Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico

Primeiras Trovas Burlescas de Getulino, de Luís da Gama 


Edição de base:
Biblioteca Nacional – setor de obras digitalizadas

..............................................

Contudo se vir alguém

Que deles zombe, e de mim,

Defende-me, e dize assim:

Cada qual dá o que tem.

Faustino Xavier de Novais

ÍNDICE

PRÓTASE

LÁ VAI VERSO

JUNTO À ESTÁTUA

SORTIMENTO DE GORRAS

O VELHO NAMORADO

NO ÁLBUM

O GAMENHO

SONETO

A UM FABRICANTE DE PÍRULAS

AO MESMO

ARREDA QUE LÁ VAI UM VATE!

A PITADA

O BALÃO

A UM FABRICANTE DE PÍRULAS

A UM NARIZ

UMA ORQUESTRA

O GRANDE CURADOR DO MAL DAS VINHAS

                      

PACOTILHA

COLEIRINHO

SONETO. RETRATO

A UM VATE ENCICLOPÉDICO

NO ÁLBUM do SR. CAPITÃO JOÃO SOARES

A UNS COLARINHOS

SEREI CONDE, MARQUÊS E DEPUTADO!

OS GLUTÕES

FARMACOPÉIA

A BORBOLETA

QUEM SOU EU?

O JANOTA

LAURA

QUE MUNDO É ESTE?

A CATIVA

SONETO

NOVO SORTIMENTO DE GORRAS PARA A GENTE DE GRANDE TOM

RETRATO DE UM SABICHÃO

NUM ÁLBUM

MINHA MÃE

NO CEMITÉRIO DE S. BENEDITO

PRÓTASE

Embora um vate canhoto

Dos loucos aumente a lista.

Seja cisne ou gafanhoto

Não encontra quem resista

Dos seus versos à leitura,

Que diverte, inda que é dura!

Faustino Xavier de Novais

No meu cantinho,

Encolhidinho,

Mansinho e quedo,

Banindo o medo,

Do torpe mundo,

Tão furibundo,

Em fria prosa

Fastidiosa –

O que estou vendo

Vou descrevendo.

Se de um quadrado

Fizer um ovo

Nisso dou provas

De escritor novo.

Sobre as abas sentado do Parnaso,

Pois que subir não pude ao alto cume,

Qual pobre, de um Mosteiro à Portaria,

De trovas fabriquei este volume.

Vazios de saber, e de prosápia,

Não tratam de Ariosto ou Lamartine

Nem rescendem as doces ambrosias

De Lamires famoso ou Aretine.

São ritmos de tarelo, atropeladas,

Sem metro, sem cadência e sem bitola

Que formam no papel um ziguezague,

Como os passos de rengo manquitola.

Grosseiras produções d’inculta mente,

Em horas de pachorra construídas;

Mas filhas de um bestunto que não rende

Torpe lisonja às almas fementidas.

São folhas de adurente cansanção,

Remédio para os parvos d’excelência;

Que aos arroubos cedendo da loucura,

Aspiram do poleiro alta eminência.

E podem colocar-se à retaguarda

Os veteranos sábios da influência;

Que o trovista respeita submisso,

Honra, pátria, virtude, inteligência.

Só corta com vontade nos malandros,

Que fazem da Nação seu Montepio;

No remisso empregado, sacripante,

No lorpa, no peralta, no vadio.

À frente parvalhões, heróis Quixotes,

Borrachudos Barões da traficância;

Quero ao templo levar do grão Sumano

Estas arcas pejadas de ignorância.

LÁ VAI VERSO

Quero também ser poeta,

Bem pouco, ou nada. me importa

Se a minha veia é discreta,

Se a via que sigo é torta.

Faustino Xavier de Novais

Alta noite, sentindo o meu bestunto

Pejado, qual vulcão de flama ardente,

Leve pluma empunhei incontinente

O fio das idéias fui traçando.

As Ninfas invoquei para que vissem

Do meu estro voraz o ardimento;

E depois revoando ao firmamento,

Fossem do Vate o nome apregoando.

Oh! Musa de Guiné, cor de azeviche,

Estátua de granito denegrido,

Ante quem o Leão se põe rendido,

Despido do furor de atroz braveza;

Empresta-me o cabaço d’urucungo,

Ensina-me a brandir tua marimba,

Inspira-me a ciência da candimba,

As vias me conduz d’alta grandeza.

Quero a glória abater de antigos vates,

Do tempo dos heróis armipotentes;

Os Homeros, Camões – aurifulgentes

Decantando os Barões da minha Pátria!

Quero gravar em lúcidas colunas

O obscuro poder da parvoíce

E a fama levar de vil sandice

Às longínquas regiões da velha Báctria!

Quero que o mundo me encarando veja,

Um retumbante Orfeu de carapinha,

Que a Lira desprezando, por mesquinha,

Ao som decanta da Marimba augusta;

E, qual Arion entre os Delfins,

Os ávidos piratas embaindo –

As ferrenhas palhetas vai brandindo

Com estilo que preza a Líbia adusta.

Com sabença profusa irei cantando

Altos feitos da gente luminosa,

Que a trapaça movendo potentosa

A mente assombra, e pasma à natureza!

Espertos eleitores de encomenda,

Deputados, Ministros, Senadores,

Galfarros Diplomatas – chuchadores,

De quem reza a cartilha de esperteza.

Caducas Tartarugas – desfrutáveis,

Valharrões tabaquentes – sem juízo,

Irrisórias- fidalgas – de improviso,

Finórios traficantes – patriotas;

Espertos maganões, de mão ligeira,

Emproados juízes de trapaça,

E outros que de honrados têm fumaça,

Mas que são refinados agiotas.

Nem eu próprio à festança escaparei;

Com foros de Africano fidalgote,

Montado num Barão com ar de zote –

Ao rufo do tambor, e dos zabumbas,

Ao som de mil aplausos retumbantes,

Entre os netos da Ginga, os meus parentes,

Pulando de prazer e de contentes –

Nas danças entrarei d’altas caiumbas.

JUNTO À ESTÁTUA

(No Jardim Botânico de São Paulo)

Já a saudosa Aurora destoucava

Os seus cabelos de ouro delicados,

E as boninas nos campos esmaltados

De cristalino orvalho borrifava

Camões – Sonetos

Em plácida manhã serena e pura,

Sentado à borda de espaçoso lago;

O corpo recostado em frio marmor,

Tórridos membros sobre a terra quedos,

Qual túmido Tritão de amor vencido,

Transpondo as serras, iracundos mares,

D’Aurora o berço perscrutando ousado,

Dolorosos suspiros exalava

Meu frágil peito da natura escravo.

Já nas fúlgidas portas do Oriente,

Trajando púrpura majestoso assoma

Luzeiro ardente, que expandindo os raios,

Deslumbra os olhos, e a razão sucumbe;

E, com furtiva luz, pálidas fogem

Notívagas esferas cintilantes.

As brandas auras perfumadas vinham

De grato aroma que invejara Meca,

Nos tortos ramos assoprar de manso.

Em nuvens brancas lá do céu caía

Pranto saudoso que derrama a Aurora,

Que a terra orvalha, que floreia os prados.

Volátil bando de ligeiras aves,

Brandindo as asas pelo ar brincavam,

Modulando canções, ternas endechas.

Longe do mundo, das escravas turbas,

Que o ouro compra de avarentos, Cresos,

A minh’alma aos delírios se entregava,

A sombra de ilusões – de aéreos sonhos.

Formosa virgem de nevado colo,

De garços olhos, de cabelos louros;

Sanguíneos lábios, elegante porte,

Mimoso rosto de Ericina bela,

Curvando o seio de alabastro fino,

Mimosa imprime nos meus lábios negros

Gostoso beijo de volúpia ardente! –

Vencido de prazer, nadando em gozos,

Já temeroso pé movendo incerto,

Vôo com ela às regiões etéreas

Nas tênues asas de ternura infinda.

.......................................................

Rasgando o véu das ilusões mentidas,

Que est’alma frágil seduzir puderam,

Imóvel terra, cambiantes flores,

Viram meus olhos no romper da Aurora;

E dentre os braços, que cerrados tinha,

Gelada estátua de grosseiro mármore!...

Cândidas boninas,

E purpúreas rosas,

Violetas roxas

Do luar saudosas!

Verdejantes murtas,

Redolentes cravos,

Lindas papoulas

Da donzela escravos,

Ao soprar da brisa,

Em balanço undoso,

O mortal encantam

Num sonhar gostoso.

Mas fugindo as nuvens

– Que a ilusão fulgura,

Só vagueia à sombra

Da infernal ventura.

SORTIMENTO DE GORRAS

(Para gente de grande tom)

Seja um sábio o fabricante,

Seja a fábrica mui rica,

Quem carapuças fabrica

Sofre um dissabor constante:

Obra pronta, voa errante,

Feita avulso, e sem medida;

Mas no vôo suspendida,

Por qualquer que lhe apareça,

Lá lhe fica na cabeça,

Té as orelhas metidas.

Faustino Xavier de Novais

Se o grosseiro alveitar ou charlatão

Entre nós se proclama sabichão;

E, com cartas compradas na Alemanha,

Por anil nos impinge ipecacuanha;

Se mata, por honrar a Medicina,

Mais voraz do que uma ave de rapina;

E num dia, se errando na receita,

Pratica no mortal cura perfeita;

Não te espantes, ó Leitor, da novidade,

Pois tudo no Brasil é raridade!

Se os nobres desta terra, empanturrados,

Em Guiné têm parentes enterrados;

E, cedendo à prosápia, ou duros vícios,

Esquecendo os negrinhos seus patrícios;

Se mulatos de cor esbranquiçada,

Já se julgam de origem refinada,

E curvos à mania que domina,

Desprezam a vovó que é preta-mina: –

Não te espantes, ó Leitor, da novidade,

Pois tudo no Brasil é raridade!

Se o Governo do Império Brasileiro,

Faz coisas de espantar o mundo inteiro,

Transcendendo o Autor da geração,

O jumento transforma em sor Barão;

Se o estúpido matuto, apatetado,

Idolatra o papel de mascarado;

E fazendo-se o lorpa deputado,

N’Assembléia vai dar seu – apolhado!

Não te espantes, ó Leitor, da novidade,

Pois tudo no Brasil é raridade!

Se impera no Brasil o patronato,

Fazendo que o Camelo seja Gato,

Levando o seu domínio a ponto tal,

Que torna em sapiente o animal;

Se deslustram honrosos pergaminhos

Patetas que nem servem p’ra meirinhos

E que sendo formados Bacharéis,

Sabem menos do que pecos bedéis:

Não te espantes, ó Leitor, da novidade,

Pois que tudo no Brasil é raridade!

Se temos Deputados, Senadores,

Bons Ministros, e outros chuchadores;

Que se aferram às tetas da Nação

Com mais sanha que o Tigre, ou que o Leão;

Se já temos calçados – mac-lama,

Novidade que esfalfa a voz da Fama,

Blasonando as gazetas – que há progresso,

Quando tudo caminho p’ro regresso:

Não te espantes, ó Leitor, da pepineira,

Pois que tudo no Brasil é chuchadeira!

Se contamos vadios empregados,

Porque são de potências afilhados,

E sucumbe, à matroca, abandonado,

O homem de critério, que é honrado;

Se temos militares de trapaça,

Que da guerra jamais viram fumaça,

Mas que empolgam chistosos ordenados,

Que ao povo, sem sentir, são arrancados:

Não te espantes, ó Leitor, da pepineira,

Pois que tudo no Brasil é chuchadeira!

Se faz oposição o Deputado,

Com discurso medonho, enfarruscado;

E pilhado a maminha da lambança,

Discrepa do papel, e faz mudança;

Se esperto capadócio ou maganão,

Alcança de um jornal a redação,

E com quanto não passe de um birbante,

Vai fisgando o metal aurissonante:

Não te espantes, ó Leitor, da pepineira,

Pois que tudo no Brasil é chuchadeira!

Se a guarda que se diz – Nacional,

Também tem caixa-pia, ou musical,

E da qual dinheiro se evapora,

Como o – Mal – da boceta de Pandora;

Se depois por chamar nova pitança,

Se depois se conserva a – Esperança;

E nisto resmungando o cidadão

Lá vai ter ao calvário da prisão;

Não te espantes, ó Leitor, da pepineira,

Pois que tudo no Brasil é chuchadeira!

Se temos majestosas Faculdades,

Onde imperam egrégias potestades,

E, apesar das luzes dos mentores,

Os burregos também saem Doutores;

Se varões de preclara inteligência,

Animam a defender a decadência,

E a Pátria sepultando em vil desdouro,

Perjuram como Judas – só por ouro:

É que o sábio, no Brasil, só quer lambança,

Onde possa empantufar a larga pança!

