Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Romances e novelas, de Joaquim Norberto de Sousa Silva


Edição de base:

Romances e novelas. São Paulo: Landy Editora, 2002.

ROMANCES E NOVELAS POR

JOAQUIM NOBERTO DE SOUSA SILVA

J'en fais pour me désennuyer

Gresset

NITERÓI

TIPOGRAFIA FLUMINENSE DE CÁNDIDO

MARTINS LOPES

LARGO MUNICIPAL N. 12

1852

Ao meu distinto amigo

O Ilmo. Sr. Tenente Coronel

João Nepomuceno Castrioto

Comendador da Ordem de São Bento de A vis

Cavaleiro das Ordens do Cruzeiro e da Rosa,

condecorado com a honrosa

Medalha da Guerra da Independência

Comandante do Corpo Policial da Província

Do Rio de Janeiro, e Deputado à Assembléia

Legislativa

Da mesma Província

DOC

Como pública prova de gratidão e da mais sincera

E constante amizade

O Autor

ÍNDICE

Introdução

Maria ou vinte anos depois – novela

I – O rapto

II – Um conto

III – Vinte anos depois

IV - Conclusão

Januário Garcia ou as sete orelhas – romance

I – Onde estará ele?

II – Sete contra um

III – Fumo e cachaça

IV – Sétima e última

V – Ei-las aqui

VI – Conclusão

As duas órfãs – romance

I – À guerra

II – A batalha

III – O bilhete

IV – Desesperação infernal

V - Conclusão

O testamento falso – novela

I – Nova funesta

II – Quero porque quero!

III – O casamento

IV – Cinqüenta contos de dote

V – Ver e amar

VI – Rafael e Cecília

VII – Um rapto

VIII – Quero fazer testamento!

IX – Os dois

X – Esperança

XI – Mal por bem

XII – A hora da morte

XIII – Juramento

XIV – Generosidade por generosidade

XV – O festim

XVI - Conclusão

 

É o romance entre nós de tão moderna data que se não deve esperar por ora senão débeis ensaios,[1] mormente daqueles que nem um interesse ou glória colhem de suas locubrações, pois toda a pena que en­tre nós se não prostitui às paixões políticas tem de mendigar, como o desditoso Savage, um pedaço de papel em que eternize os pensamentos de uma imaginação que Deus iluminou como os raios cheios de luz de sua inteligência:

E a pátria por quem tanto hão feito os filhos

Que digno prêmio lhes ha dado? A fome![2]

Empreendendo a publicação de uma coleção de romances e novelas, contos e legendas,[3] comecei por aqueles que, escritos de há muito, se achavam dispersos por vários jornais de efêmera existência e limitada circulação; circunstâncias, porém, inopina­damente sobrevindas, obstam que por enquanto rea­lize de todo em todo o meu desígnio: satisfazer­me-ei sobre melhores auspícios? — Deus o sabe!

Só para esta pequena explicação, que não para outra coisa, lanço estas palavras às primeiras pági­nas deste livro, que lhe sirvam de prólogo; não repe­tirei pois o hino dos mártires da imprensa literária não subvencionada pelos ídolos da política de hoje e de ontem. Baldado é mostrar ainda uma vez o desa­preço em que tem vegetado na nossa terra os que se dão às letras — vocação irrisória! De nossos antepas­sados não só partilhamos a glória e o gênio, como ainda nos veio por herança a indiferença da pátria. “Ninguém, diz o eloqüente escritor português, jo­vem de brilhante talento,[4] aprecia o que se consome de coragem e de esforço para resistir às lutas que as­saltam qualquer vocação literária; é um longo poe­ma de sofrimento: o mundo só se lembra das agonias de um escritor quando elas se terminam por uma sanguinolenta catástrofe”.

Aqui, como lá também, a posteridade admirará tanta resignação a par e passo de onerosos sacrificios, de árduas fadigas e de tanto tempo esperdiçado em pura perda de interesses mais reais senão menos honrosos.

Mostrava-se D. João de Castro tão desinteres­sado em todas as suas ações que até cortava na sua quinta de Sintra as árvores úteis para plantar e deixar vingar as de nem um préstimo;[5] — quem o fizesse hoje dir-se-ia que oferecia uma sátira aos homens do tempo de agora; — eu, se o imitasse, não escreveria para a imprensa não política.

Niterói, maio de 1852.

 

MARIA

OU

VINTE ANOS DEPOIS

NOVELA

Hélas! tel est ton sort, tel est ma destiné

Lamartine

 

I

O RAPTO

Where art thou, son of my love?

Ossian

Aprazíveis são as montanhas da Gávea. É de sobre suas pedras elevadas, esses rochedos enormes que sobejam às suas encostas, e de em torno às suas florestas, que se descobre a imensidade do Oceano Atlântico, que perde-se no infinito, lá onde assen­ta-se a base azulada da abóboda  do céu e rara vela branqueja como o atiati[6] que esvoaça, asas imó­veis que nem trepidam, de sobre a superfície as águas; lá onde se perde o pensamento cansado de di­vagar...

O sol doura com seus raios animadores o fastí­gio das montanhas que fumegam aqui e ali, com as covas dos carvoeiros, coroadas de penedos e restos de florestas, de matos e de capoeiras.

A brisa matutina abana levemente a ramagem dos bosques engrinaldados, agita os verdejantes le­ques das palmeiras, desce pelas encostas das monta­nhas, sussurra nos vales profundos, e encrespando brandamente a lisura das águas marítimas, vai levar ao nauta, cansado de respirar a viração impregnada de sabor marinho, os perfumes das flores agrestes que convidam à vida.

Os pássaros, com suas plumas variadas em co­res, adejam pelos ares como nuvem de flores que as auras arrancam às grinaldas das florestas e levam balouçando sobre suas asas.

O sabiá gorjeia placidamente, a paca percorre o abaulado do monte e o escamoso tatu vaga pela margem desses veios de cristalinas águas que tão mesquinhos por aí serpejam em tempos de verão, enquanto que o carvoeiro entoa suas endechas de amor e de esperança.

De enquando a enquando ouve-se o tro­vão do arcabuz que os ecos das montanhas repetem de maneira assombrosa, precedidos dos latidos dos cães; as aves espantam-se, há uma pausa como se pa­rasse a criação; — é o silêncio na natureza!

Pouco depois tudo entrou em sua ordem. O sa­biá prossegue em seus sonoros gorjeios. O carvoeiro entoa seus cantares. Ouvem-se de momento em mo­mento sons compassados. E o ruído dos golpes do machado do lenhador que derriba o tronco das árvo­res anosas.

Aí no meio das florestas elevava-se, como ou­tras muitas, uma tosca choupana da varas tecidas e barreadas, e coberta de palhas; era a choupana de Maria, a filha do carvoeiro, que não tinha mais que três repartimentos, uma sala acanhada, o aposento onde dormia e a cozinha; algumas gaiolas com pás­saros do local, alguns registos de santos da sua maior devoção, e rosários pendiam das paredes esbroadas; toscos trastes formavam toda a mobília. No solar dessa choupana era que ela uma manhã, de olhos fi­tos na terra, pranteava, ao lado de uma menina que distraidamente olhava para as árvores.

Aí, sentada, com os cabelos esparsos pelos ombros, os olhos em lágrimas que serpejavam-Ihe pelas faces amorenadas, mas coradas como a tez de­licada do jambo, um braço cruzado sobre o peito e a mão sustentando o outro em que apoiava a cabeça, ela sofria, que sua dor era grande, e de entre-vezes  um suspiro, que se desenlaçava do coração, desprendia-se-lhe dos lábios envolto em soluços; era um suspiro de saudade que perdia-se nos ares e que talvez só fosse respondido pelo vagido débil e fraco de um menino.

Um homem, cujo aspecto representava ter mais de sessenta anos de idade, trazendo uma vara na mão, na qual se apoiava quando tinha de vingar o escabroso da montanha, aproximou-se. A menina correu para ele com um suspiro nos lábios, pe­gou-lhe na destra, levou a mão à boca e lhe imprimiu um beijo. Maria ergueu-se, foi ao seu encontro, to­mou essa mesma mão, beijou-a, inundando-a de fios de lágrimas que desprenderam-se-lhe dos olhos.

— Minha filha! exclamou ele como que admirado.

— Ah!, meu pai, roubaram-mo, roubaram-mo! disse ela na maior desesperação.

— O quê, minha filha?

— Ah vós nem vedes que ele aqui não vos espe­ra para beijar a vossa mão, sorrindo-se pendente de meus braços?

— É possível!

— Roubaram-mo, roubaram-mo.

— Quando?

— Esta noite passada.

— E como?

— Senti um ruído, e eram as portas da choupana que abatiam-se aos golpes dos machados! Vi vultos que aproximavam-se de junto de meu leito, e eram os roubadores que mo vinham buscar! Ouvi vagidos que me cortavam a alma, e era ele que chorava leva­do por eles! Desatinada, louca, furiosa, ergui-me, saltei, corri a ele. Eis que lançam-se dois vultos so­bre mim e me retêm em seus braços de ferro, contra os quais lutei embalde.

— E por que não gritaste?

