LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
“O pescador do salto”, de Augusto Emílio Zaluar
Edição de Referência:
Jornal das Famílias. Tomo 1, setembro; outubro de 1863, pp. 257-262; 289-295.
I
Soberbas e opulentas são as margens do majestoso Paraíba! Em seu curso de duzentas léguas, este rio gigante desdobra-se, descrevendo por entre montanhas, rochedos e planícies, as mais caprichosas curvas, os mais fantásticos arabescos, como se fosse uma serpente imensa refletindo ao sol intertropical a sua escamosa e brilhante superfície.
Desde um tênue e cristalino lagrimal, onde se origina a sua nascente na serra da Mantiqueira, já na província de S. Paulo, até a pitoresca vila de São João da Barra, perto de Campos, onde desagua no oceano, rico e caudaloso com os despojos de mil tributários, o Paraíba atravessa matas assombrosas, costeia as margens de risonhas cidades, rompe atrevidas e escabrosas penedias, e o ruído misterioso de sua correnteza prossegue ufano o eterno caminho que lhe foi traçado pela natureza no dia supremo da criação da terra!
Ora, no seio de suas aguas bonançosas, límpidas e puras como uma toalha de prata, se vê surgir uma ilha verdejante, coroada de risonhas palmeiras onde se enlaçam festões de graciosas trepadeiras, se alinham variadas parasitas e de onde pendem, balançando-se à brisa, os longos e flutuantes cordões de cipó; ora, nas florestas sombrias que costeiam as suas margens infinitas se ouve, no crepúsculo azulado da madrugada, os gorjeios das aves e as endechas palpitantes do sabiá das brenhas, formando um concerto inefável, e acordando os ecos adormecidos na solidão; ora, mudando inteiramente de aspecto, o viandante encontra, percorrendo as suas ribas, as paisagens carregadas desses quadros tempestuosos a que os pintores das marinhas tem dado um cunho de tanta verdade nas obras primas da escola flamenga; e então o curioso observador pasma diante das novas maravilhas que o rodeiam! Em vez de curvas e preguiçosas baías, de lagos tranquilos e serenos, rompem do seio das ondas rochedos pontiagudos e enegrecidos, onde espadanam, se estorcem, se convulsão e delirão com medonho fragor as aguas crespas e violentas em luta com o obstáculo impassível que lhes opõe a natureza! Que assombrosas cachoeiras! que medonhos e tenebrosos abismos! que orquestra formidável de ecos repetidos desde o leito da corrente até às cavernas mais recônditas, às grutas impenetráveis e temerosas do assombroso painel em que se enquadra esta cena!
O rio Paraíba é o Reno brasileiro!
Assim como, nas tradições da velha Alemanha, as lendas populares de seu rio simbólico, atravessando as idades, chegaram até nós, inflamando nos contos do serão os corações patrióticos da moderna Germânia, e alimentando em sua alma o fogo sagrado da terra e do berço natal, recordando as lutas dos margraves, as empresas amorosas dos paladins namorados, os dramas heroicos dos tempos feudais, a história risonha ou triste das formosas castelãs, que ainda surgem à luz da lua envoltas em seus diáfanos e vaporosos mantos, em pé e silenciosas no alto das montanhas, ou desferindo na teorba dos menestréis seus cantos repassados de melancolia e saudade; assim também entre nós, nas regiões afastadas do interior do Brasil, o viandante encontra, na boca de seu povo rude, mas pitoresco, a singela memória de suas tradições locais.
Quantas vezes parei, tomado de religioso assombro, diante da figura corpulenta e robusta de um desses sertanejos que desde a infância se costumaram aos labores de uma vida trabalhosa e dura, afrontando no seio das matas as feras bravias, combatendo em inesperadas ciladas o gentio selvagem e feroz, lutando com as aguas dos rios caudalosos e o obstáculo de suas cachoeiras quase invencíveis, suportando a fome, a nudez, a sede, sem outra esperança muitas vezes mais que morrer ao desamparo na garganta de um despenhadeiro, deixando por única memoria no mundo uma cruz negra e tosca num canto solitário do deserto!
As peripécias dramáticas de uma destas vidas fadigosas forneceriam assumpto para um gênero de romance que ainda não está explorado nos domínios da literatura.
