LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
“A mão de Deus”, de D. Maria de Albuquerque
Edição de referência:
Jornal das Famílias. Tomo 5, julho de 1867, pp. 193-209.
I
Em Lisboa, numa casa de modesta aparência às Cruzes da Sé, habitava o padre Arsênio. Era um respeitável ancião de setenta anos, venerado pela sua vida exemplar. Indulgente com as fraquezas humanas. Exercendo a verdadeira caridade que nos manda ocultar o benefício prestado, e religioso sem afetação, o padre Arsênio cumpria todos os deveres do sacerdócio, e compreendendo a santa missão de que se achava encarregado na terra, punha todo o seu cuidado em cumpri-la de modo que se tornasse útil às criaturas, e agradável ao Criador.
Acabava de soar a meia-noite no relógio da Sé. O bom religioso, pondo de parte a sua Bíblia, dispunha-se a ir repousar no seu pobre leito, quando sentiu bater apressadamente à porta da rua.
Nunca o padre Arsênio, a não ser por motivo de grave doença, deixava de falar a qualquer hora do dia ou da noite a quem o procurava. Muito menos pois deixaria de o fazer naquele momento em que a noite, por adiantada e tempestuosa, só em caso bem urgente podia dar ânimo para se arrostar com ela.
Os relâmpagos penetravam pelas fendas das janelas e alumiavam o simples aposento, a chuva em torrentes, impelida por um vento furioso, batia com estrondo contra as vidraças, e a trovoada achava-se já tão próxima que os trovões abalavam toda a casa!
O padre Arsênio, com a rapidez que a sua idade lhe permitia, foi abrir a porta.
Achou-se em frente de um desconhecido, que saudando-o lhe disse:
— Perdoai, meu padre, se venho buscar-vos por uma noite tão medonha; mas pensei que mesmo assim não deixaríeis de ir levar a vossa benção e palavras de paz ao primeiro infeliz que as precisasse.
— E pensastes bem, senhor: dizei-me em que posso ser útil e achar-me-eis pronto.
— Meu padre, tornou o desconhecido, haverá quinze dias que se mudou para o quarto portas fronteiras com aquele em que eu habito perto daqui uma mulher ainda moça e que deve ter sido formosa, porém magra, pálida, abatida, e com todos os sinais do mais pungente padecimento. Acompanhava-a uma mulher velha a quem chamava Teresa.
“Todas as noites ouvia eu gemer a pobre senhora; e muitas vezes, como que arrastada por uma excitação nervosa ou febril, soltar exclamações de desespero... blasfêmias mesmo!
“Ha oito dias que Teresa foi chamar um médico. Na tarde desse mesmo dia encontrando-a ao entrar para minha casa, e levado do interesse que me inspira a desgraçada, perguntei-lhe o que tinha dito o médico do estado da sua doente? Respondeu-me soluçando que a tinha achado atacada de uma dessas afecções de coração para que a ciência não tem recursos, e que os seus dias estavam contados.
“Comovido pela dor daquela mulher, ofereci-lhe do coração os meus serviços.
“Com efeito, há três dias, seriam duas horas da noite, veio Teresa bater à minha porta, toda aterrada e tremula, pedindo-me que a acompanhasse o resto da noite porque a sua doente estava a expirar.
“Levantei-me e acompanhei-a.
“O estado da enferma era horrível! Quando a vi também julguei que aquele pobre corpo em poucas horas deixaria de padecer: e contudo, há três dias que se conserva agonizante, tendo perfeitos os seus sentidos! Já vedes que é horroroso!
“Na mesma noite em que fui chamado ofereci-me para ir buscar um padre.
A doente ouvindo-me irritou-se! Gritou que não era preciso, que o seu mal não era de morte! Que não queria morrer ainda, e que não morreria!
“Temendo com o meu zelo agravar-lhe o mal não insisti. Hoje tem passado o dia em contínuos delírios e crises espantosas; haverá uma hora que sossegou um pouco, mas este aparente sossego não me ilude; o seu fim visivelmente se aproxima, e neste caso julguei do meu dever vir chamar-vos. Se o médico não pode nada em favor do seu corpo, o sacerdote talvez possa muito em favor da sua alma, que atribulada perece.
A única resposta do padre Arsênio foi embrulhar-se no seu capote e acompanhar o desconhecido.
Dez minutos depois achava-se à cabeceira da enferma. A infeliz tinha no rosto essa palidez lívida precursora da morte... as mãos crispadas... sacudia-lhe os membros um calafrio continuo... batiam-lhe os dentes e tremia-lhe todo o corpo! Sentindo que alguém se aproximava abriu os olhos, encarou o religioso, e estorcendo as mãos exclama no auge do terror:
— Oh! Não, não, eu não quero morrer!
— Sossegai, minha filha. Não é o morte que eu venho trazer-vos, são consolações.
— Padre, trazei-me a vida, porque eu quero viver. Oh! Seria horroroso morrer aos vinte anos! Morrer jovem, formosa, rica...