— Suas mãos sufocaram-me as vozes na gar­ganta.

— E depois?

— Fugiram, desapareceram, levando meu filho consigo e deixando-me a sós com Clara, desconsola­da, aflita e sem saber de mim.

O velho entrou para a choupana, sentou-se e. conservou-se pensativo por algum tempo; depois, sacudindo a cabeça, ergueu os olhos para Maria que, em pé, imóvel, se conservava a seu lado.

— Não é hoje, perguntou ele, que deve chegar o teu marido?

— Hoje? balbuciou ela, olhando para a parede, onde havia traçado com carvão um risco horizontal­mente, e cortado por outros perpendiculares e de di­ferentes tamanhos; ah! ajuntou, eu perdi a conta!

— É hoje; não há dúvida, e aqui não houve se­não prevenção; José Feliciano bem to havia pedido, não lho entregaste, e ele pois lançou mão da violên­cia para havê-lo; lembrou-se que hoje devia chegar o teu marido e não quis que ele viesse achar-te com um menino que, segundo todas as probabilidades, não lhe podias apresentar como seu filho.

Um leve enrubrecimento  coloriu as faces de Maria, que levou o lenço aos olhos, mais para ocultar seu rosto que para limpar as lágrimas, e cujo disfarce todavia procurou; o velho se calara, e por grande espaço reinou na choupana o silêncio da soli­dão, onde tudo se ouve, exceto a voz humana, até que entrou um escravo, estendeu sobre a mesa um pano de algodão rusticamente trançado, porém alvo como o dia, e perfumado com o delicioso aroma da erva de São João, e sobre ele espalhou alguma louça grosseira:

.........................................pobre mesa

Onde não tine a rica porçolana,

Nem cansa aos olhos trémulo reflexo

De burnida colher, de refulgente

Britânico saleiro ........................,[7]

mas onde fumegava o café, cujo aroma suave se ex­pandia agradavelmente, enquanto que alguns beijus branqueavam sobre a toalha. O velho e a menina as­sentaram-se em torno, e Maria conservou-se de pé.

Tocavam o fim do almoço quando sentiram o tropel de um cavalo, que mais se aproximava.

Alguém se avizinha, disse Pedro Rodrigues.

— É um cavaleiro.

— E vem direito a nossa choupana.

— É Gaetano, ajuntou o velho levantando-se e dirigindo-se para a porta.

— É ele mesmo, murmurou ela.

— Quem, minha mãe?

— Teu pai, minha filha.

Gaetano apeou-se, beijou a mão ao velho, bei­jou sua filhinha, apertou sua esposa em seus braços e entrou para a choupana.

— Descansemos por um pouco, disse ele se ati­rando sobre um tosco assento.

— E enquanto descansas, ajuntou Pedro Rodri­gues, eu me vou por aí a lançar uma vista de olhos às minhas carvoeiras.

— E não voltareis?

— Depois, depois, para conversarmos.

Cobriu-se Pedro Rodrigues com o desabado chapéu e se foi arrimado ao seu bordão.

— Não vos quereis despir? perguntou Maria a Gaetano.

— Não, respondeu ele, que tenho ainda que ir dar contas a José Feliciano, de seus negócios e para nunca mais meter-me em outros.

— E então pelo quê?

— Por motivos que depois saberás.

— Pois bem, contar-me-eis e eu vos escutarei quando quiserdes, no entanto podeis almoçar.

— Tomarei café, pouco, e comerei então na vol­ta até mais fartar; mas tens um não sei quê de triste em teu semblante, um não sei quê de pesado em tuas palavras, que muito estranho.

— E eu sempre não fui assim?

— Não, Maria, não, disse ele sorrindo, sem dú­vida saudades minhas...

E ela suspirou; serviu-o de café, e um momen­to depois Gaetano seguia caminho da Tijuca, monta­do em seu cavalo. Triste, aflita e silenciosa conser­vara-se Maria; apenas lá de vez em quando soltava um gemido, um gemido terrível que se desprendia do peito; — era a lembrança cruel de seu filho que lho arrancava -, a lembrança cruel de seu filho que tanto a atormentava.

À tarde veio o velho jantar com ela; depois ca­minharam pelo abaulado do monte e foram sentar-se na relva, sob a copa de uma laranjeira; o ar estava embalsamado de suas flores. Bela trepadeira se apoi­ando sobre seus galhos cingia-a de seus brandos lia­mes, misturando sobre rubros jasmins com as flores simbólicas da virgindade. Aí num raminho, entre o enlace de verduras floridas, tinha o beija-flor fabri­cado o seu ninho de fofas painas, e guarnecido-o ex­teriormente com a casca da árvore, como que para não ser facilmente conhecido, e aí mesmo, do casulo que tecera a lagarta, se desprendia a borboleta como envolta em pintadas e longas roupas, de que pouco e pouco se foi desembaraçando; depois ergueu-se, como duas pétalas de flores agrestes, agitou-as, e, levada pelo vento, parecia uma flor aérea. Lá em cima de um galho que se debruçava de sobre a água, se embalançava o guará revestido de negras penas,contempla sua imagem no cristal da água estanque, como se recordando das belas cores que já tivera. Outra avezinha, não menos interessante, se acolhe à sua pousada de barro, semelhante a esses edifícios árabes, de abóbodas, e com formas circulares; entra a porta, e vai branda e suavemente pousar no seu colchão de moles palhinhas, e enquanto presi­de à incubação da nova prole, estende a garganta pela janela de sua pousada para escutar o amante, que empoleirado no raminho enche os ares de trinados.[8] E ela contemplava em silêncio, lembrando-se que cedo desumana mão roubar-lhe-ia essa tão que­rida prole; lembrava-se e suspirava.

— Ah sempre a suspirar, disse Pedro Rodri­gues, desde que o sol se eleva até que a noite cai, desde que a noite cai até que o sol se eleva!

— É que meu peito, lhe voltou ela, é como essas carvoeiras, que aí fumegam dia e noite, que pelo fumo dão a conhecer o fogo intenso que as devora.

— Sim, mas tu deves procurar a distração.

— A distração? É o pesar, o pesar que como o fel da morte se me derramou no mais profundo do coração.

— Sim, que teus desgostos passados, e agora o roubo de teu filho, te devem motivar grande pesar, o que aproveita porém chorá-lo assim tão continuada-mente? E não tens aí no âmago do coração, de envol­ta com esse fel, que te azeda os dias da existência, pressentimento que te diz que ele é feliz? Que alma haverá por mais maligna que seja, que ouse de fazer mal a uma criancinha? E quem rouba uma criança aos cuidados maternais senão para entregá-la a ou­tros cuidados?

— A uma madrasta, não é assim?

— Embora, antes mil vezes uma madrasta, quando a mãe não pode dizer sinceramente: “Este é meu filho! “ Mais alardeada vai a honra nas aparên­cias, que mesmo na própria honra; é dissimulação, mas de que se compõe a vida? E quantas madrastas não há que dão boa educação?

— Se ao menos eu tivesse exemplo...

— Tu o tens em ti mesmo; essa que cuidou de tua infância, essa que mil vezes verteu lágrimas por ti, não era tua mãe, mas sim uma moça desses arra­baldes; era por uma manhã; senti chorar, e eras tu. minha filha, que jazias à minha porta.

— Coitada! não era minha mãe, e morreu des­graçadamente por mim!

— O desgosto!

— Sim, o desgosto, ocasionado por mim! E mi­nha mãe?

— Silêncio! Seu nome e sua existência são um segredo.

— E meu pai?

— Tu és minha filha.

— Pobre de mim, que desde o berço que a des­graça me persegue!

— E a mim? Porventura nasci para consumir meus anos nos rústicos trabalhos e tosco trato de car­voeiro? A demanda! ... Maldita hora da vida em que meti-me em tal!

— São pecados próprios ou herdados que nós pagamos com a existência de miseráveis pobrezas.

— Enfim, minha filha, roguemos a Deus, já que a sua misericórdia é infinita, a sua proteção para Henrique.

Levantaram ambos os olhos para o céu, e pare­ciam  que imploravam a proteção divina, no en­tanto a noite adiantava-se envolta em véus de trevas, e o céu se obscurecia com a aglomeração de negras nu­vens; a tempestade bramando, lá se erguia do infinito das águas, medonha e ameaçadora; apressaram-se pois em deixar esses lugares, chamaram por Clarita, que andava a formar ramalhetes de flores agrestes, que soem crescer por essas montanhas enchendo os ares de seus perfumes esquisitos, e tomando-a pela mão caminharam; seguiu Pedro Rodrigues via da sua choupana, e sua filha entrou com a sua neta na sua po­bre e velha choça, silenciosa, atormentada, não já por um pensamento, mas por dois: — seu filho e sua mãe!