Se a Lei fundamental – Constipação,

Faz papel de falaz camaleão,

E surgindo no tempo de eleições,

Aos patetas ilude, aos toleirões;

Se luzidos Ministros, d’alta escolha,

Com jeito, também mascam grossa rolha;

E clamando que – são independentes –,

Em segredo recebem bons presentes:

É que o sábio, no Brasil, só quer lambança,

Onde possa empantufar a larga pança!

Se a Justiça, por ter olhos vendados,

É vendida, por certos Magistrados,

Que o pudor aferrando na gaveta,

Sustentam – que o Direito é pura peta;

E se os altos poderes sociais,

Toleram estas cenas imorais;

Se não mente o rifão, já mui sabido:

Ladrão que muito furta é protegido –

É que o sábio, no Brasil, só quer lambança,

Onde possa empantufar a larga pança!

Se ardente campeão da liberdade,

Apregoa dos povos a igualdade,

Libelos escrevendo formidáveis,

Com frases de peçonha impenetráveis;

Já do Céu perscrutando alta eminência

Abandona os troféus da inteligência;

Ao som d’aragem se curva, qual vilão,

O nome vende, a glória, a posição:

É que o sábio, no Brasil, só quer lambança,

Onde possa empantufar a larga pança!

E se eu, que amigo sou da patuscada,

Pespego no Leitor esta maçada;

Que já sendo avezado ao sofrimento,

Bonachão se tem feito pachorrento;

Se por mais que me esforce contra o vício

Desmontar não consigo o artifício;

E quebrando a cabeça do Leitor

De um tarelo não passo, ou falador;

É que tudo que não cheira a pepineira

Logo tacham de maçante frioleira.

O VELHO NAMORADO

Pobre velho! Estás perdido

Se nesse couro tão duro,

Pôde ainda fazer-te um furo

Uma seta de Cupido!

Desse mal acometido,

Remédio te não darão;

Que nessa idade a paixão,

Bem que assim te não pareça,

É moléstia da cabeça,

Que não sente o coração.

Faustino Xavier de Novais

Um velho demente,

Mimoso ratão,

Fiado em Cupido,

Quis ser Maganão.

Janeiros sessenta,

Contava o patola,

Com rugas na cara,

Com ar de façola.

Gorducho e roliço,

Qual porco cacete;

Cabeça de coco,

Nariz de pivete.

De pança crescida,

Andar de garoto,

Franzindo sobrolho,

Olhar de maroto.

Cedendo à loucura,

Que dele zombava,

A barba e cabelo

Cuidoso pintava.

Brunia os sapatos,

O fato escovava;

Na destra grosseira

Bengala empunhava.

Se via à janela,

Mocinha dengosa;

De lindo semblante

E lábios de rosa:

Então, derretido,

O velho lapuz,

Saltava, gingava,

Qual jovem de truz.

Se a bela formosa,

Por mofa, sorria,

O pobre do punga

Alentos bebia.

Assim pretendia

Esposa encontrar,

Que a sua rabuge

Quisesse aturar

Eis chega-se o dia

De amor inspirado;

Enfeita-se o asno,

Assim preparado.

Da cara deidade

Trepando as escadas,

Com fúria de bravo,

Dá quatro palmadas!

Lá corre a criada,

Mulata faceira,

De porte agradável,

Nos modos brejeira;

E vendo o basbaque

A moda vestido,

Exclama, sorrindo:

– “Que lindo Cupido!.

“Bonita casaca,

“Colete bordado;

“Chapéu de patente,

“Cabelo pintado!...

“Vem tão bonitinho!...

“A quem quer falar?”

– “Co’a dona da casa

“Desejo tratar.”

Escanc’ram-se as portas,

Lá entra o velhote,

De negra azeitona

Redondo ancorote.

Eis chega a matrona,

Que a casa dirige;

Daquela visita,

A dona se aflige.

Também vem com ela

Formosa menina,

De louros cabelos

E face divina.

– “Que ordenas, pergunta,

“Ilustre mancebo?”

Estufa-se o lorpa,

Cupido de sebo!

Prepara a garganta,

Tomando postura,

À frente se põe

Da prenda futura.

E qual orador

Em pleno auditório,

O gebas começa

O seu palanfrório:

Ó Venus pudibunda, sem igual,

A teus pés aqui tens este animal,

Que vencido de amor pelos teus gestos,

Curvado te apresenta os seus protestos!

Vencestes do bigode – autoridade,

Do soldado a cruel severidade!

Este todo que vês tão rijo e duro,

Em borra ficará para o futuro;

Este peito que bate só por ti,

Já rendido e quebrado o tens aqui.

Guerreiro das campanhas cupidárias ,

Dos mercúrios, jalapas e fumárias.

Sou velho, mas em tudo tão perfeito,

Que não conto, sequer um só defeito!

Agora tu, matrona ajuizada,

Que pariste esta prenda delicada,

Consente no casório desejado,

– Não faças do velhote um desgraçado!

Notando a donzela,

Que o peco farfante,

Vencido de amores,

Se fez um pedante;

A ele se chega,

Com ar sedutor,

Que os peitos encanta

Que mata de amor;

Com gesto femíneo

Que a mente não trai,

Sorrindo, lhe disse:

“A bênção, papai!...”

Depois, prazenteira,

A face voltando,

Com garbo de fada

Se foi retirando!...

E com esta chalaça tão picante

O avô de Saturno, delirante,

Não ficou homem, não, mas mudo e quedo

Qual junto de um penedo outro penedo!

E, depois que sentiu-se codilhado,

Pela porta tomou, muito enfiado.

NO ÁLBUM

Do meu amigo J. A. da Silva Sobral

Amigo

Pedes um canto na lira,

A quem apenas lhe tira

Sons de viola chuleira?

Insistes dessa maneira?

Não sabes que, por desgraça,

Por mais esforços que faça

Por ser vate é sempre em vão?

Não vás que mente o rifão:

Quem porfia mata caça?

Faustino Xavier de Novais

Se tu queres, meu amigo,

No teu álb’um pensamento

Ornado de frases finas,

Ditadas pelo talento;

Não contes comigo,

Que sou pobretão:

Em coisas mimosas

Sou mesmo um ratão.

Não falo de flores,

Dos prados não falo,

Nem trato dos sinos

Porque têm badalo;

Da rola que geme,

À borda do ninho,

Do tênue regato

Que corre mansinho;

Nem das travessuras

Do terno Cupido,

Que faz do beato

Janota garrido.

Mas se queres que alinhave

Palavras desconchavadas,

Desculpa, com paciência,

Sandices que vão ritmadas.

Desprenda-se a veia,

Comece a festança

Movendo, cortando –

Com toda chibança.

Ateie-se a Musa,

Na magra cachola,

Com frases flamantes

De chocho pachola.

E qual estudante,

Campando de sábio,

Que empunha a luneta,

Que é seu astrolábio,

Eu pego na pena,

Escrevo o que sinto;

– Seguindo a doutrina

Do grande Filinto.

Que estou a dizer?!

Bradar contra o vício!

Cortar nos costumes!

Luiz, outro ofício...

Não lutes com isso,

Trabalhas em vão;

E podes tocar

N’algum paspalhão.

Vai lá para a tenda

Pegar na sovela,

Coser teus sapatos

Com linha amarela.

Mordendo na sola,

Empunha o martelo,

Não queiras com brancos,

Meter-te a tarelo.

Que o branco é mordaz

Tem sangue azulado;

Se boles com ele

Estás embirado.

Não borres um livro,

Tão belo e tão fino;

Não sejas pateta,

Sandeu e mofino.

Ciências e letras

Não são para ti

Pretinho da Costa

Não gente aqui

...............................

Ouvindo o conselho

Da minha razão,

Calei o impulso

Do meu coração.

Se o muito que sinto

Não posso dizer,

Do pouco que sei

Não quero escrever.

Não quero que digam

Que fui atrevido;

E que na ciência

Sou intrometido.

Desculpa, meu amigo,

Eu nada te posso dar;

Na terra que rege o branco

Nos privam té de pensar!...

Ao peso do cativeiro

Perdemos razão e tino,

Sofrendo barbaridades,

Em nome do Ser Divino!!

E quando lá no horizonte

Despontar a Liberdade;

Rompendo as férreas algemas

E proclamando a igualdade,

Do chocho bestunto

Cabeça farei;

Mimosas cantigas

Então te direi. –

O GAMENHO

Parece-me impossível que o gamenho,

Que cuidoso só trata do cabelo,

Não tenha transformado em um novelo

O miolo que encobre tal sedenho!

O Autor

Lá ginga na praça

Gentil namorado;

Vai tão adamado,

Que as belas mais dengues

Lhe rendem mendengues.

Passinhos de Ninfa

Mimosa, engraçada;

Parece uma fada,

Nem Vênus formosa

Como ele é garbosa!

Trejeitos femíneos,

Pisar delicado,

Andar compassado;

Oh céus, que luxúria,

Que terna melúria! –

Que ar sedutor,

Que todo elegante,

Que lindo semblante,

Que pé delicado –

Parece moldado!

Mas se queres, Leitor, ver um contraste,

Adonis em Morcego transformado,

O Cupido em figura de Macaco –

Aproxima-te ao néscio namorado.

É um velho farsola, desfrutável,

Com fumaças de jovem repimpado,

Que ao ridículo se presta, qual demente,

Figura de presepe ou mascarado.

SONETO

MOTE

E não pôde negar ser meu parente!

Sou nobre, e de linhagem sublimada,

Descendo, em linha reta, dos Pegados,

Cuja lança feroz desbaratados

Fez tremer os guerreiros da Cruzada!

Minha mãe, que é de proa alcantilada,

Vem da raça dos Reis mais afamados;

– Blasonara entre um bando de pasmados.

Certo povo de casta amorenada.

Eis que brada um peralta retumbante;

– “Teu avô, que de cor era latente,

“Teve um neto mulato e mui pedante!”

Irrita-se o fidalgo qual demente,

Trescala a vil catinga nauseante,

E não pôde negar ser meu parente!

A UM FABRICANTE DE PÍRULAS

Soneto

Ilmos. Srs. da Municipal

Diz Dom Sancho careca, o carraspanas,

Antigo charlatão politiqueiro,

Por força da natura cozinheiro,

Atual compositor de trabuzanas,

Que a bem de seus direitos, sem chicanas,

Por honra da ciência, em que é primeiro,

Os foros se lhe dê de calhandeiro

Dos efeitos das purgas paulistanas.

E sendo o suplicante o sabichão,

Inventor do sistema da rapina,

Reclama uma patente de invenção.

Requer para seu uso uma batina,

De burro uma queixada por brasão,

Sem fundos um barril por barretina.

AO MESMO

Soneto

Qual de pedra colosso ou monte Atlante,

De horrenda catadura, horrendo porte,

Rugindo se apresenta qual Mavorte,

Borrachudo Averróes ali tonante.

Impondo de Doutor o ruminante,

De catrâmbias atira a negra morte,

Das fauces lhe despara o vento norte

Com tremendo estampido retumbante.

Eis que surge Chiron d’alta memória

E vendo esse monturo de bagaço

Raivoso então bradou, rasgando a história:

“Silêncio, ó charlatão! Nem mais um passo,

“Que levo-te a vergalho, à palmatória,

“Transformo-te num burro, e mais não faço.

ARREDA QUE LÁ VAI UM VATE!

Quis um pobre sandeu apatetado

Sobre as grimpas guindar-se do Parnaso;

Empunha uma bandurra desmanchada,

E nas ancas se encaixa do Pégaso.

As crinas se aferrando, como doido,

No bandulho do bruto as pernas cerra;

Manquejando na prosa, em verso rengo,

Ufanoso da glória exclama e berra:

Ao Parnaso! Ao Parnaso subir quero!

Sonoroso anafil empunho ousado,

Para a fama elevar do sacrilégio

Com meu fofo bestunto estuporado.

Os gatos mostrarei fugindo aos ratos,

Vistosos frutos em arbusto peco;

Jumentos a voar, touros cantando,

E grandes tubarões nadando em seco!

Espanta-se o cavalo ao som da asneira,

E cuidando em si ter outro que tal,

Com saltos e corcovos desmedidos

O pateta lançou num tremedal.

Todo em lama, o coitado, besuntado,

A bandurra tocou destemperada,

E, por fim do descante, só ficaram

Asneiras e sandices – patacoada.

A PITADA

A pitada é coisa grande,

Vem de engenho sublimado;

É capaz de tirar monco

Do nariz mais confiado.

Certo Papa altipotente,

Dela tendo experiência,

Suspendeu suas tomadas,

Por temer sua influência.

Não respeita velho ou moço,

Seja preto ou cor de giz;

Sai do bote para a caixa,

E da caixa p’ra o nariz.

É prazer que não se explica,

Ardorzinho que consola,

Vício honesto, inocentinho,

Protegido pela estola.

Contra o peso da cabeça,

É remédio tão gabado,

Que o não deixa um só momento

Todo o homem que é casado.

