Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

“Nola”, de Leo Junius (José da Rocha Leão)


Edição de referência:

Jornal das Famílias. Tomo 16, janeiro; fevereiro; março de 1878, pp. 11-17; 33-37; 65-71.

Un ange, sans doute, moins les ailes,

Mieux que cela, un ange de femme.

J. SAINT-FELIX.

I

Os poetas e sonhadores que pretendem idealizar a mulher e transformá-la em anjo, em natureza etérea e toda intelectual encontrariam nesta um modelo.

Nola é uma moça de maravilhosa beleza, mas beleza suave e soberana, permitam-nos a expressão, que se não tem senso comum é familiar aos poetas.

É morena, seus cabelos anelados e pretos. Pequena, elegante e delicada como essas flores do Oriente que o mais leve sopro de vento leva.

Olhos grandes de um negro profundo; córnea límpida donde se irradiam mil reflexos.

O sorriso de seus lábios tem essa suprema doçura das virgens de Leonardo.

Em todos os seus traços nota-se essa expressão de suave candura que invencivelmente obriga os mais audazes a baixarem os olhos.

Tímida e casta, cheia de ternura porque nela a alma absorve o corpo.

Assim como a flor precisa de um raio de sol, ela se não tivesse um raio desse sol do coração que Deus concede a uns como martírio, e a outros como um percursor das alegrias celestes, definharia lentamente.

Eis a amiga de Palmira. Tinha ela uma irmã, menina de oito anos, um irmão, mais velho que ela, o qual estudava então preparatórios para ir matricular-se na academia de S. Paulo.

Habitava então Nola com sua família, em uma chácara nas laranjeiras.

Seu pai era um negociante rico.

Quando Palmira entrou com sua mãe na sala de Nola, esta que estava folheando um álbum, correu a ela e abraçou-a com vivacidade.

Um quarto de hora depois passeavam as duas nas sinuosas e vicejantes alamedas do jardim. II.

II

A CONFIDÊNCIA

Em poucas palavras Palmira referiu à sua amiga, a emoção que sentira pelo seu desconhecido vizinho.

Nola com infantil curiosidade a escutava atenta.

— Minha querida, disse Nola esboça o retrato do teu sedutor, quero ver se merece um coração como o teu.

— Oh! minha querida Nola não é um desses moços estonteados como os que se encontram nos bailes, nos salões, por toda parte enfim, que nos atormentam por toda a parte com a sua aborrecida adulação, ou com suas ainda mais aborrecidas pretensões. É um moço bonito, pálido, tímido, que se consola com um único olhar.

É uma imagem sedutora enfim Nola, que me apareceu, suave como a monotonia de minha existência, calmo como a minha solidão.

— Parece ser tão bom, tão terno, tão modesto...

— E ele te ama como mereces?

— Creio que sim, a julgar por seus olhos.

— Pobre amiga, já vejo que estás apaixonada por um medroso, e aposto que ele não te ama tanto como tu o amas.

— Creio que te enganas Nola, o coração me diz que ele me ama tanto quanto eu o amo.

— Confidência por confidência, minha Palmirinha. Também eu amo e loucamente; mas aquele a quem eu amo, é também moço, mas ardente, temerário, audaz.

A primeira vez que o vi, ele parou, levou a mão aos olhos e disse bastante alto para que eu pudesse ouvi-lo: - “Há belezas que deslumbram, esta é uma delas.” No dia seguinte recebi um bilhetinho.

— Passou a cavalo por aqui e jogou-mo dentro de uma luva de pelica.

— Sabes o que dizia esse bilhete? Escuta. Eu o sei de cor.

Na Senhora, há belezas que deslumbram. Fascinado pela vossa beleza, eu só me julgo feliz quando vos vejo. Minha ventura nisso se resume!

— Se eu pudesse nutrir a esperança de ser por vos correspondido, eu me julgaria o mais feliz dos homens.

— Para minha felicidade basta uma palavra, uma só!

— Um sim. – Proferido por vossa mimosa boca ele me será mais caro que a vida. Proferi essa palavra que eu vos deverei minha ventura.