E nisto fez uma longa pausa: depois continuou com uma excitação de que ninguém a julgaria capaz no seu estado:
— Mas que digo eu, desgraçada?! Não; já não sou jovem, porque os desgostos, o ódio e a raiva me embranqueceram o cabelo! Não sou formosa, porque as noites de vigília e febre, e as lágrimas de desesperação, como a lava ardente, me têm macerado as faces e emurchecido os olhos! Não sou rica, porque aqueles mesmos que eu admitia nas minhas salas, a quem franqueei a minha mesa, e acumulei de prazeres, esses mesmos me roubaram como acelerados e bandidos que são! Eis-me prematuramente velha, feia, e pobre! Os três maiores inimigos da mulher... sim, é isto que me desespera, que me atormenta, que me escalda o sangue! Abandonada e esquecida do marido que traí... roubada por aqueles por quem perdi dignidade e honra... pois bem, mesmo assim quero viver! Quero viver para adquirir outra vez a minha formosura; quero viver para vingar-me; quero viver para tornar a aparecer brilhante no mundo! Tenho por mim a inexperiência, a pouca idade, as seduções... Henrique é bom, irei procurá-lo, lançar-me-ei a seus pés e perdoar-me-á. É humilhante uma mulher aos pés de um homem, seja esse homem seu marido e marido ultrajado. Embora: a tudo me sujeitarei para o chamar a mim, deixar esta vida obscura, e apresentar-me protegida e triunfante a essa mesma sociedade que ri hoje das minhas agonias.
— Filha, lhe disse o religioso, nem uma só palavra para Deus! Orai, minha filha, orai; recordai-vos das palavras do Senhor: - invoca-me no dia da tua tribulação e acudir-te hei. - Elevai o vosso espírito a Deus e submetei-vos resignada aos seus decretos, sempre cheios de sabedoria e amor. Padeceis, sois infeliz, mas pelas vossas palavras vejo também que bastante culpada: felizes, minha filha, daqueles a quem Deus concede neste mundo a expiação das suas culpas para os receber purificados no seu seio.
— Sim, padre, sou infeliz, sou culpada, tenho o inferno deste meu peito... e contudo, não quero morrer! Leonor de Paiva precisa de movimento, de luz, de sol, de ar livre, de amor, de....
A desgraçada calou-se de repente. Uma dor física, violenta, atroz, enrugou-lhe subitamente as faces, desfigurou-lhe os lábios crispados, e alargou-lhe o círculo azulado que há muito tempo lhe circundava as pálpebras! “Oh! Como eu padeço!” murmurou ela: e a expressão da maior angustia se debuxou nas suas feições decompostas. Quando a crise serenou um pouco, continuou levada do seu pensamento dominante:
“E, contudo, eu preciso viver até mesmo para cumprir uma missão de que estou encarregado por um moribundo... se Deus é justo como dizem, eu não posso morrer agora.
“Padre, vive no Estreito, em companhia de sua mãe, uma jovem chamada Albertina, que é minha afilhada. A morte de seu pai deixou-as na desgraça. Um tio de Albertina, que há oito anos tinha partido para a América com o fim de procurar fortuna, chegou há três meses a Lisboa, e foi procurar-me antes de partir para o Estreito a reunir-se à sua família com quem ia repartir a sua pequena fortuna.
“No mesmo dia em que chegou à minha casa, na qual aceitou hospedagem, foi acometido de uma febre aguda a que sucumbiu sem ter tempo de fazer as suas disposições testamentarias. Meia hora antes de expirar chamou-me junto do seu leito, e depositou nas minhas mãos um cofre contendo vinte contos de réis, que destinou: dez para sua irmã, e dez para dote de sua sobrinha e minha afilhada.
“Oito dias depois dava eu um baile. Nessa madrugada, quando me retirei aos meus aposentos particulares, achei-me roubada! Os meus cofres, os meus papeis, as minhas joias, tudo tinha desaparecido: restando-me apenas aquelas com que me adornava. Salvou-se porém o cofre de que sou depositaria, por se achar separado dos meus objetos de valor, e nunca ter proferido uma palavra sobre ele. Padre, nenhuma declarações tenho sobre este deposito... e se eu morresse, que seria feito deste dinheiro? Quem cumpriria esta missão de todos ignorada?
— Eu, minha filha, redarguiu solenemente o padre Arsênio. Sossegada por este lado, implorai o Deus de bondade, que tanto abre os braços ao justo como ao arrependido, e orai comigo.
Entretanto a hora fatal aproximava-se! Debalde Leonor lutava com coragem e energia contra o mal que a aniquilava. Reconheceu por sintomas infalíveis que poucos momentos lhe restavam de vida. Já não podia iludir-se.
— Padre, balbuciou ela, dentro daquele armário está um cofre de ferro que contém a fortuna de Albertina e de sua mãe... entregar-lho-eis, que eu sinto-me morrer com o desespero no coração! Oh! Maldição sobre mim que me deixei arrastar à borda do abismo! Maldição sobre aqueles que me despenharam!
Após estas palavras seguiu-se uma crise tão violenta como devia ser a última. Sentiu que se lhe despedaçava o coração no peito... os olhos encovaram-se-lhe... as articulações dos seus membros hirtos vibraram... o corpo descaiu-lhe sobre as almofadas... a cabeça pendeu-lhe para o lado... e as ondas de sangue que lhe saíram dos lábios afogaram o último grito ou a última palavra que ia proferir!