Leve-se-nos portanto em conta que, com mão tremula, sejamos nós um dos primeiros que levantemos a ponta da cortina que esconde a sepultura esquecida e humilde de um valente filho do povo que morreu sem deixar um capitulo nos fastos dourados dos cronistas, mas cujo nome seus irmãos de trabalho veneram como se fosse a personificação mitológica de sua própria existência, e repetem de pais a filhos com religioso respeito, como se transmite de geração em geração a famosa genealogia dos heróis da humanidade!
José Vicente era um homem nascido nas faixas grosseiras de um albergue construído à borda do Paraíba, nessa pequena povoação de pescadores que se vê alvejar junto ao grande salto do rio, conhecido pelo nome do Salto de Queluz.
A sua infância passou-se rápida entre o beijo matinal de seu pai, que acordava de madrugada para concertar as redes e preparar-se para a pesca, e os afagos carinhosos de sua mãe, que o amamentava, e acudia ao mesmo tempo a todo o trafego da modesta e pobre cabana.
João Vicente não teve infância, ou antes passou do berço, sem transição, para a idade viril. Aos sete anos acompanhava seu pai nas excursões da pesca, e não havia no lugar outro tão hábil como ele para armar um canoa e seguir nas circunvoluções do rio, manobrando-a com pericia nas descidas rápidas das aguas ou contra a violência da corrente.
Os filhos do pobre nascem predestinados do trabalho, e por isso, apenas abandonam as faixas infantis, a sua primeira distração é uma tarefa tão rude, que mal a poderiam suportar as mãos delicadas e finas de outros duplamente mais velhos e afortunados do que eles.
Este desenvolvimento prematuro pode produzir dois fenômenos diversos: ou atrofia a criança tornando-a raquítica e enfezada, ou fortalece de tal modo a robustez de suas forças físicas, que lhes imprime um vigor e uma energia desusados.
Foi esta segunda hipótese a que se realizou com José Vicente. Aos dezoito anos não havia na redondeza moço mais audaz nos perigos daquela tantas vezes arriscada navegação fluvial, ninguém que como ele entrasse pelo sertão dentro a derrubar o mato virgem, ou fosse esperar as onças nas paragens mais impenetráveis das ínvias florestas. Além disto, com a viola na mão, sentado nos alcantis limosos da cachoeira, nenhum outro lhe ganhava no metal da voz Argentina e na brandura com que cantava as modinhas populares, ou os fados e lundus maliciosos, regalo e manjar das raparigas, dos pescadores e dos tropeiros, que muitas vezes da serra vinham ali pernoitar.
O Juca do Salto, como todos lhe chamavam, era pois o rapagão mais perfeito de que se tem memória naquela acanhada povoação, e era tão gerais as simpatias que havia conquistado, que na própria vila de Queluz se lembrarão dele para fiscal, e em breve se viu honrado com a farda de guarda nacional, e o seu nome na porta da freguesia, designando-o para juiz do facto em a próxima sessão do júri.
Foram estes todos os favores que recebeu da administração pública, e cinco mil reis que uma vez lhe deu por uma piabanha o presidente que passava para S. Paulo.
No entanto, como vamos ver em breve, merecia mais uma grã-cruz do que certos embaixadores, que a ganhão por assignar apenas em alguma corte estrangeira um tratado ou uma convenção desonrosa par a dignidade do seu país.
O Juca do Salto não invejava essas honras. Como as mereceu, não as teve, o mesmo não admira isto... porque era outra qualidade de homem.
II
Uma noite, estavam reunidos na venda do canto dois tropeiros da Fazenda Grande, e quatro pescadores do lugar, duas raparigas mestiças da aldeia dos Índios, e fora da porta um grupo pitoresco de rapazinhos de dez a doze anos, mostrando pelos trajos e pelos remos que traziam nas mãos serem aspirantes à marinha do rio.
O Juca, sentado em cima do balcão, na postura majestosa de um improvisador napolitano, arrancava da viola uns sons tão tristes e harmoniosos, e cantava com tanta expressão as cantigas do seu peito, que ninguém podia resistir àquelas vozes tão magoadas e ternas. Os assistentes estavam de boca aberta, e alguns deles, esquecidos de que enrolavam os cigarros, nem se lembravam já que apenas lhe restava nos dedos o pedaço de palha de milho, e lhes havia caído, com a distração, o fumo que tinham picado. Uma parda velha, que fazia o fundo deste quadro, chorava como se lhe arrancassem um dente, limpando os olhos avermelhados no pano de esfregar as balanças.
