Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Quitubia, de Basílio da Gama


Edição de referência:

Obras Poéticas de Basílio da Gama, São Paulo: Edusp, 1996.

QUITUBIA

Faccia pompa d’Eroi l’Africa ancora

Metastásio

Tu, Deusa de cem bocas, que nos pintas

As ondas do Mar Negro em sangue tintas,

E o Niester incerto, e irresoluto

Sem saber a quem pague o seu tributo,  [1]

Eterno assunto de doiradas Liras;

Agora, que dos Reis dormem as Iras,  [2]

Teus olhos sobre a escura África estende;

Depois, alada Deusa, os ares fende,

E entoa, ao som de bárbara trombeta,

O forte Capitão da Guerra Preta.  [3]

Esforçado Quitubia, o Téjo sabe  [4]

Quanto valor dentro em teu peito cabe.

Herdaste de teu Pai o Nome, e o brio,

Que foi terror do pérfido Gentio:

Fez-lhe sentir da nossa Espada o peso;

E levando nas mãos o Raio aceso

Queimou a Corte da feroz Rainha.  [5]

Mas tu ganhaste, além dos que ele tinha,

Novo Direito à Imortalidade:

É teu Brasão a tua Lealdade:

O Título, que tens, deu-to a Vitória:

C'o teu sangue compraste a tua glória.

Que ainda que essa cor escura o encobre,

Verteste-o por teu Rei; é sangue nobre.

Em vão o Pai te quis às Letras dado:  [6]

Estava o bravo Encogy acastelado  [7]

No fragoso Rochedo ao Céu vizinho,

Qual Águia pendurada do seu ninho;

Quando a coragem, que teu peito encerra,

Gritou a teus ouvidos Guerra, Guerra.

Fugiste à Paz, correste aos Inimigos;

Foste buscar a Glória entre os perigos:

Nem tornaste sem ver sobre ruínas

Tremular na alta Pedra as Lusas Quinas.

Depois atravessando o Negro Mundo,

Duas vezes do incógnito Balundo

O Sertão penetraste valeroso:

Lá é que nasce o Gangu tortuoso,  [8]

Que desce até perder na Cuanza o nome;  [9]

Aonde o Crocodilo os Pretos come.  [10]

Tentaste então, em guerra trabalhosa,

A bárbara Quiçama sequiosa;

Terra vil, de tostados Horizontes,

A quem negou o Céu Rios, e Fontes:

Mas no ventre das Árvores sombrias  [11]

Resguardam do calor as Águas frias

Da Chuva, com que mal se apaga a sede,

Que a ti, e aos teus, ir mais avante impede.

Apenas da fadiga descansado,

Para diversa Empresa nomeado,

A estrada do valor de novo trilhas:

Lá te vejo abrasar as férteis Ilhas,  [12]

Que a Cuanza em torno serpeando lava:

Que inda que as defendia gente brava,

Evitar não puderam a ruína,

Que a dura Lei da Guerra lhes destina.

Já passavas os dias em sossego,

Quando os réus Dembos, com orgulho cego,

Rompem a Guerra: A Guarda retrocede;

E socorro, e vingança, a um tempo pede.

O grande General te chama, e ordena

Que os Dembos desleais paguem a pena.

Tu levantaste a voz, e o braço invicto:

Conheceram os Povos o teu grito;

Longe de si o vil terror sacodem:

Os Valentes de Ambaca à Guerra acodem;

Ambaca, que teu Pai regeu um dia;

Que rega da Lucalla a enchente fria:  [13]

Pelas margens cobertas de Palmeiras

Vêm terçando a Azagaia as mãos guerreiras.

Arma os Valentes seus com igual brio

Cambambe ao longo do espraiado Rio,

Que cercam verdes, debruçados ramos;

Largo Passeio dos Hipopótamos.  [14]

Já dentre tanto arco, e frecha tanta,

O Mancebo Cabôco se adianta;  [15]

O valor pelos anos não espera:

É temido inda mais que brava Fera.

E é seu Direito, em que ninguém o iguala,

Ser quem primeiro exponha o peito à bala.