E a tempestade era terrível! Distinguia-se dis­tintamante uma linha que dividia o oceano; era a chuva que caía em catadupas, que se despenhava da Ponta Grossa com murmúrio, e através de seus véus de cristais se descortinava a outra parte imensa das águas marítimas límpidas e refletindo o sereno azul da abóboda  celeste, e uma vela branqueava nes­se azul, como o alcião pousado e imóvel sobre as on­das. De momento em momento um clarão rápido re­frangia-se nos chuveiros; fitas de fogo avermelha­das, como cordões de sangue, desprendiam-se das nuvens, cruzavam-se nos ares, emaranhavam-se nos bosques e desapareciam; então troava o trovão, com seu som de voz horrendo, então rugia o mar funebre­mente em seus arquejos; as árvores, trêmulas de horror, com suas frontes desgrenhadas, pareciam gigantes que dançavam ao som do furacão que sibi­lava horrivelmente; os ecos repetiam uns após ou­tros, em cadência infernal, o cântico da destruição! Só o gigante da Gávea, imóvel no meio de suas mon­tanhas, com seu dístico misterioso, parecia zombar da tempestade. Estreitada Maria com sua Clarita, orava, prostrada ante uma imagem de sua devoção; palavras místicas, cheias de unção, se desprendiam de sua boca, e a filhinha abraçada com o ramo de flo­res, repetia palavra por palavra as suas orações.

Era noite e a tempestade ainda durava. Cansa­da de esperar por seu esposo, recolheu-se ela a seu leito, com sua filha, que já dormia com o ramo de flores apertado ao peito. E aí sobre o leito, em joe­lhos, mãos postas e olhos erguidos para o céu, enco­mendou a alma ao Senhor e pediu a sua proteção para seu filho, o seu inocentinho Henrique, e depois caiu sobre as palhas de seu leito e adormeceu.

Dormia pesado sono; pesado como de um pe­sadelo; pesado, que mais fadiga é que repousar o dormi-lo, quando a despertaram repetidas pancadas na porta e latidos de cães, que depois se aquietaram; e a chuva caía ainda saltitando sonoramente no sapé da palhoça.

— Quem bate aí?

E o murmúrio da chuva que se despenhava, e o sibilo do vento que passava.

— É o vento, disse ela consigo, voltando-se para o outro lado, como que para dormir de novo, mas as pancadas na porta se renovaram.

— Quem bate aí? interrogou ela pela segunda vez.

— Gaetano; abre, Maria.

Levantou-se, feriu fogo, acendeu a torcida da candeia, abriu a porta, e Gaetano entrou se desen­volvendo do ponche umedecido da chuva, e o arre­messou sobre uma tripeça, sacou a faca das botas e lançou-a sobre a mesa.

— Pensava que não vínheis hoje.

— E entretanto aqui estou.

— Apanhastes muita chuva?

— O ponche está ensopado.

— Recolhestes o cavalo à estrebaria?

— Sim, mas não o desarreei, que talvez ainda saia.

— Hoje?

— E por que não? Por agora estou fatigado, quero descansar algum tanto; tenho fome, quero co­mer alguma coisa.

— Temos um resto do jantar, disse ela estenden­do um pano sobre a mesa; é um quarto de paca, algu­ma farinha e um pouco de vinho.

Sentou-se Gaetano à mesa e se pôs a comer como um faminto, a mais fartar, e a beber como um sequioso, a mais não poder, e sua consorte a seu lado, pouco distante, olhava para ele tristemente.

— Aproxima-te disse ele, que tenho que di­zer-te.

— Eis-me junta de ti, respondeu ela, arras­tando uma banca e sentando-se.

— É uma história que te quero contar.

— Ouvi-la-ei com prazer.

— Sim, bom é que te distraias da melancolia que te pesa sobre as faces e do silêncio que te prende os lábios.

— Começai.

 

II

UM CONTO

In vain, alas, in vain!

Campbell

“— Havia na Gávea, disse Gaetano, certo ho­mem casado, a quem a esterilidade de sua mulher as­segurava que não teria filho algum, de sorte que es­tavam isentos desses incômodos que tanta gente aprecia; ao menos sendo pobres, de tão ricos que eram, criam-se felizes, se bem que a mulher desejas­se, lá um dia por outro, ter um filhinho com quem prodigalizasse os seus carinhos, como se o marido não pudesse servir algumas vezes de criança e diver­ti-la por alguns momentos; mas enfim, vamos ao que serve. Indo ele à caça com alguns companheiros, de­sencaminhou-se e perdeu-se lá por capoeiras da vizi­nhança da cascata da Tijuca, e por aí divagou horas inteiras em procura de alguma picada que o condu­zisse a descampado ou habitação; havia caminho an­dado dos trilhos embaraçados, quando descobriu um claro, por onde o sol vinha enfiando seus dourados raios, e saindo e descobrindo campo, viu ao longe uma como choupana e mais perto um regato que es­coava-se tão agradavelmente, que em suas águas es­pelhavam-se as flores, as árvores e penedos de suas margens, e lá num remanso ensombrado por man­gueiras com suas frondosas copas, como zimbório, de verdura, junto de uma pedra que atravessava a torrente, descortinou que alguém se banhava e apro­ximou-se; distinguiu os cabelos espalhados e longos que debruçavam-se-lhe pelo colo que era de um amorenado gracioso; não havia dúvida, era uma moça, uma moça que ao vê-lo soltou um grito de sur­presa, saltou sobre a pedra, tomou as roupas que aí deixara, envolveu-se rapidamente nelas e procurou ocultar-se por detrás de um dos troncos das mangueiras, ao pé do qual se elevavam algumas tiriricas que mais e mais a favoreceram.

“O caçador não hesitou nas tentações que su­geriu-lhe o inesperado encontro, e não respeitando tanta timidez nascida do pundonor, dirigiu-se direito para ela como a seta disparada do arco; dir-se-ia que ele corria atrás de uma paca, e quanto mais ele se aproximava, tanto mais a moça tiritava, como tabo­cas balançadas pela viração da tarde. Depois retum­bou nas selvas um gemido doloroso! Oh a desgraça­da estava perdida para todos os dias de sua vida, para todos!... Passados nove meses, já quando esse ho­mem se não lembrava dessa moça, que o acaso tor­nou vítima de um amor gerado num momento e nou­tro momento extinto e talvez para sempre, e a quem ele havia arremessado e com desdém um simples anel, como que para lembrança da desgraça que ele motivara, eis que ouviu ao abrir certa manhã a sua porta, descompassados vagidos, e descobriu ha  pouca distância, sob uns cafezeiros , uma crian­cinha envolvida em baetas.

“ — É teu filho, bradou-lhe a mulher.

“ — Não, não, disse ele, querendo afetar tran­qüilidade, e eu o juro por...

“ — Não jures, atalhou ela; desde os pés até a cabeça que é todo teu retrato!

“ — Não jures, que há outras provas que o de­monstram.

“ — E que provas?

“ — Olha, disse ela, o que pende desta fita que ele traz atada ao pescoço; — o anel, que tu perdeste na caçada!”

Maria corou olhando para o anel que ela tinha num de seus dedos; não desconheceu Gaetano a per­turbação, disfarçou porém, e lançando vinho ao copo, virou-o de golpe.

— Ou este ou o de Chipre!

— E depois? interrogou Maria.

— Ouve-me e deixa-te de interrupção. — Continuai, disse ela suspirando. Gaetano prosseguiu.

“ — Esse anel, voltou-lhe o marido, poderia ter sido achado por alguém.

— E depositaram-na aqui e com ele! Quê de coincidências!... Pois bem, bradou ela com arrogân­cia, pois bem, uma faca! Tu me negas a verdade e tua consciência vai ser em breve dilacerada pelo re­morso do homicídio; mas se mo confessas que é teu filho, cuidarei eu dele, pois estimava mesmo ter uma criança com que me entretesse , uma só, sem mais exemplo.., porém, se não é teu filho, já a faca na garganta, que o degolo.

“— Perdão, disse ele, perdão, que te fui infiel uma hora! Numa hora, em que sacrifiquei uma don­zela ao meu desvario; e o acaso, o encontro, deu-me este filho...

— Desgraçada! Como chamava-se ela? — Catarina.

“ — A filha de Joaquim Antônio?! Desgraçado, desgraçada, desgraçados vós ambos! Por um mo­mento de loucura, por uma alienação de amor! E en­tretanto as suspeitas recaíram na inocência, em quem a destra do pai presumiu, mas em vão, vingar a honra da filha! Três dias e três noites, sem comer, velando a sós, à espera de sua vítima, que não era culpada, e uma noite o raio que parte de um punhado de árvores, o grito que ressoa nos ares, o vulto que foge, e lá mais distante, o cadáver que cai...

“ — Perdão, perdão, clamava ele em joelhos, e silêncio! O mal não tem remédio, e eu farei penitên­cia, ouvirei três capelas de missas pela alma do mor­to, assassinado por minha culpa, e pedirei remissão a Deus de meus pecados.

“ — Pois bem, silêncio!... Vê, porém, e acaute­la-te que não somos só nós que ignoramos essa fata­lidade; quem lançou essa criança à nossa porta, sabe muito bem o que tu és dela.

“E ao curarem da criança, conheceram que era menina e batizaram-na como o nome de Maria”.

Suspirou Maria e Gaetano prosseguiu.

“A uma escrava, que criava seu filho, de­ram-na para amamentá-la, e enquanto ela crescia e desenvolvia-se, o triste do pai passava os dias emorações, as noites em penitências, e ia à missa todas as segundas-feiras pela alma do finado.