— E o que respondeste Nola.

— Eu?... hesitei em responder-lhe, só no fim de três dias e depois de ter recebido mais duas cartas que te lerei, é que eu na grade do jardim, quando ele passava, fingi que falava com outra pessoa, e disse sim.

— És mais feliz do que eu que nem se quer uma única palavra recebi, nem ouvi da boca dele. A moça acabava de proferir estas palavras, quando uma das escravas de Nola, veio ao jardim chamá-las para tomarem chá. Tocando de leve no braço de sua senhora moça, disse-lhe ao ouvido.

— Sinhazinha, um moço, pediu muito a Justino que me entregasse uma carta, para eu dar a nhanhã Palmira.

— Dá-ma disse Nola eu lhe darei.

E recebeu a carta.

— Onde está ele?

— Ele foi para cima.

— A pé ou a cavalo.

— Foi a cavalo, sinhazinha, num cavalo escuro.

— Como está vestido, sabes?

— Está de calça branca, sobre casaca preta e chapéu de Chile. É um moço bonito, sinhazinha. Cabelos louros sem barba só seu bigode meio ruivo.

— Bem disse Nola, diz-lhe que está entregue e que a resposta, só domingo à noite.

— Que segredo tamanho disse Palmira.

— Segredo! disse Nola, mal sabes tu minha querida que é a teu respeito. Depois do chá, no meu quarto de direi o que é.

Depois do chá as duas moças, como dois passarinhos, correram para o quarto.

— Então o que há disse Palmira?

— Uma cartinha para ti.

— Para mim? E de quem?

— De um moço louro que só usa bigode e passou aqui à pouco a cavalo. Está de calça branca, sobre casaca preta e chapéu de Chile.

— É ele!... disse Palmira corando até aos olhos.

— Toma, abre-a estou ansiosa por saber o que ele te diz.

Palmira recebeu das mãos da amiga a carta, vinha ela lacrada e marcada com pequeno sinete quadrangular em cujo centro estava uma árvore florida; uma trepadeira se enroscava na base da árvore. Em torno a seguinte divisa. “Je meurs ou je m’attache”.

Ambas as moças sabiam perfeitamente Francês.

— Très bien, disse Nola. Palmira estava trêmula, abriu a carta e leu o seguinte. Nola tinha a linda face encostada à de Palmira e com os olhos acompanhava a leitura. A carta era assim escrita:

       “Senhora.

É tímido e receoso que meu coração vos dita estas palavras, que tanto serão de amor como de respeito. E minha mão vacila ao traçar estas linhas! Mas eu não posso negar à minha alma neste ensejo o único lenitivo que lhe resta, qual o de comunicar-vos o que ela sente.

Ver-vos e amar-vos, Senhora, foram ações que se sucederam a um tempo.

De dia em dia o meu mal cresce, e para curá-lo ninguém haverá no mundo, a menos que não sejais vós; porque... eu vos amo.

Talvez que dentro de vós mesma queirais indagar a origem deste amor.

Se o ignorais, bem pouco sabeis avaliar os atrativos da formosura e da beleza, e bem pouco conheceis os vosso encantos.

Este amor, que me mata e me dá vida, que me ocupa inteiramente tem por causa vós.

Eu deveria contemplar-me ousado, se sem temor vos dirigisse palavras de amor, se o não fizesse com toda a delicadeza do respeito que vos consagro.

Que quereis Senhora? Se eu vos não escrevesse, se não tentasse saber de vós ou minha felicidade ou infortúnio, eu ficaria em um estado de dúvida mortificante e doloroso, pior cem vezes que a desgraça. Perdoai meu passo se é errado: mas eu vos adoro tanto.

A vez primeira que vos vi, e ao contemplar vos exultei como que com nova vida, e meu pobre coração sem amores e sem felicidade, disse-me no fundo do peito “se ela correspondesse aos teus desejos... Depois tenho constantemente visto vosso belo rosto, já com essa aureola da beleza, já com essa melancolia tão doce quando vos contemplo pensativa à janela de vosso domicilio.