Quando o cantor terminava, retumbava dos quatro cantos uma verdadeira tempestade de palmas e de bravos.
O Juca acendia uma ponta de cigarro que guardava na orelha, e, depois de saborear algumas fumaças, começava de novo com ar imperturbável, e como que absorto em seus próprios pensamentos.
— Este Juca, dizia um dos tropeiros ao seu vizinho mais próximo, quando está com a viola nas unhas, pinta o padre Simão!
— É uma pena, lhe contestava o outro, que não tenha nascido na corte e aprendido a cantar nas festas da freguesia!
— Eu dava um lote de burros, acrescentou o outro tropeiro, para poder cantar assim quando me arrancho de tarde na entrada do arraial.
— Eu, por mim, gritou um pescador, era capaz de vender a canoa e as redes, e não voltar mais à pesca, para repetir com tanto gosto as notas daquele fadinho chorado.
Depois destas frases trocadas entre os ouvintes, reinava um momento de silencio, interrompido apenas pelo profundo e eterno ruído da cachoeira próxima, até que Juca, apagando cuidadosamente a ponta do cigarro e guardando-a atrás da orelha, começava de novo a cantar com a voz cada vez mais afinada, que parecia mesmo um céu aberto.
III
Enquanto durava esta cena, tinham-se apeado à porta da venda dois viandantes do interior.
O mais idoso, homem de seus cinquenta e tantos anos, robusto e queimado, porém de uma fisionomia franca e bondosa, indicava ser um desses abastados fazendeiros que tantas vezes se encontrão na estrada de S. Paulo, quer dirigindo-se à corte, quer em direção à província.
O outro, mais moço, e que bem mostrava ser seu filho, teria seus vinte anos de idade, e era um desses tipos simpáticos que logo à primeira vista designam a inteligência e os dotes nobres de um coração generoso.
A entrada dos dois viajantes, todas as cabeças se moveram com curiosidade. A velha mulata enxugou pela quinquagésima vez as duas acanhadas fontes de lágrimas inexauríveis, e fez um gesto de supremo contentamento ao ver que os dois fregueses procuravam a sua casa neste momento, como as muralhas de Tebas atraídas pela Lyra de Orfeu.
Só Juca do Salto não viu nem ouviu cousa alguma. Tão enlevado estava em sua paixão, que cantava, cantava, como o sabiá, que, balançando-se no tronco do ipê, não vê os caçadores que penetram na mata e o espião por entre a folhagem movediça das balsas.
— Dá-nos pousada esta noite? Disse o mais velho dos recém chegados dirigindo-se à Penélope da venda.
— Temos aqui tudo que lhes é preciso, meus amos; duas camas para vocês, um rancho para os pajens, e pasto fechado par os animais.
— Pois mande-nos preparar tudo isso, retorquiu o gordo fazendeiro, assim como alguma cousa para comer, porque estamos mortos de fome.
— É num abrir e fechar de olhos, respondeu a parda locandeira dando uma volta sobre os calcanhares e chamando ao mesmo tempo por todos os serventes da casa. Eram estes uma negra cozinheira e um preto aleijado, a quem estavam confiados os encargos de ferrador das bestas e agente de confiança no serviço exterior.
Esta visita inesperada fez mudar completamente de aspecto aquela reunião de apreciadores do canto, que, levantando-se a um tempo, e rodeando o Juca, instarão com ele, visto o encanto daquela formosa noite de luar, para que fossem todos sentar-se nos rochedos da cachoeira, ou perto da ponte de madeira que ali comunica as duas margens do rio, e o moço cantasse até no alvorecer, entre a decoração magnífica de um teatro como nunca teve Rubini ou qualquer dos grandes mestres da arte.
Foi aceito unanimemente este conselho judicioso; e enquanto os novos hospedes se preparavam para saborear a sua modesta refeição, o Juca seguiu com seus companheiros para o solene e maravilhoso cenário do seu Capitólio ignorado.
IV
O salto que neste ponto forma o rio Paraíba, e dá o nome ao lugar, é um dos quadros mais solenes que se pode contemplar entre as variadas e opulentas cenas que a natureza desdobra de continuo aos olhos de quem percorre as vastas regiões do interior do Brasil.
