “O menino então vae para o Rio de Janeiro... Bem; mas que é seu pai?” à esta pergunta respondi-lhe: - O senhor não conhece meu pai. — “Como, meu menino? se eu conheço a meio mundo!...” Isto me dizia ele com um sorriso escarnecedor, e eu lhe tornei: - Pois meu pai não é do mundo. — O Sr. Estevam fez: “Hã... hã! (e continuou) Mas o menino tão criança... fazendo uma longa viagem sozinho... num cavalo tão bonito... e trazendo até dinheiro de ouro e de prata... Não... aqui há cousa...” — Que cousa?! (perguntei eu um tanto assomado) — e ele com uma diabólica pachorra, disse-me: “Ora que cousa? alguma estripulia de crianças... uma gaveta arrombada... um cavalo furtado... Enfim, meu menina...” — Menina?! — (perguntei eu com ímpeto). “Sim... (me disse ele). Um rapaz com essa cara é mais uma moça que um moço...” — Sr. João Esteves, (disse-lhe em um tom muito grave). Não o conheço, nem o quero conhecer... Seja eu quem for... não tenho que lhe dar satisfações... Eu quero dormir... — “Ah! meu menino! que modo! Eu não vim ofendê-lo... Venho antes fazer-lhe uma proposição...” Então perguntei-lhe: - Que proposição? — Antes de responder olhou-me de um modo tão não sei como... que me fez estremecer da ponta dos cabelos até as unhas dos pés, e depois disse- me: “Com efeito, é bonito rapaz! O menino há-de ficar morando comigo. Aqui nada lhe há-de faltar: boa mesa, vestidos finos, dinheiro à sua disposição, tudo, tudo quanto quiser... porque preciso de um caixeiro...” — Fico-lhe muito obrigado (respondi eu); mas não posso aceitar... Quero seguir meu destino. — “Ora deixe-se disso, menino... (tornou-me ele). Deixe-me assentar perto de você, para conversarmos mais a gosto...” Dizendo isto, ergueu-se para rodear a mesa, e vir para junto de mim.
Levantei-me também, e fui fugindo pelo lado oposto, e dizendo: - Se o senhor não se retira, e já, veja que grito... — “E que importa? (disse o homem) eu meto-me por baixo desta mesa, e o agarro... Se se calar, bem iremos; se intentar fazer barulho, eu o farei calar com esta faca... Ficarei herdeiro daquelas moedinhas, que estão naquela mala, e daquele belo cavalo, que é uma estampa. Ninguém saberá quem o matou, porque ninguém sabe daquele postigo por onde vim, e por onde irei.” à este tempo brilhava nas mãos do Sr. Estevam aquela faca, que ali está sobre a mesa! As palavras do Sr. Estevam me haviam causado medo! eu temia que ele tivesse descoberto um segredo que me era preciso manter à todo o transe! Deste segredo dependia a minha salvação, e a minha honra! Além disto, o empenho que ele fazia de aproximar-se de mim, me enchia de pavor. Colocado então no último extremo, apelei para as minhas forças. Resoluto, meti as mãos aos meus bolsos, e tirei as minhas pistolas, e armadas, e engatilhadas, apontei ambas pra ele dizendo: - Se dá mais um único passo, faço-lhe saltar os miolos... — O homem parou, e reconheci que teve medo. Então com voz mal segura, e com um disfarce por demais grosseiro, disse-me: “Oh, meu amigo! isto era brincadeira!” — Não duvida (disse-lhe eu); mas já agora é preciso chegarmos a um acordo... — “Estou pronto. Qual é? (perguntou-me ele)” e eu lhe respondi: - Largue a faca sobre esta mesa, e retire-se para aquele canto da sala. — “Então agrada-lhe que eu faça isso? (perguntou o homem)” e eu lhe tornei: - Sim, senhor, agrada-me — “Pois eu o farei, não por medo, mas por ver que nisso lhe dou gosto.” Dito isto, largou a faca, e foi pôr-se no lugar por mim indicado. Então tomei a faca, guardei-a; e pensando no dito, que — quem a seu inimigo poupa, nas mãos lhe morre — entendi dever acabar com este homem funesto, ou morrer.
Assim pensando, tomei aquele tinteiro, e papel, e escrevi isto. Queira V. S. ler. — O juiz de paz leu o seguinte:
“Eu, o mancebo, que no dia 12 de dezembro de 1838 cheguei a casa do Sr. João Esteves, onde nessa noite pernoitei, declaro, e juro aos Santos Evangelhos que na madrugada do dia 13 do mesmo mês, e ano, em um duelo de morte, muito nobre, lealmente bati-me com o mesmo senhor à pistolas, dando-lhe a vantagem de atirar primeiro. Faço, e sobre esta mesa deixo esta solene declaração; para que, no caso de eu morrer, não seja o dito senhor tido, como um vil assassino.
“Vila de Paraíba do Sul, 13 de dezembro (pouco depois da meia-noite) de 1838. “O mancebo que aí pernoutou nesse dia, e que não tem
Nome Entre os Homens.”
- Mas, meu filho (disse o juiz de paz), esta assinatura...
-
- Assignei a verdade, senhor (disse o mancebo). Já agora vamos até ao cabo da história.
-
— Pois bem: vamos.
O mancebo criminoso prosseguiu desta sorte:
- Enquanto eu escrevia esta declaração, o Sr. Estevam estava ali em pé (o mancebo apontou para um dos ângulos da sala, que ficava mais distante da mesa, e da porta onde havia o postigo por onde entrara o Sr. Estevam), e eu tinha junto de mim as minhas pistolas prontas. Quando acabei de escrever, li alto para o Sr. Estevam ouvir; e ele tendo ouvido, disse:
-
- Como, meu menino, pois vamos nos bater?
-
- Irremediavelmente (disse-lhe eu). E ele tornou-me:
-
- Oh, meu Deus! isso é uma desgraça!
-
- Para quem, Sr. João Esteves? (perguntei-lhe-eu).
-
- Para o senhor, visto que quer que eu atire primeiro (tornou-me ele). Ao que eu respondi:
-
- Não tenha pena de mim. Atire, e mate-me. Tenho até vontade de morrer. O Sr. Estevam tornou-me:
-
- Não, não o quero matar, e por isso não aceito o duelo.
-
- Está enganado (disse-lhe eu); há-de escolher uma das duas: ou aceita o duelo, ou faço-lhe fogo já... Decida.
-
- Nesse caso (disse ele), aceito, porque sou forçado.
-
- Bem (disse-lhe eu) quer atirar primeiro?
-
- Quer o senhor atirar primeiro, ou quer que eu atire (perguntou-me ele)?
-
E eu respondi-lhe:
- Quero que o senhor atire primeiro. Antes, porém, chegue-se à esta mesa, e escreva uma declaração, como lhe eu ditar.
-
Com efeito, o homem chegou-se para mesa, conservando-me em distância dele de modo que me pudesse servir de minhas pistolas, no caso de aperto.
O Sr. Estevam assentou-se, tomou papel, e foi escrevendo o que eu lhe ia ditando. Eis a declaração que escreveu.
O jovem criminoso, dizendo isto, tomou a declaração, que estava sobre a mesa, e debaixo de um tinteiro, e deu-a ao juiz de paz, dizendo:
- Logo que o Sr. Estevam a escreveu, dobrei-a e pu-la aqui, debaixo deste tinteiro, de onde não saiu senão agora.
-
O juiz de paz tomou a declaração, que era do teor seguinte:
“Eu, abaixo assignado, declaro, e juro aos Santos Evangelhos, que, na madrugada do dia 13 de Dezembro do ano de 1838, em um duelo de morte, muito nobre, e lealmente bati-me com o mancebo, que à minha casa chegou no dia 12 do mesmo mês e ano, e que nela pernoutou; sendo o duelo a pistolas, no qual deu-me ele a vantagem de atirar primeiro. Faço, e sobre esta mesa deixo esta solene declaração, para que, no caso de eu morrer, não seja o dito mancebo tido como um vil assassino.
“Vila da Paraíba do Sul, em 13 de Dezembro de 1838.
João Esteves.”
Depois que o juiz de paz leu estas duas declarações, dobrou-as, e meteu-as no bolso. O mancebo continuou:
- Feita esta declaração pelo Sr. Estevam, mandei-o outra vez para aquele canto, onde estivera antes. Logo que ali esteve, mostrei-lhe as pistolas, e dizendo-lhe que ambas estavam carregadas, convidei-o para que escolhesse a que quisesse. O homem, que tudo fazia com ronha e velhacaria, foi se aproximando, como para escolher a pistola...