Em que pensais então Senhora? O vosso coração acaso suspira solitário, ou alguma grande dor nele encerrais?

Jovem como sou, amando pela primeira vez, meu coração está isento de enganos e de inconstância.

Eu só quero amar, a quem me pague amar com amor, paixão com ternura.

Dentro do meu peito há uma paixão nobre, que não se oculta, tão digna de nossa benignidade, quanto ela se manifesta a vós, a quem eu idolatro e prezo como um anjo.

A incerteza... eis o meu estado presente.

Com uma palavra podeis tirar-me deste estado, fazer-me feliz ou desgraçado, mas antes de proferi-la meditais bem que ides decidir de minha sorte.

Sim? ou não? Respondei

                                                                                          B...”

Um sentimento de satisfação se refletiu sobre a bela fisionomia de Palmira.

Um estremecimento percorreu-lhe os membros, seu coração batia com violência.

— Palmirinha, disse Nola dando-lhe um beijo, que respondes a essa carta.

— Eu?... Mandarei dizer-lhe, que procure frequentar nossa casa...

— Só?...

— Que mais hei de dizer-lhe que ele já não saiba. Por acaso o amor pode esconder-se no fundo do peito. Aí Nola minha querida amiga, eu me sinto irresistivelmente impelida para esse moço que só agora me escreve. Eu o amo com todas as forças de minha alma.

Não cabe aqui relatar a conversação que se seguiu a estas palavras entre as duas moças.

Apesar da galanteria superficial, e da liberdade que reinava nas suas relações, uma só ideia, uma só palavra não veio marear esse colóquio.

Antes de se retirar, Palmira sentou-se ao piano, e preludiou uma valsa, sua favorita, uma valsa alemã – a Saudade.

Ouviu-se o tropel de um cavalo, a galope.

A moça, por um inexplicável pressentimento julgou, e julgou bem ser o seu desconhecido vizinho, e imediatamente o piano sob seus mimosos dedos suspirou o final da aria da Lucia de Lammermoor: “Oh bell’alma innamorata.”

— O que é isso menina? Disse sua mãe. – Onde estás com a cabeça?

— Ora, mamãe, estou apenas brincando.

Às onze horas, mãe e filha se retiraram acompanhadas por Jorge, o irmão de Nola.

Diz o vulgo que os sentimentos os mais profundamente enraizados no coração pela natureza se apagam, murcham, morrem e desaparecem com o sopro gelado do tempo.

Não assim os amores que invadem as almas nobres.

As frases do amor de Palmira foram bem estranhas e revelam os miseráveis instintos do orgulho e da incredulidade de certos caracteres. Os leitores nos permitirão que conservemos oculto no seu sudário o nome do moço por quem Palmira sentira o primeiro e único amor.

A beleza, a cujas plantas se curvara o talento, o gênio, cedera por sua vez à força de persuadir que dimanava dos lábios daquele moço e que transluzia em todos os seus escritos.

Palmira, recebia dele as mais apaixonadas cartas, e uma ou outra vez se limitava a escrever ao moço algumas palavras: “Sou e serei tua até a morte.” Palmira. Foi a sua última carta.

III

Apesar dos esforços empregados pela moça o seu escolhido quis frequentar-lhe a casa.

Nola, sua intima amiga, tinha sido pedida em casamento por um fazendeiro rico. A pobre menina hesitava entre os desejos de seus pais, o ouro e brilhantes de seu noivo, e os seus sonhos de moça.

Cedeu, e contra sua vontade, casou com o tal fazendeiro.

No dia de núpcias Nola, escondendo o pálido rosto no seio ofegante de Palmira, orvalhou-o de lágrimas e disse-lhe:

— Minha querida amiga, obedeci à vontade de meus pais, mas a ti juro-te que nunca poderei amar este homem que vai hoje ser, meu marido.

— Pois eu, respondeu-lhe Palmira com as lágrimas nos olhos, prefiro morrer do que fazer semelhante sacrifício.