O Bengo, que se humilha ao Grão Tridente;

Da arenosa Loanda a praia ardente;

Massangano, que a prumo o Sol recebe,  [16]

E que na Cuanza, e na Lucalla bebe;

Todos à Causa Pública concorrem;

E Moxîma, e Calumbo às armas correm.

Já perdido de vista o pátrio Pungo,  [17]

Cortavas as campinas de Golungo;

Já longe estava a gente valerosa;

Quando instruído em Guerra cavilosa

Com temerário pé pisando as Raias

O Mossulu, c'os seus, cobrem as praias;  [18]

E a Capital assustam, pondo logo

Toda a margem do Bengo a ferro, e fogo.

O impávido Barão, que tanto pode,

Arma o resto da Gente, e a tudo acode.

Tu passas, sem que a nobre ira se abrande,

O turvo Zenza, o emaranhado Dande;

E vencedor dos ásperos caminhos,

Lhes vás fazer a Guerra nos seus ninhos.

Nem os rebeldes Dembos te esperaram;  [19]

Que as casas com a Presa abandonaram.

Um frio susto o peito lhes congela,

Vendo diante a Morte, e a causa dela.

A vida vão salvar nas suas Brenhas;

Outros se acolhem às nativas Penhas;

Cai a Idade inocente, a curva Idade:

Ah que eu sinto gemer a Humanidade!

Põe debalde a Razão à Ira o freio.

Correndo vai a Mãe c'o Filho ao seio;

Não vê o precipício, e o tem diante.

Tu ordenas; e ficam num instante

Os frutíferos Troncos escachados;

Os toscos Edifícios arrasados;

E em severo castigo de seu erro

Devora a chama o que escapou ao ferro.

Com o exemplo aterrada a infiel Gente,

E África assim submissa, e obediente,  [20]

Já o ilustre Barão, c'o a Esposa ao lado,

As velas solta para o Tejo amado.

Tu com ele nas asas vens do vento,

Té ver surgir do instável Elemento

Co'a frente torreada a grã Lisboa,

De quem tão alta fama ao longe soa.

Que há muito teu sensível peito encobre

A ânsia que tens, e o pensamento nobre

De ver inda uma vez na Pátria bela

A Alma Grande, que viste longe dela:

E que te fez sentir na adversidade

O raro Dom do Céu, doce Amizade,

Que une as Distâncias, e que iguala as Sortes,

Mais segura nos Bosques, que nas Cortes.

Nas mãos lhe achas as Rédeas do Governo,

E o mesmo Coração, o Peito terno:

Lágrimas doces, lágrimas saudosas

Viste cair das faces generosas

De quem olhou constante, e resoluto,

Para a Desgraça com o rosto enxuto:

Quando o viste maior foi na Desgraça.

Co'a poderosa mão te ergue, e te abraça;

E te encaminha aos pés do Trono Augusto.

Gozaste então, entre prazer, e susto,

Quanto a tua Alma suspirado tinha.

Tu viste com teus olhos a Rainha

De seus Povos felizes adorada:

Tu puseste a seus pés a invicta espada:

E cheio do respeito mais profundo

Beijaste a Mão, que faz feliz o Mundo.

Ouviste o doce som da Voz suave,

Que tem dos nossos corações a chave.

Porém leva gravado na memória,

Que ao contar as Batalhas, e a Vitória;

Os cruéis golpes; as mortais feridas;

As cabeças dos corpos divididas,

E em sangue, e pó revoltos os cabelos;

Tu viste enternecer seus olhos belos.

Não podes desejar honras maiores.

Firmou a Mão Real os teus louvores:

Declarou que se dá por bem servida:

Único preço, por que arrisca a vida

Nação leal de glória cobiçosa.

Agora toma aos teus: Chama-te a Esposa,

Que com agudos ais rompe o ar denso,

E estende os olhos pelo espaço imenso,

Contando os longos dias, da saudade.

A Razão, e o Dever to persuade;

Torna aos teus, que te esperam cuidadosos,

Que à Guerra te seguiram valerosos;

Mostra-lhe o Prêmio, que a Virtude anima.