-
- Alto lá... (bradei-lhe eu, apontando-lhe as duas armas à cara). Alto lá... se não, morre...
-
- Mas como hei de escolher uma pistola sem ver as duas (perguntou-me ele)?
-
- Daí mesmo (disse-lhe eu). Tenho uma em cada mão: ambas estão carregadas. Qual escolhe, a da mão direita, ou a da esquerda?
-
- Mas (disse-me ele com visível embaraço), eu atiro primeiro... e, se a minha pistola negar fogo não perco a vantagem de atirar primeiro?
-
- Se negar fogo (tornei-lhe eu), dou-lhe a vantagem de atirar segunda vez, e terceira, quarta, quinta, sexta, enfim, todas as que quiser enquanto a sua arma negar fogo; mas lhe asseguro que não há-de negar. Segure bem a sua pontaria, e atire. O espaço não é longo... Esta sala... creio que não terá mais de vinte e cinco, a trinta palmos, e à tal distancia não deve errar. Vamos, qual escolhe?
-
- Tomarei a da mão direita (disse ele).
-
Imediatamente tirei a espoleta a essa pistola, e pu-la sobre a mesa, para que o Sr. Estevam a viesse buscar. Ele tomando a pistola, e vendo-a sem espoleta, disse:
- Isto é traição! A pistola não tem espoleta!!!
-
- Não se assuste (respondi-lhe eu); vou dar-lhe a espoleta. Como tenho a desgraça de o conhecer, e conhecer muito, é-me preciso toda cautela com vosmecê. Assim, enquanto vem buscar a pistola sobre a mesa, enquanto volta para seu posto, e escorva, etc., é mister que eu tenha sempre a minha pistola de pontaria feita, para lhe fazer voar os miolos, no caso de uma traição... hem?
-
- Então o senhor me conhece muito (perguntou-me o homem)? Eu, embrulhando em um papel doze espoletas, disse-lhe:
-
- Vou lhe atirar doze espoletas embrulhadas neste papel... Logo que as receber, eu faço a minha pontaria à sua testa... Minhas armas não negam fogo; e então só a sua honra o poderá salvar...
-
- Como (perguntou-me ele)?!
-
- Se fizer sua pontaria no lugar em que está, se não der nem meio passo para diante, e acertar- me... dê parabéns à sua fortuna... Mas note, se intentar alguma traição, e avançar só meio passo... então disparo imediatamente. Veja lá: eu me encosto a esta parede; assim como estou... olhe... espero a sua bala... (Eu dizia isto, encostado àquela parede, e fazendo os movimentos próprios). Acerte-me na cabeça, ou no coração, e está tudo acabado. O senhor fará o mesmo... Há-de disparar, e ficar aí quietinho, encostado nessa parede. Ora bem, aqui tem as espoletas. (E dizendo isto, atirei- lhe o embrulho das espoletas).
-
O homem abaixou-se, tomou o embrulho, e tirando dele uma, começou a escovar a pistola.
Então, disse-lhe eu, vendo ir levantando a pistola:
- Segure o ponto... Não faça, como na Praia-Pequena, quando assassinou Augusto para roubar-lhe a filha.
-
O Sr. Estevam, tirando a arma da pontaria, todo trêmulo, e com voz medrosa, disse:
- Quem é o senhor?...
-
- Não é da sua conta (tornei-lhe eu). Se não atira, morre...
-
Com efeito, ele tornou a fazer ponto, e disparou, mas sempre traidor; apenas disparou, abaixou-se, e talvez por isso errasse o seu tiro: não obstante, porém, abaixar-se, a boca de minha pistola seguiu a direção de seu peito, e irritado ainda com mais esta perfídia, segurei bem a minha pontaria.
XXXI
QUEM ERA O JOVEM
Neste lugar da narração o mancebo parou, e com os braços cruzados diante do homem da lei, ficou mudo, e estático. No entanto, em seus olhos, em seus gestos, e em seus modos, havia alguma cousa de misterioso, que bem se via que ele desejava revelar; mas que era contido por medo, ou algum receio, ou enfim por alguma desconfiança. O juiz de paz conheceu perfeitamente a existência deste mistério, e deste medo ou receio, ou o que quer que fosse; mas, temendo uma indiscrição, nada se atrevia a perguntar, bem como o mancebo a nada mais dizer. Assim, ambos mudos, imóveis e receosos, conservando-se defronte um do outro, estiveram durante um ou dois minutos. Então o juiz de paz como um homem polido, que sabe respeitar uma posição melindrosa; como um homem discreto, que foge de afrontar os segredos alheios; mas como um homem fino, que tem compreendido a existência de uma falta de confiança; fingindo não entender a existência desses segredos, ou o melindre dessa posição, e essa falta de confiança, disse:
- Então, meu filho, terminou a sua história?
-
- Sim, meu senhor (disse o jovem).
-
- Pelo que tenho ouvido, creio que é alguma pessoa, que vae em busca de Maria, não?
-
- Não, Sr. Juiz.
-
- Então nada compreendo... Não é o Sr. Alfredo?...
-
- Também não, senhor.
-
- Talvez algum apaixonado de Maria?...
-
- Menos, meu senhor.
-
- É extraordinário!
-
- O que, Sr. Juiz?
-
- Pelos seus acontecimentos, que nesta casa tiveram lugar, venho no conhecimento de que o senhor não matou ao Estevam para vingar o roubo de Maria, nem o assassinato de Augusto; mas sim por temer desse Estevam um insulto qualquer: não é exato?
-
- Exatíssimo.
-
- Mas o senhor podia ter contado os seus acontecimentos, sem contar a história de Maria, que me parece ter aqui entrado como Pilatos no Credo; visto que o senhor por si, e não por ela, foi que se bateu.
-
- Também é verdade.
-
- Mas para que veio a história de Maria? Para unicamente ter o bárbaro gosto de me causar as mais dolorosas impressões, e gozar do cruel prazer de me ver chorar como uma criança? O que há, pois, de comum entre Maria, e o matador de Estevam?
-
- Que sua história está intimamente ligada.
-
- Mas não vejo esta ligação...
-
- É que ainda não a acabei.
-
- E o que falta?
-
- Que V. S. jure pelo Santo Nome de Deus, e pela sua honra de não revelar jamais, seja a quem for, o segredo que vae ouvir.
-
- Pois bem. Juro pelo Santo Nome de Deus, e pela minha honra, de não revelar à pessoa alguma o segredo de que vou ser depositário... Estais contente, meu filho?
-
- Sim, senhor; agora sim.
-
- Agora diga-me o que há de comum entre Maria, e o matador de Estevam.
-
- Que Maria e o matador de Estevam são um único personagem!
-
O juiz de paz, pálido, vermelho, com os olhos em fogo, delirante, como um possesso, desconcertado, e sem acordo; erguendo ao ar os trêmulos braços, mal se podendo firmar sobre as pernas; atirou-se ao pescoço do pretendido mancebo, exclamando com voz balbuciante:
- Minha filha!!!...
-
Única frase, que numa luta suprema, como nas supremas lutas das grandes paixões, a dor, e o prazer arrancaram-lhe ao coração já eivado do muito padecer! e como para arrancá-la era preciso um omnipotente esforço, nesse esforço extraordinário acabou por despedaçar-se o coração! Ergueu-se no peito, bateu com força, como a última pancada de vida, soltou a frase da dor, e do prazer, despedaçou-se, e caiu no peito, quando o corpo, já tão fraco que não podia suportar o vaivém dessa luta suprema, e desses esforços sublimes, desamparado das forças vitais, caiu também sem sentidos!
O corpo de Augusto (que era o juiz de paz) iria redondamente medir o chão, se Maria (que era o pretendido mancebo) não o amparasse em sua queda, e não o assentasse na cadeira, que estava próxima.
Maria tirou imediatamente da algibeira de sua jaqueta um pequeno vidro, que continha agua de Colônia, e dando a cheirar a Augusto, e esfregando-lha nas fontes, começou de diligenciar para fazê-lo tornar a si.
A moça que, não obstante as lágrimas, as exclamações do juiz de paz durante a narração de sua história, e o interesse, que lhe prestara, nada havia desconfiado, porque, bem que soubesse que seu pai não morrera na Praia-Pequena, contudo o acreditava no Rio de Janeiro, caso fosse vivo; à vista desta derradeira efusão, ouvindo este grito — Minha filha! — começou a desconfiar o que quer que fosse.