Quinze dias depois as duas amigas separaram-se. Nola fora para a Fazenda com seu esposo e Palmira ficara na corte.

O pai de Palmira era um desses homens para quem o ouro é tudo.

Para ele, a honra, a felicidade, a ventura não podiam existir, sem o dinheiro.

Voltara ele de sua viagem.

Trazia ele na mente o projecto de unir sua filha pelos laços do himeneu, ao filho de um estancieiro rico da província do Rio Grande do Sul com quem estivera em Porto Alegre, lugar onde nascera Palmira.

Comunicou esse projeto a sua mulher e mostrou-lhe o retrato daquele homem a quem queria dar sua filha.

— Não sei, meu amigo, se Palmira o quererá.

— E por que não, respondeu ele, se é um moço rico e de boa família, e de mais seu patrício.

— Não sei disse a mãe, talvez ela já se tenha inclinado para algum outro.

— Provavelmente algum desses petits-maîtres, ou estudantinhos. Ora adeus, isso não passa de namoricos, quando se trata de fazer um casamento de conveniência facilmente se esquecem esses tolos.

— Não é tão facilmente como pensas, meu amigo.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Palmira tudo ouvira.

No dia seguinte escrevera ao moço estas palavras:

“Tenha coragem, venha pedir-me, quanto antes.

                                                                                          Sua Palmira.”

IV

A RECUSA

Ces beaux songes devaient avoir leur réveil... réveil amer et décadent.

EUGÈNE SUE

Três dias depois o moço apresentava-se em casa de Palmira munido de uma carta de apresentação de um negociante desta praça.

A emoção do moço era violenta.

O coração pressago lhe não mentia.

Ele já contava com uma recusa da parte do pai de Palmira.

Não é possível, lhe disse ele, minha filha ainda está muito moça e demais já está pedida.

— Mas, senhor... se ouso aqui vir, é por consentimento dela. Queira V. S. consultá-la.

— Eu a consultarei, mas devo dizer-lhe, que a mim compete decidir de sua sorte.

O moço levantou-se.

Mal podia suster-se em pé. Com voz trêmula proferiu estas palavras:

— Aguardo as ordens de V. S. Nada tenho que oferecer à senhora sua filha senão um coração constante e grato.

E reassumindo toda a presença de espírito, cortejou o dono da casa e retirou-se.

A angústia de Palmira era inexplicável.

Antes que o moço transpusesse o umbral de sua casa, ela correu para o seu quarto e caiu desfalecida.

V

Oito dias tinham apenas decorrido. A palidez que cobria as faces de Palmira revelava os sofrimentos de sua alma.

Seu pai foi desapiedado, e surdo às súplicas de sua mulher. A desditosa moça tinha os lindos olhos rubros de chorar.

Pretextando tomar ares, seu pai mudava-se para S. Domingos em Niterói.

No dia em que Palmira ia deixar essa casa talvez para sempre, correu ela à janela, e mostrou ao moço um bilhetinho.

Dez minutos depois ele o recebia.

— Vamos para S. Domingos rua da... n°... Qualquer que seja a minha sorte, crê que serei tua e só tua... p....

O moço levou aos lábios o bilhete e guardou-o na carteira.

A saúde de Palmira, alterada, por essas emoções violentas foi se restabelecendo, graças a solicitude: o moço procurava vê-la de dois em dois dias, não cessando de com ela corresponder-se por escrito.

Já seu pai, se persuadia, que ela tivesse esquecido o moço, quando uma tarde chegou à casa acompanhado por um amigo então deputado pela província de...

Apresentou-o a sua esposa, e a Palmira, como um de seus amigos.

Por ambas foi recebido com toda a polidez.

O deputado conversou, por algum tempo com Palmira, enquanto seu pai conversava em voz baixa com sua mãe.

Depois, seu pai chamou-a para junto de si e disse-lhe afetuosamente:

— Minha filha, eu estou ficando velho, e não se passa um só dia em que não pense no teu futuro. Felizmente a providencia veio em meu auxilio...