“Os anos eram idos, que rápido vai o tempo sem o sentirmos, contados um a um os segundos e marcados pela mão da morte, e em noite de Natal, em que toda a choupana do carvoeiro retinia com os sacros hinos entoados por diversas pessoas que ali concorriam para ver um presépio toscamente levan­tado no canto da sala, um malvado procurava todos os meios de sedução para iludir uma menina more­na, tão bela e tão simples, como essas flores sem nome de sua pátria, que desabrocham recendentes de perfumes. Conseguiu atraí-la ao caramanchão, onde pendiam os roxos martírios e os pomos verdes e amarelos, e que ficava ha  pouca distância, mas seus esforços foram baldios, que essa menina em cujos olhos brilhava a vivacidade da mocidade, se bem que inexperiente, era ainda muito casta e cândida para deixar-se levar de suas promessas e ver-se depois desamparada e infeliz sobre a terra, sem arrimo, e selada com o ferrete da desonra, que a envergonhasse aos olhos do mundo.

“Rico e poderoso, temido entre os pequenos, como todos esses tiranos e ambiciosos senhores que por aí avultam, era ele muito altivo e sagaz para re­cuar ante a impossibilidade de levar com seus inten­tos por diante, por mais torpes que fossem, e pois jurou para logo sobre esse peito que palpitava de ino­cência e singeleza, que dia viria em que teria por seu o triunfo.

“Ele o jurou, e assim havia de ser. Tinha ele por administrador de suas terras a um estrangeiro, natural de [A]cerenza, na Calábria, a quem prome­teu a sua proteção, terras e dinheiro se quisesse fazer a felicidade de uma menina, que era filha de um car­voeiro, que ele estimava por sua honradez, pois era homem que já tinha tido muito de seu, e que depois ficara em miséria, e cuja mulher era muito da afei­ção de sua consorte. Nascido em país de indigência, viu o pobre calabrês pela primeira vez a felicidade sorrir-se-lhe  benigna na terra estrangeira, lem­brou-se de seu pai, de sua mãe e irmãozinhos que deixava lá tão longes , remotos, nas maiores po­brezas, e chorou; chorou, porque o calabrês com a sua alma de bronze tem também seus sentimentos de homem; aceitou pois a sua proteção, recebeu uma velha choupana para a sua morada, algumas braças de terra para lavrar e a mão dessa menina que se lhe prometera por sua companheira.

“Por algum tempo viveu ele feliz, no seio de sua família, vendo-se retratado nas feições da filhi­nha que lhe deu Deus, dez meses depois do seu con­sórcio; cultivando suas terras, derrubando capoeiras e formando covas de carvão; vivia assim, quando uma manhã recebeu um recado daquele de cujas ter­ras fora administrador e a quem era tão obrigado, que o chamava à sua presença para lhe comunicar notícias de maior interesse.

“Ele o jurou e assim havia de ser, embora ti­vessem-se  passado tantos meses! Coração da­nado, dormia e despertava com a idéia de encher um juramento tão torpe em suas conseqüências! Na boa fé dos homens de bem, ei-lo que deixa a choupana, as terras, as carvoeiras, a esposa e a filhinha, e lá se vai a longes terras a empregar-se no tráfico de afri­canos boçais.

“E durante a sua ausência, essa depois que era sua companheira, essa que era mãe de sua filha, eque havia resistido aos intentos do malvado que pre­tendeu seduzi-la, deixava-se levar de suas persua­sões, esquecia-se de seu esposo, como se ele já tives­se baixado à vala dos mortos ou não tivesse de voltar para pedir-lhe conta de seu procedimento, e tinha um ano depois um filho. Espalhou-se o boato por toda a parte, como o clarão da tempestade; aquela que a educara como sua filha, tamanha paixão con­cebeu que veio a sucumbir dentro em três dias à vio­lenta febre; mas não a perseguiu o remorso do cri­me, o pai de seu filho continuou a ter entrada em casa, e um dia, ei-lo que cessa de vir, porque os dias estavam contados, e uma manhã eis que essa mulher pérfida acorda despertada pelo ruído de suas portas, que caem aos golpes do machado e pelos gritos de seu filho que lhe roubam.

“E esse homem que sabia de tudo quanto se passava em sua choupana durante a demora por lon­gínquas paragens da costa, pedia nas suas orações a maldição do céu para José Feliciano, e jurava morte a sua esposa”.

— E esse homem sou eu, Maria! disse ele con­cluindo a sua fatal história, erguendo-se, precipitan­do-se sobre a sua faca e arrastando pelo braço a mí­sera esposa.

— E esse homem sou eu!

— Perdão, exclamou ela.

— E essa mulher és tu!

— Perdão, em nome de Deus, perdão! Em vão, em vão, ah, em vão lutei eu, mas fui vencida; gritei, mas a quem me socorrer? Achei-me a sós com ho­mem tão terrível!... Tua vingança para ele que não para mim, Gaetano!

— Para ele a maldição do céu, a minha praga no furor de minha paixão; Deus vingar-me-á! Para ti a minha desafronta! — a desafronta é — a morte!

— Perdão! perdão! bradou ela levantando os olhos para o céu e querendo ajoelhar-se, mas de re­pente, por uni movimento rápido lançou-se, desem­baraçando-se de seu assassino, no aposento, sobre a cama da filhinha. Gaetano tomou a candeia, se­guiu-a, ah, ela abraçava-se com Clarita, banhando-a de suas lágrimas; mas o implacável calabrês tinha al­çado o seu punhal e deixado cair sobre o colo de sua esposa...

Um grito de horror que foi longe, um ai de morte que faleceu ao desprender-se dos lábios, re­tumbaram por toda a choupana. Gaetano sacava o ferro tinto de sangue ainda fumante, quando a filha despertando, abriu os olhinhos, e um sorriso lhe ro­çou as faces; e estendeu o braço para ele como lhe ofertando o ramalhete de flores. Eriçaram-se-lhe os cabelos, gelou-se todo, e a candeia escapou-se-lhe da mão e apagou-se.

Ouviu-se pouco depois o trotar de um cavalo, o latido de cães e depois um trovão.

Era ele que se havia perdido entre as trevas da noite, como o relâmpago; era a tempestade que tinha soltado o último bramido.

III

VINTE ANOS DEPOIS

...................................E para longe,

E bem longe de Clara, como um sonho,

Sumiu-se........................

A louca.

Vinte anos!... Que longo espaço para rápidas e sucessivas mudanças de tempo! Como a esses guer­reiros que moços e robustos partiam para a Palestina e quando voltavam vinham cansados e cobertos de cãs, que perguntavam: — Onde está meu pai? — E lhe mostravam o túmulo. Que perguntavam: — Onde está minha mãe? — E lhes mostravam outro túmulo. Que perguntavam: — Onde está minha casa? — E lhes mostravam uma árvore. Assim, a quantos se não po­deria responder da mesma forma, se iguais interrogações se dirigissem aos habitantes da Gávea?

Vinte anos eram idos, vinte anos tinham se  sepultado na eternidade do passado, e já nem vestígios existiam da choupana dessa infeliz Maria, a filha do carvoeiro; se alguém, que tinha ouvido pronunciar seu nome, narrar suas desgraças e derra­mado uma lágrima por ela, perguntava pela sua choupana, uma mão apontava para uma capoeira.

Subsistia todavia a choupana do velho Pedro Rodrigues, vinte vezes deteriorada pela mão do tempo, outras tantas reparada pela mão do homem, até que se aniquilasse de toda , e, ou outra se alevantasse em seu lugar, ou uma capoeira. Aí, sobre o solar do albergue, foi que vinte anos depois da catás­trofe de Maria, viu Clarita rebentar sobre a costa o medonho furacão, cujo sopro submergiu diversas embarcações e desarvorou outras: foi aí que viu um navio impelido pelo furacão, varar-se pela terra e fazer-se em pedaços que os vagalhões arrebataram como presas que lhes pertenciam; caindo em joelhos, seus olhos se ergueram para o céu e ela subiu sua alma a Deus pedindo pelos náufragos; breve, porém, a noite inundou os ares de trevas, e nada mais pôde ver; consolou-se com orar, ao lado de seu ve­lho avô e Catarina sua esposa. O dia seguinte ainda não bruxuleava no horizonte e já os habitantes da Gávea corriam à praia, lá onde esse ribeiro que se revolve em seu leito de lodo entra no mar, em que se perde, para ver um moço que dava sinais de vida e que fora pelas ondas rejeitado; leme... mastro... cabos... tábuas... juncavam a praia... Dizia-se que toda a tripulação e passageiros, de que esse moço fazia parte, haviam perecido.

Três dias, quatro dias, cinco dias se passaram e ainda o naufrágio era o assunto das conversações en­tre todos os habitantes e em todas as choupanas. Cada qual apressava-se em contar aos hóspedes as promiscuidades de tão deplorável acontecimento, e ao viandante se perguntava:

— Já sabeis do naufrágio?

Era a novidade do tempo que corria de boca em boca adornada dos atavios das imaginações por que passava.