A síncope de Augusto não a fez desesperar. Os pedaços daquele coração, pesados do amor filiar, procuraram seu centro; aí se reuniram, e esse coração, bafejado pela celeste aragem de vivificadora esperança, ungido pelo balsamo das lágrimas do amor filiar, palpitou de novo; Augusto voltou à vida. Maria então lhe disse:
- Senhor, que significam essa palavras?
-
- Minha filha... eu sou Augusto, teu desgraçado pai...
-
— Meu pai!!!...
Foi a única resposta de Maria, e caiu-lhe nos braços!... O pai e a filha serraram-se estreitamente em um destes abraços inqualificáveis pela mistura dos afetos! Serraram-se pois num abraço que, bem que traduzindo todos os indefiníveis abalos d’alma, exprimindo todas as inefáveis efusões de uma agnição estupenda; não pode todavia ser descrito, nem ainda pela mais estupenda de todas as penas!
Há na vida humana cenas de tal maneira enfáticas, nobres, e augustas, que ninguém pode, que ninguém deve descrevê-las; e fazê-lo, é enlanguescer essas cenas, despojá-las de sua energia natural, rebaixá-las ao grau da vulgaridade, tornar prosaico o que tem de poético, profanar o que em si tem de santo, e tornar pequeno, feio, e ridículo o que nelas há de grande, de belo e de sublime!
O narrador toma a liberdade de pedir ao leitor que se coloque no lugar de Augusto, e à ilustre leitora no lugar de Maria, e então poderão fazer uma ideia aproximada das sensações delicadas desses dois corações; das comoções sublimes, dos abalos supremos, dos sentimentos ternos, dos variados afetos, das estremecidas efusões, e de todas as dores, e prazeres, temores, e esperanças, que constituíam a solenidade dessa peripécia maravilhosa, da qual, tanto o pai, como a filha, talvez tivessem há muito perdido as derradeiras esperanças!
Passado este momento de transporte, e entusiasmo, Augusto, depois de ter abraçado muito, e beijado sua filha, disse-lhe:
— E agora, minha filha?
— E agora o que, meu pai (perguntou a moça)?
— Criminosa! nodoada aos olhos do mundo!...
— Meu pai, estou pura, parece-me, aos olhos de Deus: estarei igualmente pura aos olhos de meu pai?
— Não o duvides, não, minha filha.
— Então que me importa o mundo?!
— Mas entregar-te a justiça?
— Sem dúvida, meu pai.
— Oh! é horrível!
— Mas é forçoso.
— Minha filha!...
— É forçoso, meu pai. Triunfem o amor filial e paternal, exulte a natureza; mas não gema a justiça. Se a lei me considera criminosa, seja eu entregue à lei. Seguirei meu destino. Folgue o pai nos braços da filha; mas não se aniquile a honra do Juiz!
— Oh Providência!
— É justa a Providência, e a nós só convém abençoá-la.
— Maria... minha filha, o que dizes?
— A verdade, meu pai. A Providência permitiu que eu fosse insultada; que por causa deste insulto fugisse à minha benfeitora; que viesse parar à esta casa; que nela salvasse o mundo de um monstro, e que em consequência deste feito, a que o mundo chama um crime, reencontrei meu pai. Sem este insulto, sem este pretendido crime, Maria seria sempre a órfã, a menina achada sobre uma estrada, uma vagabunda enfim..... Meu Deus (Maria assim falando, caiu de joelhos, e com as mãos erguidas ao céu, continuou), meu Deus, como são profundos os vossos juízos, e incógnitos os caminhos da vossa Providência! Já não sou uma miserável, uma vagabunda! O mundo já me não afrontará, perguntando-me por minha família, por que posso lhe mostrar meu pai. Obrigada, meu Deus, obrigada.
Augusto, banhado em lágrimas, sufocado em soluços, levantou sua filha em seus braços dizendo:
— Mas quando o mundo falar de teu crime, minha filha?
— O mundo verá que fui forçada a esse crime. O Sr. Estevam, passando ao meu aposento sem meu beneplácito, ostentava-se como um ladrão. Os seu olhares deveriam encher de medo a uma mulher honesta; o empenho, que ele punha em que eu ficasse em sua casa, e o desejo que tinha de aproximar-se de mim, me faziam desconfiar que havia descoberto o meu sexo, e logo que eu tive esta desconfiança, já não podia continuar a minha viagem com segurança, e então era mister ou a minha morte, ou a deste homem, ou a de ambos nós.
— Mas, minha filha, para onde te dirigias?
— Para o Rio de Janeiro.
— E depois?
— Para um convento, onde professaria. O meu pouco dinheiro devia chegar para minha dotação.
— Meu Deus: iluminai-me sobre o que devo fazer!...
— É claro, meu pai.
— Como, Maria?
— Meu pai deve organizar o meu processo, porque não deve de maneira alguma revelar o nosso segredo. A verdade do acontecimento me basta; não preciso do menor favor. Feito isto, devo ir para a prisão. Deus e meu pai, velarão sobre mim. O resto, meu pai, pertence a Deus: deixemo-lo obrar como quiser, e não tentemos a sua Providência.
XXXII
EXPLICAÇÕES
O pai e a filha por longo tempo entregaram-se ainda aos seus transportes, dando-se de mais a mais ao doce prazer de darem um livre curso às suas amorosas lágrimas. Augusto contou à filha miudamente tudo quanto lhe havia acontecido desde o momento em que a perdera até o momento atual. O leitor poderá bem figurar, que de lágrimas de transportes, de sensações, etc.... não custaria aos dois esta narração, que deveria ser terna, apaixonada e patética!
Depois Augusto pediu a Maria que lhe contasse o como tinha efeituado a sua saída da casa da Sra. D. Lordecene.
Maria tomou a palavra, e falou nos seguintes termos:
— Insultada pelo Sr. Alfredo, não saí mais do meu quarto. Lá pelas dez horas, talvez, tendo escrito uma carta, dobrei-a, fechei-a, e pus-lhe sobrescrito para a Sra. D. Lordecene; esta carta pus sobre uma mesa. O rascunho guardei comigo. Vendo que a casa estava em silêncio, fui ao quarto de um rapazinho, que era o nosso pajem (ele é do meu corpo), tirei de sua caixa duas mudas de roupa, um par de botins, o chapéu, o chicote, e uma pequena mala, e com isto voltei para meu aposento: aí vesti uma das mudas, calcei os botins, e pus-me pronta; a outra muda meti na mala, com todo o meu dinheiro, o meu polvarinho, e chumbeiro, bem providos, algumas buchas e uma caixinha de espoletas: tomei as minhas pistolas, carreguei-as com balas (pois as tínhamos para os nossos divertimentos ao alvo), e meti-as nos bolsos de minhas calças, que felizmente me ficaram um tanto largas. O meu ouro, que a Sra. D. Águeda me havia deixado, e toda a minha roupa, deixei ficar. Feito isto, para não deixar aberta a casa de minha benfeitora, fechei por dentro a porta de meu quarto, e saí por uma janela dele. Na estribaria tomei o meu cavalo, arreei-o, pus-lhe a mala, e parti.
— E a que horas?
— Eram talvez onze, pouco mais, ou menos.
— Uma menina de dezoito anos... tão só, e a tais desoras.
— Não, meu pai, nem só, nem a desoras...
— Como?!
— Ninguém está só, porque Deus está em toda a parte. Para o justo, para o bem intencionado todas as horas são boas. As minhas intenções eram puras; saía da casa de minha benfeitora para a casa do meu Criador; deixava a Sra. D. Lordecene por Deus; eu não podia perder na troca; nem a Sra. D. Lordecene ofender-se pela preferência!
— Minha filha, parece-me que a Sra. D. Lordecene é uma mulher mui piedosa, uma verdadeira cristã, cuja fé faria honra aos mártires do cristianismo!
— Sem dúvida, meu pai. Posso até jurá-lo.
— Nesse caso, como acreditar nas palavras do Sr. Alfredo?
— Eu não sei o que ela disse a seu filho, e disso me desejo esquecer; só digo o que dela sei.
— Maria, no ponto em que nos achamos, parece que deve haver entre nós toda a franqueza...
— Sim, meu pai.
— Que pensavas tu do Sr. Alfredo, antes desse acontecimento?