A moça tinha os olhos baixos e desfolhava uma rosa que lhe tinha oferecido o deputado.

Este, olhava atentamente para ela, ansioso por ouvir a resposta que ela daria.

— Como te dizia minha filha, continuou o pai, a providencia veio em meu auxilio. O Senhor D... fazendeiro, e deputado, acaba de pedir-me a tua mão. É um moço digno de estima pelas suas qualidades, e pela posição que ocupa na sociedade. Eu aprovo de coração esta união e espero que me darás o prazer de dar o teu sim, para quanto antes efetuar teu casamento. Ficarás morando conosco, e irás visitar a fazenda de teu futuro esposo quando bem quiseres.

Palmira conservava-se calada. Mortal palidez lhe tingia as faces.

— Consentes, não é minha filha?

Uma lágrima deslizou pelas faces da moça.

— Meu caro amigo, não insista mais. O silencio da senhora sua filha creio que pode ser por nós tomado como uma afirmativa. Demais pode ela querer pensar.

— Não há que pensar, respondeu o pai. Está decidido.... ela quer, porque seus pais o querem. O senhor, quando quer efetuar o casamento?

— O mais breve possível.

Os olhos da pantera ou da leoa surpreendida no seu ninho não lançam mais vivos lampejos do que os que lançaram os olhos da moça encarando fixamente o deputado.

Ergueu-se de um salto como se tivesse sido mordida por uma víbora.

Olhou para seu pai com os olhos desvairados, e com voz argentina lhe disse.

— Meu pai, eu não quero casar com o senhor aqui presente.

— Por que minha filha?

— Porque não tenho para ele a menor inclinação.

Permita-me que eu me retire, estou incomodada. E sem esperar resposta, saiu da sala.

O deputado, envergonhado pela decepção por que passara, aproximou a cadeira à do pai de Palmira e disse-lhe ainda meio confuso.

— Insistamos, as moças são todas assim; com paciência e doçura tudo se consegue.

— Duvido muito, senhor, disse a mãe de Palmira; minha filha tem o caráter enérgico do avô: dizendo uma vez não, com consciência de que o que diz é justo, nada a faz curvar.

— Mas minha senhora em matéria de casamento, às vezes as moças dizem que não e estão ansiosas por se realizar-se essa pretensão.

— Não duvido, disse a respeitável senhora, toda a regra tem exceção.

O pai de Palmira esse estava triste e calado.

Despediu-se o deputado levando a esperança de mais dia menos dia obter o sim da interessante e bela moça.

VI

Mal acabava o deputado sem ventura de voltar a rua quando entrou o irmão de Nola.

Tendo familiaridade em casa, foi para a sala de jantar, e meia hora depois disse em voz baixa a Palmira:

— Tenho uma carta reservada de maninha para a senhora.

Palmira deu-lhe as costas mas estendeu a mão e recebeu-a. foi minutos depois lê-la no seu quarto.

A carta era assim concebida:

“Fazenda do... em... de 18....

Minha querida amiga

Só agora te posso escrever, porque não quis confiar minhas cartas ao Correio. O portador é meu irmão. Se soubesses que saudades tenho de ti! e da minha vida de solteira! casaram-me... Quer isto dizer, deram-me uma posição.

Sabes a vida que eu aqui passo? eu te digo.

Passeio a cavalo ou de carro, tenho constantemente a casa cheia de hospedes. Caçadores, fazendeiros, ou negociantes. Nos dias de semana, ouço o chiar dos carros, o canto monótono dos escravos, o ruído dos engenhos. Perspectivas pastoris e nada mais.

Creio que morrerei com visos de beata.

Meu marido não é mau homem, mas é um pouco excêntrico. Todo o seu prazer é caçar ou falar em cavalos e burros.

Não sei para o que serve o dinheiro. Para outros será uma grande felicidade. Para mim não. Afianço-te que eu era feliz quando solteira. Hoje que sou casada, de que me serve tê-lo, metida aqui nesta solidão.

Entretanto meu marido manda-me trazer sempre vestidos novos da moda para eu mostrá-los a alguns beócios que por aqui aparecem.