Toma a velha, a moça toma,

Toma a negra, toma a branca,

Toma o rico, toma o pobre,

Tendo a venta sempre franca

Té nos líbicos desertos,

Toma o bárbaro gentio,

Torvo esturro cor de barro,

Recrestado ao sol de estio.

Oh! Pitada milagrosa,

Pitadinha portentosa!

Eu quisera ser um Dante,

Ter uma harpa ressonante,

P’ra cantar a tua glória

Sobre as aras da memória.

Não te zangues, pitadinha,

Pitadinha amarelinha;

Pobre filho da tarimba,

Vou cantar-te na marimba.

Atendei, oh tomadores,

Que eu começo os meus louvores!

É tão bela, é tão gabada

A virtude da pitada,

Que não há quem lhe resista,

Seja cego ou tenha vista!

Nem a velha recurvada,

Nem a moça enamorada,

Nem o padre, nem o frade,

Seja leigo ou seja abade,

São capazes de fugir,

Evitar ou resistir,

À tendência exacerbada,

Pela força da pitada!

Quem resiste ao bom tabaco,

Quer de binga quer de caco?!

Toma o menino de escola,

Para ter fresquinha a bola;

Toma o rude lavrador,

Toma o sábio professor:

Velhos lentes jubilados

Pelos anos alquebrados,

O vagaroso porteiro,

Os vigários, o sineiro,

Toma o mestre de francês,

O de latim, o de inglês,

O boçal qu’inda é caloiro,

Que o tomar não é desdoiro;

Veteranos, bacharéis,

Secretários e bedéis,

Diretores de colégios,

Apesar dos privilégios;

Também toma, por mania,

O que explica geometria.

E narizes tem-se visto,

Com prosápias de resisto,

Que chupitam num momento,

De tabaco bolorento,

Duas libras, bem pesadas,

Embutidas por pitadas.

A pitada é coisa grande,

Vem de engenho sublimado,

É capaz de tirar monco

Do nariz mais confinado.

Não tem bom gosto,

Quem fero, altivo,

Se mostra esquivo

À pitadinha;

Que é coisa santa,

Contra azedumes,

Negros ciúmes,

Tomada azinha.

Quer de canjica,

Quer de semonte,

Refresca a fronte,

Tomada azinha;

Por ela morre

Gentil donzela

Formosa e bela

Tão moreninha.

Alegre toma,

Morta de amores,

Libando as flores,

Qual avezinha,

Nívea loureira

Na orlada venta

Brandinha e lenta

A pitadinha.

Toma a casada,

Toma a solteira,

A honesta freira,

Que é bonitinha;

Entre os dedinhos,

Alvos, brunidos,

Com graça unidos,

A pitadinha.

Do gênio afasta,

Suavemente,

A impertinente,

Fera zanguinha;

Sara quebrantos,

Paixões de amores,

Acerbas dores,

Tomada azinha.

Qual o volátil,

Que inocentinho,

Deixando o ninho,

Beija a florinha

Assim, deidades,

Que as auras beijam,

Ternas almejam

A pitadinha.

Lindas meninas,

No seu passeio,

Levam – no seio –

A bocetinha,

Para tomarem,

Co’as companheiras,

Por brincadeiras,

A pitadinha.

E se o espirro,

Deixando a toca,

Vem à taboca

Ligeira e rude;

Entoa o bando

De Huris formosas,

Quais níveas rosas,

Um – Deus lhe ajude.

O BALÃO

Requeiro oh Musa,

Do grande Urbino,

Pincel divino,

D’alto rojão;

De Tasso o gênio,

De Homero a fama,

Que o mundo aclama,

D’áurea feição.

Que cantar quero,

Vibrando o plectro,

Com doce metro,

Ancho balão;

Erguendo aos ares

Novas esferas,

Tontas megeras,

De rubicão.

Guapos rapazes,

Velhos caducos,

Sandeus malucos,

Por devoção;

Que, por pacholas,

O siso despem,

E à moda vestem,

Lá do Japão.

Rompa-se a marcha!

Eis um capenga,

Que untada a quenga

Traz de sabão;

Andar cadente,

No gesto grave,

E grossa trave

Tem por bastão!

Oh! que prosápia!

Traja com gosto,

Tem o composto

De um figurão!

Vem atacado,

E tão rotundo,

Que afronta o mundo,

Com seu balão!

Desfez-se o homem,

E não é peta,

Fez-se planeta,

– De Escorpião –!

Tem gás na pança,

Suspiro e bomba,

– Astro de tromba,

Luz de alcatrão!

Olá! que vejo!

Qual nívea estrela,

De luz singela,

Tem o clarão!

Mimosa fada,

Que os gênios doma,

Ampla redoma,

Do Indostão!

Faz mil requebros,

Gentil donzela,

Qual rosa bela

Contra o tufão;

Salta e corcova,

Como charrua,

Quando flutua,

Sem capitão!

Silêncio! é ela!

Tão vaporosa

Vem, e formosa,

– Que treme o chão!

Gordo cetáceo,

Deixando os mares,

Que afronta os lares,

Sobre um balão!

Eu te saúdo,

Oh tartaruga,

Romba taruga,

De barracão!

Monstro que alojas,

Sob os babados,

Dez mil soldados,

Do rei Plutão!

Planeta aquário,

Veloz, possante,

Que vaga errante,

Sem região;

Farol tremente,

D’estreita barra,

Que o leme emparra,

Do galeão.

Diz a gazeta,

(Caso de fama)

Que certa dama,

Numa função,

Fora atacada,

De flato horrível,

Que a pôs hirtível,

No raso chão.

Doze mancebos

A carregaram,

E colocaram,

Sobre um colchão,

E a castidade,

Sem ofenderem,

Para fazerem,

Fomentação;

Foram tirando,

Sem causar mágoas,

Fofas anáguas,

De camelão;

Curvadas molas,

Arcos de pipa,

Cordas de tripa,

E um rabecão.

Caixas de guerra,

Rouco zabumba,

Que além retumba,

Como trovão;

Felpuda palha

Para viveiros,

Dois travesseiros,

E um trombão.

Eis que debaixo,

Do tal babado,

Pula espantado,

De supetão,

Tremendo gato,

Miando, aflito,

Mais esquisito,

Que um sacristão!

Bradaram todos –

Que era feitiço,

Ou malefício,

De Faetão,

Chamou-se logo,

Para o sinistro,

Certo ministro

Do Alcorão.

Chega o bojudo,

Doutor Trapaças,

Que tem fumaças,

De sabichão;

Pega na pena,

Lavra a receita,

– Para maleita –

Chá de gervão.

Suspira a moça,

No brando leito,

De novo aspeito,

Se amostra então;

Era a doença,

Pobre inocente,

A lava ardente,

Do seu balão!

Casos de estrondo,

Já se tem visto,

Que aqui registo,

Do tal balão,

Atendam todos,

Não façam bulha,

Que tem borbulha,

A narração.

Se algum marujo,

Fino tratante,

Faz-se de impante

Politicão;

Muda de credo,

Vira a casaca,

– O gás ataca,

No seu balão.

Mas se perdendo

A Tramontana,

Qual Zé-Banana,

Pilha o tufão;

Foge ao perigo,

Deixa a catraia,

Buscando a praia,

É charlatão.

Inda que berre,

Inda que brade,

Qual rubro frade,

Com mau sermão;

Um povo inteiro,

Lhe diz em face:

És um falace

Camaleão.

Se na fachada,

De um bom marido,

Que foi traído,

Surge um polmão;

Exclama a esposa,

Que são esguichos,

Os tubos fixos,

Para o balão!

Quem tal diria,

Que na fachada,

Tão respeitada,

Do cidadão,

Se assestariam,

Torcidas molas,

Curvas bitolas,

Para o balão!...

Rengas moçoilas,

De pernas finas,

Têm lamparinas,

Óleo e carvão;

Para empinarem,

O bojo enorme,

Do desconforme,

Monstro balão.

Também a velha,

De gâmbia esguia,

Traz, por mania,

Fofo balão;

Mas, rota a bomba,

É qual sanfona,

Que zune e trona,

De cantochão.

Boçais donzelas,

Finas varetas,

Magros cambetas,

Têm seu balão;

Gás hidrogênio,

Tão sublimado,

Que, destampado,

Faz de trovão!

Não há cegonha,

Torta gazela,

Nem magricela,

Que de balão;

Não faça rodas,

Com tal rebojo,

Que vence, em bojo,

Néscio pavão!

Nem rapazola,

Parvo e pedante,

Que todo limpante,

Qual histrião,

Não julgue ousado,

Pobre pichote,

Ser Dom Quichote,

Sobre o balão!...

E tu, oh gênio,

Sublime e raro,

A quem deparo,

Nesta invenção;

Nas áureas letras,

Da sábia história,

Verás a glória –

Na exposição.

A UM FABRICANTE DE PÍRULAS

Exulta oh Paulicéia, a fronte eleva

Sorri da Grécia e de Esculápio estulto,

Afronta o velho mundo, ousada rompe

Nas aras da memória ergue o teu vulto.

Cidade eterna de prodígios altos,

Que o gênio domas de Misrai potente,

Encrava em bronze com douradas letras

Teu nome excelso de poder ingente.

O Cairo, a Grécia, a Babilônia antiga,

A culta França e a Bretanha ousada,

Ouvindo a fama que o teu nome alteia

Vacilam, tombam do letargo ao nada!

Os vultos da ciência purgatória

Osiris e Quiron, o louro Apolo,

Vencidos de terror medrosos tremem,

E as frontes curvam no gretado solo!

Quem há que possa competir contigo,

Viçoso berço de varões preclaros?

Nem Podaliros de saber profundo,

Ou d’áurea Praxítea os filhos caros!

Se alguém tentar sobrepujar teu nome,

De inveja prenhe e de letal veneno,

Soberba aponta para o vulto hercúleo

Do Pirulista. de assombroso aceno.

Herói fulgente, qual não viu Atenas

Em almos dias que a ciência esmaltam;

Professor magnus de purgantes acres –

Em piruletas que curando matam!

Impando afirma – que com bravas ervas

Sarou morféia, e tudo mais que diz,

Tomou formosos carcomidos corpos,

Com pele e carne, e magistral nariz.

Famintos cura, de dinheiros a falta,

Cabeças ocas, de juízo ausência,

Barriga dura, catarral defluxo,

A hidropisia e perenal demência!

E para assombro, do renome, amostra,

Em um – Correio Paulistano, – antigo,

O selo, a prova desta grã verdade,

Depois o prega em besbelhal postigo.

Caducas velhas de viver cansadas,

Que têm na coma clarabóia imensa,

Tomando as doses do doutor chanfana

Concebem, porém, sem temer doença!

Eis troam, rugem na rotunda pança

Trovões soturnos, sibilantes ventos,

Farpados raios coruscantes ardem

Na cava estreita, em barrigais tormentos!

Tomou aquela, por debique ou luxo,

Das tais pírulas seis macitos – só!

Da pança em fora descretou bramindo

Maçada horrenda, ventania e pó!

E de improviso, por mistério oculto,

Ou providência do remédio santo,

Sentiu crescer-lhe a barrigaça a velha –

Um filho teve por fatal encanto!

Lá mais dous casos de eternal memória

Um velho rengo, uma viúva anosa;

Purgado aquele se transforma em jovem,

A velha em moça virginal formosa!

Silêncio, oh povos! que lá vem milagre,

Repiquem sinos badalar tem-tem!

Atentos mirem da gazeta o caso;

– Lá parem velhas de janeiros cem!

Estende as asas oh Galeno hercúleo,

Adeja em torno da virente Clio;

Despreza os parvos, a sandice estulta,

Berrar de sapos e da inveja o pio.

Em trono calhandral erguido aos ares,

Entre nuvens de incenso purgantino,

Recebe as ovações da gente enferma,

Nas salvas do ribombo tiberino.

Exulta, oh Paulicéia, a fronte eleva

Sorri da Grécia e de Esculápio estulto

Afronta o velho mundo, ousada rompe,

Nas aras da memória ergue o teu vulto.

Rasgando os ares, da vitória certa,

Varrendo as ondas co’os prodígios teus,

Sacode os astros, as montanhas quebra,

Renome imprime nestes versos meus.

E o tal Galeno de purgar sedento,

Que as vidas troca por eterno sonho,

Eleva ao cume das esferas lúcidas,

Nas crespas asas do tufão medonho.

Em torvo monte de fecais matérias,

Quais dundaras montanhas solevadas,

Receba altivo a coruscante auréola

Das mãos da fera Parca descarnadas!

São Paulo

A UM NARIZ

Você perdoe,

Nariz nefando,

Que eu vou cortando

E ainda fica nariz em que se assoe.

Gregório de Matos

Aí vai, leitores,

Um monstro esguio

Que em corrupio

De uma rua tem posto os moradores.

Maior que a proa

Da nau de linha,

Tem camarinha

Aonde à tarde se obumbra a tocha côa.