— Que tinha bom coração, que era honrado e virtuoso, não obstante algumas ligeirezas próprias de sua idade, e algumas ideias menos justas, fruto das aulas em que estudou.
— E quais eram os teus sentimentos para com ele?...
— Os meus sentimentos... (disse a moça fazendo-se vermelha, e abaixando a cabeça).
— Sim, minha filha...
— Amava-o, meu pai! (disse ela em um tom sentimental e doloroso).
— Eu o tinha pensado: está bem. Tens o rascunho da carta que deixaste para a Sra. D. Lordecene?
— Ei-lo aqui.
Maria tirou de sua mala um papel dobrado, que entregou a seu pai, o qual abriu, e leu o seguinte:
“Minha Mãe.
“Quis Deus que a minha educação fosse obra sua; mas não a minha felicidade ou desgraça! Quando esta receber, Maria... a desgraçada Maria, a mísera órfã, a pobre menina achada num caminho público, a vagabunda Maria... estará longe, e em longe do lar hospitaleiro, que com tanta bondade a recebeu, onde foi tão ditosa, e onde, por experiência própria, soube que a ventura existia na casa da virtude! longe e bem longe daquela a quem deve tudo, tudo... a quem ama, como uma terna filha a uma caridosa mãe... de quem jamais se queria separar, e nem se separaria se a Providência a tanto a não obrigasse!
“Minha mãe, perdoe-me este passo... mas sou forçada a ele! Ah! pelo Céu, pelo Céu não me amaldiçoe, e lastime o meu destino! Quem sabe o que será de mim! mas devo a mim própria este espantoso e insólito sacrifício!
“Se Maria chegar ao seu destino, e vir coroados os seus votos, dará conta de tudo à sua Benfeitora, a sua mãe adoptiva, à virtuosa, à santa Sra. D. Lordecene.
“Minha mãe, trago duas mudas de roupa do Serafim; isto me é preciso.
“Ainda uma vez... perdão, perdão, pelo amor de Deus... e a sua santa bênção todos os dias! “Adeus, minha mãe, adeus!
“S. C. 12 de dezembro de 1838.
Sua filha
“Maria Lordecene dos Anjos.”
— Que nome é este, Maria? (perguntou Augusto)
— Eu me lembro (respondeu Maria), que minha mãe me ensinava que o meu nome era Maria dos Anjos.
Augusto, enxugando as lágrimas, que desde o princípio da leitura da carta corriam de seus olhos, disse:
— Assim era; mas este — Lordecene?
— Adotei-o de ontem para cá, meu pai.
— Pois fique adotado. Ainda tens, minha filha, uma malha de cabelos cor de fogo no alto da cabeça?
— Sim, meu pai; não tão cor de fogo; mas diferentes dos outros. É aqui, bem no alto da Augusto e sua filha ainda se entretiveram até quase ao meio-dia; à essa hora Maria, montada em seu belo cavalo, seguida do juiz de paz, do escrivão, e meirinhos, foi para a cadeia da vila, a cujo carcereiro o juiz de paz a entregou, recomendando que tratasse o preso com toda a decência e respeito. Augusto tomou conta do cavalo, arreios, mala, etc., do jovem preso, e incumbiu-se de sua comida e cama.
XXXIII
A MOÇA INCÓGNITAT
Augusto em vez de seguir para sua fazenda, veio para a vila e ficou em uma casa que aí tinha; dessa casa mandou à fazenda buscar arranjos para ficar na vila por algum tempo.
Escusado é dizer que o atribulado pai não tomou alimento algum, e que passou o resto do dia chorando sobre o destino de sua filha.
Bem vontade teria Augusto de estar todo o tempo na prisão ao lado de sua filha; mas a sua posição de juiz lho proibia; além do juramento que havia dado a Maria de jamais revelar seu sexo.
Deixemos por agora Augusto, e voltemos à prisão de Maria, que havia comido bem do jantar que seu pai lhe havia mandado, e que tinha passado o dia tranquila e sossegadamente.
Às sete horas da noite, pouco mais ou menos, Maria pediu luz ao carcereiro, que imediatamente lha deu.
A cadeia era vigiada pelo carcereiro, e guardada por três guardas nacionais, cuja prontidão para o serviço não era lá muito para louvar-se. A essa hora os guardas nacionais foram cear; o carcereiro ficou só. Apenas os guardas saíram, uma moça ligeiramente vestida, envolta em um grande chalé, com um lenço por baixo dos queixos, e atado sobre a cabeça, que lhe tapava grande parte do rosto, apresentou-se ao carcereiro, e com uma aflautada voz disse:
— O Sr. carcereiro?
O carcereiro, abrindo uns grandes olhos, pondo-se sobre as plantas dos pés, e todo se empertigando, disse, aparte:
— Oh! oh! temos gente fina!
E caminhando para a moça, continuou:
— Quer alguma cousa, sinhazinha?
— Oh! Sr. carcereiro, se o senhor me fizesse um obsequio?
— Então qual é?
— Mas o senhor me promete fazer?
— Conforme... Se estiver nas minhas mãos...
— Está, sim senhor, está.
— Não basta isso: é preciso que não seja contra as minhas obrigações, porque bem vê...
— Oh... não, senhor; eu não era capaz de pedir cousa alguma contra os seus deveres...
— Então diga, minha senhora, diga...
— E o Sr. faz?
— Sendo assim, porque não. Diga.
— Eu queria que o senhor me deixasse falar com o preso...
— Hã!... Então ele é seu namorado?
— Não, senhor; ele é meu primo...
— Primo! primo!... e ele morava em sua casa?
— Morava, sim, senhor!...
— Hum!!... Por isso é que a senhora vem cá procurá-lo! Estes primos... estes primos...
— Não, senhor: ele é meu primo só, sim, senhor...
— Mas então o que é que a senhora me há-de dar, para lhe deixar falar com o tal seu primozinho?
— Eu?... O que é que o senhor quer?
— Só se me der um beijo e um abraço...
— Ora... isso não, senhor...
— Pois então não fala.
— Ora, Sr. carcereiro, porque o senhor é mau? Eu nunca dei beijos em ninguém...
— Então eram só abraços?!
— Nem abraços; não, senhor.
— E quantos beijos e abraços dava no primo todos os dias?
— Eu nunca dei beijos nele.
— Mas abraços dava. A boca não mente...
— Então me deixa falar com ele?...
— Já lhe disse: um beijo e um abraço...
— Beijo não, senhor...
— Então abraço sim?...
— Pois sim...
— Ora venha lá esse abraço.
Com efeito, o magano do carcereiro recebeu o abraço convencionado, e por sua conta deu mais alguns; mas a menina teve o modesto cuidado de amparar seu peito com os braços. O carcereiro também, por sua conta, quis dar um beijo, mas a boca da rapariga estava bem coberta com o tal lenço, no qual ela tinha um minucioso cuidado. Comprada assim a permissão de falar ao preso, dirigiram-se ambos para o xadrez, onde o carcereiro quis chamá-lo; mas a moça, impedindo-o, lhe disse:
— Assim não, Sr. carcereiro...
— Então como, menina? (tornou-lhe este).
— Eu queria entrar lá dentro do xadrez...
— Lá dentro do xadrez?! Boas!...[6]
— Então onde está o obséquio? aqui pode falar todo o mundo com qualquer preso, que não esteja incomunicável, e ele não está.
— Mas é um criminoso de morte, um assassino.
— Ora, Sr. carcereiro... deixe-se disso... Eu sou pobre; mas se o senhor se não ofende oferecer-lhe-ei isto.
A moça proferindo estas palavras, escorregou na mão do carcereiro duas moedas de ouro. O carcereiro, que não tinha aí luz, recebendo-as, chegou-se para a luz, que aluminava Maria, viu duas meias doblas. Eletrizado por este toque magico, e sacodindo a cabeça, disse:
— Tentação!... tentaçãozinha!... Enfim, eu abro o xadrez; mas abrevie, antes que venham os guardas.
Dito isto, abriu o xadrez. A moça entrou, e sem proferir nenhum monossílabo, cortejou Maria, que deitada sobre uma esteira, dormia à sono solto, tendo acordado nesse momento, à bulha da chave na fechadura do xadrez. A recém-chegada tirou do seio uma carta, e deu a Maria; esta abriu-a e leu o seguinte:
“Minha filha.