Não sou feliz basta que to diga.

Falemos agora de ti.

Como vais? Quando te casas? Ainda pensas como pensavas? É constante, ou fez o mesmo que o meu?

Estou ansiosa por saber e ainda mais por ver-te.

Talvez para o mês eu vá à Corte.

Desejaria bem pedir-te que viesses aqui passar uns dias ou meses comigo; mas não to peço com receio de que as saudades te atormentem.

Se isso fosse possível que prazer me darias!

Adeus, minha querida amiga, conta sempre com a minha amizade e receba saudades, abraços e beijos da tua sincera

                                                                                          Nola.”

Palmira pediu ao irmão de Nola que voltasse para lhe dar a resposta no dia seguinte.

VII

A formosa moça pálida e abatida estava sentada no seu quarto a sós escrevendo à sua amiga, quando recebeu uma carta do moço nestes termos.

Meu anjo:

A mão cruel da desgraça esmaga-me o coração.

Acabo de perder meu pai, meu único e verdadeiro amigo, e com ele toda a esperança que me alimentava a vida.

Hei de passar sem ver-te e hei de perder-te porque sou pobre, porque destinam-te só a homens ricos!

Oh! tu não sabes, nem permitiria a Deus que saibas, o que é perder-se um pai e lutar-se com a desventura. Adeus... até breve. Crê que meu último suspiro será por ti: B.

Aquela moça gentil, cheia de vida e mocidade, ficou com as feições alteradas, e em sombrio e mudo desespero contemplava com os olhos fixos o azul dos céus.

Quanto pode o amor num peito generoso e sensível!

Essa dor silenciosa afetando a alma afetou-lhe o corpo.

No dia seguinte caía ela com uma pneumonia, da qual escapou no fim de quinze dias.

Ainda ela estava com convalescença, e apenas havia três dias, que principiava a dar alguns passeios, quando recebeu do moço as seguintes linhas:

“Perdoa-me, grave enfermidade me tem prostrado. B.” Estas linhas eram escritas com mão trêmula.

Deixemos Palmira por um momento entregue à dor e à saudade e vejamos o que acontecera ao moço, seu apaixonado.

VIII

Depois da mudança de Palmira, o moço tinha mudado de casa.

Adoecendo gravemente em consequência da dupla perda de seu pai e da insignificante herança, que mal chegava para pagamento dos credores, quis ele acolher-se no hospital da ordem de *** de que era irmão.

Não o consentiu um amigo, que o levou para sua casa em S. Clemente.

O médico que o tratava, era o D. Antônio José Peixoto de saudosa recordação.

Com rara sagacidade desconfiou o hábil médico que além do golpe que sofrera o moço, outra causa atuava naquele cérebro.

A muito custo em um dos momentos de remissão da febre violenta que o devorava, conseguiu saber o segredo de seus amores.

Alma generosa, e coração beneficente tinha o Dr. Peixoto.

Conversando com o amigo do moço disse-lhe:

— Precisamos, custe o que custar que este moço veja ou tenha notícias da mulher por quem suspira.

Só uma reação pode salvá-lo.

— Mas, doutor, o que havemos fazer se não temos relações com essa família?

— Não sei, eu vou pensar e por minha parte farei o que puder.

— E se nada conseguirmos, perguntou o amigo.

— Então está perdido... morre de certo.

O Dr. tinha amigos prestimosos, e o que pedia ele?

Pedia um favor para salvar um moço inteligente.

Dois dias depois, disse ele ao moço:

— Hoje, há de vê-la. Quer?

O moço fez um movimento, e disse apenas:

— Quero vê-la e morrer.

— És moço, deves viver meu amigo.

Ele não respondeu, suspirou apenas, e fechou os olhos.

— Pobre moço disse o doutor para o dono da casa, duvido que escape.

O tempo estava magnifico. Era um dia esplendido.

Onze horas tinham acabado de soar.

Ouviu-se o rodar de um carro.

Vieram dizer ao dono da casa, que duas senhoras desejavam ver o doente.

