Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

“Susana e Joaninha”, de Vitória Colona


Edição de Referência:

Jornal das Famílias. Tomo 15, julho de 1877, p. 211-216.

Antes de contar-vos o espirituoso fato acontecido com as moças acima mencionadas deixai que vos diga donde me veio o conhecimento dele.

Achando-me num dos dias do mês passado em casa duma amiga que residiu por muito tempo em França e viajou por diversas terras, viemos a falar sobre a injusta apreciação que se faz do nosso sexo, e o aferro inexplicável que os homens têm em não quererem capacitarem-se de que todos os nossos defeitos (porque, amáveis leitoras, cumpre confessarmos que o temos) proveem da falsa educação, ou melhor diríamos, instrução que nos é dada por esses que supondo amar-nos não fazem mais do que cavar a nossa ruina. - Si eu soubesse manejar uma pena, disse Amélia (é o nome da minha amiga) não quisera escrever uma linha que não fosse em favor das mulheres, porque doe-me profundamente vê-las sem defesa.

— Folgaria ver-te empenhada em tão nobre empresa, disse-lhe eu, mas infelizmente há alguns escritores que fugindo à cegueira da paixão apreciam-nos devidamente e tem escrito em nosso favor. - Quem são esses? Perguntou ela.

— De momento não poderia dizer-te o nome de todos os que se têm ocupado desse assunto porque não ignoras quão fraca é a minha memória, mas de dois lembro-me eu por serem meus prediletos.

— Como chamam? Perguntou ela.

— Gabriel João Maria Batista Legouvé (pai) e Ernesto Legouvé (filho).

— Sabes qual é o título da obra?

— Do pai, ou do filho? Tornei-lhe eu.

— Pois ambos se ocuparam do mesmo assunto? Perguntou-me admirada.

— Sim, o pai além de muitas outras obras que escreveu foi autor do Mérito das Mulheres de que te recomendo a leitura. Logo na dedicatória que faz à sua mulher vê-se quais são os sentimentos que o animam relativamente ao nosso sexo. Essa obra não teve menos de 50 edições.

— Há de ser já muito antiga, não é assim?

— Não muito, tornei-lhe eu, porque Legouvé pai ainda foi do nosso século, tanto que morreu em 1811.

— E o filho?

— O filho, esse ainda vive e não há muito tempo publicou a quarta edição duma magnifica obra intitulada: Os pais e os filhos no XIX século, além de muitas outras que já havia escrito. Mas para reconciliar-te com os escritores barbados aconselho-te instantemente a leitura do livro que ele (Ernesto Legouvé) publicou com o título: História moral das mulheres; verás, é admirável!

— Neste ponto de nossa conversa fomos interrompidas pelo pai de Amélia que até ali nos escutara silencioso.

Tu que andas sempre em busca dalguma cousa interessante para o Jornal das Famílias, disse-me ele, folgarás sem dúvida que te conte um fato acontecido com Legouvé pai, e do qual fui testemunha ocular pois achava-me na casa onde ele se deu; isto poderá agradar às tuas leitoras e nos distraíra um pouco agora.

— Ouvi-la-ei com gosto, tornei-lhe eu e desde já vou tomar minhas notas para repeti-la com fidelidade.

— É trabalho desnecessário, tornou-me o velho porque eu a tenho escrita.

— Tencionáveis acaso publicá-la! perguntei-lhe.

— Não por certo, mas escrevia receoso de esquecer alguma circunstância si se confiasse exclusivamente à memória.

E por falar em memória, é melhor que te leia do que te conte, porque pode escapar-me alguma cousa: há tanto tempo que isso aconteceu!

— Espera, vou buscá-la e volto já.

Pouco depois veio trazendo na mão um papel bem amarelado pelo tempo e começou a leitura que se segue, e que aqui transcrevi com mais escrupulosa exatidão.

LEITURA

Legouvé pai ia para Dieppe, onde o esperava um velho amigo de colégio, afim de que assistisse a uma festa de família.

— Acometido em viagem por um acesso de febre teve de abrigar-se numa modesta hospedaria.

O incomodo que ao princípio parecera leve agravou-se de tal forma que seu criado temendo pelos dias do amo julgou prudente ir chamar um médico; antes de sair, porém, recomendou calorosamente o enfermo à hospedaria, dizendo que o zelasse muito porque era o senhor Legouvé, membro da Academia francesa e o autor do Mérito das mulheres.

Logo depois da saída do criado, duas senhoras, de aspecto muito aristocrático, apearam-se dum rico trem à porta da hospedaria e pediram um quarto para repousarem algumas horas.

— Uma era a baronesa de X. e a outra sua irmã, mulher dum oficial general do exército.

Por uma coincidência inexplicável dirigiam-se também para Dieppe, e iam para a mesma casa onde esperavam Legouvé que elas não conheciam, mas admiravam como o cantos das ternuras maternais e da dedicação feminina.

Em breve espaço de tempo souberam, pela hospedeira, quem era seu vizinho de quarto. Ao ouvirem pronunciar o nome de tão simpático escritor as duas irmãs trocaram um olhar de inteligência e conceberam um plano que ao ficarem sós comunicaram uma à outra, e puseram logo em execução com a conivência da dona da hospedaria; sem a qual não o teriam podido levar a efeito.