“A portadora trocará suas roupas contigo, e ficará em teu lugar, e tu com as roupas dela sairás. Saindo não dês ao carcereiro nem meia palavra, e retira-te o mais depressa possível. Fora da prisão acharás um pajem a quem seguirás em silêncio; ele te guiará até nossa casa. Se na minha sala estiver alguém, manda-me chamar em particular à porta da rua. Tudo isto te imponho, como um preceito paterno. Não tenhas cuidado pela moça que fica em teu logar.
Teu pai
“Augusto.”
O carcereiro, querendo, sem escrúpulo algum ganhar as suas duas meias doblas, retirou-se alguma cousa do xadrez. A moça, enquanto Maria lia a carta, tomou a esteira, e encostou-a ao xadrez, de modo que ficou aberta, e interceptando a vista entre os que estavam no xadrez, e poderiam estar fora dele. Feito isto, sem jamais tirar o lenço dos queixos, tirou o chapéu, o xale, o vestido, uma saia branca, e a camisa, e pôs tudo isto no lugar em que Maria se devia vestir. Quando Maria acabou de ler a carta, viu a moça de calças de enfiar, atadas nas pernas, camisa de meia, e de costas para ela, atando um lenço ao pescoço, de maneira que lhe caía sobre o peito, querendo assim ficar com o peito coberto. Maria, sem dizer palavra, vendo que a moça estava de costas para ela, entendeu que era para dar-lhe liberdade de vestir-se sem vexame diante de uma desconhecida. Então, sem mais demora, despiu as roupas de homem com que se havia disfarçado, e começou a vestir-se com o facto que a moça havia deixado junto dela. A moça não se voltou para Maria senão quando esta lhe pediu para apertar-lhe o vestido, que era um tanto justo. Apertado, a moça, com admirável presteza envergou o facto de homem, deixado por Maria, tirou a esteira do xadrez, e tomou o lugar do preso, tendo antes chamado o carcereiro para abrir o xadrez. Maria saiu, e aligeirando os passos, foi se escoando pela sala fora, enquanto o carcereiro fechando a prisão dizia debalde:
— Venha cá, venha cá... Vae tão depressa...
Maria, sem fazer o menor caso, foi se safando. Fora da prisão achou o pajem esperando-a, e este silenciosamente a guiou até a porta da casa de seu pai. Augusto estava só. Maria, certificada disto, entrou, e apresentou-se a seu pai, dizendo:
— Meu pai... e a moça que ficou lá?
— Minha filha! tu aqui! Que moça?! que é isto?
— Que é isto?! E a sua carta? e a moça que lá ficou, meu pai?
— Que carta?! que moça!!
Neste momento bateram à porta. Augusto, conduzindo Maria para os fundos da casa, mandou ver quem batia.
XXXIV
QUEM ERA A MOÇA QUE FICOU NA PRISÃO EM LUGAR DE MARIA
Augusto deixou sua filha no interior de sua casa, e veio para a sala receber alguns amigos que o vinham visitar. Com estes toda a conversação recaiu sobre o falecido Estevam, e o jovem, que o matara.
O Sr. Silva sabia a história do assassinato de Augusto, e do roubo de Maria, porque o Pachola lhe havia contado; mas este, talvez com particulares tenções, nunca lhe havia revelado que os Srs. Estevam, e João Esteves eram o mesmo personagem. Verdade é que o Sr. Silva nunca tinha pernoutado, nem ido à estalagem do Sr. Estevam com José Pachola. Maria também não se tinha revelado ante José Pachola, nem este nada soube, ou desconfiou; e quando o Pachola disse a Maria, depois da morte do Sr. Estevam, que fugisse, não foi senão por um ato de compaixão, e simpatia, por tanta beleza e mocidade. O Sr. Silva contou então a todos tudo quanto sabia do Sr. Estevam, de modo que a noite todo o mundo sabia que o Sr. João Esteves não tinha esse nome, mas sim o de Estevam; que havia assassinado um homem no Rio de Janeiro, roubado uma menina para entregar à morte, e todos os outros feitos do homem; que o homem que fora assassinado era Augusto, e a menina roubada uma sua filha. Então não houve quem não soubesse, quem não contasse uma anedota, uma maldade do Sr. João Esteves. O coração humano, por um instinto para o bem, perdoa facilmente os males de um homem contra outro homem; mas quando esses males são contra uma criança, o coração revolta-se e nega perdão ao seu autor. A simpatia pelo fraco, e a proteção a ele dada, são uma manifestação, bem apreciável, da bondade primitiva do coração humano; isto é, dessa bondade natural, que existe no coração antes que funestos exemplos de uma sociedade corrompida, e uma má educação a alterem (sic), transtornem e desgarrem! Com efeito, a sociedade tem todavia suas cousas boas, a educação tem perfeições e belezas; elas operam seus milagres; corrigindo defeitos de uma natureza altiva, ardente e impetuosa; mas a bondade, essa não a dão elas; o que podem é aperfeiçoá-la; e dirigi-la. A diferença dos gênios das pessoas consiste em ser uns brandos, pacatos e sofredores, e outros fortes, impetuosos e relutantes. Uma educação hábil remedeia o defeito de um gênio humilde até a baixeza, e altivo até o desaforo. Quanto aos outros defeitos, que enxovalham a humanidade, e insultam a razão de modo tão escandaloso, nada mais são que efeitos de uma péssima educação, e de maus exemplos; e, se a doutrina das bossas de Gall é verdadeira, para corroborar a nossa fraca opinião, aí está o exemplo de Sócrates!
Do que fica dito, vê o leitor que a morte do Sr. João Esteves nem por isso devia ser muito sentida.
Como era natural, tendo se espalhado a notícia de que o Sr. João Esteves era um Estevam que em outro tempo havia dado um tiro no Sr. Augusto, e lhe roubado a filha; os amigos de Augusto quiseram saber essa história da própria boca dele, e ele a todos satisfez; e quando lhe perguntaram se nunca mais soube da filha, respondia que não. É claro que estes amigos de Augusto não eram os íntimos, que estes sabiam bem destes acontecimentos.
Livre Augusto destes amigos, que nunca foram tão impertinentes, e importunos, como nessa ocasião, voltou para sua filha, a quem abraçou e beijou muitas vezes, e depois destas efusões, perguntou:
— Mas, minha filha, como é que estás aqui? Que carta, e que moça é esta de que me falaste?
— Meu pai (respondeu Maria), eu de nada sei... Depois que escureceu, o carcereiro abriu o xadrez e entrou uma moça, cujas feições não pude ver, porque ela, com um lenço, que tinha nos queixos, tapava cuidadosamente seu rosto, e eu, como isso notei, não quis ser indiscreta, reparando muito nela. Esta moça, sem me dar palavra, cortejou-me, e deu-me esta carta, e enquanto eu a lia, ela tirou este chapéu, este chalé, este vestido, saia branca, e camisa, e tudo isto depôs junto de mim.
— E ela, como ficou?
— Com calças de enfiar, camisa de meia, e um lenço no pescoço, caído sobre os seios.
— E o lenço dos queixos não tirou?
— Nunca. Ela deu-me as costas, enquanto eu me vestia com o facto que havia tirado de si, e só voltou-se quando lhe pedi que me apertasse o vestido, porque eu mesma o não pude, por ser um tanto apertado.
— E depois?
— Saí, e vim.
— E o pajem, que te seguiu?
— Vi-o retirar-se, apenas aqui entrei.
— Bem. Só de manhã poderemos indagar este negócio.
De manhã, logo cedo, disseram ao juiz de paz que o carcereiro lhe queria falar; o juiz de paz mandou-o entrar. O carcereiro pálido, trêmulo, e desconcertado, apenas viu o juiz de paz, atirou-se- lhe aos pés, exclamando:
— Meu senhor, me valha... estou perdido...
— Perdido como, homem?
— O preso fugiu, Sr. Juiz!...
— O preso fugiu! Então como?
O carcereiro contou miudamente o acontecido; mas, por modéstia, a respeito da moça, calou a circunstância dos beijos e abraços; e a respeito de si, a circunstâncias das meias doblas. Depois desta narração, o juiz de paz disse:
— Então a moça ficou em lugar do criminoso?
— Ficou, Sr. Juiz; mas não é moça...
— Então que diabo é?
— Era um rapaz, vestido de moça, meu senhor...
— Essa agora é que não está mal...
