Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

“Namoros de estudantes”, de Heitor da Silveira


Edição de referência:

Jornal das Famílias. Tomo 16, novembro de 1878, pp. 326-335.

I

Estamos numa república de estudantes de medicina. Compõe-se ela de três, mas só dois se acham presente na ocasião em que vamos ter com eles. Um, deitado num sofá sem lustre, e em vésperas de ficar também sem palhinha, tem sobre o peito um livro, que não lê, porque está distraído a contar as taboas do teto. O outro, sentado a uma mesa, cujo verniz é matizado por manchas de tinta preta, tem diante de si uma tira de papel, em que pretende escrever uma poesia, e leva a arrepiar constantemente os cabelos, desesperado por não encontrar uma rima adequada para o nome de Júlia.

Esse nome era o de uma moça que ele vira aquele dia pela primeira vez em uma casa conhecida, e com quem trocara apenas meia dúzia de frases insignificantes. Entusiasmara-se por ela, e o resultado estamos nós vendo agora.

De repente levantou-se furioso e exclamou:

— Maldita cabeça!

— Que dizes tu, Roberto? Perguntou-lhe o companheiro.

— Nada.

— Olá! Que é isso? Estás zangado?

— Pudera! Sinto-me inspirado e está aqui uma rima a atrapalhar-me.

Estúpida invenção! Não há como o verso solto.

— Sem dúvida. Sobretudo quando se segue a tua escola.

— Que escola?

— A de não contar as sílabas.

— Deixa-se de gracejos, Luiz. Olha que não estou para te aturar.

— Tanto pior para ti. Eu daqui não saio, e quando me falares hei de te responder como quiser.

Roberto tornou a sentar-se, mas desta vez amuado. Admitia o ridículo para tudo, menos para os seus foros de poeta.

Passaram-se dez minutos, que Luiz empregou na maior parte vendo um mosquito sugar-lhe o sangue na mão esquerda. Tendo o inseto voado, ele lembrou-se do companheiro e teve pena de o ter ofendido.

— Roberto, disse-lhe, se eu te descobrir a rima de que precisas, voltas ás boas comigo?

— Ainda perguntas? Respondeu o interpelado. Volto as boas... fico mais teu amigo do que dantes... pago-te até um copo de cerveja... e olha que só tenho no bolso uma nota de quinhentos réis.

— Muito bem. Dize-me lá qual é a rima de que precisas.

— É para Júlia.

— É difícil. Mas, homem de Deus, por que não fazes uma coisa?

— Qual?

— Põe esse nome no meio do verso.

— Não me lembrei disso. Mas também agora levo de capricho: há de ficar aí mesmo.

— Bom. Nesse caso explica-me se queres um nome próprio.

— Não; quero um adjetivo.

— O primeiro que me ocorre é hercúlea.

— Hercúlea! Hercúlea! Repetiu Roberto levantando as mãos. Pois eu hei de rimar o nome dela, uma menina pequena e franzina com a palavra hercúlea. Estás doido, Luiz?

— Então rima com Romúlea.

— Que quer dizer isso?

— Romúlea quer dizer de Rômulo.

— E a que propósito vem Rômulo aqui?

— Sei lá; arranja. Para esse fim é que serve a imaginação.

— Decididamente continuamos mal. Se desta vez não te lembrares de uma palavra conveniente, declaro rosto o armistício.

Luiz ficou por um momento pensativo. De súbito, batendo na testa e sentando-se no sofá, bradou:

— Achei.

— Vamos a ver, disse Roberto.

— Uma palavra tão simples, tão comum, tão apropriada, que logo nos devia ter vindo à lembrança...

— Mas, em suma, qual é? Anda, fala depressa.

Cerúlea.

— Ah! Exclamou Roberto com a fisionomia radiante, dando um salto e apertando com toda a força a mão do companheiro. Agora está acabada a poesia. Espera.

E dirigindo-se à mesa, começou a escrever:

Quanto te amo, quanto te idolatro,

Oh! tu não sabes, não calculas, Júlia...

Mas Luiz interrompeu-o:

— E Ângelo que ainda não veio! Estão quase a bater onze horas.

— É verdade, respondeu o poeta largando a pena, visivelmente incomodado. Quem sabe se lhe aconteceu alguma cousa!

— Talvez tenha sido pisado por algum bonde. É um facto tão comum agora.

— E bem pode ter caído ao mar. Como sabes, ele hoje foi a S. Domingos.

E os dois amigos começaram a fazer conjecturas sobre a prolongada ausência do terceiro habitante da república, cada qual menos tranquilizadora. A sua perturbação chegou a ponto que Luiz deixou de contar as taboas do teto, pondo-se a passear pela sala, e Roberto esqueceu de todo a poesia.