O padre Arsênio, que seguia inquieto todos os movimentos da infeliz, ajoelhou cheio de terror, ergueu as mãos ao céu, e bradou com fervor.
— Senhor! Pela vossa infinita misericórdia compadecei-vos desta pobre alma.
Davam três horas da noite; a tempestade tinha acalmado um pouco. Quem às sete horas da manhã escutasse à porta daquele lúgubre aposento, ouvira ainda o murmúrio produzido pelos soluços de Thereza, e as orações do religioso.
II
Ao descair de uma tarde de outono chegava ao pequeno lugar do Estreito, termo de Oleiros, um religioso de venerável aparência.
Todos os homens se descobriam ao vê-lo; e as mulheres que à porta das suas casinhas fiavam na sua roca, levantavam-se e inclinavam-se como solicitando a suas benção.
Pouco tinha o religioso caminhando no lugar, quando se aproximou de uma dessas mulheres, e saudando-a com afabilidade pediu-lhe um canjirão de agua, e permissão para descansar um pouco.
A mulher que primeiro se ergueu confusa, ufana depois por ser ela a preferida, depôs a sua roca com um certo ar de importância que a preferência do religioso lhe fez tomar, e limpando com a ponta do seu avental uma cadeira de pau que puxou para junto de uma tosca mesa de pinho brilhante de asseio, foi buscar, além da agua pedida, uma caneca com leite, e algumas frutas secas.
O religioso tomou alguma cousa da simples refeição tão cordialmente apresentada, descansou um pouco, e encetou a seguinte conversação.
— Sois natural do Estreito, boa mulher?
— Sim, meu padre, aqui nasci e aqui conto morrer.
— Sabereis, então dizer-me aonde mora a viúva de Matheus da Silva e sua filha Albertina?
— Certamente, meu padre: quem é que não conhece aqui o anjo de Albertina? Porém há quinze dias que estão fora de sua casa, mas confio em Deus que voltarão breve.
— Pois, boa mulher, muito me obsequiareis contando-me tudo quanto soubeste dessa família.
— Da melhor vontade, meu padre: e posso dizer-vos que sei tudo.
Matheus da Silva, natural deste, casou cum Mariana Lopes, a melhor e mais rica rapariga do Estreito. Matheus tinha parentes na capital, que por vezes o instaram para ir passar com eles algum tempo. Enquanto os pais de Mariana viverão não quis Matheus dar-lhes o desgosto de os separar da filha; mas logo depois da sua morte resolveu-se. Um dia partiu para Lisboa com sua mulher, deixando as suas fazendas entregues a criados de confiança. Creio que tanto agradou a Matheus o viver da capital, que sabendo ler e escrever muito bem, consentiu em ser lá empregado pela influência desses mesmos parentes, e mandou vender aqui as suas fazendas, arrendando unicamente aquela em que sempre habitaria.
“Muitos anos se passaram sem haver notícias deles; até que há dous anos voltaram trazendo de mais uma filha, a mais bonita rapariga que eu tenho visto. Os parentes tinham morrido; não sei por que desgraças ou intrigas Matheus tinha perdido o seu emprego; veio portanto viver para a única fazenda que lhe restava e que amanhava para sustentar sua mulher e filha.
“Todos notarão que Matheus vinha muito mudado. Apenas aqui chegou começou a perder a saúde, andava sempre distraído e triste, até que caiu de cama, aonde se conservou bastantes meses; e quando morreu, a viúva, para pagar medico, remédios e enterro, viu-se obrigada a vender a única fazenda que tinham. Com o que lhe restou alugou a pequena casinha em que vive pobremente, mas sempre boa e resignada, e Albertina um anjo de bondade como todos aqui lhe chamam. Mariana tinha também um irmão, que depois de gastar toda a sua legitima em malfadadas especulações agrícolas partiu para América, e nunca dele tiveram notícias.
“Besta dizer-vos, meu padre, o motivo por que Mariana e Albertina saíram de casa há quinze dias.
“Haverá pouco mais de um ano que chegou a este lugar um mancebo chamado Jorge; belo mancebo na verdade, apesar de pálido e tão triste que metia dó. Disse ele que os médicos o mandavam tomar estes ares. Toda a gente daqui se admirou de que, parecendo Jorge, pelas suas maneiras distintas e o seu apurado e elegante vestuário, um grande senhor, viesse assim sozinho sem uma pessoa de família, ou pelo menos um criado! Contudo ninguém ousou fazer-lhe perguntas.
“Jorge procurou uma casinha retirada para habitar: mas como é raro em lugares pequenos encontrar casa desabitada, a tia Caetana cedeu-lhe um quarto. A tia Caetana, meu padre, era uma santa velha que todos aqui respeitavam, e asseada como ainda não vi outra. Jorge aceitou e foi viver para casa da tia Caetana, a quem pouco incomodava.
“Todos os dias Jorge ao romper da aurora embrenhava-se pelos bosques com a sua espingarda ao ombro a título de caçar, mas nunca se viu que matasse nem um estorninho; outras vezes saía ao anoitecer e voltava de madrugada; quantos o encontravam o viam deitado debaixo de alguma árvore, ou assentado, com a cabeça encostada às mãos, entregue à mais profunda meditação. Se lhe faltavam respondia com agrado, mas em poucas palavras.