Havia o moço tornado à vida e se restabelecia, quando uma tarde, Pedro Rodrigues encostado a seu bastão, conduzido por sua esposa, e acompanhado por Clarita, que caminhava descalça, e cuja fisiono­mia tinha um não sei quê de beleza e de simplicidade que encantava, desceram os íngremes trilhos da montanha com o maior cuidado, e foram bater à por­ta da choupana a visitar o náufrago.

Ofereceram-lhe assento e ele assentou-se com a sua esposa e a sua neta ao lado do moço.

— Vinde visitar-me? perguntou ele.

— É verdade, meu filho, sou humano e compa­deço-me dos náufragos: a todos fecharia a porta da minha palhoça, menos ao naufragado.

— E já naufragaste?

— Nunca saí do Rio de Janeiro.

— Feliz homem! Nunca entregou-se ao edifício errante, fabricado pelas mãos dos homens e arre­messado às ondas, que rege o aceno de Deus e que em vão o espírito humano intenta encadeá-las ao jugo de seus domínios, dando leis à terra e pondo freio aos mares. É a tempestade o aceno de Deus, e contra ela o que aproveita opor barreiras?

— É assim, meu filho, disse o velho, e calou-se; vendo porém que o moço nada mais dizia, prosse­guiu: E donde vindes?

— Da Bahia, donde partimos numa sexta-feira.

— Numa sexta-feira! Dia aziago para os maríti­mos.

— Bem aziago! Ainda não havíamos perdido a terra de vista, que já o sangue do homicida inundava o convés do bergantim.

— Alguma desordem?

— Dois marinheiros, que insultando-se mutua­mente, puxaram das facas e atiraram-se um contra o outro; foi em vão que buscou-se apartá-los; luta re­nhida, não havia aí mais que a destruição de um para decidir dela; enfim, um deles caiu sem vida, ferido a toda a faca, perto da clavícula do lado direito, entre a primeira e a segunda costela verdadeira, e outro pre­cipitou-se às ondas, que o subverteram. A essa cena de horror, bradou o mestre com som de voz terrível:

— Agouro! Agouro!

— Perdemos a Bahia de vista, e quando começamos a enxergar o Gigante que dorme, o tufão que rebenta e nos impele sobre a costa!

— E sois natural da Bahia?

— Não: que nasci nestas montanhas, a cujas fal­das me rejeitaram as ondas como morto.

— E vosso pai?

— Ah! seu nome é um segredo! — E vossa mãe?

— Nunca mo souberam dizer quem era ou não quiseram.

— Tanto mistério envolve o vosso nascimento!

— Sei apenas que vi o dia nestas montanhas: ouvi dizer o nome de meu pai, mas jurei não divul­gá-lo; nem eu mesmo nunca vi-o, e vê-lo ou não vê-lo, é o mesmo, que não o conhecerei; sei que é rico, pois que dele recebi uma educação que não é lá das piores, e ainda continuo a perceber mesadas por sua conta; e quanto a minha mãe... há um mistério, um mistério profundo que em vão tenho sondado... Sem dúvida sou filho de alguma personagem ilustre pelo seu nascimento, mas não sei porque me desde­nharam de maneira que não conheço meus ascenden­tes, pois que fui roubado em tenra idade a minha mãe.

— E como vos chamais?

— Henrique.

— Henrique? repetiu o velho apoiando-se no bastão e querendo erguer-se. Henrique!

— Por ventura me conheceis?

— Um momento, meu filho, um momento a sós convosco e sabereis tudo.

— De vós?

— Sim, de mim, que para estes lugares vim em minha mocidade, e há que tempos vai isso! Olhai: oi­tenta e cinco anos hão passado sobre a minha cabeça!

— Que longa idade!

— Vós sabeis o nome de vosso pai, pois bem, por ele sabereis que não vos direi senão verdades; mas antes de começarmos a nossa prática a sós, con­vém que me digais se tendes notícia de um cordãozi­nho de ouro com um signo de Salomão, com que fos­tes roubado.

— Basta! disse Henrique abrindo a camisa e dei­xando ver o cordão com o signo, que lhe pendia do pescoço: vós sabeis de tudo!

Abraçou Henrique o velho octagenário  e pediu a todos quantos o rodeavam que lhe concedes­sem vagar para a conferência que desejava ter com ele; o que anuíram e retiraram-se todos para o terrei­ro, onde conversavam alguns roceiros assentados ou em pé.

— Ora, e esta? dizia um deles, quer este ho­mem, minhas senhoras donas, fazer-nos acreditar coisas impossíveis e até hoje ainda não vistas.

— Não vistas? Dou-vos minha palavra que vi eu, e vos prometo trazer uma para destruir tanta in­credulidade.

— Diz ele que a lagarta fabrica o casulo, que do casulo sai a borboleta, que é a própria lagarta que aí se desenvolve.

— Até aí não há novidade, acrescentou um den­tre eles, cujas brancas lhe alvejavam a cabeça.

— Não há, exclamaram todos a um tempo.

— Pois sim, continuava o outro, não há, porém o que eu não creio é que essa borboleta torne-se dias depois em beija-flor!

— Quê! disse o velho, será possível que eu ain­da não visse semelhante fenômeno! pois olhai que não é de ontem que datam as minhas caminhadas pe­los matos; que me digais que vistes galhos de cafeze­iros  transformados em bichos, creio, que vi-o eu, mas borboletas em beija-flor, bofé que não, meu amigo. E pôs-se a rir.

— Aposto eu que também negareis que o cam­boatá anda em terra tão senhor de si como na água, não é assim?

— Acreditamos, voltou-lhe o outro, e por que não? Ora, depois da borboleta-beija-flor, que há mais que admirar...

Risadas estrondosas cobriram a voz do último que falava; o outro desconfiando pegou em seu cha— péu e retirou-se.

— Vamos ao café! disse um.

— Ao café! bradaram todos correndo para a menina, que trazia algumas vasilhas com café, que se apressaram em tomar.

Enfim, havia o tempo corrido e já aproximava-se a noite, quando Pedro Rodrigues dando por finda a entrevista pediu às pessoas que se haviam re­tirado que entrassem.

Apertou Henrique a ingênua Clarita em seus braços imprimindo-lhe um beijo naquelas faces mo­reninhas.

— Teu irmão, minha filha, disse o velho.

— Ah, é este, meu avô, voltou ela apertando-o mais e mais em seus braços, aquele de quem tantas vezes me falastes? Oh, meu irmão! Quantas e quan­tas vezes não repeti teu nome com as lágrimas nos olhos e a dor no coração!

— E talvez esses instantes, ajuntou ele, fossem aqueles em que meu coração caía de súbito em abati­mento de tristeza e soltava um suspiro involuntário; era um eco que repetia, era uma corda que ferida após outra dava o mesmo som!

Lançou o velho a sua bênção à  Henrique, e retirou-se; um moleque caminhava ante Pedro Rodrigues, Catarina e Clarita, com uma vela acesa levando a mão com os dedos cerrados adiante para que não a apagasse o bafo da noite, e viu-se por algum tempo essa luz ora desaparecer, ora aparecer por entre a folhagem dos arvoredos, como a estrela que some-se, que surge entre o véu das nuvens, e que depois desaparece de toda . E assim iam todas as tardes a visitar o jovem Henrique, e assim voltavam todas as noites para a choupana, até que restabelencendo-se o moço, os veio visitar, protestando que todas as vezes que pudesse viria à Gávea para vê-los.

Abençoou-o o velho e montando ele num luzi­do cavalo seguiu caminho da corte; Clarita na janela, que descobria longe, com a cabeça apoiada no braço, alongava os olhos pelos trilhos e via de quando em quando, lá entre a ramagem das árvores que rumorejava o vento, o vulto que balançando ausentava-se mais e mais, e depois sumiu-se; seus olhos alçaram-se-lhe para o céu, e ela suspirou.

Era um suspiro de amor e de saudade!

— Se ele não fosse meu irmão! murmurou ela.

E o cavalo de Henrique caminhava, ora des­cendo esses trilhos arrepiados de soltos penedos, ora subindo, e em breve achou-se na Boa Vista.

Aí sobre esse alto, donde tudo é belo e grande, rico e majestoso, divisou a cidade do Rio de Janeiro. com suas torres, com seus edifícios de diferentes formas, mas mesquinha e pequena no meio do gran­dioso espetáculo da natureza que se desdobra com tanta pompa; aqui o rochedo enorme, coroado de nu­vens coloridas pelos últimos raios do astro do dia, láuma cadeia prodigiosa de montanhas de píncaros mais ou menos elevados que a órgãos se assemelham e que se estendem como uma falange de gigantes, sob esse pavilhão imenso, essa abóboda  de safi­ra, cujas nuvens se ensanefam e se tingem de rubro com a luz do sol do ocidente, tendo a seus pés essas ondas azuladas de um mar de ouro, que como uma campina se dilata, sorrindo-se ao beijar da brisa ves­pertina; divisou, mas seus olhos se voltaram para

......................o cimo da Gávea alcantilada,

Só de vento, de raios e de chuva

Habitado! .............................................[9]

que ele ia perder de vista; se voltaram, e duas lágri­mas de saudade e de amor lhe desceram pelas faces.