Soaram onze horas.

— Não há dúvida, disse Luiz; aconteceu alguma cousa a Ângelo. Ele nunca se demora assim sem nos prevenir.

— Vamos à polícia, propôs Roberto. Se lhe aconteceu algum desastre lá devem saber.

Nesse momento bateram à porta da sala. Luiz abriu e Ângelo entrou.

— Oh! exclamaram os dois companheiros.

— De que se espantam? Perguntou o recém-chegado.

— Aposto que não sabes que horas são, disse Luiz.

Ângelo puxou o relógio.

— Onze horas! Não pensava que fosse tão tarde.

— És capaz de nos dizer onde estivestes?

— E por que não? Mas isto é uma história muito comprida. Deixem pôr-me primeiro á fresca.

Daí a pouco Ângelo, enfiado numas largas calças de brim pardo e num paletó saco da mesma fazenda, encetava a narração sentado sobre a mesa. Voltado com a frente para as costas da cadeira em que estava, ouvia-o Roberto, em quanto Luiz continuava estendido na cama.

II

— Saí de Niterói na barca das 9 horas e 35 minutos. Fui ali por passeio depois de ter feito a visita de S. Domingos.

No caminho nenhuma novidade ocorreu. Ao tomar porem o bonde da companhia Carioca e Riachuelo no largo do Paço...

— Foste recrutado por alguma moça, não? Perguntou Luiz.

— Recrutado, a bem dizer, não... Mas deixa-me continuar a história.

Ao entrar no bonde, como ia dizendo, vi aproximar-se dele uma família, composta de um homem, uma senhora e duas crianças. O homem sentou-se no banco imediato em frente de mim, a senhora a meu lado, e as crianças acomodaram-se no resto do banco.

— Deixa-te de tantos pormenores; quando não, eu durmo, advertiu Luiz.

— E eu caio da cadeira, acrescentou Roberto.

— Já acabei, disse Ângelo. Como hei de lhes descrever uma batalha, sem primeiro lhes dar ideia do terreno em que se realizou.

— Ah! Então fizeste alguma conquista no bonde? Perguntou Roberto.

— Olhem que com tais ouvintes não se pode ser orador. Eu prossigo.  A senhora que se havia sentado junto de mim era uma moça. Alta e bem feita de corpo, tinha a tez clara como o jasmim, mas nas faces sobressaíam-lhe duas rosas. O seu nariz bem modelado nada tinha que invejar aos lábios pequenos e rubicundos. Os dentes...

— Estavam bons para morder um amolador como tu, interrompeu Luiz.

— Ai! Ai! Que sono! Exclamou Roberto espreguiçando-se na cadeira.

— Pois se vocês querem dormir, durmam, disse Ângelo meio zangado. É melhor do que me fazerem falar para estarem a interromper-me a cada passo.

— Não, não, queremos saber a história, disseram os dois a um tempo; mas nada de descrições.

Pois seja feita a sua vontade. A moça era em suma muito linda, era um primor, uma deidade. Fiquei logo apaixonado por ela.

— Oh! oh!

— De que se admiram? O que é o amor senão uma faísca elétrica que nos fere de súbito o coração? Amei-a. Mas olhei para diante de mim e estremeci. O homem que a acompanhava não era velho, bem podia ser seu marido.

— Horror! Exclamaram os dois ouvintes.

— Mas sosseguem, não o era.

— Como soubeste?

— Muito simplesmente, como já vão ver. Reparando no meu vizinho mais atentamente, não sei o que lhe achei que disse comigo mesmo:

— Este sujeito não há de ser marido desta encantadora menina... talvez seja tio, ou mesmo pai.

Então comecei a encará-la. Ela também de vez em quando me olhava, e nosso olhares encontraram-se muitas vezes. Mas não sei o que havia no meu semblante de acanhamento ou o que quer que fosse, que ela pareceu compreender e interpretar logo a sua causa. Inclinou-se e perguntou ao meu cabrion:

— Vamos chegar muito tarde, não papai?

— Ele puxou o relógio e disse:

— É verdade, minha filha, às onze horas.

— Tão tarde! É por isso que os maninhos já estão aqui dormindo.

— E retornou a sua posição antiga.

Senti-me mais animado; fitei-a com mais desembaraço. Não era mulher daquele homem, nem mãe daquelas crianças: logo, era solteira.

— Ah! Ah! Ah! Que lógica! Se o teu professor de filosofia te ouvisse... disseram Luiz e Roberto.