“A única casa que visitava, e as únicas pessoas com quem conversava horas inteiras eram Mariana e Albertina! A princípio julguei que tendo estas senhoras, pela sua residência de anos na capital, umas maneiras mais delicadas do que a outra gente daqui, Jorge as procurava por isso. Mas quando reparei que muitas vezes depois dele sair Mariana e Albertina ficavam pensativas e chorosas, convenci-me de que conheceu Jorge e sabem das suas desgraças.
“A tia Caetana morreu há quatro meses; Jorge, depois de a tratar com interesse e prestar-lhe os últimos deveres, continuou habitando a mesma casa e vivendo do mesmo modo.
“Ultimamente passaram-se alguns dias sem que ninguém visse Jorge em parte alguma. Mariana, admirada e inquieta por esta desaparição, foi visitá-lo e achou-o gravemente enfermo; sem mesmo o consultar foi chamar o médico, que o declarou em perigo de vida. Mariana apenas ouviu isto deixou a sua casa, e foi com sua filha tratar do doente. Isto, meu padre, é tudo quanto sei.
— Obrigado, boa mulher, disse o padre Arsênio, que o leitor já terá conhecido: agora só tenho a pedir-vos que me ensineis a casinha de Jorge, porque ainda hoje desejo falar a Mariana.
— Não tem nada que saber, meu padre, ide todo caminho adiante, é no fim do lugar a última casinha à direita assombrada por um cedro, e com uma parreira em volta.
— Outra vez obrigado, e o Senhor fique convosco, boa mulher.
— Deitai-me a vossa benção, meu padre, e Deus vos acompanhe.
III
Eram oito horas da noite. Na casinha de Jorge reinava o mais profundo silencio.
Em virtude de um calmante que o médico por suas próprias mãos tinha preparado, Jorge dormia. Junto do seu leito estavam assentadas Mariana e Albertina.
A primeira contemplava-o com piedade.
A segunda, aflita.
Não trocavam entre si uma única palavra, receosas de que o menor ruído o despertasse!
Uma leve pancada na porta despertou-as da sua contemplação.
Albertina levantou-se cautelosamente e foi abrir a porta.
Ao ver o religioso não pôde sufocar um grito! A sua primeira ideia foi que o médico, certo de não poder salvar o doente, mandava o padre... porém encarando-o e vendo que era desconhecido no lugar, cobrou animo para perguntar-lhe respeitosamente o que pretendia, ao mesmo tempo que o padre Arsênio pedia para falar a Mariana.
Albertina, depois de lhe rogar que entrasse, foi chamar sua mãe.
Assim que esta se apresentou, o padre Arsênio, depois de algumas perguntas que bastarão para a reconhecer, contou-lhe sem preâmbulos quanto o leitor já sabe, anunciou-lhe a sua mudança de situação, e concluiu depositando o cofre nas mãos de Mariana.
Esta, boa como era, o seu primeiro movimento foi ajoelhar e orar a Deus pelo eterno repouso de seu irmão; depois agradeceu ao céu a fortuna que lhe concedia, e terminou exclamando:
— Senhor! Completai os vossos benefícios salvando a vida deste mancebo entregue aos meus cuidados!
— É então muito desesperado o seu estado? Aventurou se a perguntar o padre Arsênio.
— Pelo menos, meu padre, o médico tem bem poucas esperanças.
— Deveis saber, replicou o religioso que em consequência do meu mister estou costumado a ver bastantes enfermos: e como a pratica também dá alguns conhecimentos, permiti que eu veja o vosso doente e ajuíze do seu estado, que talvez não seja tão mau como pareceis recear.
Mariana, sem hesitar um instante, conduziu o religioso ao quarto de Jorge, que Albertina velava.
O padre Arsênio aproximou-se de Jorge adormecido, observou-lhe a respiração então sossegada, e dispunha-se a tomar-lhe o pulso, quando Albertina pálida, aterrada, e erguendo as mãos, lhe disse a meia voz:
- Meu padre, em nome do céu não lhe toqueis, que o podeis despertar...
O padre Arsênio encarou a jovem que assim traía o interesse que a dominava, e sorrio benevolamente.
Entretanto Jorge acordou, e vendo o religioso exclamou:
— Graças, meu Deus! Este santo homem junto do meu leito quer dizer que a minha triste peregrinação neste mundo vai acabar... Ah! Infinitas graças, meu Deus!
Mariana levou o lenço aos olhos; Albertina levou a mão ao coração; o padre Arsênio respondeu com doçura:
— Não foi por vossa causa, meu filho, que eu vim a esta casa; mas uma vez que vim desejei ver-vos, e nada mais.
— Embora, replicou Jorge; não deixarei fugir a ocasião que eu tanto desejava e que Deus sem dúvida me envia. Oh! Não são só os males físicos que me atormentam... estes talvez não sejam mais do que a consequência do remorso pungente que me rala de continuo! Sinto que preciso abrir a minha alma a um ministro de Deus piedoso e inteligente que console e não exacerbe o meu mal. O vosso rosto franco e venerável excita a minha confiança: este benefício sono que desfrutei deu-me algumas forças, aproveitá-las-ei pedindo-vos, meu padre, que me presteis a vossa atenção.