Rinoceronte

De tromba enorme,

Mais desconforme

Do que o mero, a baleia, o catodante.

Nariz bojante,

Recurvo e longo,

Que lá do Congo

Alcança o Tenerife e Monte Atlante.

De raça eslava

Tremenda espiga,

E há quem diga

Que nela Polifemo cavalgava.

Nariz alado,

De cor bringela,

Que de pinguela,

Serviu no Amazonas celebrado.

E se não mente

A tradição,

De lampião

Fazia um farol da Líbia ardente.

Nariz de pau,

Com tal composto,

Que sobre o rosto

Tem forma de bandurra ou berimbau.

Cavado e torto,

Formal tripeça,

Fundido à pressa

Nas forjas de Vulcano – por aborto.

Nariz de forno,

De amplas badanas,

Que mil bananas

Aloja em cada venta, sem transtorno.

É tão famoso

O tal nariz,

Que por um triz

Não fez parte do cabo tormentoso.

Qual catatau

Da testa pende,

E alguém entende

Ser ninho de coruja ou pica-pau.

Nariz de barro,

Mas não cozido,

Que suspendido,

Sobre as grimpas da lua vai de esbarro.

De quanto fiz

Não se enraiveça;

Não enrubesça,

Que p’ra dar e vender sobra nariz.

UMA ORQUESTRA

Por certa cidade

Sozinho vagando,

Ao mórbido corpo

Alívio buscando:

Acorde harmonia

Ao longe escutei,

E aos dúlios acentos

Meus passos guiei.

Além, numa rua,

Em casa antiquada,

Diviso ao luar

De Euterpe a morada.

A ela me chego,

Com gesto tardio,

Por entre as janelas

Os olhos enfio.

Mas eis que diviso

Um velho zangão,

Zurzindo raivoso

No seu rebecão.

Marcava o compasso,

A pança empinava,

Que, em clave de bufo,

Confusa roncava...

Mexia-se todo,

Fazendo caretas;

As ventas fungavam

– Sonantes trombetas.

Na vasta batata,

Que tem por nariz,

Formara seu ninho

Crescida perdiz.

Sobr’ela, de encaixe,

Luzindo se via

A vítrea cangalha

Que a vista auxilia.

Num lado da penca,

Em alto degrau,

Sereno cantava

Audaz Pica-pau.

Da luta cansado,

Tremendo e suando,

A bola afrescava

Pitadas tomando.

As grossas c’ravelhas

Ligeiro torcia,

Na banza afinada

De novo zurzia.

– Sentada num canto,

Bochechas inchadas,

De solfa na frente,

Em notas pausadas,

De venta enfunada,

Com ar de Sultão,

A dona da casa

Tocando trombão!

– Formosa deidade,

Galante Ciprina,

– Vestida à romana –

Trajando batina,

Tapava os suspiros

De seu clarinete,

Soprando com fúria

D’um anglo paquete!

A filha mais velha

Do tal Corifeu,

Que em flauta d’um tubo

Tem fama d’Orfeu,

Melíflua tocava

No seu canudinho,

Amenos prelúdios,

Lundu miudinho.

A outra, segunda,

Dione formosa,

Impando as bochechas,

Possante e raivosa

Berrava na trompa,

Qual doida Avertana,

Mão dentro, mão fora

Da rasa campana!

Ridente menina,

Que um lustre contava,

Roliça baqueta

Airosa empunhava.

Nos pratos batia,

Malhava o zabumba,

Num moto-contínuo

De bumba-catumba!

No meio da bulha,

Que os ares feria,

O velho, de gosto,

Contente sorria.

A testa esfregava

Co’a destra enrugada,

Nas largas ventrechas

Sorvia a pitada.

Com voz de soprano,

Fazendo trejeitos,

Alegre exclamava,

Batendo nos peitos:

“– Maestros famosos

“Da Grécia não temo,

“Nem Chinas ou Persas

“Da raça do demo.

“A todos confundo

“Com meu rebecão,

“Que ronca e rebrame,

“Qual fero trovão!

“Ferindo estas cordas

“Bezerros imito,

“Grunhido de porcos,

“Berrar de cabrito;

“Zurzidos de burros

“Miados de gato,

“Coaxados de sapos

“– Em tom pizicato –.

“Oh vinde Maestros

“Da Itália e da França,

“De passo ligeiro

“Dançar contradança!

“Oh vinde Aretino,

“Mozart e Rossini,

“Deixando a rebeca

“Também Paganini!

“Que todos patetas

“Aqui ficarão,

“Ao som retumbante

“Do meu rebecão!

“Toquemos meninas,

“Faceiras Camenas,

“Valsitas, quadrilhas

“Nas brandas avenas.

“E todos alegres,

“Vibrando o compasso,

“Os nomes gravemos,

“Na lira d’um Tasso!...”

O GRANDE CURADOR DO MAL DAS VINHAS

Cesse tudo quanto a antiga Musa canta.

Que outro valor mais alto se alevanta!

Camões – Lusíadas, Canto I

Cá do antro negregado em que eu habito,

Envolto na pobreza que me oprime;

Da fatal ignorância ao duro peso,

Qual réu que comete horrendo crime.

Ao mundo não lembrado, como a sombra

De ignorado Pastor em ermos vales;

Sofrendo da miséria atroz reveses,

Do meu fado curtindo acerbos males:

Prostrado à sonolência que domina

A turba dos mortais assim rendidos,

De repente desperto ao som medonho

De brados estridentes – alaridos!

Impávido, correndo, me encaminho,

Em busca do sucesso não cuidado,

Que, os ares atroando, se anuncia,

Qual fero Adamastor, bramindo irado!

A trancos e barrancos, tropeçando,

De súbito deparo fronte a fronte,

– Não de susto falece comovido,

Com feio, desgrenhado e sujo Bronte!

Era hirsuta a melena, esfiapada,

Que nos ombros vergados se esparzia;

A boca retorcida, os dentes verdes,

Rotunda era a cabeça, mas vazia.

Trajava uma casaca que invejara

Um judas, ou magriço gafanhoto,

Presente que lhe dera, em despedida,

O seu velho patrão, que era piloto.

Com denodo, montava, um grã tonel,

Tinha a frente, de parras, enfeitada;

Empunhando na destra uma seringa,

E na sestra uma vinha, já curada.

Diante do herói vinham, saltando,

Uma chusma de Bacos, de cornetas;

Também vinha Príapo, enfurecido,

Entre velhas zanagas, e cambetas!

D’espanto dominado, lhe pergunto:

Quem és tu, ó mortal, que assim caminhas?

Responde-me o colosso, insano e forte:

“O grande curador do mal das vinhas!!”

E soprando-me a testa, d’improviso,

Por pouco me não deixa sem juízo!

Aos ares se elevou, empavesado,

As abas da casaca abrindo ousado;

E, logo que da terra se apartou,

Sobre as nossas cabeças espalhou:

Um chuveiro de anúncios, em gazetas,

Retumbantes artigos, grossas petas;

A caparrosa, a galha, a t’rebentina,

Essência de tabaco, e de quinina;

Pontinhas de charutos já fumados,

Ratos mortos, em vinho conservados;

Pomposos elogios, em jornais,

Sementes p’ra o fabrico de animais;

Um tratado das coisas reunidas,

E mais outras cousitas esquecidas!

Nem César, Bonaparte, nem Mavorte,

E outros em quem poder não teve a morte,

Igualam, no saber, o pregoeiro,

Que das vinhas se aclama – curandeiro.

Por ele se esqueçam os humanos

De Assírios, Persas, Gregos e Romanos

– Que nas grimpas da glória repimpado

Um abraço vai dar no sol dourado.

PACOTILHA

Não ralhem, não façam bulha,

Que eu não sei se isto é pulha.

Polka

Se vive à janela

Moçoila gorducha,

Qual freira capucha,

Mirando o janota;

Fazendo trejeitos,

De lenço abanando,

O olho piscando –

É tola, idiota.

Se meiga donzela,

D’amor delirante,

Em lábias de amante

Segura se faz;

Põe fé no magano,

Lá cede um beijinho,

Mais outro abracinho –

Está no carcás...

Se velha caduca,

De face rugosa,

Pretende ansiosa

Gentil namorado;

Com feias caretas

O dente arreganha,

Suspira, por manha –

É triste pecado.

E tendo na boca

Postiço teclado,

Com cera pegado,

Que joga e chocalha,

Das moças critica,

Com sanha de fúria,

Banindo a luxúria –

Não passa de gralha.

Se tolo basbaque,

Em prosa maçante

Julgando-se um Dante,

Se torna poeta;

Sem estro e sem tino,

De amor em furores,

Só fala das flores –

Precisa dieta.

E tendo na cara

Trombudo focinho,

Qual porco de espinho,

Se faz namorado;

Metido em funduras

Lá geme, e suspira,

Qual fero Timbira –

É asno chapado.

Se guapo marido,

Rapaz de bom gosto,

Vai pelo sol posto

Jogar seu pacau;

Deixando a metade,

Contente, alegrinho,

Não vê que o vizinho...

Coitado, é patau!

Mas sendo avezado

À tal brincadeira,

Quindim, frioleira,

Lhe chama – brejeiro –

Na frase, do mundo

Não passa por tolo;

Tem fronte, e miolo

De manso Cordeiro.

Se trôpego velho,

De queixo caído,

Dengoso e rendido,

Com moça se liga:

Lá quando mal cuida

Na fronte lhe saltam,

Relevos que esmaltam,

Em forma de espiga.

Se rapa o que pode

Finório empregado,

Campando de honrado,

Cuidando que brilha;

Em dia aziago

Tropeça, baqueia,

E vai, na cadeia,

Juntar-se à quadrilha.

Se impinge nobreza

Brutal vendilhão,

Que sendo Barão

Já pensa que é gente;

Aqueles que o viram

Cebolas vendendo,

Vão sempre dizendo

Que o lorpa é demente.

Se em peitos que fervem

Infâmias tremendas,

Avultam comendas

E prêmios de honor;

É que, com dinheiro,

Os rudes cambetas

Se levam das tretas

E mudam de cor.

Se fino larápio

De vícios coberto,

Com foros d’esperto,

De honrado se aclama;

É que a ladroeira,

Banindo o critério,

Firmou seu império

C’o gente de fama.

Se audaz rapinante,

Fidalgo ou Barão,

Por ser figurão,

Triunfa da Lei;

É que há Magistrados

Que empolgam presentes,

Fazendo inocentes

Os manos da grei.

Mulato esfolado,

Que diz-se fidalgo,

Porque tem de galgo

O longo focinho;

Não perde a catinga,

De cheiro falace,

Ainda que passe

Por bráseo cadinho.

E se eu que pretecio.

D’Angola oriundo,

Alegre, jucundo,
Nos meus vou cortando;
É que não tolero
Falsários parentes,

Ferrem-me os dentes,

Por brancos passando.

COLEIRINHO

Assim o escravo agrilhoado canta.

Tíbulo

Canta, canta Coleirinho,

Canta, canta, o mal quebranta;

Canta, afoga mágoa tanta

Nessa voz de dor partida;

Chora, escravo, na gaiola

Terna esposa, o teu filhinho,

Que, sem pai, no agreste ninho,

Lá ficou sem ti, sem vida.

Quando a roxa aurora vinha

Manso e manso, além dos montes,

De ouro orlando os horizontes,       

Matizando as crespas vagas,

– Junto ao filho, à meiga esposa

Docemente descantavas,

E na luz do sol banhavas

Finas penas – noutras plagas.

Hoje triste já não trinas,

Como outr’ora nos palmares;

Hoje, escravo, nos solares

Não te embala a dúlia brisa;

Nem se casa aos teus gorjeios

O gemer das gotas alvas

– Pelas negras rochas calvas –

Da cascata que desliza.

Não te beija o filho tenro,

Não te inspira a fonte amena,

Nem dá lua a luz serena

Vem teus ferros pratear.

Só de sombras carregado,

Da gaiola no poleiro

Vem o tredo cativeiro,

Mágoas e prantos acordar.

Canta, canta Coleirinho,

Canta, canta, o mal quebranta;

Canta, afoga mágoa tanta

Nessa voz de dor partida;

Chora, escravo, na gaiola

Terna esposa, o teu filhinho,

Que sem pai, no agreste ninho,

Lá ficou sem ti, sem vida.

SONETO

Retrato

É renga, magricela e presumida,

Com pele de muxiba engrovinhada;

O corpo de sumaca desarmada,

A cara de muafa malcosida;

A perna de forquilha retorcida,

Os ombros de cangalha um tanto usada;

A boca, de ratões grata morada,

Maçante na conversa em mal sofrida;

Senhora de um leproso cão rafeiro,

Que, querendo passar por mocetona,

Se besunta com sebo de carneiro;

Vestida é saracura de japona,

De feia catadura, e de mau cheiro,

Eis a choca perua da Amazona.