O rio, que, chegando a esta altura, já conta muitas dezenas de braças de largo, engrossando por milhares de afluentes que o acompanham em sua passagem, afunila-se de repente entre dois paredões de rochedos a pique, em um espaço de pouco mais de vinte braças, por onde se precipita espumante e colérico, acordando com tremendos rugidos o eco das montanhas, e estorcendo-se em medonhas convulsões contra as pontas agudas dos penedos sombrios que lhe escavam o leito profundo e caliginoso.
É uma fascinação involuntária a que se apodera do espírito ao contemplar esse cataclismo vertiginoso das aguas! A torrente, engolfando-se entre os penhascos, espadana em todos os sentidos, cruzando-se em mil jactos desencontrados, e, refervendo nos sumidouros, enovela-se em cachões de branca espuma com um ronco tão pavoroso e infernal, que uma espécie de vertigem nos ofusca os olhos e faz vacilar o entendimento! Das arestas dos alcantis enegrecidos e de suas fendas imperscrutáveis rebentão de continuo os borbotões de agua que lhe arremessa a correnteza angustiada, e torna a receber em seu indômito curso, que prossegue em longa extensão, fazendo estremecer a terra e a gigantesca decoração deste painel magnifico!
No ponto em que este canal é mais estreito e profundo, está lançada uma tosca ponte de madeira: O assoalho acha-se fortalecido por uma camada de cascalho e terra, e um ligeiro corrimão guarnece de cada lado esta passagem atrevida, a cujos pés se abre o abismo.
É neste lugar que os pescadores se reúnem nas horas do remanso e conversão acerca das ocorrências do tempo, ou vem esperar todos os dias essa monção propicia em que o peixe, subindo a corrente, para a descansar nos recôncavos da rocha, e as redes apanham deliciosas e abundantes pescarias.
Este sitio agreste e majestoso toma um aspecto duplamente solene quando é contemplado à luminosa claridade de uma noite de esplendido luar!
É verdadeiramente um belo horror da natureza!
Foi portanto na extremidade da ponte oposta ao povoado que se juntou o grupo dos companheiros do Juca, sentando-se este em uma pedra musgosa da margem, e tomando os que o rodeavam suas pitorescas, mas naturais posições.
Depois de uma breve conversação entre os assistentes, começou o canto do trovador das selvas, e em breve achava-se apinhado em torno dele grande número de moradores da povoação, que, atraídos pela noite e pela música, não puderam resistir à tentação, fechando cada vez mais o círculo dos espectadores, visto que só de perto se podia ouvir distintamente a voz do Juca, pois ao longe morria confundida no estrondo da cachoeira.
Já durava uma hora e tanto este concerto singular.
Os dois hospedes da venda do canto, que eram um fazendeiro das circunvizinhanças da cidade de Itu, e seu filho único, que o pai acompanhava à corte, a fim de o mandar à Europa no próximo paquete, e aperfeiçoar com esta viagem a desvelada educação que lhe havia dado e esperava deste modo completar, dirigiram-se também, depois da parca refeição do albergue, ao lugar da cena que acabamos de descrever, sentando-se o pai em uma espécie de degrau de terra que havia no extremo da ponte; e o filho, um pouco mais distante, encostou-se ao corrimão, e ali parecia embebido nas meditações que naturalmente lhe devia sugerir as perspectivas de seu novo destino.
E o Juca cantava, cantava sempre, como se fosse o inspirado da noite! Havia em suas notas gemidos tão tristes como os gorjeios do rouxinol, escalas tão argentinas como as da voz da Malibran, anélitos tão ardentes como o suspirar das brisas do verão por entre a ramagem tufada das capoeiras do morro!
Parecia que um eco de todos os sofrimentos da terra, e a promessa de todas as esperanças de um mundo invisível, consubstanciando-se na voz do mancebo, inundavam a alma de tristeza, saudade, desalento, amor e poesia!
Todos os assistentes se haviam esquecido de si, e pendiam, por assim dizer, ofegantes enlevados, dos lábios do cantor dos rochedos.
V
Esta cena foi interrompida de repente por grito inesperado.
O corrimão da ponte, em que se havia encostado o desventurado filho do fazendeiro, cedendo ao peso quase inerte de seu corpo, deu um estalo singular e rebentou, arrojando com o infeliz ao abismo!
Por um movimento espontâneo todos correram sobre a ponte! Um brado de espanto e dor rompeu uníssono de todos os corações! Caindo em semelhante lugar, a morte é inevitável, e o velho fazendeiro, considerando seu filho perdido para sempre, levou as mãos à cabeça, soltou um gemido abafado, e caiu sem sentidos nos braços de dois pescadores.