Albertina e sua mãe saíram do quarto, o padre Arsênio assentou-se à cabeceira do enfermo, e Jorge começou assim:
— Grandes, meu padre, tem sido as minhas desgraças e não menores os meus erros, como ides ver.
“Muito jovem ainda perdi meu pai e o amor que eu consagrava a minha mãe, que me estremecia, fazia com que, a despeito das maiores instancias e convites de outros rapazes meus amigos, eu passasse a maior parte do tempo junto dela. Mais tarde um outro motivo não menos forte concorreu para que eu quase nunca saísse de casa.
“Morava junto de nós uma linda jovem chamada Maria, meiga, interessante, e pura como os anjos cuja imagem ela era.
“Maria era órfã: vivia em companhia de uma tia viúva de um militar de pequena patente, e vivendo apenas do seu montepio. Maria, para não ser posada a sua tia, tornara-se bordador.
“Impossível me foi ver Maria sem a amar, e amá-la sem lho declarar. A inocente menina recebeu a minha declaração de amor com alvoroço, e correspondeu-me com toda a ternura do seu coração juvenil, e com aquela efusão de um primeiro amor. Deus então a sua vida repartia-se toda entre o seu trabalho e o seu amor, dando simultaneamente a um tudo o que roubava ao outro.
“Eu também amava pela primeira vez, e por isso era ela excessivo, extremoso e apaixonado! No auge dos meus transportes jurei-lhe mil vezes na melhor boa fé que seria seu esposo.
“Maria escutava-me sempre com o seu rosto angélico orvalhado de doces lágrimas, acreditando-me como se eu fosse a própria verdade.
“Seis meses depois do meu amor a Maria faleceu minha mãe.
“Então os meus amigos, a quem o respeito para com ela tolhera até este fatal momento, invadiram-me a casa a título de me acompanharem. Passado o primeiro mês, a título também de me distraírem, arrastaram-me consigo às companhias, aos bailes, aos teatros, aos cafés, e sem esperarem nunca que eu fosse ter com eles, vinham eles buscar-me à casa.
“Engolfado nesta nova vida que tinha pelo menos o prazer da novidade, via muito menos vezes Maria; e nessas mesmas pareceu-me bastante pálida... mas sempre o mesmo angélico sorriso! Sempre a mesma doçura! Nunca aquele anjo formulou uma queixa!
“Um dia Augusto, aquele dos meus amigos que por assim dizer nos dirigia a todos, convidou-nos para um jantar no campo em toda a liberdade. Aceitamos com prazer: o jantar foi alegre e animado. Ao café a conversação recaiu sobre mulheres.
“Cada um contou as suas aventuras galantes, as suas conquistas fáceis ou arriscadas, e as suas ideias sobre o casamento.
“Eu confessei com franqueza o meu amor a Maria, as minhas promessas, e a minha firme tenção de a desposar.
“Augusto encarou-me um instante com todos os sinais de espanto, e soltou uma estrepitosa gargalhada!
“Um pouco, ou antes, muito despeitado, pedi-lhe a explicação dessa gargalhada?
“— É simples, respondeu ele, julgava-te um rapaz de espírito, e vejo que não passas de um grande tolo!
“— E eu não julgo bastante conhecer a tua opinião a meu respeito, desejo também saber em que a fundas?
“— Não é cousa difícil, meu amigo. Teu pai era um medíocre proprietário não és pobre, mas estas muito longe de ser rico. Ora, não me dirás qual é o homem que sem ser muito rico ou muito tolo se lembra de ir casar com uma mulher pobre, procurando por suas mãos um verdadeiro inferno neste mundo, não podendo satisfazer a s incalculáveis exigências de uma mulher?
“— Desculpo-te, porque não conheces. Maria ama-me bastante para ser uma mulher frívola ou exigente. Além de que, a obscuridade em que vive, e os hábitos das privações, me afiançam da sua felicidade com uma abastada mediania.
“-És famoso com os teus idealismos! Olha, meu amigo, grava bem na memória o que vou dizer-te: Estas rapariguinhas pobres, se percebem que inspiraram algum amor são todas meiguice, docilidade, abnegação, e o que é mais ainda, economia e parcimônia! Pois bem, casa com uma destas e verás o reverso do quadro! Verás como se tornam ambiciosas de brilhar, vaidosas da sua nova posição, e com um furor pelo luxo muito mais desenvolvido do que nas ricas; porque estas toda a sua vida costumadas a ele olham-no com uma certa indiferença nascida de habito; enquanto que as outras, avidas e sequiosas, são insaciáveis. Se o homem lhes satisfaz os caprichos e exigências arruína-se; se não satisfaz, verá o amor trocado em frieza, e a meiguice e docilidade, em cólera e azedume!
“— Não sei se o que dizes é verdade; mas sustento que nunca Maria será uma dessas mulheres que acabas de descrever.