A UM VATE ENCICLOPÉDICO

Quis um jovem marchar, só por mania,

Das letras pela senda trabalhosa;

Diz-se Vate, mas prenda tão famosa

Ninguém nos versos seus a descobria.

Começa a dar patada, e tão bravia,

Que logo (alçando a voz imperiosa)

Lhe brada a Natureza: Chega à prosa!

E o maldito a encostar-se à poesia!

Faustino Xavier de Novais – Soneto

Qual cratera lançando lava ardente,

De Pompéia tragando a pobre gente,

Novo Aníbal os mares agitando,

Arbustos e penedos derrubando,

Argentino Quixote se apresenta

Com bulha que as cabeças atormenta!

É Doutor em ciências sociais,

Conhece toda casta de animais;

Em direito, suplanta o Savigny,

Mormente quando toma a – Parati;

E nos fastos da grã filosofia

Diz tais coisas que as carnes arrepia!

Da Medicina o novo Chernoviz,

Faz xaropes, do ferro tira giz!

E, invadindo as baias do Parnaso

O lugar conquistou do tal Pégaso!

A sabença nos cascos se lhe aninha,

É por todos chamado o – Dom Fuinha;

E da torva montanha da cachola,

Pende a velha e cediça c’raminhola!

Um taful que encarou o tal portento

Afirma que o coitado era jumento;

E querendo provar o que dizia,

Mostrava uma castrada poesia:

D’asneiras enxurrada furibunda,

Onde o erro falaz superabunda:

Era prosa cediça, mui safada,

Asneira sobre asneira amontoada!

E no fim da maçante frioleira

A firma do grã vate – baboseira.

Correu, em peso, a sábia Academia,

Para ver o planeta que luzia;

Também veio a Polícia, a Medicina,

Discutir tanta asneira em sabatina!

Miraram de alto a baixo o sacripante

E vendo que o maroto era pedante,

Na barca de Caronte o encaixaram,

P’ra casa dos orates o mandaram.

Lá se foi o talento desmedido,

Todo o povo deixando espavorido,

Habitar os salões d’um hospital

Onde cura terá para o seu mal.

NO ÁLBUM

do Sr. Capitão João Soares

Escrever num Álbum!.... Credo!

Expor-me à critica austera!

E se um douto me impusera

Pena de longo degredo!      

Nada... nada, tenho medo

De ir a alguém desagradar;

Não ponha o meu nome a par

Dos que têm estro e ciência;

Amigo, tem paciência:

Quem não tem não pode dar.

Faustino Xavier de Novais

Manda Vossa Senhoria,

Que o seu pobre servidor,

Empunhando leve pluma,

Seja feito um escritor!

E, qual Nume antipotente

Que domina os elementos,

Mostre, aqui, do encanto a força

Exibindo altos talentos!

Nas trevas lutando,

Sem estro, sem guia,

Guindado na prosa,

Sem ter poesia;

Não sei como possa

Tal mando cumprir,

E da brincadeira,

Já quero me rir.

No Álbum do Vate

Bem quero escrever;

Mas como fazê-lo

Sem nada saber?

Meter-m’a abelhudo

Em coisas d’alcance,

Fazer traquinadas,

Sofrer algum transe?

Dizer asneirolas,

Cediças maçadas;

Borrando o papel

Com frases safadas?

Curvar-me às dentadas

De certos pedantes,

Qu’em versos e rimas

São mesmo uns Atlantes?!

Nada, nada, meu Senhor,

Não caio nessa esparrela;

Não quero que o mundo diga –

Que o Luís é tagarela.

Não tenho sabença,

Não campo de autor;

Apenas me conto

Por um falador.

Das línguas estranhas

Nem uma aprendi,

Em nosso idioma

Sou – Kikiriki.

De Euclides – os riscos,

De Schiller – a história,

Se os li foi por brinco,

Não tenho em memória.

E, de mais, além de tudo,

Da escola saí mui rudo.

Se, por desenfado,

No meu triste lar,

Com penas e tinta

Me ponho a brincar;

Se acaso uma idéia,

Que vaga perdida,

Da minha cachola

Faz sua guarida;

Se astuto demônio,

Finório birbante,

Soprando na testa,

Me faz delirante;

E se dominado

Por esse rabino,

Algumas sandices

Escrevo, sem tino,

Depois refletindo

No fofo aranzel,

Em mil pedacinhos

Eu faço o papel.

Por mais que forceje

Não posso escrever;

Quem vir este livro

O que há de dizer?

Chamar-me pateta,

Por grande favor;

E dar-me patente

– De mau palrador.

Se for literato

Farsola, brejeiro,

Impando dirá:

Sempre é sapateiro.

Mas eu que conheço

Mesquinho que sou,

Da minha fachada

Desfrutes não dou.

Suplico de vós,

Meu caro Senhor,

Não queirais o mal

Do triste cantor.

– No Álbum do Vate

De grande saber,

Um pobre tarelo

Não pode escrever.

Janeiro – 1859

A UNS COLARINHOS

Era na estação calmosa,

De novembro o mês corria,

E da tarde as horas sete

Da Sé no bronze batia.

Já do sol o clarão frouxo

Desmaiava no horizonte,

E penumbro se esparzia

Pelas cimeiras do monte.

Das trevas a soberana

Desdobrava o pálio escuro,

E a dourada luz diurna

Nos Alpes pairava a duro:

Quando a nós se dirigiram

Três mancebos mui galantes,

Belos, dengues, adamados,

Ricos, nobres e chibantes.

De entre os três um, que gamenho

Se amostrava com vigor,

Era um lindo figurino,

Com luxo, garbo e primor.

Oh! que par de colarinhos!

Grita, ao vê-lo, um capadócio,

Vêm pendentes do cachaço

D’aquele pobre beócio!

Cala a boca, tagarela,

Exclamou mais um terceiro,

– Aquilo que vês é fronha,

Vestida num travesseiro!

Alto lá! bradei altivo,

Fora, a bulha, isto é sofisma;

Não é fronha, são manípulas

Que o prelado usa no crisma.

Ou segundo o Cobarrúbias,

Que é jurista de quilate,

São as pernas das ceroulas,

Do gorducho do Mirati.

E se turram na disputa,

Semelhante ao grande Evandro,

Provarei que são as folhas

Do projeto do Timandro.

Ou conforme outros autores,

Que nos vêm de barra-fora,

Fraldas são de ampla camisa,

Ou anáguas de senhora.

SEREI CONDE, MARQUÊS E DEPUTADO!

Pelas ruas vagava, em desatino,

Em busca do seu asno que fugira,

Um pobre paspalhão apatetado,

Que dizia chamar-se – Macambira.

A todos perguntava se não viram

O bruto que era seu e desertara.

– Ele é sério (dizia), está ferrado,

E tem branco o focinho, é malacara.

Eis que encontra, postado numa esquina,

Um esperto, ardiloso capadócio,

Dos que mofam da pobre humanidade,

Vivendo, por milagre, em santo ócio.

Olá, senhor meu amo, lhe pergunta

O pobre do matuto, agoniado:

– Por aqui não passou o meu burrego.

Que tem ruço o focinho, o pé calçado?

Responde-lhe o tratante, em tom de mofa:

– O seu burro, Senhor, aqui passou,

Mas um guapo Ministro fê-lo presa,

E num parvo Barão o transformou!

Oh Virgem Santa! (exclama o tabaréu,

Da cabeça tirando o seu chapéu)

Se me pilha o Ministro, neste estado,

Serei Conde, Marquês e Deputado!

OS GLUTÕES

..................................................................

Que os gáseos olhos pela, mesa espalha

Por ver se há mais comer que tire ou peça,

Entrando nele com tal fome, e pressa

Qual faminto frisão em branda palha;

Nicolau Tolentino – Soneto

Oh tu quadrada Musa empavesada,

Soberana rainha da papança,

Borrachuda matrona insaciável

Que tens o corpo pingue, e larga pança;

Oh tu arca bojuda que resguardas

O profuso fardel das comidelas;

Amazona terrível, devorante

Té capaz de engolir mil caravelas:

Esganiça o pescoço longo-estreito,

Em linha põe os teus animalejos,

Os hórridos abutres, feios lobos,

Porcos, galinhas, gatos, percevejos.

Vem à triste morada do trovista

Um canto lhe inspirar que cheire a bife,

Para a fama elevar dos lambareiros

Sobre as grimpas do monte Tenerife.

Vem filha do pincel do grande Alcíato

Dourar os versos meus que, descorados,

Não podem atrair leitores sábios,

Amantes da lambança e bons guisados.

Derrama nestas linhas desbotadas

O perfume odorante da linguiça,

Do paio português, do bom salame,

Que a fome desafia, e nos atiça.

Transmuda o negro véu da escuridão,

Que a vista me detém, cerrando os olhos;

Um quadro me apresenta em que divise

Saboroso pastel com seus refolhos.

Presuntos de Lamego, perus cheios,

Roasteebiffs  e leitões, tenras perdizes,

Tostado arroz de forno, nabos quentes,

Gansos, marrecos, patos, cordonizes.

Fervendo, em níveas taças cristalinas,

Espumante Champagne, jeropiga,

O bastardo, o madeira, o porto velho –

Que tem a via láctea na barriga.

Cerveja da godêmia, marasquino,

O licor .de Campinas, decantado,

Que faz sua visita, pelas onze,

À gente de focinho alcantilado.

Bojudos garrafões, quartolas cheias,

Em linha de batalha, a romper fogo,

À súcia comilona provocando

A gula saciar, por desafogo.

O coro das bacantes estrondosas

Em delírio bradando o – evohé;

Num canto a negra morte esborneada,

Tomando uma pitada de rapé.

Fortalece meu estro, oh grande Musa,

Estende os cantos meus pelo Universo,

Que um hino a teus alunos se consagre,

Se tão sublime preço cabe em verso!

Dos glutões já cadentes leio a fama

Nas páginas de um livro quinhentista;

Vejo a gula amolando as férreas garras,

Para em guerra tenaz fazer conquista.

És tu valente Clódio – o fero Aníbal,

Que rompendo na frente dos papões,

Vais mostrar a potência gargantona

Dos xeques da bebança, e comilões.

Refere o grão Macedo, autor de nota,

Que só tu numa ceia chupitaste

De saborosos figos uns quinhentos

Além de dez melões que inda mamaste.

E, para terminar o tal repasto,

De tordos seis dezenas consumiste,

Do fruto da videira vinte arráteis,

Com mais ostras quarenta que engoliste.

Melon Grotoniense, por bazófia,

Um touro devorou, de quatro anos;

Teógenes também, famoso atleta,

Por aposta comeu três bois cabanos.

E Fágon, em lauta mesa – à custa alheia,

Transportou para a pança três leitões,

Dois carneiros, um ganso, um javali,

De centeio cem pães, quatro melões.

Mitrídates honrou com pompa e cultos

Os vivos sorvedouros ambulantes,

Com prêmios distinguiu canina fome,

Dos ávidos abutres devorantes.

Cambises rei da Lídia, em certa noite,

Atracou-se à consorte com tal gana,

Que a meteu inteirinha no bandulho,

Como quem embutia uma banana!

O ébrio Filoxênio lamentava

Um pescoço não ter de braças mil,

Onde o vinho corresse a pouco e pouco,

Como corre das pipas num funil.

A fecunda Bretanha viu, com pasmo,

Um filho dessa Roma armipotente,

Que de seixos comia cinco arráteis,

Um bode semimorto, e meio quente.

E tão feia a garganta se a mostrava,

Que em horror excedia uma cratera;

E tão forte o apetite que nutria,

Que a si próprio comera, se pudera!

Outros muitos heróis refere a história,

Que deixo de narrar, por carunchosos,

De feitos singulares, tão tremendos,

Que os guerreiros deslustram mais famosos.

Desdobre-se a cortina bolorenta

Sobre os nomes dos filhos lá da estranja;

Repimpe-se no templo da vitória

Os brasíleos heróis que comem canja.

Vinde, oh Ninfas cheirosas dos outeiros,

De noturnas essências perfumadas

Mimosas cavalgando urbanos tigres,

Os nomes borrifar-lhes; vinde, oh Fadas!

No vasto panteão quero que brilhem

Os lúcidos varões do meu país;

Em tela de algodão pintados sejam,

Com borra de café, água de giz.

Etéreo Caravaggio trace as linhas

Dos comilões de rúbidos toutiços,

Que o tonel das Danaides tem por pança

Onde cabem, sem custo, mil chouriços.

Calem-se os Celtas, Gregos e Romanos;

Silêncio! oh tuba Aônia e Lusitana!

Erguei-vos, oh glutões da minha pátria,

Temos coco, caju, temos banana!

E tu, audaz Macedo, registrante,

De ronceiras façanhas já caducas,

Vê quebrarem-se .as guelas portentosas

Quais se quebram no chão frágeis cumbucas.