Era Palmira e sua mãe.

O Dr. Peixoto conseguira por intermédio de terceira pessoa que ela viesse ver o moço.

Vinham mãe e filha vestidas de preto.

Palmira ocultava o lindo e pálido rosto em negro véu.

As pessoas que estavam no quarto do doente levantaram-se a um tempo, como se fossem tocadas para uma comoção elétrica.

Lívida palidez cobria o rosto do doente.

Ao contato da mão de Palmira abriu ele os olhos, tentou levantar a cabeça mas não pôde.

Naquele rosto já decomposto podia-se ver as fases do que lhe ia na alma.

Juntou ele as mãos tendo a da moça entre elas, e beijou-a.

— Posso agora morrer, disse ele.

Suas mãos crispadas pelas ligeiras convulsões da agonia apertavam a mão da moça.

Por mais tocante que fosse essa cena, Palmira conservava-se muda, consternada e seguia com o olhar fixo e devorante os progressos da agonia do seu pobre amante.

Quando um tremor convulso agitou os lábios do doente, o doutor disse à moça.

— Minha senhora, tenha coragem, deixe-me agora recolher o último suspiro deste nobre moço.

Por única resposta Palmira debruçou-se sobre o leito e colou seus lábios aos lábios do moço.

Pelo rosto do moribundo passou um lampejo de alegria. Seus embaciados olhos tornaram-se límpidos, e ele murmurou surdamente: Morro por ti!...

Depois que Palmira fora levada para um canto do quarto e nos braços de sua mãe jazia desfalecida, um como que sorriso pairava nos lábios do cadáver.

A imortalidade começara para ele.

Quando Palmira recuperou os sentidos e que sua mãe tentou afastá-la da câmara mortuária, já então invadida por alguns amigos do morto, ela lançou para aquele leito um derradeiro olhar tão repassado de angústia que dir-se-ia, houvera enlouquecido.

Depois, sem verter uma lágrima sem um gemido, apoiou-se no braço da mãe e saiu silenciosa.

Chegando à casa, sua desesperação apenas se manifestava, por movimentos convulsivos, e lágrimas que lhe banhavam as faces acetinadas.

Violenta febre a devorava.

IX

No dia seguinte em um dos cemitérios desta corte, nesse campo de repouso termo final das vicissitudes da vida, onde apesar da vã pompa dos monumentos fúnebres reina a igualdade a mais perfeita, e a mais imponente: diante dos restos inanimados de um moço e de uma sepultura aberta e muda, alguns companheiros soluçando prestaram ao finado a última homenagem devida à amizade, e sobre o seu ataúde deixaram cair uma lágrima de saudade.

Que tesouro de sensibilidade, que firmeza d’alma, que grande coração escondeu aquele sepulcro!

Coração terno e fiel que soube amar, e foi amado.

Na sua campa apenas um amigo lhe mandou escrever este simples epitáfio.

AQUI JAZ

UM FILHO MODELO, AMANTE EXTREMOSO

PASSOU NA TERRA COMO UM EXILADO DO CÉU.

18..

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X

É tão difícil descrever uma criança como uma mulher. Para fazê-lo é necessário possuir certos dotes que não temos, ter a fantástica imaginação de Hoffmann, o poeta alemão, ou de Edgar Poe, o poeta das nevoas, o bizarro escritor americano.

Estes tipos não são as dessas chatas figuras, tão vulgares que abundam lugares. São tipos de organizações delicadas, tão delicadas como os ideais do mundo imaginário desses fantásticos poetas.

Se não conseguirmos apresentá-los tais quais são, ao menos não lhe havemos de alterar os contornos.

Palmira entregue à dor pungente da saudade adoecera gravemente.

Nem a ciência, nem os cuidados e caricias maternas a tiraram do morno abatimento em que jazia.

Algum tempo depois Nola e seu marido a levaram para a fazenda.

A pobre moça fechava-se no quarto com sua amiga e aí permanecia horas inteiras, ou em um mutismo completo ou chorando.

Algum tempo depois parecia consolada.