“— Concedido. Quero crer que a tua amante seja uma rara exceção; quero crer que te ama muito: quero crer que é a Fênix das mulheres! Sendo assim, apenas mudas de inferno! Então ou hás de tornar-te uma espécie de rafeiro de tua mulher, passando a tua vida sempre agarrado a ela, ouvindo constantemente falar dos arranjos domésticos a mais aborrecida de todas as matérias para um homem de espíritos e a ouvir chorar crianças (a mais detestável música para todo o ouvido), ou então se quiseres ir uma noite ao teatro, se quiseres passar um dia com os teus amigos, se quiseres ir uma tarde a um café, finalmente se quiseres gozar uma pouca dessa liberdade concedida ao homem, e que todos desejam passada a lua de mel, acharás ao voltar para casa amuos, recriminações, lágrimas, queixas, e um sentimentalismo em ação capaz de impacientar um santo! Se te chegares a ela com meiguices, serás repelido com modos de heroína de tragédia! Se não fizeres caso, apregoar-te-á por um tirano! Portanto, meu amigo, escolhe: mas confessa que em qualquer dos casos a situação é bem pouco de invejar!
“Os meus amigos aplaudiram freneticamente.
“Eu desta vez não respondi nada; mas confesso que fiquei um pouco abalado nas minhas convicções! No remanso do meu quarto muitas vezes depois pensei na dissertação que Augusto tinha feito!
“Era tarde bastante quando retirei para casa. Maria não me esperou! Conclui que o seu amor não era tão grande como eu supunha... se ela amasse, pensava eu, era impossível que se não queixasse da mudança que tem havido no meu método de vida... não se liga o amor com esta tranquilidade... além de que, se venho mais tarde nem se cansa a esperar-me... tal era o meu egoísmo! Pobre Maria, que tinha de levantar-se ao romper do dia para assentar-se seu bastidor, único recurso que vivia.
“Dias depois fui a S. Carlos com Augusto. Num camarote de primeira ordem estava uma senhora moça, formosa, e que se tornava notável pela elegância do seu vestuário.
“Quanto acabou o primeiro ato, e que me voltei para Augusto, disse-me este:
“— És um diabo indigno da fortuna que te procura!
“-Não sei, meu amigo, por que razão me fazes um elogio tão fúnebre!
“— Porque enquanto tens estado embasbacado para o palco como um provinciano que vem por primeira vez ao teatro, tem aquela linda mulher dirigido o seu óculo para ti uma dúzia de vezes... percebes agora?
“— É verdade que notei a sua beleza e bom gosto no trajar apenas entrei; mas nem pela ideia me passou que podia merecer a honra da sua atenção!
“— Pois, meu caro, fica sabendo que, além de bela e elegante, possui oitenta contos de réis!
“— Conheces então aquela mulher?
“— Conheço. Esta senhora nasceu em Lisboa, mas foi educada no Brasil, aonde seu pai granjeou a fortuna que hoje possui; por sua morte deixou por seu testamenteiro um velho amigo que aqui tinha, com o encargo de mandar buscar a menina e administrar-lhe os bens até à época do seu casamento. É deste velho apoquentador que todos os dias lhe prega sermões sobre economia e recato, que ela deseja ver-se livre. Este vigilante Argos bem contra sua vontade consente que ela de partida às quintas-feiras, aonde já fui apresentado por meu primo Alberto, que a conhece do Brasil; mas infelizmente não se lembrou de olhar tanto para mim como tem olhado esta noite para ti.
“Durante o resto do espetáculo não se me tirou da cabeça o que tinha ouvido a Augusto; e olhando repetidas vezes para o camarote notei sempre que as nossas vistas se encontravam.
“Quis o acaso que a saída do teatro, no momento em que chegávamos à porta, se dirigisse ela para a carruagem acompanhada de uma senhora idosa. Augusto adiantou-se para oferecer-lhe a mão, que ela aceitou com graça dizendo-lhe ao mesmo tempo:
“— Até quinta-feira?
“— Sim, minha senhora, respondeu Augusto, e indigitando-me acrescentou: e peço licença para apresentar o meu amigo.
“— Será bem-vindo o vosso amigo, disse ela sorrindo-se... e partiu.
“Até quinta-feira, mau grado meu, não pensei noutra cousa!
“Finalmente chegou essa noite tão desejada, em que fui apresentado por Augusto.
“Fiquei deslumbrado com a elegância e bom gosto da casa, e encantado com a amabilidade da dona!
“Como durante a noite lhe ouvisse dizer que no dia seguinte ia ao teatro, lá me achei também; e assim continuei seguindo-a por toda a parte, animado pela satisfação com que parecia ver-me sempre.
“Recolhendo sempre tarde, jantando quase sempre fora, não via Maria senão ao sair de casa. Parecia-me bastante mudada... desconfiei até que a minha presença a constrangia... arrastado pela cegueira, eu mais depressa, pelo meu fatal destino, tomei a mudança por aborrecimento, o constrangimento por frieza!
“Por quatro ou seis dias não a vi a hora nenhuma... entendi que me tinha esquecido de todo, e ainda tive o arrojo de exclamar: o que são mulheres!!! E não pensei mais em tal!
