LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
“Romanticismo”, de Lúcio de Mendonça
Edição de Referência:
Jornal das Famílias. Tomo 15, novembro de 1877, pp. 333-338.
I
Júlio terminara a leitura do último romance de Alencar; depôs o livro, acendeu um cigarro, e esteve muito tempo a olhar vagamente para um angulo do gabinete, com o olhar pasmado de quem tem o espírito cativo de algum pensamento que o absorve.
Dominava-o a impressão viva que deixa um final de romance, e que é como o prolongado ressoar das cordas intimas vibradas pela mão poderosa do escritor.
Demais, a hora já de se era para cismas: era a hora do crepúsculo da tarde, sempre triste, porque é lento agonizar do dia.
Um piano vizinho, sufocado, trémulo, exalava uns gemidos dolorosos que eram a canção de Manon Lescaut, aquela saudosa canção tão profundamente melancólica, do nosso Cardoso de Menezes.
— Afinal, pensou o moço, arrancando-se das imaginações que o embebiam, e caindo na realidade, - afinal tudo isto é pura fantasia: mulheres destas, só nos romances.
Mas já lá ia-se-lhe outra vez o espírito na onda azul das quimeras, quando, por felicidade, entrou um amigo, cuja presença o veio aliviar daquela opressão sentimental.
— Oh! imenso Oliveira! – senta-te.
— Ainda estás assim! Contava achar-te pronto já para sairmos.
— Visto-me num segundo.
— Pois avia-te, que não é cedo. O que ficaste fazendo em casa, toda a tarde?
— Estive acabando de ler a Senhora.
— Bonito, não?
— Muito, mas inverossímil. Aurélia Camargo é impossível: não há mulher de tanto espírito, e tão forte. É triste verdade: não há. E aí tens porque eu, que me apaixono por todas as heroínas de romance, ainda não achei mulher que me cativasse o coração... que aliás tem o instinto do cativeiro: anda a pedir por misericórdia que lhe acabem a liberdade.
— Exatamente como a Espanha do defunto Prim.
— Exatamente; e creio que, como a Espanha entregava-se escravo à primeira criança que aparecesse. Mas – acrescentou Júlio, sorrindo, - por mais monarquista de coração que eu seja, não quero submeter-me a um domínio que possa ser...
— Tirânico?
— Pior ainda: que possa ser estupido. Que me importava a tirania? Digo-te mais, Oliveira: encontrasse eu mulher como a desejo, como a imagino, que deixava, e queria mesmo, que ela me dominasse com um despotismo prussiano. Mas resignar-me a uma mulher vulgar, isso não, santo Deus! Isso nunca!
— E tu que não perdes a mania do romanticismo! Olha, Júlio, reflete um dia seriamente, e verás que perigosas inutilidades são as tuas mulheres ideais, criaturas perdidas de fantasia e de ambições extravagantes; cabeças que, em vez de ideias, têm sonhos. Depois, - chama-me burguês ou o que quiseres, - o tal amor, a tal cousa em que tu ocupas todo o tempo e toda a alma, a mim, matar-me-ia de tédio. O amor é um velho romance monótono, em que não há lance que já não esteja previsto; uma comedia banal, de cenas obrigadas, com o seu infalível desenlace, que é enlace, - o casamento. Mas anda, apressa-te, que já deve ter começado o espetáculo.
— Felizmente acabou bem o sermão. O que canta-se hoje?
— A Norma.
— Estás tão empenhado em levar-me ao teatro! Para manifestações acadêmicas, não contas comigo. - Que ideia? Não é para isso: quero apresentar-te, já que estas romântico perdido, a uma espirituosa moça que vai hoje, com certeza, ao Provisório.
— Espirituosa!... Deveras?
— Hás de ver. Estás pronto?
— Vamos.
II
Carlos
“Escrevo-te à uma hora da noite, de volta do teatro, e sob o encanto das mais adoráveis impressões.
Não sei se as almas que entram no céu terão o deslumbramento que eu tive, há poucas horas, ao entrar num camarote, ao encontrarem-se meus olhos com os mais belos olhos que Deus pôs no mundo.
Si eu fosse poeta, não havia verso que me bastasse para celebrar aqueles olhos nunca vistos, aqueles celestes abismos!
Mas isto não é modo de contar uma cousa. Aí vai tudo como foi. O Oliveira apresentou-me, esta noite, no teatro, a uma família em cuja casa esteve morando no seu tempo de calouro.
Basta que te diga que há nessa família uma sinhazinha, que pode ter agora os seus dezoito anos, - a dona dos olhos tão falados, dos olhos que tiram-me o sono desta noite.
Que original criatura, meu Carlos! Que respostas inesperadas tem sempre para dar! Que espírito! Queria só que lhe visses a inteligentíssima expressão do semblante quando ouviu-se a Casta diva, a maviosa, a divina música, que é mesmo um luar cantado... A poesia que lhe transbordava da alma no longo olhar extático!...
Aquele modo de ela ouvir a Casta diva, convenceu-me de que é um espírito superior; é, sim; não pode deixar de ser.
E quando depois eu disse-lhe sorrindo:
— Essa música sentimental comoveu-a muito; não negue, minha senhora, que eu bem o notei.
Respondeu-me com uma tristeza encantadora:
— Aí está; bem eu não queria vir ao teatro; acha-me muito ridícula, não?
— Está gracejando; isso que eu notei apenas revela muito sentimento artístico.
— É ridículo, eu sei que é.
— Adorável não achas?