Dos Clódios e Milões prodígios altos,

Do ébrio Filoxênio heróicos feitos,

Sem viço, desbotados, já sem cores,

Por terra vão caindo, em pó desfeitos.

Junto deles assoma ousado e forte,

O dente arreganhando, um deputado,

Que com quatro apoiados retumbantes

Nos cofres da Nação tem manducado.

Um longo diplomata aparvalhado,

Com pernas d’aranhiço, extenso pé,

Que na Europa se fez profundo e sábio,

No tráfico do fumo e do café.

Retumbante engenheiro de compasso,

O lume encaixotando nos planetas,

Metendo em Capricónio, Libra e Vênus –

O sonante metal chucha com tretas.

Centenas de empregados – gente limpa,

Que os penedos não rói, por não ter dentes,

Encaixando no fardel das comidelas

A Pátria reduzida a dobrões quentes.

Famintos tubarões, sedentos monstros –

Imortais tesoureiros d’obras pias,

Que engolem pedras, o metal devoram –

Sem que ronque a barriga em tais folias.

Os sagazes carolas d’ordens sacras,

Vigários, andadores, sacristães,

Que tragam num momento, Igreja e Santos

Sem meter na contenda os capelães.

Oh, se Deus sobre a terra derramasse

Moedas de quintal, causando horror,

Inda assim saciar não poderia

A fome dum voraz procurador!

Prestante pai da pátria – homem de peso!

Entre rato e baleia – acachapado –

Morde aqui, rói ali, lambe acolá –

Mete dentro do bucho o Corcovado.

Se quereis, ó Leitor, ver já por terra

Cambises, que engoliu sua consorte,

Sim, prodígio maior vos apresento

Um Ministro vos dou – papal Mavorte.

Que abusando das leis da natureza,

À mãe pátria se agarra, como louco;

Cupita a pobre velha, e logo brada,

(Batendo no bandulho) – inda foi pouco!...

Deixemos, pois, atrás a glória antiga,

Das potentes gargantas esfaimadas;

Hosanas entoemos furibundas

As modernas barrigas sublimadas.

Que feitos gloriosos, desta laia

Gravados viverão na lauta história,

No perfume do vinho, e dos guisados

Voarão sobre as asas da memória.

FARMACOPÉIA

Temos pimenta,

Grato elixir,

Que os vícios cura

Sem afligir;

Também sementes

De dormideiras

Que impáfias cura,

E frioleiras.

Do autor

Primores d’além sec’lo, já caducos,

Focinhudas raposas estufadas,

Vinde ao vasto armazém, de Citeréia,

Reformar as caraças desbotadas.

Temos carmim

Que a face enrubra,

Sem que a velhice

Fatal descubra,

Belos chinós –

Para as papalvas

Que encobre a cuia,

Das que são calvas.

Para o velho que sofre d’enxaquecas –

Trovões e pataratas de barriga,

Em seco fuzilando, sem proveito,

Para o fero Esculápio que o fustiga –

Temos seringas,

Lá do Pará,

Água de Celtz,

Mas feita cá;

Raiz saudável

Do almeirão,

Que cura tosse

E catarrão.

Estulta rapariga, apavonada,

Que campa de Doutora e sabichona,

Cuidando, por saber Paulo de Kock,

Que os foros já não tem de toleirona.

Venha que temos,

Para lhe dar,

Rotos calções

P’ra consertar;

Velhas ceroulas,

Uma vassoura,

Que a fama elevem

Da tal Doutora.

Matuto que se mete a saberete,

Esquecido do milho e das abob’ras,

Não sabendo escrever seu próprio nome,

Arrota que tem lido grandes obras –

Oh! para este

Temos arreio,

Albarda, esporas,

Cabresto e freio;

E se contente

Se não mostrar

Rebenque nele,

Toca a marchar.

Marido que a consorte não recata,

Entregue ao desvario, ao desatino;

Que na pândega alegre não repara,

A figura que faz de – Constantino –

Tem sortimento,

Já reservado,

Grinalda e gorra,

Chapéu-armado,

Barrete, à moda,

Com dous raminhos,

Para descanso

Dos passarinhos.

Para as damas perluxas d’alto bordo,

Que servem, nos salões, de figurinos,

Enfeitadas bonecas de vidraça

Que alucinam os Vates colibrinos

Lindos toucados,

De seda fina,

Tendo na frente

Alva cortina;

E outros muitos

Com reposteiros,

Que também servem

De mosquiteiros.

Para as belas amantes do postiço,

Que metem barbatanas pela saia,

Onde o vento brejeiro, remexendo,

Deixa ver as perninhas de lacraia –

Temos balões,

Torcida e gás –

Estopa grossa

Com aguarrás;

E de farelos

Um travesseiro,

Para enfunar

O alcatreiro.

Para o tolo mancebo desfrutável,

Que cem moças namora de pancada;

E julgando-se Adônis – na beleza,

De perfumes se borra, e de pomada –

Casa de orates,

Dieta e bichas,

Crânio rapado,

Lambadas fixas;

Camisa longa,

Purga e sal,

Que a bola afresca,

E cura o mal.

P’ra o torpe jornalista que não sente,

A pena mergulhando na desonra;

E de vícios coberto, o saltimbancos,

Só trata de cuspir na alheia honra –

Prudência e tino,

Critério e siso;

Também vergonha,

Se for preciso:

E se esta dose

Lhe não bastar

Um bom cacete

Para o coçar.

Para os finos garotos, e filantes

De cigarros de palha, ou de charutos,

Que levam noite e dia a pedinchar,

De carinha lavada, e muito enxutos –

Um – já não tenho –

Aos tais flaudérios,

Que a mais é bucha –

Fora gaudérios! –

E se teimarem

Com tal chincar,

Um quebra-queixos,

P’ra os desmamar.

Para os velhos carolas, marralheiros

Que afetam de santinhos – só de dia;

E sendo noute velha – encapotados,

Não resistem de amor à fanfurria.

Cheiroso banho,

D’alta janela,

Que os ponha a trote,

Fugindo d’Ela;

Topada e queda,

Nariz quebrado

Um bom vergalho,

Mas bem puxado,

Para o filho do pai agonçalado,

Sem brio, sem saber, sem criação;

Que os velhos venerandos não respeita,

Entre ovelhas mostrando-se leão –

Quartel, chibata,

Marinha ou praça,

Que um cordeirinho

O lobo faça;

E se o tratante

Não for barão,

Morada grátis

Na Correção,

P’ra o ancho protetor das letras pátrias

Mais cacório que chisme – no fintar;

E que cheio d’oral filantropia,

Os impressos chupita, sem pagar.

Um santo breve,

Uma defesa;

Um patuá

Contra a esperteza;

E se o maçante

Inda insistir,

Sebo nas pernas –

Toca a fugir.

Para o gênio sagaz de um pai da pátria,

Amante da pobreza desvalida,

Que lambiscar aos patetas o que pode,

E lá mete n’aljaba fementida.

Uma denúncia,

Com documentos,

Onde as ratadas

Pulem aos centos.

Depois cadeia,

Calceta ao pé;

Que é coisa santa

Contra o filé.

...................................................................

Mas basta; oh Musa minha, não prossigas.

D’alguém desagradar já me arreceio;

Termina, mas falando dos trovistas,

Que malham com furor no vício feio.

“Bebem do roxo,

“Tomam café,

“Pitam charuto,

“Cheiram rapé.

“Jogam pacau,

“Truque, manilha;

“Quando Deus quer,

“Também o pilha.”

A BORBOLETA

Sobre a açucena,

Que no horto alveja,

A borboleta

Mansinha adeja;

Libando os pingos

De orvalho brando,

Que a nuvem loura

Vem salpicando.

Meneia os leques

Por entre as flores,

Que o ar perfumam

Com seus olores.

Mimosos leques

De cores finas,

– Tela formosa

Das mãos divinas,

Ora serena,

Pairando a flux,

Esmaltes mostra

Do brilho à luz.

Ora nas águas

Boiando vai,

Qual folha seca

Que ao vento cai.

Ao vir da aurora

Vai do jasmim

Beijar a cútis

D’alvo cetim.

Ao cravo, à rosa

Afagos presta,

– Que a aragem sopra

E o sol recresta.

Ao pôr da tarde

Pousa em delírio

Nas tenras folhas,

Do roxo lírio.

E o frágil corpo

Em sono brando,

Que embala a brisa,

Que vem soprando,

Alívio encontra

Na solidão

Até que d’alva

Rompa o clarão.

QUEM SOU EU?

(A Bodarrada)

Quem sou eu? que importa quem?

Sou um trovador proscrito,

Que trago na fronte escrita

Esta palavra – “Ninguém!” –

 

Augusto Emílio Zaluar – “Dores e Flores”

Amo o pobre, deixo o rico,

Vivo como o Tico-tico;

Não me envolvo em torvelinho,

Vivo só no meu cantinho:

Da grandeza sempre longe

Como vive o pobre monge.

Tenho mui poucos amigos,

Porém bons, que são antigos,

Fujo sempre à hipocrisia,

À sandice, à fidalguia;

Das manadas de Barões?

Anjo Bento, antes trovões.

Faço versos, não sou vate,

Digo muito disparate,

Mas só rendo obediência

À virtude, à inteligência:

Eis aqui o Getulino

Que no plectro anda mofino.

Sei que é louco e que é pateta

Quem se mete a ser poeta;

Que no século das luzes,

Os birbantes mais lapuzes,

Compram negros e comendas,

Têm brasões, não – das Calendas,

E, com tretas e com furtos

Vão subindo a passos curtos;

Fazem grossa pepineira,

Só pela arte do Vieira,

E com jeito e proteções,

Galgam altas posições!

Mas eu sempre vigiando

Nessa súcia vou malhando

De tratante, bem ou mal,

Com semblante festival.

Dou de rijo no pedante

De pílulas fabricante,

Que blasona arte divina,

Com sulfatos de quinina,

Trabuzanas, xaropadas,

E mil outras patacoadas,

Que, sem pingo de rubor,

Diz a todos, que é DOUTOR!

Não tolero o magistrado,

Que do brio descuidado,

Vende a lei, trai a justiça,

– Faz a todos injustiça –

Com rigor deprime o pobre

Presta abrigo ao rico, ao nobre,

E só acha horrendo crime

No mendigo, que deprime.

– Neste dou com dupla força.

Té que a manha perca ou torça.

Fujo às léguas do lojista,

Do beato e do sacrista –

Crocodilos disfarçados,

Que se fazem muito honrados

Mas que, tendo ocasião,

São mais feros que o Leão.

Fujo ao cego lisonjeiro,

Que, qual ramo de salgueiro,

Maleável, sem firmeza,

Vive à lei da natureza;

Que, conforme sopra o vento,

Dá mil voltas num momento.

O que sou, e como penso,

Aqui vai com todo o senso,

Posto que já veja irados

Muitos lorpas enfunados,

Vomitando maldições,

Contra as minhas reflexões.

Eu bem sei que sou qual Grilo,

De maçante e mau estilo;

E que os homens poderosos

Desta arenga receosos

Hão de chamar-me tarelo,

Bode, negro, Mongibelo;

Porém eu que não me abalo,

Vou tangendo o meu badalo

Com repique impertinente,

Pondo a trote muita gente.

Se negro sou, ou sou bode

Pouco importa. O que isto pode?

Bodes há de toda a casta,

Pois que a espécie é muito vasta...

Há cinzentos, há rajados,

Baios, pampas e malhados,

Bodes negros, bodes brancos,

E, sejamos todos francos,

Uns plebeus, e outros nobres,

Bodes ricos, bodes pobres,

Bodes sábios, importantes,

E também alguns tratantes...

Aqui, nesta boa terra,

Marram todos, tudo berra;

Nobres Condes e Duquesas,

Ricas Damas e Marquesas

Deputados, senadores,

Gentis-homens, veadores;

Belas Damas emproadas,

De nobreza empantufadas;

Repimpados principotes,

Orgulhosos fidalgotes,

Frades, Bispos, Cardeais,

Fanfarrões imperiais,

Gentes pobres, nobres gentes

Em todos há meus parentes.

Entre a brava militança

Fulge e brilha alta bodança;

Guardas, Cabos, Furriéis,

Brigadeiros, Coronéis,

Destemidos Marechais,

Rutilantes Generais,

Capitães-de-mar-e-guerra,

– Tudo marra, tudo berra –

Na suprema eternidade,

Onde habita a Divindade,

Bodes há santificados,

Que por nós são adorados.

Entre o coro dos Anjinhos

Também há muitos bodinhos. –

O amante de Siringa

Tinha pêlo e má catinga;

O deus Mendes, pelas costas,

Na cabeça tinha pontas;

Jove quando foi menino,

Chupitou leite caprino;

E, segundo o antigo mito,

Também Fauno foi cabrito.

Nos domínios de Plutão,

Guarda um bode o Alcorão;

Nos lundus e nas modinhas

São cantadas as bodinhas:

Pois se todos têm rabicho,

Para que tanto capricho?