“Para não fatigar-me com detalhes que em todos os tempos, em todas as idades, e em todas as hierarquias se parecem, direi que ao fim de seis meses estava casado com essa mulher rica e bela que me tinha escolhido entre mil pretendentes; o que muito lisonjeava o amor próprio dando-me a convicção de ser amado.
“Contudo, reparei e admirei-me que nem os primeiros dias minha mulher me consagrasse!
“No dia imediato ao nosso casamento quis ir a um baile! E daí por diante nem uma só noite em que não tivesse visitas ficava em casa!
“A primeira vez que umas violentas dores de cabeça a que sou sujeito me impedirão de acompanhá-la, ficou em casa visivelmente contrariada! Toda a noite teve abrimentos de boca, batendo despeitada com o pezinho no chão sem me dar uma única palavra!
“Da segunda vez não se contentou com tão pouco! As nove horas da noite apareceu-me preparada esplendidamente, dizendo-me que tinha mandado por a carruagem para ir aos anos da baronesa do vale, a quem não queria faltar.
“Ainda eu não havia tornado a mim do meu assombro, e já ela tinha saído do quarto sem esperar a minha resposta!
“Fiquei sozinho pensando no que me acontecia e que tanto me desagradava.
“Lembrei-me tarde que minha mulher me tinha escolhido entre todos, como aquele que julgou mais próprio para sujeitar-se aos seus caprichos, e ela à sombra de um marido pacifico correr à rédea solta no mundo!
“Essa preferência, que tinha lisonjeado o meu orgulho, tornava-se pois humilhante para mim!
“Por outro lado a despesa que minha mulher fazia com modistas, jantares, companhias à noite e teatros, era espantosa e começava a inquietar-me.
“No dia seguinte fiz-lhe brandamente algumas observações sobre este objeto.
“Respondeu-me pálida de cólera que não gastava nada meu, nem estava disposta a sacrificar os seus gostos e hábitos à avareza de um marido talvez resolvido a especular com a fortuna que ela herdara de seu pai.
“Da minha parte também empalideci, mas foi de desgosto e vergonha!
“Augusto tinha dito muito sobre os inconvenientes de um casamento pobre, mas tinha esquecido completamente os inconvenientes de um casamento rico.
“Calei-me, e suspirei lembrando-me de Maria... tinha esquecido o anjo pelo demônio! Tinha trocado o céu pelo inferno! Era justo que sofresse as consequências da minha troca.
“Contrariar minha mulher seria assanhar uma víbora, e expor-me a ditos ofensivos a que tarde ou cedo se seguirão cenas escandalosas... tomei pois o único partido moderado que me restava: deixei-a fazer a sua vontade; porem eu raras vezes saía do meu quarto.
“O meu expediente agradou-lhe. Pelo menos não mudou em cousa alguma o seu gênero de vida.
“Assim passei o inverno sempre encerrado no meu quarto.
“No princípio da primavera, um dos meus amigos convidou-me para ir passar com ele alguns meses na sua quinta.
“Aceitei com prazer. Serão uns meses de tréguas ao meu constrangimento... seria o meio de resistir ao desejo que todos os dias me assaltava de tornar a ver Maria!
“No dia e a hora ajustada para partirmos cheguei à casa do meu amigo.
“— Não podemos partir senão a noite ou amanhã, me disse ele porque a ama que criou minha irmã e que há vinte anos vive conosco foi acometida de uma maligna, e o nosso medico manda que sem perda de tempo vá para fora de casa afim de evitar o contagio. Como sou amigo do enfermeiro-mor do hospital de S. José, vou falar-lhe para que a ama seja ali tratada num quarto particular com o maior cuidado. Se não queres ficar aqui à minha espera, acompanha-me, que eu vou na carruagem.
“Aceitei a proposta maquinalmente, e partimos.
“No hospital disseram-nos que o enfermeiro-mor estava na enfermaria das alienadas, e para lá nos dirigimos.
“Ao fim da enfermaria havia um quarto, à porta do qual avistámos o enfermeiro-mor falando com alguém que lá estava.
“Quando nos aproximamos mais vimos que dentro do quarto estava um leito contendo um vulto coberto com um lençol, e junto desse leito uma enfermeira que chorava.
“O enfermeiro-mor, voltando-se à bulha dos nossos passos, deixou ver um semblante tão amargurado, que o meu amigo perguntou-lhe o que era que o mortificava?
“-A morte daquela pobre alienada que todos aqui estimavam: era linda como um anjo e dotada da maior meiguice! Nunca teve fúrias; se não fosse a falta de meios podia ter-se conservado em sua casa. Sempre a julguei vítima de um amor traído, mas a sua mania era tranquila: consistia apenas em dizer devagarinho a todos que se lhe aproximavam: “Se ouvirdes dizer que “o homem que eu amo tanto casou com outra... oh! Não o acreditei... “defendei-o, que é uma calúnia... uma negra calúnia... eu bem sei que “ele morreu... está no céu à minha espera para me desposar...” Além destas palavras que repetia centos de vezes em cada dia, em cinco meses que esteve aqui ganhou com a sua beleza e doença a simpatia de todos e a sua morte (Aliás um benefício para ela) é sentida como vedes!
“Não sei porque, mas um calafrio me percorreu o corpo todo enquanto durou esta narração?