Reinou um momento de silencio sepulcral... Quem se atreveria a descer de noite àquele abismo, e disputar a uma morte certa o cadáver espedaçado do infeliz mancebo!
Em todos os semblantes estava desenhado o palor[1] da sepultura, e o espanto que gera uma catástrofe inevitável!
O Juca deu um pulo, atirou fora com a sua viola predileta, desabotoou o colarinho da camisa, arrancou a jaqueta do corpo, e, mais rápido que nós o descrevemos, atirou-se sobre a saliência escabrosa de um rochedo, ganhou com o pé a sua aresta inferior, e pulando como um gamo em rocha, de precipício em precipício, de pedra em pedra, arrojou-se no meio do turbilhão da corrente!
Um segundo grito mais aterrador que o primeiro retumbou sobre a ponte, e por um longo espaço não se ouviu mais que o estrondo das aguas e o som da respiração comprimida dos espectadores absortos.
Todos julgavam os dois infelizes mortos, e ninguém tinha animo de dar dali um passo, como se sentissem os pés cravados por uma força irresistível na profundidade do solo.
Alguns dos pescadores mais audazes, vencendo este primeiro movimento de espanto, atreveram-se a descer pelas rochas e a espiar se entre as aguas surgia a forma de algum vulto humano.
Não foram iludidos em sua expectativa. Em breve uma figura animada se agarrou com uma das mãos à ponta aguda de um fraguedo, segurando com a outra ou antes sobraçando um corpo sem vida, e fazendo inauditos esforços para sair do medonho risco em que ainda se achava.
Os pescadores correram imediatamente em seu socorro, e poucos momentos depois o Juca do Salto era abraçado por quantos assistiram a este terrível episódio, enquanto o filho do fazendeiro recuperava a vida nos braços do seu pai, que o abraçava, e chorava como um louco que recuperara a razão!
O moço estava fora de perigo, pois não tendo batido nas pedras, mas ficando quase comprimido de encontro à margem, pôde ser com facilidade agarrado pelo temerário pescador, e assim conduzido por um milagre inexplicável para fora do abismo! Ninguém pôde até hoje explicar ainda semelhante acontecimento!
O Juca, apenas viu o mancebo ao abrigo da morte, lembrou-se pela primeira vez de si! Singular fenômeno! O silencio mais completo reinava em toda a natureza! Estendeu o ouvido para a cachoeira: ela estava muda! Chegou-se junto a seus companheiros que falavam: não ouviu uma palavra! Levantou do chão a sua viola estremecida, passou rapidamente por suas cordas as mãos tremulas e geladas, e nem uma nota do instrumento penetrou em seus ouvidos e repercutiu em seu cérebro!
O infeliz estava mudo! E um terceiro grito de amargura partiu da multidão, que neste momento solene desatou em um choro convulsivo e profundo!
O seu cantar daquela noite havia sido o verdadeiro canto do cisne!
VI
Os dois viajantes, apenas restabelecido o enfermo, seguiram para o seu destino. O moço conservava apenas algumas ligeiras contusões, que com o tempo facilmente viriam a desaparecer.
O fazendeiro, ao despedir-se do Juca, apertou-o afetuosamente em seus braços, e disse-lhe com os olhos rasos de lágrimas:
— Devo-lhe a vida de meu filho; metade da fortuna dele é sua.
O Juca retribuiu-lhe o abraço com efusão; mas não ouviu a promessa que lhe havia sido feita sem testemunhas, e voltou de novo para a sua vida de pescador do rio.
Uma melancolia indefinível o havia ganho a pouco e pouco. Emagrecia a olhos vistos. As suas faces, macilentas e encovadas, cobriam-se de um véu de sinistra palidez, e de vez em quando estremecimentos convulsivos agitavam todo o seu corpo, como se as azas da morte lhe tocassem o fúnebre semblante.
Ás vezes parava horas inteiras diante da sua pobre e abandonada viola, e cruzando os braços com amargura sobre o peito, duas lágrimas lentas lhe escorregavam silenciosas pelas faces imóveis! Fazia lembrar o infortunado Weber, quando, depois das lutas de uma vida tempestuosa, o grande o sublime maestro só nos delírios da embriaguez podia ressuscitar ainda em desfalecidos lampejos as ondas do som em seus ouvidos inertes.