Haja paz, haja alegria,

Folgue e brinque a bodaria;

Cesse pois a matinada,

Porque tudo é bodarrada! –

O JANOTA

Sou bonito, sou da moda,

Chibatão de belo gosto;

Sou gamenho, tendo garbo,

Porte airoso e bem composto.

Vivo alegre, passo à larga,

Tenho trinta namoradas,

– Dez viúvas, seis donzelas

Sete velhas , não casadas.

Quatro negras, cinco cabras,

Sem contar certa mulata

E a vizinha, que é zanaga.

Com seu beque de fragata.

Aias, amas e criadas,

Das matronas que apontei,

Baronesas e Condessas,

E mais outras, que eu só sei.

Dos janotas sou modelo,

Figurino abaloado,

Calça larga, mangas fofas,

Cabelinho bem frisado.

A luneta ao olho presa,

Sapatinho envernizado.

Casaquim à Dom Murzelo

E o casquete afunilado.

Faço andar em roda viva,

Mil cabeças d’alto bordo;

Mas se um vil credor esbarro,

Foge o sonho, então acordo!

E de Rodes qual colosso,

Fico mudo, altivo e quedo;

Ouço a lenda impertinente,

Sem tugir – como um penedo.

Após um vem grosso bando,

Este grasna, aquele ruge,

Rosna o lorpa taberneiro,

Todo o resto orneja e muge.

Perfilando o colarinho,

Que da orelha passa além,

Corro a mão nas algibeiras,

Mas não puxo nem vintém!

Berra o criado,

Grita o barbeiro;

– Quero dinheiro!

Que frioleira!

Eu que, sem gimbo.

Ando pulando,

Vou me safando

Que pagodeira!

Eis que de um canto

Salta, raivosa,

A gordurosa

Da cozinheira;

Pede os salários,

Fala em tomate,

– Eu, em remate,

Dou-lhe a traseira!

Chora de raiva,

– Pobre coitada;

Que vinagreira!

Eu sou da moda,

Chupo o meu trago,

Como o não – pago,

– Por brincadeira.

E se há quem diga,

Que sou tratante,

Sagaz birbante,

É maroteira;

Porque só finto

Parvos mascates,

Maus alfaiates,

– Por bandalheira.

Também por mofa,

Logro os lojistas,

Foros cambistas,

De mão ligeira;

Abelhas mestras,

Ratões livreiros,

Os sapateiros,

E a engomadeira.

Que santa vida,

Meu anjo Bento,

Oh que portento,

Que pepineira!

Sempre folgando,

Sem ter cuidado,

Ser namorado,

– Que pagodeira!

Quem deve e paga

Não tem miolo,

É parvo, é tolo,

Não tem bom tino.

Viva a chibança,

Vá de tristeza,

Morra a pobreza,

Que isto é divino!

LAURA

Aqui, ó Laura,

No teu jardim,

Pétalas colho

D’alvo jasmim.

Delas rescende

Doce fragrância,

Quais meigos sonhos

Da tua infância.

As plúmbeas nuvens,

Já fugitivas,

Os ermos buscam,

Serras esquivas.

Plácida lua

Nos Céus alveja,

Prateia os lagos,

E as flores beija.

Aqui, ó Laura,

Teus olhos garços,

Na linfa clara,

Nos Céus esparsos.

Lânguidos brilham

Nestas estrelas,

Que as brandas ondas

Retratam belas.

Na cor de rosa,

A luz da lua,

Risonha vejo

A face tua.

Carmíneos lábios

Nos rubros cravos,

Que n’hástea pendem,

Quais melios favos.

Teu níveo colo

– Na estátua erguida

Do amor de Tasso

– Da bela Arminda.

Na onda breve

O arfar do seio,

Que a aragem move

Com brando enleio.

Dos mal-me-queres

Áureos novelos

Os anéis fingem

Dos teus cabelos.

Da violeta

Na singeleza

Tua alma vejo,

Tua pureza

Ergue-te, ó Laura,

Do brando leito,

Dá-me em teu peito

De amor gozar;

Um volver d’olhos,

Um beijo apenas

Entre as verbenas

Do teu pomar.

Não fujas, Laura,

Vem a meus braços

Leva-me vida

Nos teus abraços...

Lá surge um Anjo!

Oh Céus, é ela!

– Estrela vésper

De luz singela!

Cobre-lhe os membros

Alva roupagem,

Que manso agita

Suave aragem.

Longos cabelos

Belos se estendem,

E em ondas de ouro

Dos ombros pendem.

A ela corro

Tento abraçá-la

Recurvo os braços,

Mas sem tocá-la!

Era um Arcanjo

De aéreo sonho

No ar perdeu-se

Ledo e risonho.

Laura formosa

No leito estava,

Dos meus lamentos.

Só desdenhava.

Já a luz do dia

Renasce além,

Debalde espero,

Laura não vem.

Não têm meus versos

Beleza tanta,

Que ouvi-los possa

Quem tudo encanta.

Naquele peito

De olente flor,

Paixões não entram,

Não entra amor.

.............................................................

Era uma estátua – exemplo de beleza,

E como ela de mármor tinha o peito!

QUE MUNDO É ESTE?

Que mundo? que mundo é este?

Do fundo seio d’est’alma

Eu vejo... que fria calma

Dos humanos na fereza!

Vejo o livre feito escravo

Pelas leis da prepotência;

Vejo a riqueza em demência

Postergando natureza

Vejo o vício entronizado;

Vejo a virtude caída,

E de coroas cingida

A estátua fria do mal;

Vejo os traidores em chusma

Vendendo as almas impuras,

Remexendo as sepulturas

Por preço d’áureo metal.

Vejo fidalgos d’estopa,

Ostentando os seus brasões,

Feio enxerto de dobrões

Nos troncos da fidalgia;

Vejo este mundo às avessas,

Seguindo fatal derrota,

Em quando farfante arrota

Podres grandezas de um dia!

Brônzea estátua – o rico surdo

Aos tristes ais da pobreza

Amostra com vil rudeza

Uma burra aferrolhada;

Manequim de estupidez

No orgulho vão da cobiça

Tem por divisa cediça

– Alguns vinténs e mais nada.

O poder é só dos Cresos,

A ciência é de encomenda;

Sem capital e sem renda

Com pouco peso – o que val ?

Talentos – palavrões ocos! –

Que nunca deixaram saldo;

Não há sustância no caldo

Que não tempera o metal!

Sisudez... que feia másc’ra!

Isso é peste, isso é veneno!

Se é pobre, nasceu pequeno,

Quem aspira a posição?!

Não vê que é grande toleima

Querer subir sem moeda,

Pois não escapa de queda

Quem teve um leito no chão!

Que se empertigue enfunado

Algum sandeu que traz marca...

Reparem que a bisca embarca

Que leva à vela o batel!

E o povo que o vê fulgindo

Com lantejoulas brilhantes

Não olha p’ra o que foi d’antes,

E nem lhe enxerga o xarel!

E o mais é que zune e grasna

O pateta aparvalhado!

Parece que é deputado

Os ministros fulminando;

Grita, berra, espinoteia,

Calunia, faz intriga,

Mas logo fala a barriga,

E vai a teta chupando!

Digam lá o que quiserem

Fale embora o maldizente;

Eu bem sei que tudo mente,

Sei que o mundo tem razão;

Se eu tivesse na algibeira

Alguns cobres, que ventura! –

Mudava o nome, a figura,

Ficava logo Barão!

O BARÃO DA BORRACHEIRA

Quando pilho um desses nobres,

Ricos só d’áureo metal

Mas d’espírito tão nobres

Que não possuem real.

Não lhes saio do costado;

Sei que é trabalho baldado,

Porque a pele dura tem;

Mas eu fico satisfeita,

Que o meu ferrão só respeita

A virtude, e mais ninguém!

Faustino Xavier de Novais – “A Vespa”

Na Capital do Império Brasileiro,

Conhecida pelo – Rio de Janeiro,

Onde a mania, grave enfermidade,

Já não é, como d’antes, raridade;

E qualquer paspalhão endinheirado

De nobreza se faz empanturrado –

Em a rua, chamada, do Ouvidor,

Onde brilha a riqueza, o esplendor,

A porta de um modista, de Paris,

Lindo carro parou – Número – X –,

Conduzindo um volume, na figura,

Que diziam, alguns, ser criatura,

Cujas formas mui toscas e brutais,

Assemelham-na brutos animais.

Mal que da sege salta a raridade

Retumba a mais profunda hilaridade.

Em massa corre o povo, apressuroso,

Para ver o volume monstruoso;

De espanto toda gente amotinada

Dizia ser coisa endiabrada!

Uns afirmam que o bruto é um camelo,

Por trazer no costado cotovelo,

É asno, diz um outro, anda de tranco,

Apesar do focinho d’urso-branco!

Ser jumento aquele outro declarava,

Porque longas orelhas abanava.

Recresce a confusão na inteligência,

O bruto não conhecem d’excelência!

Mandam vir do Livreiro Garnier,

Os volumes do grande Couvier;

Buffon, Guliver, Plínio, Columela;

Morais, Fonseca, Barros e Portela;

Volveram d’alto a baixo os tais volumes,

Com olhas de luzentes vagalumes,

E desta nunca vista raridade

Não puderam notar a qualidade!

Vencido de voraz curiosidade

O povo percorreu toda cidade;

As caducas farmácias, livrarias,

As boticas, e vãs secretarias;

E já todos a fé perdido tinham,

Por verem que o brutal não descobriam,

Quando idéia feliz, e luminosa,

Na cachola brilhou dum Lampadosa;

Que excedendo em carreira os finos galgos,

Lá foi ter à Secreta dos fidalgos;

E dizem que encontrara registrado

O nome do colosso celebrado:

Era o grande Barão da Borracheira,

Que seu título comprou na régia feira!...

A CATIVA

Uma graça viva

Nos olhos lhe mora,

Para ser senhora

De quem é cativa.

Camões

Como era linda, meu Deus!

Não tinha da neve a cor,

Mas no moreno semblante

Brilhavam raios de amor.

Ledo o rosto, o mais formoso,

De trigueira coralina,

De Anjo a boca, os lábios breves

Cor de pálida cravina.

Em carmim rubro engastados

Tinha os dentes cristalinos;

Doce a voz, qual nunca ouviram

Dúlios bardos matutinos.

Seus ingênuos pensamentos

São de amor juras constantes;

Entre a nuvem das pestanas

Tinha dois astros brilhantes.

As madeixas crespas negras,

Sobre o seio lhe pendiam,

Onde os castos pomos de ouro

Amorosos se escondiam.

Tinha o colo acetinado

– Era o corpo uma pintura –

E no peito palpitante

Um sacrário de ternura.

Límpida alma – flor singela

Pelas brisas embalada,

Ao dormir d’alvas estrelas,

Ao nascer da madrugada.

Quis beijar-lhe as mãos divinas,

Afastou-mas – não consente;

A seus pés de rojo pus-me

– Tanto pode o amor ardente!

Não te afastes lhe suplico,

És do meu peito rainha;

Não te afastes, neste peito

Tens um trono, mulatinha!...

Vi-lhe as pálpebras tremerem,

Como treme a flor louçã,

Embalando as níveas gotas

Dos orvalhos da manhã.

Qual na rama enlanguescida

Pudibunda sensitiva,

Suspirando ela murmura;

Ai, senhor, eu sou cativa!...

Deu-me as costas, foi-se embora

Qual da tarde do arrebol

Foge a sombra de uma nuvem

Ao cair da luz do sol.

SONETO

Sob a copa frondosa e recurvada

De enorme gameleira, Secular,

Sentado numa ufa a se embalar

Estava certa moça enamorada.

Eis que rola dos ramos inflamada

Tremenda jararaca a sibilar;

Fica a jovem na corda, sem parar,

Como a Ninfa de amor eletrizada!

Anjo Bento! exclamaram os circunstantes;

– Foge a cobra de horrenda catadura,

Os olhos revolvendo coruscantes.

Mas a bela moçoila com frescura

Num sorriso acrescenta – é das amantes

Nem das serpes temer a picadura.

NOVO SORTIMENTO DE GORRAS PARA A GENTE DE GRANDE TOM

De repente, magoado

Da carapuça maldita,

Qual possesso, o pobre grita

Contra o fabricante ousado!

Debalde o artista, coitado,

Já de receio convulso

Quer provar que nobre impulso

O move, quando trabalha!

A carapuça que talha

Ninguém crê ser feita avulso!

Faustino Xavier de Novais

Se estudante que vive à barba longa,

Excedendo, no grito, uma araponga,

Braveja contra o fero despotismo,

No lethes sepultando o servilismo;

E depois quando chega a ser doutor,

Se transforma em cediço adulador;

Permuta consciência por dinheiro,

E se faz, do Governo, fraldiqueiro:

Não te espantes, Leitor, desta mudança,

São milagres da Deusa da pitança.