“O meu amigo, arrastado pela curiosidade, adiantou-se, e levantou a ponta do lençol que cobria o rosto da alienada... eu olhei com o coração palpitante... mas apenas encarei esse rosto, ainda belo apesar do cadáver, precipitei-me no quarto como louco... ajoelhei bradando: “Maria, perdoa-me...” e perdi os sentidos.
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“Quanto tornei a mim era meia-noite. Era impossível ir para o campo no estado em que me achava... eu só desejava a solidão do meu quarto, aonde ninguém ia ter comigo. Apesar das instancias do meu amigo, voltei para minha casa, aonde não era esperado.
“Se eu não fosse tão perturbado, teria dado mais importância ao espanto misturado de terror do criado que abriu a porta.
“Ao passar pela casa de jantar vi os restos de um banquete a que também não dei atenção.
“Para chegar ao meu quarto tinha de passar pela porta do quarto de minha mulher; chegando aí pareceu-me ouvir outra voz além da sua! Maquinalmente abri essa porta, que, seguros da minha ausência, não tinham fechado por dentro... Padre, essa mulher não estava só!... Oh! Se eu não tivesse visto horas antes o cadáver de Maria, o infame que manchava o meu leito e a vil que o consentia teriam pago caro a minha afronta! Porém naquele momento essa afronta era o meu justo castigo... lancei para esse quarto um olhar de desprezo e tedio, e saí de casa para nunca mais voltar!
“Foi então que vim para aqui debaixo de um nome suposto, buscando na solidão e no esquecimento aplacar o remorso que me despedaça a alma! Não o podendo conseguir, mil vezes tenho pedido a Deus que me livre do peso da vida, e outras tantas tenho dito a Mariana, que conhece as minhas desgraças: “não; as faltas de Henrique ainda não estão expiadas, pois que ainda vivo!
O padre Arsênio estremeceu ao nome de Henrique!
— Senhor, lhe disse ele, sem indiscreto poderei perguntar-vos o nome de vossa mulher?
— Sim, meu padre: além do caráter sagrado de que vos achais revestido, de que serviria ocultar o nome de uma mulher que nem ao menos tentou esconder as suas infâmias? O seu nome é Leonor de Paiva.
— Meu Deus! Exclamou o religioso... que insondáveis são os vossos decretos! Que imensa é a vossa sabedoria!
— Escutai-me ainda, meu padre: a maior de todas as minhas culpas é ter por efeito das minhas reflexões duvidando muitas vezes da justiças e bondade de Deus!
— Não falo por mim, que bem mereço os meus desgostos... porém Maria... esse anjo de bondade, esse coração nobre e leal, morreu louca num hospital de caridade!
“Albertina, outro anjo... outra alma angélica e pura... vive no isolamento e na miséria... pobre perola perdida aonde ninguém lhe conhecerá o valor!
“Leonor de Paiva... a mulher vaidosa, a mulher perjura, a mulher perdida... vive na opulência, querida e festejada por esse mundo corrupto!
“Oh! Confessai, meu padre, que isto é para enlouquecer!
— Meu filho, tendes razão em dizer que a maior das vossas culpas é ter duvidado da bondade e justiça de Deus. Os seus decretos podem ser muitas vezes impenetráveis, mas são sempre justos; e quem os não compreende-a muito se arroja querendo avaliá-los. Atendei-me pois, meu filho, e reconhecei o vosso erro.
“Maria perdendo o vosso amor, foi achar no céu paz e a felicidade que a terra lhe negava; e a perda da sua razão mais uma mercê de Deus tirando-lhe a consciência do seu padecer.
“Albertina acaba de receber das minhas mãos a herança de seu tio e a sua independência. Para ela já não há esquecimento, já não há pobreza... há só amor! O seu coração, aberto primeiro à piedade, deu fácil entrada ao amor... pouco me bastou para descobrir o seu segredo.
“Leonor de Paiva, a quem assisti nos seus últimos momentos, morreu na miséria, morreu roubada e esquecida, morreu avida da vida que sentia fugir-lhe, morreu no desespero, morreu finalmente depois de três dias de agonia soltando palavras de maldição!
“Portanto, meu filho, pedi perdão a Deus das vossas temerárias reflexões: lançai um denso véu sobre as vossas desgraças passadas, e pagai a Albertina a dívida de amor que já não podeis pagar a Maria.
A esta últimas palavras do padre Arsênio um raio de esperança brilhou no rosto macerando de Henrique... ergueu os olhos ao céu e murmurou palavras de fé e reconhecimento.
IV
Seis meses depois deste acontecimentos, o padre Arsênio às oito horas da manhã na freguesia de S. João Baptista lançava a benção nupcial a Henrique e Albertina em vésperas de partirem para Lisboa.
A igreja apresentava o mais risonho e solene aspecto. O chão estava juncado de murta e rosmaninho, os altares resplandeciam de luzes e flores; mil passarinhos em gaiolas ornadas de fitas e flores, faziam ouvir seus cantos e gorjeios; o órgão espargia seus harmoniosos sons, e as orações dos noivos de envolta com as alvas nuvens de incenso subiam até aos pés do Todo-Poderoso.
D. MARIA DE ALBUQUERQUE.