— Sim senhor, Sr. Juiz... Ainda agora ele me pediu água para o rosto; levei-lhe a bacia com água; e ele começou a lavar a cara à minha vista; quando botou água na cara, começou a sair n’água uma cousa branca, como polvilho... Chego perto, e vejo que suas feições são diferentes da (sic) do criminoso... Reparo bem, e descubro nele uma barba muito azul, e muito bem raspadinha: e o outro quase que nem buço ainda tem...
— E você não lhe disse nada?
— Perguntei-lhe quanto me veio à cabeça, meu senhor...
— E que lhe diz ele?
— Anda em cima manga comigo. A tudo quanto lhe pergunto, responde que não sabe.
— Vá à cadeia, e traga o preso à minha presença.
Pouco depois o carcereiro trouxe o preso, no meio de dois guardas, à presença do juiz de paz. Este ficou só com ele em uma sala, e mandou retirar o carcereiro. Logo que Augusto ficou só com o preso, perguntou-lhe:
— Quem é o senhor?
— Eu não sei (respondeu o preso).
— Oh! pois não sabe quem é?
— Não sei.
— Então porque está preso?
— Não, senhor.
— Mas como entrou para cadeia?
— Obrigaram-me a vestir-me de mulher, e a representar uma farsa com o carcereiro, e depois dentro da prisão, obrigaram-me a largar os vestidos de mulher, e a tomar outra vez os de homem.
— Mas quem lhe obrigou?
— Não sei.
— Pois suponhamos que o obrigaram a tomar vestidos de mulher, que o acompanharam até a prisão; depois que ficou só com o carcereiro, quem lhe obrigou a enganá-lo?
— O medo.
— Medo que de?
— Da morte.
— E quem lhe matava?
— Não sei.
— Então foi por medo que ficou em lugar do preso?
— Sim, senhor.
— E, se não ficasse?
— Morria.
— Mas quem lhe matava?
— Não sei.
Este mancebo tinha em suas respostas, e modos, um ar tão zombeteiro, que o juiz de paz mal se podia conter para não rir! Então, cismando o que quer que fosse, agitou a sua campainha, e aparecendo um escravo, lhe disse que dissesse à senhora, que aí estava, que viesse à sala, e ele foi esperá-la à porta, que para a sala dava entrada. Logo que Maria aí chegou:
— Ali está (disse-lhe Augusto ao ouvido) a pessoa que ficou na prisão em teu lugar.
Maria conhecendo logo as suas roupas; e sem ser vista; tendo conhecido o moço, saiu para a sala dizendo:
— Sr. Alfredo!!!
O Sr. Alfredo, voltando-se rapidamente para ela, e sem dar um passo, apertando as mãos junto ao peito, como nos pintam o discípulo amado perto da Cruz do Salvador, com olhos suplicantes, enternecidos, e amorosos, exclamou em um tom patético, e dilacerante:
— Maria!!!
XXXV
DEDICAÇÃO E ABNEGAÇÃO
Era belo, e digno de ver-se o quadro majestoso, patético e sublime, que neste momento solene apresentavam estes três personagens! O majestoso de suas atitudes, o patético de seus semblantes, e o sublime dos afetos revelados por seus rostos, ofereciam à vista um quadro doloroso e sentimental; mas encantador e enfático! Era uma dessas dificultosas e raras cenas da vida, em que a vida se ostenta com todas as suas saudades e desgostos do passado; com todas as suas seguranças, e receios do presente; com todas as suas esperanças, e temores do futuro; e rodeada do aparatoso cortejo de seus afetos e paixões, pelo turbilhão de sensações, que, envolta em glórias, envolta em penas, com tanta majestade alardeia! Era uma cena filosófica, pelo que pertencia aos sentimentos d’alma! poética, pelo contraste de tantas e tão variadas sensações! artística, pelo que revelavam essas fisionomias, onde refletiam tão diversos sentimentos, como em um prisma, atravessado pelo raio solar, reflete a luz tão variadas cores!
Maria, tendo dito — Sr. Alfredo!!! — estacou, e cruzou os braços: sua fisionomia doce, mas que tinha uns longes de austera, tornou-se carregada; seus olhos um tanto ternos, e um tanto severos, tornaram-se sombrios. Nessa postura, muda e estática, a moça desfiava em sua mente um caos informe de tumultuarias ideias! As sombras de um afrontoso insulto, amplo de calculado abuso de uma posição ditosa, arrojado contra uma posição excepcional, lutavam, por derramar sobre sua alma a noite do esquecimento de tantos e tão sinceros benefícios, contra a brilhante luz de uma dedicação sublime até o entusiasmo do martírio, partida de abnegação estupenda, levada até a morte, até o sacrifício da reputação e da honra! Entre estas sombras, entre esta luz, grandes deveriam ser as paixões e os afetos, que se deviam agitar e debater!
Alfredo, na postura em que o narrador o descreveu no capitulo antecedente, traduzia em seu semblante um amor supremo, até a dedicação sem limites; uma dedicação sem limites até a abnegação completa; uma abnegação completa, até a resignação do martírio; e a resignação do martírio até as afrontas, o vitupério e a morte!
Augusto, em pé, com os braços estendidos, contemplava silencioso, e imóvel, estas duas vítimas do amor, do ressentimento e da leviandade, sofrendo como elas, todas as dores, todas as angustias, consequências deste afeto, desta paixão e deste acidente! Ele tinha do primeiro jacto tudo compreendido!
Na postura em que temos descrito estes três personagens, conservaram-se eles durante dois ou três minutos. Augusto foi quem se atreveu a quebrar o encantamento que prendia e fascinava a estes dois corações, que mal podiam palpitar, subjugados por tantos sentimentos. Ele pois disse:
— Quê!... ficamos assim até a noite?
— Maria!... (disse Alfredo).
— Pretende de mim alguma cousa, Sr. Alfredo? (disse Maria).
— Sr. Alfredo! Grande Deus! Pois já não sou Alfredo, Maria? já não sou o vosso irmão querido, o companheiro de vossa infância, o sócio dos vossos brincos?!
— O senhor o era, quando eu não era senão uma vagabunda!
— Maria, é possível que um simples gracejo despertasse em vós um ressentimento até a loucura?!
— Até a morte, se preciso fosse!
— Está bem, minha irmã; fui louco, fui insensato, fui leviano! mas sede tão generosa quanto fui leviano, insensato e louco! Eu vos juro pela sepultura de meu pai, pela velhice de minha mãe, e pela minha honra... (bem vedes, nada tenho de mais caro!) eu vos juro que o que vos disse não era mais que um gracejo para vos ouvir falar, porque gosto de ouvir-vos! Não obstante, amo melhor o vosso perdão, que todas as desculpas do mundo inteiro!... Maria... minha irmã... voltai para minha mãe...
— Para sua mãe?!
— Sim, Maria...
— E não foi o Sr. Alfredo que me disse que ela não importava que eu fosse sua...
— Mas se eu vos disse que foi um gracejo meu?
— Logo, o senhor gracejando caluniou a sua mãe?
— Mas não pensei que tomásseis ao sério, nem que acreditásseis tal torpeza de tanta santidade! Quando hoje se deu entre nós pela vossa falta, e a vossa carta me revelou o motivo da vossa saída da nossa casa; com lágrimas da mais profunda dor contei à minha mãe todo o acontecido! Ah! Maria! minha cara Maria! se a vísseis!... Suas lágrimas, seus soluços e gemidos, repreenderam mais amargamente a minha leviandade que todas as palavras as mais ásperas e positivas! Se não voltais para o seu lado, Maria, não é sobre vós que negrejará para sempre a mancha funesta de uma ingratidão horrível; é sobre mim, é sobre minha alma que cairá eternamente o peso insuportável de desesperado remorso, na angustiosa lembrança de haver eu feito de vós uma mulher ingrata! de vós, sempre tão boa, tão virtuosa, e tão pura!
Se vísseis o luto, que deixastes em nossa casa!... Maria... vós éreis a alegria dela, o prazer de todos, e de todos a querida! Se vísseis em que estado se acha aquela, que vos criou, e que vos ama tanto como a mim!... Talvez que desde ontem até este momento ainda não tenha tomado alimento algum! Se a vísseis banhada em lágrimas, sufocada em soluços, soltos os cabelos, os vestidos em desordem, ululando por toda a casa, e chamando pelo vosso nome: “Maria?! Vão me buscar a minha Maria...”
— Basta... basta... Alfredo.
Maria não pôde dizer mais, porque, sufocada em pranto, caiu sobre o seio de seu pai.
Alfredo aproximando-se dela, perguntou-lhe suavemente:
— Ides, Maria?