— Ora, era natural que se ela fosse casada o marido a acompanhasse... ou então ela falasse nele... Enfim, uma voz intima me assegurava que era solteira.

— Isto agora é outro caso, disse Luiz.

— Sim, é outro caso, repetiu Roberto.

— Bem, seja como for, prosseguiu Ângelo; convicto de que era solteira, senti-me mais animado: pus-me a encará-la com amis ousadia.

— E ela?

— De vez em quando, nos raros momentos em que me via distraído, tocava-me nos joelhos com um rolo de papéis que tinha na mão ou encostava-me o seu ombro.

— Era tão natural... o bonde joga tanto...

— Uma vez nossos pés encontraram-se. Olhei-a. Os seus olhos baixos revelavam tanta pudicícia, que não pude atribuir-lhe nenhuma intenção.

Entretanto ia dizendo comigo mesmo: - Agora, dê no que der, hei de saber onde mora esta moça. Gosto dela, e conquanto não me possa ainda casar... se ela chegar a ter-me amor, esperará.

— Que angélica criatura é este Ângelo, exclamou Roberto.

— É verdade, disse Luiz; não é debalde que vive a ler romances. Ora é boa! Namorar para casar daqui a uns oito anos!

— E o que tem vocês com isso? Uma vez que a pequena me desse corda, o mais era negócio meu. O que é certo que fiz mil cálculos de futuro; já me via casado, feliz, com filhos. A minha alegria devia transparecer-me no semblante, porque ela me encarou e sorriu-se.

— E que sorriso, hem?

— Oh! não fazem ideia. É preciso estar-se apaixonado para compreender o valor de um sorriso, sobretudo quando sai duns lábios como aqueles. A impressão que nos causa deve ser a mesma que sente a alma do justo ao ver abrir-se a porta da celeste morada; a mesma que experimenta o nauta, quando após medonha tempestade noturna vê colorir-se o oriente, anunciando esplendida manhã.

— Como está eloquente o nosso Ângelo! Interrompeu Roberto.

— Aproveita essas comparações para atua poesia, disse-lhe Luiz.

— Não sou plagiário, retorquiu o apaixonado de Júlia em tom sério.

— Bom, continua a tua história, Ângelo.

— Está quase acabada, visto vocês não admitirem que eu dê expansão aos meus sentimentos. Acompanhei a encantadora desconhecida até o fim da linha do bonde, isto é, até a praça – 11 de Junho. Aí ela apeou-se e seguiu para a rua de D. Feliciana.

— Só? Perguntaram os dois ouvintes.

— Não: que tolice! Com o pai e os irmãos; mas que tenho eu com eles para os mencionar? – Tomei o número da casa em que entrou, e onde reside sem dúvida, porquanto àquela hora não havia de ir fazer visitas, voltei logo à praça – 11 de Junho, e aqui estou.

— Pronto a rondar aqueles bairros amanhã, não é assim? Perguntou Luiz.

— Pois ainda duvidam?

— E como se chama ela?

— Não sei. Não tive animo de lhe perguntar o nome e o pai não o pronunciou.

— Isso agora é que é mau. Enfim, havemos de passar lá amanhã e sabê-lo-emos, disse Roberto.

— Sabê-lo-emos? Pois vocês pensam que os levarei comigo para uma empresa dessas? Era o que faltava.

— Pois então guarda lá contigo o teu namoro e deixa-nos dormir, respondeu Luiz.

— Apoiado, acrescentou Roberto.

Ângelo calou-se, e daí a pouco estavam todos três nos braços de Morfeu, como se dizia antigamente em linguagem poética.

III

Quinze dias são passados e acham-se de novo reunidos os três republicanos.

Em razão do extraordinário calor que fazia, nenhum se sentia disposto a estudar. Um estava recostado á janela que dava para um quintal, outro deitado no sofá já nosso conhecido, e o terceiro embalançava-se numa rede feita de um lençol amarrado na chave da porta e na grade de uma cama.

Conversavam. Todos os problemas políticos e sociais de atualidade já haviam sido discutidos mais ou menos gravemente, quando de súbito disse Luiz:

— A propósito, Ângelo: como vai o teu namoro?

— Que namoro?

— O da rua de D. Feliciana.

— Ah! Este acabou-se.

— Então já tens outro?

— Pudera não.

— Mas como foi que acabaste com o primeiro?

— Ora, de um modo mui simples: nunca mais vi a pequena.

— Por quê? Então desististe da empresa logo no começo? Foste por acaso ameaçado dalguma coça de pau?

— Qual! Nada disso, Eu lhes explico o caso.