— Se ela não fosse minha irmã! murmurou ele. E perdeu a Gávea de vista.

Tinham decorrido alguns meses, havia-se Pedro Rodrigues separado de sua neta, que ele tanto es­timava, e que entretanto era preciso resignar-se a ajuntar mais este desgosto aos que já sofrera, vivia pois na companhia dessa Catarina, cuja afronta reparara, e que era sua inseparável amiga; no acaso da vida, a fortuna lhe fez deparar com essa alma caritativa que o ajudava a suportar o peso de oitenta e cin­co anos de existência tão cheia de desgostos e dissa­bores; alguns meses se haviam decorrido e ainda Henrique não havia voltado para vi-lo  visitar que desde o dia de sua partida não houve saber mais dele; apenas Clarita o vinha ver quando lhe era dado, e distraí-lo de suas meditações que já não eram deste mundo, e interromper o fio de suas orações; e suas palavras eram de consolação para o octagenário , que lhe retribuía com conselhos cheios da ex­periência de longa vida, e das virtudes praticadas em emenda de erros que a idade fogosa da mocidade lhe originara.

Uma noite, a sós com a sua esposa e um velho negro que ainda o servia, ou, para melhor dizer, am­bos se prestavam mútuos socorros, orava Pedro Ro­drigues, todo compenetrado de idéias sublimes, que ainda rolavam na sua fria imaginação; sua alma di­vagando pelo infinito se infundia em místicas e me­lancólicas meditações, quando de repente ouviu fora da choupana e ha  pouca distância, vozes confu­sas que se trocavam, ruído de armas que no embate retiniam; trêmulo, chegou-se à porta, apoiando-se no bastão e distinguiu na diáfana escuridão da noite grupos cujos vultos se moviam como se lutassem re­nhidamente; depois sentiu trotar de cavalo e daí ha  pouco viu que um cavaleiro que metia o cavalo sobre eles, entrava na luta. Era em vão que ele os pretendia apaziguar apartando-os; um já estava por terra e quatro ainda sobre ele procuravam sufocá-lo.

— Quatro contra um? bradou o cavaleiro sacan­do uma pistola dos coldres e engatilhando-a ligeiramente; quatro contra um é a mais infame de todas as cobardias! Ou morrer pela bala ou separar-vos!

E o raio partiu sobre o grupo; ao estampido do trovão se ergue o cavalo, joga com o cavaleiro e desaparece; e um gemido se desprende do meio dos vultos que se dispersam ficando um prostrado.

Pedro Rodrigues, sua esposa e o velho negro, em pé na porta da choupana, tiritavam de medo, se persignavam e rezavam.

— Quem és tu? interrogou o cavaleiro se aproxi­mando daquele que tinha salvado e que tão denodadamente lutava braço a braço contra quatro? nunca homem tão só entrou em luta tão desigual.

— Ah! respondeu ele com voz de quem agoniza­va, estou todo coberto de feridas, que me esfaquea­ram a fartar! Chegastes tarde, cavaleiro, para sal­var-me a vida, chegastes cedo, porém, para sal­var-me a alma e ouvir minha confissão, e comuni­cá-la depois a algum sacerdote que me absolva. Me­tei a mão na minha algibeira aqui do lado esquerdo e tirai alguns patacões para mandardes dizer missas para minha salvação.

Ajoelhou-se o cavaleiro junto do ferido, que começou a sua confissão:

— Eu sou, disse ele, Gaetano o calabrês...

— Gaetano! Gaetano o calabrês! exclamou o ca­valeiro, que eu salvasse semelhante homem! Tu és Gaetano, ah, e eu sou aquele menino que fui roubado da tua choupana! Tu és Gaetano, o assassino da filha do carvoeiro, oh! minha pobre mãe!...

— Quê! vós sois deveras Henrique?

— Sim, Henrique, Henrique Feliciano, que ju­rou vingança pela morte de sua mãe.

— Desgraçado, assassinastes a vosso próprio pai!

— A meu pai? interrogou ele aterrado.

— Sim, vede aquele cadáver prostrado pelo tiro de pistola que sobre eles disparastes, é José Feliciano!

— Meu pai! meu pai!

E Gaetano revolvia-se, voltando-se sobre si mesmo, rolando pela terra, agarrando-se às ervas, debatendo-se com as ânsias da morte.

— O crime puniu o criminoso! Estou vingado! bradou ele soltando o último arranco.

— Meu pai! meu pai! Assassinei meu pai! cla­mava o mísero filho sobraçando o cadáver de José Feliciano, inundado de sangue, e com tal acento de dor e de desespero que comovia.

— Sim, teu pai, gritou com voz trêmula e rouca um vulto que trazia uma candeia, cujo pálido clarão bruxuleava aumentando o horror dessas cenas de sangue; sim, teu pai, que se tinha casado há dois me­ses com a tua irmã!

— Justiça de Deus grande! exclamou Henrique, caindo desmaiado a seus pés.

IV

CONCLUSÃO

No dia 2 de julho desse ano, certa senhora, acompanhando um velho que arrastava-se a cada passo que movia, e seguida de outra mais moça e co­berta de dó, paravam ante um cubículo da Santa Casa de Misericórdia e contemplavam tristemente um jovem que aí estava encarcerado.

— Ah! exclamou ele, eu matei meu pai!

E terrível gargalhada desprendia-se-lhe dos lá­bios.

— Pobre Henrique, disse a moça enxugando os olhos, está doido!

— Doido! doido sem mais esperança de salvá-lo, ajuntava o velho com mágoa, e para sempre doido!...

Gávea, 1842.

 

JANUÁRIO GARCIA

OU

AS SETE ORELHAS

ROMANCE

Yo contra todos y todos contra yo!

 Viejo Arias

 

I

ONDE ESTARÁ ELE?

Onde? — Na eternidade! ...................

Magalhães

...Malheur à vous, malheur, ames damnées!

Ant[oine] Deschamps

Era noite; — e em casa de Januário Garcia tudo estava mudo e melancólico; ali, na rica sala apaine­lada e trastejada à antiga portuguesa, tudo respirava silêncio como em velho templo esbroado e decaí­do... Apenas escassa e trêmula luz do candeeiro, que bruxuleava já à míngua de óleo, palidejava nas empoeiradas paredes... Apenas lá, de quando em quando, suspiro doído ou lânguido gemido, quebra­va o silêncio da tristeza, em que tudo parecia repou­sar...

Era ele; era Januário Garcia que suspirava, que gemia de dor, de saudade e de incerteza!

Pobre pai! Havia três dias, que o ilustre soro-cabano, sentado numa cadeira, reclinado nos negros braços de jacarandá, com a cabeça esquecida entre as mãos, e todo recolhido dentro de si, meditava pro­fundamente, mergulhado nos mais tristes e torvospensamentos. Sequer, lá de vez em quando, como que despertando de profunda letargia, volvia os olhos para a filha, que a seu lado acompanhava-o na tristeza e melancolia, e suspirava. Olhava ela terna­mente, e respondia-lhe ao suspiro com ai ainda mais pungente; que ai era esse despegado do coração an­gustiado com o repassar de tristes amarguras; ai, que ia longe, lá onde o pensamento se perdia, baldo do conjeturar; e após, deixava que languidamente dobrasse ela a cabeça contra o colo, como que para chorar; que nem lírio, que debruçando-se de sobre a haste, inclina o caule, entornando as gotas do orva­lho da madrugada!

O relógio soou por doze vezes.

— Meia-noite, disse Januário Garcia, erguen­do-se com impaciência. Meia-noite, e ele ainda não veio, e ainda esperá-lo-ei, e não virá! Há três dias, há três noites a esperá-lo aqui, a contar uma por uma as horas que me vibram na alma a desesperação; a olhar a porta, e parecer-me vê-lo entrar! Mas em vão, minha Paulina, o tenho esperado, e em vão esperá-lo-ei talvez para todo o sempre! Ah! que ansiar de vê-lo! E no entanto, tu, minha filha, nada con­tar-me-ás? É possível que nada por ti conjetures, que nada desconfies?

E abundantes lágrimas desciam dos olhos da donzela, serpeando-lhe pelas belas faces, que eram de carmesim, apagado e perdido no alvorecer da de­licada tez.

— Sempre a chorar e a gemer, Paulina! Ah! por minha vida, que isso me constrange ainda mais!

— E o que hei de eu fazer? Que direi, que conje­turarei, que desconfiarei, no meio de tantas incertezas, que qual mistério nos cingem? Fui eu por ventu­ra algum dia a depositária dos seus segredos? Não; e pois, nada mais sei que meu pai. Não lhe ignoro as aventuras das caçadas, e as apostas nas corridas com os companheiros, que tudo era narrar-me ele os seus triunfos.

— Porém, acaso nada te confiou na véspera des­sa madrugada em que desapareceu? Algum tanto re­servado comigo, muito mais que franco para conti­go, talvez que por uma ou outra palavra se desse a perceber?...

— Nada absolutamente.