— Sim (disse Maria, e levantando o rosto para seu pai, disse):
— Meu pai, vamos onde está minha mãe...
— Obrigado, obrigado, Maria... sede abençoada.
Isto dizia Alfredo, beijando ardentemente a mão da moça. Maria desprendendo-se rapidamente do seio de seu pai, disse:
— Mas eu não posso ir...
— Por quê? (perguntou Alfredo).
— Porque devo ir para minha prisão.
— Para a vossa prisão vou eu...
— Nunca.
— Quereis, Maria, que minha mãe morra de dor? Quereis abandonar vosso pai, que há onze anos vos busca, e que só ontem vos encontrou por um acaso, quando lhe contastes a vossa história, e vos revelastes a ele, sem ainda saberdes que era vosso pai?
— Como sabeis disto, Alfredo?
— Quando ontem, quase às nove horas da manhã, se deu por falta de vós em nossa casa, saí logo em vossa procura, e apesar da diligencia que pus em alcançar-vos, só cheguei à estalagem quando já tínheis punido aquele grande malvado! Cheguei no momento em que íeis ficar só com vosso pai na sala em que lhe fizestes as vossas revelações; por isso não pude ver-vos; mas, vendo o vosso cavalo, e os arreios, desconfiei que éreis vós. Então, com o escrivão, com quem me dou, obtive um quarto vizinho à dita sala, e dali ouvi as vossas revelações.
— Indiscreto!... (disse Maria, sorrindo-se). Se fosseis mulher não serieis perdoado por curioso.
— Maria, não vos demoreis... Eu já mandei dizer à minha mãe que se tranquilizasse; que hoje por todo o dia serieis com ela.
— Mas como? deixar-vos na prisão sem crime algum?!
— Se eu o não tenho, nem vós.
— Matei um homem, e por isso devo estar presa.
— A questão não vale a pena. Os que nos países civilizados matam em um duelo nobre e lealmente, se nesse momento não são presos pela justiça, não se recolhem eles mesmos à prisão, seja qual for o grau de seus escrúpulos e moralidade; se são presos e podem evadir-se, o fazem. Agora, se vós vos julgais criminosa aos olhos de Deus e de vossa consciência, então ide para vossa prisão; não tendes outro meio de expiar vosso crime, nem de apaziguar vossa consciência: mas, se no que praticastes com o tal Estevam não vos julgais criminosa ante Deus, e vossa consciência; ide para minha mãe, e ficai tranquila.
— É bem argumentado! (disse Augusto), mas o senhor?
— Não tenha cuidado em mim. Aqui poucas pessoas me conhecem, e os que me conhecem ainda me não viram. V. S. entregue-me ao carcereiro, e diga-lhe só isto: “Leve o preso, meta-o na prisão: quanto ao senhor espere lá mesmo as minhas ordens.”
XXXVI
UM BELO EXPEDIENTE
O juiz de paz chamou o carcereiro, e em um tom grave, e modo bastante seco, disse-lhe:
— Sr. carcereiro, tome conta do preso, e meta-o no xadrez. Quanto ao senhor, não saia de lá, e lá mesmo espere as minhas ordens, que elas, em pouco tempo, lhe serão comunicadas.
O carcereiro, como um homem receoso e desconfiado, e querendo no rosto do juiz de paz ler o mistério destas palavras, olhou-o com hesitação, e depois voltando-se para o preso, com um ar estupido ou preocupado, disse:
— O senhor me perdeu!
— Como, se você está aí, homem?! (respondeu o preso).
— O senhor ainda manga?!... O que há-de ser de mim?
— Eu sei cá?...
— Oh homem de mil diabos!...
— Não faça barulho... Olhe, escute: mande esses guardas embora: são horas de almoçar; eles devem ter fome...
— O quê?! para o senhor me pregar alguma!?
— Veja que eu sou um homem de bem... Você só é bastante para conduzir-me. Vamos, mande os guardas embora...
— Não mando... não quero...
— Se os não manda, entro para a casa do juiz de paz, e lhe conto a história dos abraços e dos beijos desta noite... e das duas meias doblas, hem?... Veja lá!...
— Mas o senhor não me deixa ficar mal?
— Não; não deixo. Mande os guardas embora.
Com efeito, o carcereiro disse aos guardas que podiam ir almoçar, que ele só conduzia o preso. Os guardas imediatamente puseram-se ao fresco. Os dois ficaram sós, e assim foram caminhando para a cadeia. Um pajem asseadamente vestido, tendo embaixo do braço uma trouxa, foi os acompanhando, um pouco mais afastado. Durante o trajeto da casa do juiz de paz à prisão, era pelos dois sustentado este ridículo dialogo. O carcereiro dizia pois:
— E agora?
— Agora o que, homem de Deus? (perguntou o preso).
— E o preso que fugiu?
— Isso foi bom.
— E eu que fiquei nas cordas?!
— Isso foi mau.
— E o criminoso esgravatando os dentes?!...
— Isso é bom.
— E eu criminoso em lugar dele!
— Isso é mau.
— Mau foi ele fugir por sua causa.
— Isso foi bom.
— O senhor me comprometeu...
— Isso foi mau.
— O senhor leva o negócio de mangação?
— Isso é bom.
— Não vê como estou aflito?!
— Isso é mau.
— Mas que saída dá o senhor ao preso que fugiu?
— Que isso foi bom.
— Ficando eu desgraçado?
— Isso é mau.
— Oh homem de mil diabos!
— Isso é mau.
— É um dardo, que o atravesse...
— Isso e muito mau.
— É um diabo que o leve...
— Isso é ainda pior.
— Oh senhor!... olhe que lhe arrebento a cabeça com este pau...
— Isso então é ir a pior.
— E então... dá-se uma pachorra igual!
— Isso agora é bom.
— Meu Deus! que me aparecesse este diabo para minha desgraça!
— Isso foi mau.
— Então... que hei-de eu fazer agora?
— Isso agora é bom.
— O senhor que as armou, é bem que as desarme...
— Isso agora é melhor.
Sustentando sempre este burlesco dialogo, os dois chegaram à cadeia; aí o Sr. Alfredo, dirigindo-se para uma porta fechada que havia na sala em frente do xadrez, disse:
— Esta porta dá para seu quarto, ou sala: não é assim?
— É, sim, senhor; por quê?
— Pois abra-a...
— Para quê?
— Quero aqui fazer-lhe entrega de umas cousas minhas, de uma porção de dinheiro, e dizer- lhe certas cousinhas.
O carcereiro abriu a porta; os dois entraram, e com eles o pajem, que os acompanhara. O Sr. Alfredo, logo que entrou, teve o cuidado de fechar a porta por dentro e tirar a chave. Feito isto, recebeu a trouxa das mãos do pajem, abriu, e com admirável sangue frio, e invejável pachorra, despiu a roupa que trazia, e começou a vestir-se com a roupa, que tirava da trouxa. O carcereiro, vendo isto, disse:
— Então, que diabo de história é esta?
— O que, homem?
— O que homem?! Venha para o xadrez.
— Isso é mau.
— Não tem mau, nem meio mau... Venha...
— Isso é mau.
— Se não vem por bem, há-de vir por mal.
— Isso é mau.
— O senhor está mangando comigo?
— Isso é bom.
— Sabe o que é bom?
— Então o que é?
— É eu ser um homem prudente.
— Isso é bom.
— E sabe o que é mau?
— Vamos lá.
— Foi o senhor me dizer que era um homem de bem...
— Isso foi bom.
— E ser um patife...
— Isso é muito mau...
— E o ter eu me fiado no senhor...
— Isso foi mui bom.
— Está bem: não quer entrar por bem para o xadrez... entrará por mal... deixe vir os guardas, que eu o conversarei...
— Isso será mau.
— Está bom... está bom... Os guardas não tardam.
— Isso é mau.
— Olhe, eu me assento aqui, e espero pelos guardas: quando eles vierem diga então: “Isso é bom. Isso é mau...”
— Ora; o senhor sempre é um grande pedaço de asno.
— Sim... sim. Sou tudo quanto quiser... Veremos logo.
— Qual logo, nem logo... O senhor é o homem mais tolo, que eu tenho visto... Tenho pena de sua simplicidade.
— Então por quê? por quê?
— Pois você não ouviu a ordem que o juiz de paz deu?
— E o que tem a ordem?
— Pois, homem de Deus, o Juiz não lhe disse que esperasse aqui na cadeia as suas ordens?