É que aquela alma angélica se obrigará à sombra de Deus.

Regressou à corte e com ela a sua boa Nola.

Pálida e abatida, nunca mais um sorriso se quer lhe tingiu as faces juvenis.

Pouco tempo depois perdeu o pai.

Aquela organização não pôde resistir a tantos golpes.

Começou a sofrer congestões pulmonares violentas.

XI

No cemitério.

Paz constante,

Tem ali seu império...

COSTA E SILVA.

Era em dia de finados.

Multidão ruidosa invadia o cemitério de ***. Uns tristes e recolhidos, outros alegres, mais por passeio do que por dever a ele concorriam.

Duas moças trajando rigoroso luto, acompanhadas por um homem de uns quarenta anos e uma senhora de idade se apearam à porta do cemitério.

Percorreram-no em diversos sentidos depois pararam diante de uma sepultura, em cuja pedra tumular haviam quatro candelabros de prata com velas acesas.

Aí se demoraram um quarto de hora pouco mais ou menos.

A esquerda na terceira fileira de sepulturas, junto da sepultura cujo epitáfio aqui transcrevemos estavam quatro moços, trajando luto.

Palmira reconheceu dois.

Eram os íntimos amigos de B...

A moça encostou-se ao braço de Nola para não cair.

Depois acercou-se da grade da sepultura onde descansou as mãos, e tentou ler o epitáfio.

Depois com o olhar desvairado dirigindo-se a um dos moços lhe disse com voz meiga e branda.

— Senhor... Tenha a bondade de dizer-me de quem é essa sepultura.

O moço hesitava.

— Diga-me senhor, pelo amor de Deus, disse ela em voz baixa.

— Senhora, aqui jaz o corpo inanimado de um moço inteligente e pobre, de um filho extremoso, de um amigo dedicado, de um... coração nobre e puro...

— E o senhor sabe como ele se chamou na vida?

— Seu nome... disse um dos moços, escreveu-o ele em mais de uma página brilhante, em mais de um coração sensível. Chamava-se B*** de***.

Duas lágrimas se deslizaram silenciosas pelas pálidas faces da moça.

Ela colheu duas violetas, pô-las no seio, e voltando-se para os moços:

— Obrigada senhores. E depois disse a mãe:

— Mamãe, se eu morrer, quero ser sepultada ao pé desta sepultura.

E afastou-se lentamente.

XII

DOIS ANOS DEPOIS

O que sofreu aquela gentil donzela, não o pode descrever a nossa pena.

Para as feridas profundas do coração nem sempre o balsamo da consolação, pode atenuar-lhe as dores.

Palmira foi definhando lentamente.

Parecia que sua alma, como o perfuma de uma flor ia pouco a pouco se exalando para o céu.

Pálida e quase resignada essa mártir do amor, em uma noite de luar esplendido, ao brando sopro da brisa exalou o último suspiro nos braços de sua mãe extremosa, apertando convulsa a mão de sua querida Nola.

Momentos antes tinha ela obtido de sua santa e carinhosa mãe a promessa de ser enterrada ao lado da sepultura daquele a quem unicamente amara.

Quando o sepulcro escondeu para sempre aquela exilada do céu, sua inconsolável mãe recebeu uma carta com as seguintes palavras:

Epitáfio de um anjo.

FLOR DOS JARDINS SIDÉREIOS

BRVE ESPAÇO

NA TERRA VEGETASTE

ANJO! FOI-TE O MUNDO

INDIGNO PAÇO;

AOS CÉUS TE REMONTASTE.

Longo tempo esteve este epitáfio sobre a campa da gentil donzela até que foi substituído pelo de sua santa mãe, que descansa na mesma sepultura.

Nola chora ainda hoje a perda de sua incomparável amiga.

Para perpetuar-lhe a memória, deu seu nome a sua idolatrada filhinha e nós escrevendo estas linhas prestamos uma homenagem a uma gentil e virtuosa patrícia, que deixou a terra para ir ser talvez um desses belos e puros ornamentos que ornam o trono do senhor do universo.