Se vires um tratante ou embusteiro,

Com tretas, iludindo ao mundo inteiro,

A todos atirando horrendo bote,

Sem haver quem o coce a calabrote;

Se vires o critério desprezado,

O torpe ratoneiro empoleirado,       

Orelhudos jumentos – de gravatas,

E homens de saber a quatro patas:

Não te espantes, Leitor, da barbaria,

Que é Deusa do Brasil, a bruxaria.

Se dormem de bolor encapotadas,

Roídas do gusano, esfarrapadas,

Nossas Leis, sentinelas vigilantes,

D’empregados remissos e tratantes;

Se o Júri criminal, da nossa terra,

Postergando o direito, sempre aberra,

Punindo com rigor pobres mofinos,

E dando liberdade aos assassinos:

Chiton, pio Leitor, não digas nada –

A Lei, cá no Brasil, é patacoada.

Se perluxo e dengoso magarefe,

Com passinhos de dança, tefe-tefe,

Entre as damas pretende ser Cupido,

Mas, chupando codilho, sai corrido;

Se um varão de coroa, digo, Padre,

Por obra do divino, c’a comadre,

Fabrico deu filhinho, por brinquedo,

Impinge no marido – psiu!... segredo!

É que sobre a sacristia mais constante

Imperam os decretos de Tonante.

Se o pobre, do trabalho extenuado,

Num dia de prazer fica monado;

E a ronda, que tropeça e cambaleia,

Encaixa o miserando na cadeia;

Se fortes Brigadeiros, Coronéis,

Habitam as tabernas, e hotéis;

A gente do bom-tom, os Deputados,

Se torram e não saem encarcerados

É que a pinga, entre nós, esta vedada

Àqueles que não têm gola bordada.

Se o maçante orador, estuporado,

Ardente por chupar seu – apoiado,

Excita o apetite à parceirada

Com cediça modéstia enfumaçada;

E, depois, diz, que a rosa tem perfume,

Que esvoaça de noite o vagalume,

Que o tabaco se toma pelas ventas,

E que as coisas benzidas ficam bentas:

É que fofa sandice, os disparates,

Empanturram a casa dos orates.

Se um tolo aparvalhado sem juízo,

Se arvora em literato, d’improviso,

Arrota erudição – em pleno dia

Esbarra de nariz na ortografia;

E outros que nas letras são mofinos,

Vão mostrando ao pateta os desatinos,

Curvando-se ao provérbio, mui sabido;

Que o farrapo se ri do descosido.

É que os cegos não andam pelos nobres,

Mas seguros à mão dos outros pobres.

Se o homem que nasceu pra sapateiro,

E em direito, pretende ser Guerreiro,

Sovelando de rijo no Lobão,

– Ferra o dente na velha Ordenação;

Se o lorpa que nasceu para jumento,

Não tendo cinco réis de entendimento,

Banido da ciência, bestalhão,

Por força do dinheiro, sai Barão:

É que a honra, a virtude, a inteligência,

Não passam de estultícia ou vil demência.

Se erudito doutor, filosofal,

Querendo dar noções do animal,

Nos demonstra que a pata põe o ovo,

E dele brota o pinto, ainda novo;

Que segundo os regimes da natura,

Difere do cavalo na figura;

E metido entre a cruz e a caldeirinha

Vai dar co’a explicação lá na casinha;

É que o néscio chegou a sabichão

Por milagre de santa proteção.

Se torto alambazado palrador,

Mais tapado que chucro borrador,

Testo imbróglio tecendo impertinente,

De camelo, que era, se faz gente;

E cansando os humanos com sandices,

Por verdades impinge parvoíces;

Já roncando saber, qual tempestade,

Ser nas letras pretende potestade,

É que o néscio, coitado, não trepida,

Sobre os ares formar pétrea guarida.

Se esquentado patola às Musas dado,

Vai, a esmo, trovando sem cuidado;

E cedendo aos arroubos do talento,

Mais rápido se faz que o rijo vento;

E os pólos devassando mui lampeiro,

Sustenta que Netuno foi barbeiro;

Escrevendo tolices de pateta,

Consegue, sem o – Crisma – ser poeta:

É que Apolo sustenta bizarria,

E cavalos precisa à estrebaria.

Eu, que inimigo sou do fingimento,

Em prosa apoquentado sem talento,

Apenas soletrando o b - a - bá,

Empunho temeroso o maracá.

Não posso suportar fofos Barões,

Que trocam a virtude por dobrões;

Qual vespa, esvoaçando, atroz picante,

Com sátira mordaz, sempre flamante,

Picando, picarei por toda a parte,

Se a tanto me ajudar ferrão e arte.

RETRATO DE UM SABICHÃO

Vá de retrato

Por consoantes,

Que eu sou Timantes

De um nariz de Tucano cor de Pato.

Gregório de Matos

Telas desprezo,

Liso marfim,

Rubro carmim,

Para a cara pintar do estulto Creso.

Só quero, Apeles,

Lápis grosseiro,

Negro tinteiro,

Que o lorpa que retrato é muito reles.

Em roto esquife

Traço o desenho,

Com tal empenho

Que esculpo de improviso tal patife.

Ventas de mono,

Olhar sisudo,

Altivo e mudo,

Como quem de pensar perdera o sono!

Fronte quadrada,

Tendo de espeque

Um curvo beque,

Pendente da caraça mal chanfrada.

Nariz de vara,

E companhia,

Que em pleno dia

Conserva noite escura em toda cara.

Franzida a testa,

Longas beiçolas

Tem o tal bolas,

Que os lares de Minerva horrendo empesta,

Grandes orelhas

De burro velho,

E um chavelho

Sobre a colmeia de áticas abelhas.

Hirsuto o pêlo;

De porco-espinho,

Lato o focinho,

Que de vaca não é, nem de camelo.

Olhos vidrados

Entre altaneira

Negra viseira,

Que dois montes parecem recurvados.

Rubras bochechas,

Engorduradas,

E tão inchadas

Que parecem de mero amplas ventrechas!

Rotunda a pança,

Azabumbada,

Que em trovoada

Traz o gordo cetáceo – em contradança.

Pernas de croque,

Atesouradas,

E tão vergadas

Que dois arcos parecem de bodoque.

Fofo beócio,

Com ar de nico;

Grosseiro mico

Entre os sábios metido a capadócio.

Toma juízo,

Deixa a luneta,

Torto cambeta,

Que essa tosca figura causa riso.

Não sejas tolo,

Deixa o Baucher,

E Pothier,

– Tens vazia a cachola, sem miolo.

Não toma esturro,

Bruto eiviçon;

Larga o Rogran,

Que eu já vi de pensar morrer um burro.

Toma o conselho,

Que te hei dado;

Marcha, tapado,

Vai mirar essa cara num espelho.

NUM ÁLBUM

É mania!

Ora quer, porque quer, o meu amigo,

O perluxo e dengoso Zé Maria,

Que eu mil versos troveje, retumbantes,

Num álbum que possui, só por mania!

Não vê nem pensa

O caro amigo,

Que a musa esquiva

Não toma abrigo,

No teso crânio

De um mau tarelo,

Que por miolos

Só tem farelo!

Bem sei que a estupidez, de enormes patas

Qual Ícaro pateta aos ares voa,

Mas sem tino, perdida entre as esferas,

N’altas nuvens tropeça e cai à-toa.

Assim capengas

Qualificados,

Vão rabiscando,

Entusiasmados,

Gostosos versos,

Com reumatismo,

Que bichas pedem,

E sinapismo.

Porém o que fazer em tais apuros,

Se o amigo reclama versalhada?

– Traçar sobre o papel com mão singela

O retrato da Bela sua amada.

Potentes versos

Requer o caso,

Do grande Homero

Torquato ou Naso!

Silêncio, ó Vates,

Que eu vibro a lira!

– Ciprina treme,

E amor suspira!

Tem rosto ameloado – é pão de broa,

Nariz de funil velho acachapado,

Por sobr’olhos altivas ribanceiras,

Pescoço de cegonha esgrouvinhado.

Limosos dentes,

De cor incerta,

A boca torta,

Que mal se aperta;

Pendidos beiços,

Abringelados,

Onde o – Cazuza.

Põe seus cuidados.

O corpo é um tonel empanzinado,

Por pés tem duas lanchas ou saveiros,

Por braços mastaréus sem cordoalhas,

Por tetas dois terríveis travesseiros.

Tem barbatanas,

Como baleia,

Carão, enfim,

De lua-cheia;

Renga de um quarto,

A gâmbia esguia,

– Eis por quem morre

O Zé Maria!

Não cores, meu amigo, do retrato,

Pois que a Ninfa é prendada – tem dinheiro;

É filha de um Barão – homem de peso

Que do teu velho pai foi cozinheiro.

Cerra os ouvidos

Aos que murmuram,

Parvos, beócios,

Que a raça apuram,

Empolga a chelpa

Faz-te bizarro,

Dá na pobreza

Um forte esbarro.

MINHA MÃE

Minha mãe era mui bela,

Eu me lembro tanto dela,

De tudo quanto era seu!

Tenho em meu peito guardadas.

Suas palavras sagradas

C’os risos que ela me deu.

Junqueira Freire

Era mui bela e formosa,

Era a mais linda pretinha,

Da adusta Líbia rainha,

E no Brasil pobre escrava!

Oh, que saudades que eu tenho

Dos seus mimosos carinhos,

Quando c’os tenros £ilhinhos

Ela sorrindo brincava.

Éramos dois – seus cuidados,

Sonhos de sua alma bela;

Ela a palmeira singela,

Na fulva areia nascida.

Nos roliços braços de ébano.

De amor o fruto apertava,

E à nossa boca juntava

Um beijo seu, que era a vida.

Quando o prazer entreabria

Seus lábios de roixo lírio,

Ela fingia o martírio

Nas trevas da solidão.

Os alvos dentes. nevados.

Da liberdade eram mito,

No rosto a dor do aflito,

Negra a cor da escravidão.

Os olhos negros, altivos,

Dois astros eram luzentes;

Eram estrelas cadentes

Por corpo humano sustidas.

Foram espelhos brilhantes

Da nossa vida primeira,

Foram a luz derradeira

Das nossas crenças perdidas.

Tão terna como a saudade

No frio chão das campinas,

Tão meiga como as boninas

Aos raios do sol de Abril.

No gesto grave e sombria,

Como a vaga que flutua,

Plácida a mente – era a Lua

Refletindo em Céus de anil.

Suave o gênio, qual rosa

Ao despontar da alvorada,

Quando treme enamorada

Ao sopro d’aura fagueira.

Brandinha a voz sonorosa,

Sentida como a Rolinha,

Gemendo triste sozinha,

Ao som da aragem faceira.

Escuro e ledo o semblante,

De encantos sorria a fronte,

– Baça nuvem no horizonte

Das ondas surgindo à flor;

Tinha o coração de santa,

Era seu peito de Arcanjo,

Mais pura n’alma que um Anjo,

Aos pés de seu Criador.

Se junto à cruz penitente,

A Deus orava contrita,

Tinha uma prece infinita

Como o dobrar do sineiro,

As lágrimas que brotavam,

Eram pérolas sentidas,

Dos lindos olhos vertidas

Na terra do cativeiro.

NO CEMITÉRIO DE S. BENEDITO

Da cidade de S. Paulo

Também do escravo a humilde sepultura

Um gemido merece de saudade:

Ah caia sobre ela uma só lágrima

De gratidão ao menos.

Dr. Bernardo Guimarães

Em lúgubre recinto escuro e frio,

Onde reina o silêncio aos mortos dado,

Entre quatro paredes descoradas,

Que o caprichoso luxo não adorna,

Jaz de terra coberto humano corpo,

Que escravo sucumbiu, livre nascendo!

Das hórridas cadeias desprendido,

Que só forjam sacrílegos tiranos,

Dorme o sono feliz da eternidade.

Não cercam a morada lutuosa

Os salgueiros, os fúnebres ciprestes,

Nem lhe guarda os umbrais da sepultura

Pesada laje de espartano mármore,

Somente levantado em quadro negro

Epitáfio se lê, que impõe silêncio!

– Descansam neste lar caliginoso

O mísero cativo, o desgraçado!...

Aqui não vem rasteira a vil lisonja

Os feitos decantar da tirania,

Nem ofuscando a luz da sã verdade

Eleva o crime, perpetua a infâmia.

Aqui não se ergue altar ou trono d’ouro

Ao torpe mercador de carne humana.

Aqui se curva o filho respeitoso

Ante a lousa materna, e o pranto em fio

Cai-lhe dos olhos revelando mudo

A história do passado. Aqui nas sombras

Da funda escuridão do horror eterno,

Dos braços de uma cruz pende o mistério,

Faz-se o cetro bordão, andrajo a túnica,

Mendigo o rei, o potentado escravo!

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