— Sim, senhor, disse.
— E você não entendeu o que isso queria dizer?
— E então que queria dizer?
— Coitado!... Quer dizer que você passa de carcereiro a encarcerado... Pedaço de asno!...
— Pois sim; bem entendi: mas que quer que lhe faça?
— Oh tolo! Quem tempo tem, e tempo espera, lá vem um tempo, que o diabo leva.
— Mas que hei-de eu fazer?
— Fugir, basbaque, fugir.
— Como, senhor? como hei-de fugir?
— Saindo por esta porta, e indo-se embora.
— Isso me-é impossível.
— Por quê?
— Porque não tenho um real.
— Pois aqui tem dinheiro. Vá-se embora... vá buscar sua vida.
O Sr. Alfredo, dizendo isto, meteu nas mãos do carcereiro um maço de bilhetes, e muito senhor de si foi se escoando pela porta fora, acompanhado de seu pajem.
O carcereiro, apertando os bilhetes na mão, mas sem se mover, com voz pouco segura, dizia ao preso, que se retirava:
— Então o senhor vai saindo?
— E faça você outro tanto, se não quiser que lhe caia nas costas o ano do Nascimento com todo o seu aparato.
— E foi-se!... E que tal está o desembaraço! Isto não é homem... isto é o diabo!... Foi-se embora deveras... E agora que hei-de eu fazer? Fujo também.
O carcereiro, dizendo isto, abriu o maço de bilhetes e disse:
— Quatrocentos mil réis! Não sou mais carcereiro! Adeus, senhora cadeia. Agora, se me pilhar, só se for como encarcerado, que, como carcereiro, não é capaz.
Ele disse, e desapareceu.
Quatro horas depois dizia-se em toda a vila da Paraíba do Sul, que o moço, matador de João Esteves, havia fugido com o carcereiro, e todos diziam:
— Abençoado ele seja. Deus lhe dê saúde e o livre das unhas da justiça.
Poucas horas depois Alfredo encontrou em caminho a Maria, e seu pai, que iam para casa de sua mãe; e antes da noite a Sra. D. Lordecene abraçou seu filho, sua filha adoptiva, e teve o gosto de conhecer o pai daquela que havia recebido, como filha, e criado como mãe!
CONCLUSÃO
O narrador entende que pode, e deve furtar-se ao trabalho de descrever as cenas, que tiveram lugar entre a Sra. D. Lordecene, e sua filha adoptiva. Qualquer leitor pode destas cenas fazer um juízo exato.
Quanto ao Sr. Alfredo, quando sacrificou-se por Maria, a sua intenção era aceitar seu crime, e por conseguinte sujeitar-se à punição dele. Não conhecendo a fundo o caráter de Augusto, supôs de si para si que este pai, vendo sua filha salva, sem comprometimento seu, que a ocultasse e subtraísse à ação da lei, não importando-se muito com a pessoa que em se lugar havia ficado na prisão, para o que não tinha ele nem de leve cooperado. As circunstâncias, porém, mudaram inteiramente as disposições do mancebo, dando-lhe lugar a que se evadisse, sem comprometer pessoa alguma; porque era bem de esperar que o mesmo carcereiro não fosse perseguido, visto a disposição pública contra o morto, e em favor do seu matador; à vista, pois, das intenções do moço, é impossível não admirar a sua dedicação sublime, e abnegação estupenda: como porém tomariam Augusto, e sua filha esta ação extraordinária, e verdadeiramente grandiosa?...
Dois anos depois destes acontecimentos, o campo em que se levanta a rocha piramidal, em cujo topo existe a capela de N. S. da Penha, estava coberta de uma multidão alegre, folgazona e ruidosa: ondas de povo em que se confundiam todas as idades, sexos, classes, estados, etc.; aí, com estrondosa alegria, redemoinhavam por sobre uma grama, que rugia debaixo de seus passos, e em torno de vistosas barracas, ou por entre o verde de graciosos arbustos; em quanto outras ondulavam em turbilhões, remontando-se da fralda até o cimo do penhasco, ou daí precipitando até a sua raiz.
No templo, elegantemente armado, e decentemente iluminado, acompanhados pelos maviosos sons de religiosa música, soavam, com majestade sublime, entre os hinos ao Eterno, os angélicos Hosanas! Era um dia solene, amável e sublime! Solene, porque era o dia da festa de N. V. (sic) da Penha; amável, porque antes da missa-cantada, na mesma capela, o Sacerdote do Senhor, ligando nos santos laços matrimoniais, a dois estremecidos amantes, lhes havia dito: - “Amai-vos, como Jacob e Rachel!” — sublime, porque um novo Sacerdote celebrava a sua primeira missa! Era, pois, um dia maravilhoso!
Os dois cônjuges, que, ao começar da missa, haviam recebido a benção matrimonial, vestidos, como para essa cerimônia, na qual a religião santifica o amor, estavam ajoelhados pouco distantes do altar, em que se celebrava, ouvindo essa missa nova, com uma devoção verdadeiramente cristã. Por detrás deles, uma grave, e modesta matrona, coberta de cabelos brancos, ouvia esta missa com a mesma devoção dos noivos. Não longe deles, um preto, ancião, decentemente vestido, ria-se e chorava com tanto prazer, como um ente verdadeiramente feliz... porque o verdadeiro prazer, o prazer justo e santo, nunca se manifesta, sem as preciosas gotas do coração!
O leitor deverá, por sem dúvida, conhecer todos estes personagens; o que, não obstante, o narrador entende que não pode eximir-se à obrigação de aqui consignar seus nomes.
Assim, pois, terminemos a nossa história, por demais tosca, por demais informe, pedindo aos pacientes leitores mil desculpas e perdões, declarando-lhes que o noivo chama-se Alfredo; a noiva, Maria; a matrona, D. Lordecene; o preto, que com tanto prazer gozava de sua liberdade, nesse dia recebida, era José Pachola; e o novo celebrante, chamava-se: - Frei Augusto de N. S. da Penha.
FIM
[1] Maria ou a Menina Roubada foi digitado por Hebe Cristina da Silva como parte das atividades executadas para a realização do projeto de doutorado “Teixeira e Sousa e o Romance no Brasil”, desenvolvido junto ao IEL/UNICAMP, contando com o financiamento da FAPESP e a orientação da Profa. Dra. Márcia Abreu. A obra foi digitada a partir dos exemplares da Marmota Fluminense disponíveis, em microfilmes, no Arquivo Edgard Leuenroth (IFCH/UNICAMP), mantendo-se a grafia da versão original.
[2] “Começamos hoje a publicação do romance original, cujo título abaixo se lê, trabalho de uma pena já do público bastante conhecida. Nosso empenho, de hoje avante, será de animar o talento nacional, oferecendo vantagens aos que se dedicarem às belas letras, e mostrarem-se dignos dos louvores do público e dos sacrifícios que nos for possível fazer (ainda que nos privemos de muito do que nos é necessário) em proveito de quem melhor os merecer.” — Marmota Fluminense, n. 295 (10/09/1852).
[Nota do sítio Caminhos do romance: Maria ou A Menina Roubada, inicialmente, foi publicado sem o nome do autor, que foi revelado no exemplar n. 297 (17/09/1852).]
[3] Nota do autor: É necessário este galicismo. Não conheço termo Português que possa exprimir esta ideia.
[4] Nota do autor: Picadas por onde se arrastam madeiras, por meio de zorras tiradas por bois.
[5] Nota do autor: Em uma hora eterna assim senti passar mares de angústias, e séculos de horror; e a dor encheu o lugar em que existiu meu coração, e disse a meu Deus: “Meu Deus! eu não tinha senão ela! Todos os meus amores se haviam mergulhado neste amor; os que a morte ceifa foram substituídos por ela; era o único fruto ainda pendente sobre o ramo, depois dos ventos de um dia tempestuoso!
De minha cadeia despedaçada era o único anel; de todo o meu horizonte o único ponto azul, e puro! Para que na família seu nome soasse mais docemente, no batismo, lhe havíamos posto um nome melodioso. Era o meu universo, meu movimento, meus sons, a voz, que me enfeitiçava em todos os lugares, o encanto, ou o cuidado de meus olhos, de minhas horas, e minha aurora, minha tarde, e minha noite.
Lamartine.
[6] Nota do autor: Negativa familiar, e chula, que ouvimos em algumas partes. Assim se diz por elipse. A frase é Boas cousas; com algum verbo ad hoc.