À saída, trancei o braço com Oliveira, que ouvira o nosso diálogo.
— Então? Perguntou-me ele, rindo muito. O que me dizes da sinhazinha?
— Muito inteligente, parece. Mostra gostar muito de música, - o que é indicio de coração sensível.
Oliveira deu uma risadinha abafada:
— Ao que vem esse teu riso? Creio que não disse nenhuma asneira.
— Não; é cá outra cousa.
E depois de uma pausa, acrescentou:
— Já vês que não é só nos romances que há moças espirituosas.
— E vejo também que és apaixonado dela.
— Eu!... não estás falando sério: sabes que não sou homem de paixões: sossega, rapaz: de mim, te digo que podes amar descansado.
— Ora essa!
E separámo-nos à porta de casa.
Aqui entre nós, que ninguém nos ouve, meu Carlos: sabes quem eu desconfio que está seriamente apaixonado pela sinhazinha? É o teu amigo, Júlio”.
“P.-S. – Os olhos dela não têm cor certa: nem bem azuis, nem bem pardos, nem verdes; quase tudo isso ao mesmo tempo.
Ah! Ainda não te disse como se chama a sinhazinha. Nem digo: é um nome muito feio. Mas queres muito saber? Chama-se Gertrudes. Que lembrança!”
III
Três dias depois, à tarde, Oliveira e Júlio apeavam de um bonde em frente à casa da família de sinhazinha Gertrudes.
A moça, que da janela os viu entrar, veio abrir-lhes a porta da sala.
Os estudantes, depois de cortejarem a linda sinhazinha, - Oliveira com a afabilidade de conhecido antigo, Júlio com o rubor de namorado novo, - foram dar as boas tardes à velha dona da casa, que, recostada numa cadeira de balanço, lia muito embebida, na Província de S. Paulo, As Receitas do Doutor Marigold (tradução do Dr. João Köpke).
Pouco depois, estava travada a conversação, em dous grupos muito distintos. Oliveira, sentado no sofá, e afagando distraidamente um gato de estimação, fingia ouvir os comentários que a velha fazia à sua interessante leitura, mas prestava ouvido atendo às palavras que o colega e a moça trocavam, na janela próxima. Júlio, à meia voz e com animada emoção, ia-se encaminhando para uma declaração amorosa.
Sinhazinha fitava nele os límpidos olhos inocentes, e respondia em poucas palavras, com a voz pausada e inalterável, às apaixonadas efusões do moço.
Oliveira, que, além de os escutar, olhava a furto para eles, apertava os lábios, como para conter-se de rir, sempre que a moça falava.
— É crueldade escarnecer assim dos que padecem, dizia Júlio. Si é impossível a felicidade que ambiciono, se recusa a adoração fervorosa que lhe deponho aos pés, diga, francamente, aniquile-me com o desengano, mas não esteja a torturar-me com essa desdenhosa indiferença, com esse calmo desprezo que não compreendo nem mereço. Oh! a senhora não tem coração! Uma estátua seria menos impassível!
— Na verdade, é triste uma pessoa ser assim, respondia sinhazinha; - mas tudo quanto Deus faz é bem feito. Sou assim desde criança, não sabia?
— Não, não creio: ninguém nasceu nunca assim; o coração é a urna santa do amor, é vaso inexaurível de balsamos consoladores; ninguém o recebeu vazio das mãos do Criador. Si o seu coração já nada contém dos dons celestes, é porque os dissipou talvez na prodigalidade de alguma paixão insensata. Não é assim? - Pois o Dr. Oliveira ainda não lhe tinha dito? Ele sabia muito bem.
— Oliveira sabia-o! E foi ele talvez que lhe inspirou a paixão insensata? Foi ele o miserável?
A moça fez com a cabeça um gesto de assentimento.
Júlio fulminou um olhar feroz para Oliveira, o qual desatou uma gargalhada interminável.
— Não senhor, não se ria, - disse a respeitável interlocutora de Oliveira, empertigando-se muito formalizada, - é como aqui está escrito em letra redonda, que eu ainda sei ler muito bem, graças a Deus, e o doutor Marigold...
— Ah! Sem dúvida!... mas perdão, não foi por isso que eu me ri.
— Então pelo que foi, Sr. Dr. Oliveira?
— É que ali o meu amigo Júlio...
— A! sim! O sr. Dr. Júlio estava aí... nem me lembrava que ele tinha vindo com o senhor! Eu, com este doutor Marigold... também, ele é tão calado; por que não vem conversar?
— Está conversando com sinhazinha.
— Com sinhazinha! Exclamou a velha, pois ele não sabe que...? IV
Carlos.
“Lamenta-me, meu amigo; sou o mais infeliz dos homens, o último dos desgraçados. O meu primeiro amor, o meu amor por sinhazinha, a minha amizade por Oliveira, a minha amizade mais antiga e certa, - essas duas grandes e queridas afeições, perdi-as para sempre: ficaram sepultadas no ridículo.
Cortei relações com Oliveira, porque, “para curar-me do romanticismo” – como disse, - fez-me representar uma farsa, cuja lembrança há de envergonhar-me sempre.
Sinhazinha Gertrudes – aí tens o segredo terrível – é surda, completamente surda, surda como as pedras, e pouco mais ou menos, tão inteligente como elas: pensa que tudo quanto se lhe diz refere-se à sua surdez, e nessa conformidade responde.
Vê que papel imenso fez o
Teu amigo, Júlio”
V
EPÍLOGO
Que exemplo a futuros românticos!
Lúcio de Mendonça