Conta da bela Europa o doce Clima;

Os usos, os costumes diferentes.

Cheios de inveja os Souvas teus Parentes

Na Corte o ouvirão da Real Tia.

E enquanto a Augusta, a Imortal MARIA,

Manda do alto do Trono, em Paz, e em Guerra,

Seus Raios, e seus Dons, ao fim da Terra;

E co'a vermelha Cruz te adorna o Peito;

Com este loiro a tua testa enfeito.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



[1]  Tributo: foi escrito no mês de Novembro de 1791.

[2]  Iras: A Paz Geral.

[3]  Preta: Este é o seu Posto, e assim se intitula.

[4]  Quitubia: É o seu nome de guerra: quer dizer fogo: o seu nome de Batismo é Domingos Ferreira da Assumpção. Assim mesmo se chamou seu Pai, que governou o Presídio de Ambaca. E o mesmo nome teve já seu Avô, que depois de obrar proezas na Guerra, foi o primeiro da sua cor, que disse Missa no Presídio das Pedras.

[5]  Corte: Nas Guerras, em serviço da Coroa, contra a Rainha GINGA sua Tia. E obrigou-a a retirar-se, e passar para a outra parte do Rio Uhamba; e a pedir paz em 1744.

  Rainha: a Rainha Avó desta chama-se D. Verônica: essa também se faz chamar D. Verônica; mas seu Nome é D. Bingue.

[6]  Pai: Na sua Mocidade aplicou-se aos Estudos na Capital de S. Paulo de Loanda: mas apenas se preparou a primeira expedição, deixou os Livros e foi guerrear.

[7]  Engogy: Potentado, a quem conquistamos a Pedra, ou Serra, que conserva o seu nome. Hoje é bom Vassalo da Coroa, com outros dois potentados seus vizinhos, o Ambuella, e o Ambuilla.

[8]  Gangu: Rio, que vem do sertão de Benguella.

[9]  Cuanza: Rio bem conhecido, que entra no Mar ao Sul da Capital de Angola.

[10]  Crocodilo: Gando, na Língua do País.

[11]  Árvores: Estas Árvores chama-se Embondeiros: algumas são tão corpulentas, que doze homens não as abraçam. A casca é grosseira, e dura; o resto é tão brando, que com facilidade,  e com qualquer instrumento se deixa cavar. Os Negros fazem-lhe uma abertura pelo alto, e entrando dentro, lhe extraem por ali quase todo o interior; naquela vasta Cisterna depositam toda a água que podem recolher da chuva; que deste modo conservam fresca, e saudável; nem há outra no País: a vegetação não só padece, mas prospera; e a Árvore cobre-se toda de folhas, de flores, e de frutos, que se assemelham a confeitos.

[12]  Ilhas: Pertencem à Rainha GINGA.

[13] Lucalla: Rio,  que vem das Terras da Rainha: entra na Cuanza.

[14]  Hipopótamos: Na língua do País Guvo.

[15]  Cabôco: Souva Moço, que mostrou muito valor na Guerra.

[16]  Sol: esta frase, em rigor, não designa só Massangano: mas poeticamente exprime o efeito do calor, que é ali tão intenso, que sucede muitas vezes incendiarem-se os tetos. Os Moradores, em certos tempos, têm sempre água sobre eles.

[17]  Pungo: Pedra mais alta que as outras, que se deixa ver de uma grande distância. O primeiro Capitão-mor das Pedras, posto por Sua Majestade, foi Simão Dimas.

[18]  Mossulu: O Dembo, que se propôs fazer diversão, e atacar a Capital; e que se chegou para nós ao longo do Mar, até o Bengo; intitula-se Marquês de Mossulu.

[19]  Rebeldes: Foram o Quinguengo, e o Nabua Angongo, ambos d’além do Dande.

[20]  Submissa: O Capitão-mor da Guerra Preta, que ficou na ausência do valeroso Quitubia, é Luiz Gonçalves Vaz, seu Discípulo na Arte da Guerra, e que faz honra ao Mestre; sem ter a estatura do Primeiro, tem todo o seu valor; como bem mostrou no caminho de Encogy.