O projecto foi substituírem suas galas por um traje completo de camponesas e constituírem-se enfermeiras de seu poeta querido, dando-se o nome de Suzana e Joaninha.

Tendo completado a transformação apresentaram-se a Legouvé como duas sobrinhas da hospedeira, e como tais lhe ofereceram seus serviços até que voltasse o criado.

Este voltou com efeito dali a pouco trazendo consigo um médico, que depois de examinar o doente receitou uma poção, recomendou repouso, e retirou-se.

A supostas camponesas convenceram o criado de que necessitava descansar, e podia confiar nelas para ministrarem ao doente tudo o que lhe fosse necessário. O criado aceitou a proposta porque realmente sentia-se fatigado e Legouvé, abatido pela febre, agradeceu-as com um sorriso caindo pouco depois em profunda sonolência.

Sentadas junto do leito velaram com grande solicitude, confessando-se internamente que nenhuma noite de baile que até então haviam desfrutado lhes causara tanta satisfação como a que passavam, no caráter de enfermeiras, à cabeceira desse ilustre enfermo.

Lançando casualmente os olhos para uma mesa, a baronesa viu um livro cuja rica encadernação atraiu sua curiosidade; era o Mérito das mulheres que elas já conheciam. Decidiram lê-lo durante o sono do enfermo fazendo por intervalos suas reflexões em linguagem apropriada ao papel que representavam. - Que bonito livro este, disse Suzana à irmã, se fosse meu dentre em pouco eu o saberia de cor. - E eu tambem, repondeu Joaninha, é o amigo das mulheres; faria bem aos nossos maridos se o lêssem, não achas?

— - Acho, pois não, e se descobrir onde se vende hei de comprar um para mim, ainda que para isso tenha de vender minha cruz de ouro e os meus brincos.

Durante essa conversa Legouvé havia-se desprendido do torpor da febre e estava acordado mas não o manifestava para poder ouvir o que diziam as camponesas; elas por seu turno bem se haviam apercebido que eram ouvidas mas, intencionalmente continuaram nesse tom até que o doente arrastado por esses cândidos elogios exclamou: “Pois bem ofereço-vos este livro; aceitai-o, na certeza de que não foi jamais tão bem interpretado, nem causou, a quem quer que seja, tão ingênua admiração; tanto mais grata ao coração de seu autor”.

— As falsas camponesas fingem-se admiradas e confundem-se em agradecimentos.

O poeta lançando mão duma pena que ali estava perto traçou na primeira página do livro estas palavras: Oferecido pelo autor a Suzana e Joaninha.

No dia seguinte a febre tendo desaparecido, Legouvé seguiu para seu destino, desejoso de abraçar o amigo que igualmente o esperava.

Passado o primeiro momento de efusão depois de sua chegada e tendo mudado de roupa, o ilustre membro da Academia Francesa foi apresentado na sala onde grande número de pessoas ansiavam por conhecê-lo.

Cumprimentou vagamente várias pessoas sem distinguir nenhuma ao princípio, mas de súbito parou estupefato no meio dum comprimento porque entre as pessoas que o felicitavam julgou distinguir Suzana e Joaninha, não já de saia curta e sapatos grossos mas revestidas dum esplêndido vestuário de baile, tendo o cabelo ornado de flores e o colo cintilante de pedrarias.

Uma tal semelhança levou-o a perguntar à dona da casa desde quando essas duas senhoras se achavam em sua casa.

— Desde ontem, respondeu essa.

— Parece incrível, insistiu o escritor, como que falando consigo só, tanta semelhança!

— Semelhança! Perguntou a Senhora, e com quem?

— Com duas sobrinhas da dona da hospedaria onde tive de demorar-me por causa da febre, como já os disse.

— Admira-me como chegásseis a perguntar-me desde quando essas senhoras se achavam aqui visto haver entre essas quatro pessoas parecidas tanta diferença na posição social.

 - Tendes razão, insistiu o poeta, mas asseguro-vos que tanta semelhança nunca se deu na natureza!

Dali a pouco fomos jantar. Estando-se na sobremesa pediram a Legouvé que lê-se um trecho de seu notável poema: O mérito das mulheres.

— Não posso satisfazer-vos, senhores, disse ele, porque o último exemplar que me restava, e trazia comigo para dá-lo à mulher de meu amigo, dei-o às duas camponesas que me velaram na hospedaria onde adoeci.

— Não sirva isso de obstáculo, disse a baronesa dando a Legouvé um livro, aqui tendes o meu exemplar; trago-o sempre comigo, para prova do quanto ele me agrada.

O poeta abre o livro e fica de novo estupefato lendo na primeira folha as palavras que na véspera havia traçado no exemplar que dera às enfermeiras.

— Oh! exclamou ele, olhando para as duas irmãs, eu não me havia enganado!

Durante esta cena a dona da casa e as duas senhoras trocaram entre si olhares e sorrisos de inteligência que tudo explicaram ao sincero admirador das mulheres que contou todo o ocorrido aos circunstantes e disse por fim:

Julgava ter apontado todas as admiráveis qualidades que adornam vosso sexo, senhoras, mas reconheço que estou longe de tê-las enumerado todas no Mérito das Mulheres.

Vitória Collona.