— Durante esse dia, conservou-se triste e pen­sativo, com a cabeça elevada para o céu, como que preocupado por pensamentos que não eram da terra, e sem ousar de dar uma palavra, como extasiado com o que lhe passava na imaginação.

— Assim também o vi eu, e tanto que lhe per­guntei: “— Por que estás triste? Qual é o teu pensa­mento? — “E ele nem sequer me respondeu; porém, suspirou; e percebi que sofria, que um não sei quê de cuidoso  o atormentava. Interroguei-o de novo; esperava pela resposta, mas nem palavra, nem suspiro... Mudo era, e mudo ficou, como se a alma lhe não habitasse mais naquele corpo. Assentei-me junto dele, instei, mas embalde, que nada consegui. E só alguns minutos depois, me disse tristemente que seu mal era grande, grande como eu o não supunha; muito grande, porque lhe vinha do peito, e que eu não podia mitigá-lo. Então me tomando a mão, colo­cou-a de sobre o coração, que batia, e batia muito.

— E por quê?

— Não sei; mas quis sabê-lo, e por isso obser­vei-o por todo esse dia. Mas ele conservou-se ou sempre melancólico, silencioso, pensativo, ou dan­do de momento em momento mostras de impaciên­cia. À noite, porém, ceou conosco, e mostrou-se menos contristado e insofrido. Não foi assim?

— Conversou, porém pouco, e parece-me e te­nho cá para mim, que procurava ocultar-me o pesar, ou o quer que era, que lhe calava pela alma, pelo co­ração, por todo ele.

— Sim, esteve pesaroso, e acabada que foi a ceia, retirou-se direito para o seu aposento. Eu fui assentar-me junto de mamãe a ler para ela as Horas, e depois, dirigimo-nos à capelinha para aí rezar o terço; mamãe mandou chamá-lo...

— E ele respondeu que estava indisposto, que não podia vir, não?

— Assim disse. Mas quando me fui deitar, soa­vam dez horas, e ouvi-lhe a voz, que docemente acompanhava com sons de guitarra, ao melhor tan­ger; abri manso e manso a minha janela, de modo que não fizesse estrépito, porque não perdesse uma só palavra e porque  não me desse a conhe­cer na minha curiosidade. A noite, que estava linda e clara com a luz da lua que brilhava no céu entre as estrelas, fez-me que assim pudesse vê-lo distinta­mente, sentado num dos bancos de pedra do cara­manchão de maracujá; era ele que cantava e tangia.

— E o que cantava?

— Uma xácara.

— Mas que xácara?

— A do Bernal Francês, aquela que mamãe nos ensinou quando nos acalentava; não a dizia, porém, do princípio ao fim, mas tão somente aquela pane:

Quem bate à minha porta,

Quem bate oh! quem está aí?

— Sou Bernal-francês, senhora,

Vossa porta a amor abri.

Como o ouvi por muito tempo, suspirei afinal, quase que involuntariamente; ele ouviu-me, deu fé de mim à janela de onde eu o enxergava por entre as folhas das árvores, e calou-se. Depois, ergueu-se e seguiu não sei para onde. E eu, como estivesse can­sada e a bocejar, quase caía por fim de sono, pelo que fechei a janela e recostei-me no leito, tendo en­comendado a mim e a ele ao Anjo da Guarda. Ador­mecida, passava por ligeira modorra, sonhava com palácios e fadas, e via-me, no meio de tanta grandeza, casada com um príncipe encantado, quando de repen­te, despertando, ouvi-lhe ainda a sua voz e os mesmos versos da cantiga, vindos porém de mais longe.

— E depois?

— Depois só ouvi o canto dos galos, e arredo, muito arredo, os latidos dos cães, e para logo dormi.

— E onde estará ele agora?

— Deus o sabe e Deus no-lo trará, respondeu a velha Ana que vinha a entrar.

— Nada desconfias por ti? perguntou-lhe Garcia.

— E de quê? Tem-se-me feito essa pergunta uma, vinte, cem e mil vezes! Deixá-lo, deixá-lo que Deus no-lo trará a seu bom tempo. Sem dúvida al­guns amores o retêm por aí, que isso de rapazes dos vinte até os trinta é nunca cansar de correr. Lem­bras-te daquela formosa moçazinha?...

— Qual moça?

— Pois não conheces D. Leonor...

— Não.

— Conheces, conheces muito bem, que já a vis­te; é porque não te queres lembrar; assim te não lem­brassem tristes coisas!

— Pode ser. Mas por onde irá aquele rapaz?

— Deixá-lo lá andar. Olha, o nome do pai da moça é um nome que quase nunca me esquece... e en­tretanto agora... olha, chama-se... chama-se ele... chama-se Antônio Simões... da vila de Itu.

— O nosso hóspede! Há dois para três meses que o pai e a filha aqui estiveram, que foram nossos hóspedes, e desde então talvez?...

— Sim, eu por mim não duvido da existência de alguns amores entre eles.

— E nem tens razão para o duvidar, que se a criança sair ao pai, temos muito que se lhe diga e que ver.

— Mas essa menina estava prometida a um so­brinho de Antônio Simões, que a esta hora em que falamos talvez já a tenha por mulher.

— E o que tinha ele com isso para deixar de amá-la? Cego, que tens olhos e não vês; surdo que tens ouvidos e não ouves, vê que te descubro tudo; nosso filho ama, delira, enlouquece por D. Leonor!

Dizia bem a discreta mãe, que na pupila dos olhos do mancebo, não queria ele mais outra imagem que o alvo semelhante de Leonor; no coração não lhe existia outro sentimento mais que o desse amor que ele lhe votava tão abundante; dos lábios não lhe pendia outro nome que não fosse o de Leo­nor, nem na imaginação trazia outro pensamento que o consórcio dessas duas almas que verdadeira­mente se amavam.

— E como sei de tudo, prosseguiu Ana, porven­tura me comunicou ele o quer que seja? Não, mas meus olhos viram gestos que exprimiam esse amor, e meus ouvidos escutaram palavras que o explica­vam.

E depois tudo isso confirmará uma dessas in­significâncias que passam desapercebidas para nós, e que entretanto são muitas vezes assaz entendidas de dois corações atormentados pela necessidade de se abrasarem em segredo, de sufocarem em si mes­mo  a explosão de delírio, de encanto, de prazer. de angústia, de saudade, por tudo isso que aí se diz com uma única palavra — amor!

Na manhã em que Antônio Simões partiu para Itu com a filha, entrou Ana, casualmente, no apo­sento onde essa dormia, e notou que ali tinha deixa­do uma bela rosa. Poucos instantes depois já lá não a viu, e passando pelo aposento do filho, encontrou-a em um lance de olhos; tinha-a ele entre as mãos, jun­to dos lábios, sob os olhos, donde lhe caíam algumas lágrimas que lhe rolavam pelas faces.

Isso tudo ponderava Ana.

— E de que serve isso? replicou Garcia. Muito longe vamos da verdade, pois que todas essas conje­turas e desconfianças mal nos podem instruir para a decifração deste enigma.

Sentou-se Garcia entregue de novo à tristeza, às conjeturas e desconfianças que tanto o confrangi­am. Ana recostou-se sobre um velho canapé, e em breve tudo tornou-se silencioso como no templo que se fecha às orações dos fiéis, após esses cânticos místicos e religiosos dos sacerdotes; após esses sons melancólicos e melodiosos do órgão, impregnados do incenso sagrado, que expiram tão branda e sosse­gadamente pelas curvadas abóbadas. Dormia tudo, e apenas lá de espaço em espaço

.........................murmurar se ouvia

Ao longe o rio, e menear-se o vento,[10]

e repetia-se o ruído do oscilar compassado da pên­dula do relógio, que ficava na sala imediata, quando subitamente soou a campa do portão: Januário, Ana e Paulina ergueram-se rapidamente. Abriram-se ja­nelas, escancararam-se portas, que tudo era querer ver quem batia tão de rijo a tais desoras, com aqueles corações palpitando de esperança e também de in­certeza; mas a esperança não foi longa, nem também a incerteza durou, que um momento depois entrou um tropeiro, que descobrindo-se respeitosamente, saudou a todos, tirou de uma carta, que beijou e en­tregou-a a Januário Garcia.

— Donde vindes? perguntou-lhe Ana.

— De Itu, respondeu-lhe o tropeiro.

E o sorriso da esperança passou então ligeira­mente por sobre aquelas faces que iam a enrugar-se, com não sei quê de triunfante, como um lampejo de tempestade que lavra rápido pelo céu; ela via nessas palavras do tropeiro alguma coisa que confirmava as suas predições; para ela não havia dúvida, Leonor pertencia para sempre a seu filho.

No entretanto Januário Garcia apressando-se em ler a carta, dirigiu-se ao candeeiro, cuja luz con­seguiu avivar, Ana e Paulina o rodearam; e o tropei­ro, que os viu assim atentos, pondo o chapéu de pa­lha sobre a cabeça e procurando evitar que o poncho lhe roçasse pelos umbrais, retirou-se furtivamente.

— Ah! disse Januário Garcia, que má nova traz-me aqui este homem!