Desde esse dia, sem já ter esperança no amor, e vendo de repente apertar-se o círculo ao horizonte do seu porvir, o Juca, sentindo vacilar por um momento a razão, retemperou a sua alma no infortúnio; e uma paixão desusada, singular, estranha, absorveu por tal arte todas as suas faculdades, que o fez quase esquecer do passado, e o tornou um espectador silencioso e mudo dessa grande e fatal subversão dos elementos que o rodeava na natureza! A pouco e pouco o seu espírito foi-se imobilizando com os rochedos, tomando a frialdade e o peso das aguas, cavando-se em abismos pavorosos, e sentia-se então arrebatar no pensamento por uma força misteriosa, mas implacável, como a que impele a correnteza dos rios e arroja em praias desconhecidas os vagalhões do oceano.
O desgraçado sentia o amor e o ódio do abismo!
Muitas vezes descia rapidamente as anfractuosidades salientes dos rochedos, subia na ponta mais escarpada de um penhasco, e aí passava tempos esquecidos, contemplando com um sorriso aterrador a luta das aguas gemendo com desespero entre as eternas trincheiras que Deus havia levantado sobranceiras ao seu furor.
Outras vezes, silencioso e preocupado, armava a sua canoa, e, atravessando todos os precipícios, ganhava a corrente sossegada do rio e desaparecia por alguns dias, vivendo no meio de uma ilha solitária, ou embrenhando-se por entre as matas, sem que ninguém soubesse qual era o fim destas suas excursões, nem tentasse sondar o mistério em que se envolvia a sua existência, devorada por uma dor que devia ser tremenda e funesta.
Assim decorreram alguns meses, sem que se conhecesse outra alteração na sua vida mais que a magreza que o definhava, e a lívida palidez de seu rosto, onde a morte parecia haver estampado já o selo da destruição!
VII
Uma madrugada, chegou à povoação, no seu regresso da corte, o nosso conhecido fazendeiro, depois de haver assistido ao embarque de seu filho, e impressionado ainda pelos adeuses da despedida.
O honrado velho vinha cumprir a promessa de sua palavra leal. Trazia metade da fortuna de seu filho, para oferecê-la ao intrépido pescador que, para o salvar, não vacilara um momento em arriscar num perigo certo e inevitável o seu futuro e a sua própria vida.
O Juca do Salto não se achava nesse dia no povoado, e ninguém do lugar sabia dizer para que lado havia dirigido as suas solitárias excursões.
Apenas os seus companheiros da aldeia tiveram noticia desta boa nova, que era para o infeliz moço a garantia de um porvir abastado e tranquilo, amaram-se todas as canoas que havia por aquelas proximidades, e dia e meio se perlustrou o rio e as matas circunvizinhas sem ser possível descobrir o misterioso pescador.
Quando já todos se sentiam esmorecer nesta baldada pesquisa, um dos rapazinhos, que singrava com uma das canoas, veio dizer que tinha visto à boca de uma gruta um objeto branco, e lhe parecia descobrir um corpo morto ao lado daquele pano imóvel.
Todos correram apressadamente ao sitio designado, e qual foi a sua desesperação ao reconhecerem naquele vulto inanimado o cadáver do Pescador do Salto!
Abraçado com a rede, o desventurado dir-se-ia ter expirado depois de haver despedaçado com um supremo esforço de angustia o instrumento predileto de suas inspirações, cujos fragmentos alastravam dispersos o chão e jaziam abandonados na solidão da gruta.
O velho fazendeiro, vendo a triste sorte do salvador de seu filho, umedeceu com lágrimas sentidas os seus últimos despojos, e, acompanhado por todos os amigos do finado, mandou sepultar o corpo, e levantar uma cruz de madeira sobre o penhasco da gruta.
Assim morrem os mártires da humanidade, ignorados na terra, mas abençoados por Deus no dia de suas grandes tribulações!
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Esta história singela é uma página destacada das tradições populares do interior do Brasil, a que o autor irá revestindo de uma forma mais amena, sem contudo lhes obliterar esse cunho de primitiva rudeza que constitui o grande mérito de sua originalidade, e que se deve conservar como essas essências preciosas que se guardam inalteráveis, seja qual for o valor ou o merecimento da urna em que se entesouram.
O invólucro da presente lenda pode ser pobre e grosseiro; mas o perfume que rescende dela é puro e santo como as paixões ardentes, mas elevadas, dos filhos de uma sociedade quase primitiva.
A. E. Zaluar.
[1] Palidez