— Vamos lá, desembucha, disse Roberto, que até ali se conservara calado.

— Vocês hão de estar lembrados, começou Ângelo, de que eu lhes disse haver tomado o número da casa em que ela morava. O que não lhes disse foi que ela não soube que eu a havia acompanhado. Ora, sendo assim, eu não podia deixar de procurar vê-la para lhe revelar que sabia a sua residência.

— Só para isso? Perguntou Roberto. Pobrezinho?

— Pois dúvida? E que pretensões podia eu ter? Retorquiu Ângelo.

— Os outros dois soltaram uma estrondosa gargalhada. Depois Luiz disse:

— Olha o santarrão! Então não namoras por divertimento?

Ângelo abaixou a cabeça. Não se achou com ânimo de contestar.

— Continuo a minha história, disse quase logo levantando a cabeça. Fosse pelo que fosse, resolvi passar pela casa dela no dia seguinte, e passei; mas não a vi. Voltei no dia seguinte e em outros, durante uma semana, ora de manhã, ora de tarde, mas sempre embalde. Uma vez vi o pai só; outra, vi-o com uma senhora de certa idade, que havia se ser a mãe; outra ainda vi três meninos, provavelmente seus irmãos; mas quanto a ela, nada.

— Que caiporismo! Exclamaram os dois ouvintes.

— É verdade: caiporismo inaudito. Apenas por duas vezes ouvi tocarem piano dentro. Era sem dúvida ela quem tocava, mas não podia vê-la. Debalde ficava na esquina, esperando que em algum intervalo chegasse à janela. Era enfim obrigado a retirar-me, para não atrair a atenção da vizinhança.  - E então deixaste o namoro por esse simples contratempo? Inquiriu Luiz. Quem porfia mata a caça.

— Sim, é verdade, mas isso é quando há elementos para porfiar. Eu vi que o negócio ia saindo-me caro e arrepiei carreira.

— Quanto gastavas por dia?

— Duzentos réis, porque viajava nos bondes pequenos.

— Ora! Que grande quantia!

— Que grande quantia! Eram seis mil réis por mês; e se a visse, podia o negócio ir mais longe; dobrar, triplicar, e quem sabe se decuplar?

— És um grande financeiro, Ângelo, disse Luiz. Tens razão; fizeste bem em pôr termo ao namoro. Só poderá censurar-se quem não conhecer a nossa posição ou não refletir.

— Apoiado, gritou Roberto. Mas no fim de contas mortus est pintus in casca.

— E como vai o teu namoro com a encantadora Júlia? Perguntou-lhe Luiz. Gorou também?

— Qual! Sempre chegou a sair da casca. Mas não serviu de nada, porque morreu logo.

— Como assim?

— Já sabem que sempre consegui acabar aquela poesia e lha mandei. Pois bem. Dias depois passei pela casa dela. De longe vi que estava à janela; daí a pouco percebi que me tinha visto; quando cheguei mais perto, verifiquei que tinha entrado.

— Que desfeita! Exclamou Roberto.

-           Foi o que eu disse então comigo mesmo. Mas enganei-me. Ao passar pela sua casa, olhei: ela chegou rapidamente à janela e atirou-me uma bola de papel. Não fazem ideia como fiquei contente; supus ser a resposta aos meus versos.

— E não era? Perguntaram Luiz e Roberto com ansiedade.

— Qual! Eram eles próprios, que ela me devolvia assim tão grosseiramente.

— E o que fizeste?

— Pois ainda perguntam? Não pensei mais nela e guardei os versos para oferecer a outra Júlia que por aí apareça.

— Que rapazes estes de agora! Proferiu Luiz em tom sentencioso. Fazem do namoro uma espécie de jogo e cada dia empenham-se num diverso. Eu em toda a minha vida só tenho tido um namoro, e hei de mantê-lo até me formar.

— Oh! exclamaram Ângelo e Roberto. Isto é que é constância.

E o segundo acrescentou:

— Então logo que te formares, casas-te, não é assim?

— Estás doido? Logo que me formar acabo com o namoro. Ora essa!      E pôs-se a rir... a rir... Il rit encore.

IV

Aqui termino esta página da vida republicana.

É natural que esteja mal escrita, em razão da incapacidade do seu autor, e que a benévola leitora tenha bocejado e mesmo toscanejado um pouco durante a sua leitura.

Entretanto seja-me permitido apresentar uma alegação em sua favor: é que ela não deixa de ser de algum proveito.

A vista do que acabou de ler, animar-se-á a leitora a namorar estudantes?

É o que põe em dúvida.

Heitor da Silveira.