E a carta lhe caiu das mãos, que lhe tremiam convulsivas, as artérias pulsavam-lhe, os olhos re­volviam-se-lhe com violência em duas órbitas de fogo, como a pupila da sucuriúba quando avista a sua presa.

Paulina, inclinando-se, levantou a carta, leu-a em voz alta:

Sr. e am.°

“O vosso Filho, o vosso querido Antônio, aca­ba de ser atroz e barbaramente assassinado, hoje em ¡tu. Resignai-vos.

Vosso amigo e c[r]º.

Anônimo”.

E essa mãe, que prezava o filho como partícula do coração, e essa irmã, que estimava o irmão como porção da alma, abraçaram-se penetradas da mais angustiosa e acerba dor, para misturarem seus gemi­dos e soluços e suas lágrimas!

— Resignar-me? Resignar-me? Nunca! Ao me­nos enquanto não vingar-lhe a morte! E voltando-se para o lugar em que deixara o tropeiro e olhando em tomo de si: o que é desse homem, o que é do tropei­ro? perguntou Januário Garcia.

— Escuta; não ouviste o retinir da campa?

— Sim.

— Não ouves o latido dos cães?

— Sim.

— Não ouves o trotar do cavalo?

— Sim, e então?

— Já partiu.

— Ah, já partiu! Pois bem, vou-me lá, que não hei que temer... de Sorocaba a Itu é só um passeio... vai-se com facilidade.., e embora fosse longe, mes­mo no fim do mundo... Oh lá de dentro, gritou ele para o seu pajem. O Anselmo! Vamos depressa num pulo à estrebaria, e o meu cavalo aqui pronto e sela­do... vamos; quero tudo em um abrir e fechar de olhos, tudo...

E o pajem que tinha aparecido como por encan­to, desapareceu como um relâmpago no adelgaçar das trevas.

Então voltou-se ele para a cara filha, que solu­çando, chorava repassada de angústias, trespassada de dor, chorava estreitada nos braços de sua mãe, que parecia dizer:

— Ah! só esta me resta, não ma roubem que o outro perdi-o, perdi-o para todo o sempre!

— Não chores, minha Paulina; não chores; a morte de teu irmão impõe vingança, mas vingança que nem o céu aprova, nem no inferno vai vibrar de prazer as almas forçadas aos castigos eternos! Deixa que eu o vingue, e então choraremos sem opróbrio, como Davi chorava o seu Absalão! Recordar-nos-á aquele quadro com pungente saudade a nossa antiga alegria, mostrar-nos-á ele eu e tua mãe, go­zando da frescura da tarde sob o carramanchão  do maracujaeiro , alastrado de roxos martírios, contemplando-te com as Horas sobre um dos nossos joelhos, toda penetrada da sua leitura, e mais distante, lá onde o sol vai a descambar entre nuvens purpúreas do ocidente, o teu irmão, o meu Antônio monta­do em fogoso cavalo, tangendo a buzina e seguido de cães veadeiros, e uma lágrima descer-nos-á pelas faces todas as vezes que levantarmos os olhos para vê-lo!

— Ah! que lembranças tão cruéis!

— Consolemo-nos, minha filha, com a vontade de Deus.

— De Deus, repetiu Garcia, de Deus!

E olhar de cólera caiu sobre a esposa, que es­tremeceu de terror.

— Dize antes, ajuntava ele, vontade de assassi­nos, vontade de sicários que me roubaram o tão caro filho, e dos quais jamais poderei havê-lo! O morrer de um filho abre longo futuro; futuro de desespera­ção, de dor e de saudade, que só tem termo na lousa do sepulcro, que franqueia o caminho para a eterni­dade; o morrer de um filho é um vácuo que fica no coração; esse vácuo que ocupava o amor de gozá-lo, vácuo que a saudade dilata antes que o encha, mas que far-me-á desaparecer a consolação da vingança!
E pois, consolar-nos-emos; não com a vontade de Deus, mas com a sua vingança.

Bradou Garcia, e entrando no seu aposento, pôs o chapéu de palha na cabeça, cujas largas abas se lhe debruçaram pelos ombros, envolveu-se em seu poncho e pegando de uma faca, que era de têmpera fina e cujo cabo e bainha de prata tinham por lavrado a firma de seu pai, enfiou-a no cinto de couro que o cingia, e saiu para a sala.

— O meu cavalo? perguntou ele.

— Pronto, respondeu o capanga.

— Adeus, disse Garcia, precipitando-se para fora da sala.

— E aonde vais, Januário, aonde e a estas ho­ras? murmurou Ana.

— A Itu, e cedo nos tornaremos a ver.

E partiu.

E ouviu-se o retinir da campainha, depois o es-trépido  da cancela do portão, depois o trotar do cavalo, depois soluços, soluços; tudo era soluços!...

 

II

SETE CONTRA UM

Alone he must march to the terrible fight

Miss Hannah

Paulista infatigável, conhecia Januário Garcia não só os arredores de Sorocaba, mas toda a Provín­cia de São Paulo, e ainda mais, que não ignorava ele o trilho impresso nas campinas, aberto nas brenhas e assombrosas florestas, e deixado nas serras pelas formidáveis e terríveis excursões daqueles paulistas, que armando bandeiras e prevenidos dos aprestos necessários à mineração, partiram do Taubaté, foram faiscar terrenos onde vislumbravam granitos de ouro escapados aos principais mineradores, an­daram em descobrimento de pedras preciosas; trava­ram combate de morte junto ao Rio, que desde então ficara intitulado das Mortes, e aonde ainda hoje a tradição honra a memória de Domingos da Silva Monteiro Rodrigues, cognominado Maioral dos Pau­listas; que percorreram os sertões do Rio Grande do Sul, de Goiás e de Mato Grosso, dobraram a cerviz até ali indomada do Guaicuru e conduziram-no escravo à sua habitação. Fizeram ainda mais de admi­rar; que lá se foram a pugnar com espanhóis e arra­saram esses estabelecimentos do Poqueri e do Itutu, cativaram índios e recolheram-se afinal triunfantes a seus lares, não tendo por guia mais que os píncaros altíssimos das cordilheiras!...

Paulista infatigável, a alma grande e generosa gostava-lhe altas empresas, e aprazia-se no refrescar a memória com o recordar desses feitos da fama de seus antepassados que a tradição e a história nos transmitiram. O coração terno mas vingativo, rego­zijava-se com o espetáculo sanguinolento de bata­lhas que lhe enchiam a mente de imagens de sangue, e de cenas dantescas.

Sozinho, descalço, que era esse o andar daque­les tempos à maneira dos que se prezavam de não po­der ser tomados logo à  um simples volver de olhos por forasteiros ou emboabas, embuçado no poncho que era de grosso pano pardo, forrado de ou­tro escarlate, com chapéu desabado, a baluda a tira-col e a faca à cinta, caminhava sequioso de ob­ter novas de seu filho, finado às mãos de assassinos. Alquebrado porém de fadiga, que havia já três dias e três noites que não repousava, e não podendo pros­seguir na marcha, tomou pouso numa venda em Ca-uru, que se lhe oferecia em caminho, junto de uma capela.

Mal havia penetrado na pobre e tosca pousada, que logo se lhe apresentaram à vista sete viajantes que sentados à mesa esgotavam algumas garrafas de vinho, péssimo como era de esperar por esses luga­res tão apartados, e outras de patrícia, de não me­lhor paladar. A admiração de Garcia cresceu de pon­to, tanto que reconheceu nesse grupo de sete viajan­tes, sete conhecidos.

— Oh! por aqui? gritou um de entre eles.

— É verdade, meu amigo.

— Grande negócio vos traz a algures, murmu­rou outro.

— Por certo que sim, meu amigo.

— Creio que poucas vezes deixas Sorocaba, ajuntou o terceiro.

— Algumas, meu amigo.

— Logras presentemente grande fortuna? perguntou o quarto.

— Modesta, meu amigo.

— Gozas de grande reputação entre teus vizi­nhos? disse o quinto

— De alguma, meu amigo.

— Ouvi dizer que tinhas uma filha, cuja formo­sura ia a crescer com os anos; se isso assim é...

— Bonita, meu amigo.

— Não sei que insipidez acho nessas tuas res­postas! exclamou o sétimo empunhando o copo, que transbordava de vinho.

— Não ouviste falar da morte que tivera lugar em Itu, não há muitos dias?

— Não.

— De...

— Pois que...

— E então...

— Talvez fosse... disseram todos a um tempo e olharam-se entre si, e o semblante de cada um deles era o semblante de todos os sete.

Januário Garcia levou o lenço aos olhos que se arrasaram de lágrimas, pelo que não pôde dar fé de tal perturbação.

Pela primeira vez pois as lágrimas lhe rebenta­vam dos olhos, represadas há tanto tempo; quis ainda contê-las, mas em vão; tentou falar, mas balbuciou apenas imperceptíveis palavras que foram para logo sufocadas por soluços!... O estalajadeiro chegando-se a ele, contemplava a sós com sua alma o que ali se passava... Recolhia afinal as garrafas esgotadas e se retirava com elas, quando um dos bebedores acenando para os outros, pagou-lhe o que beberam e murmurou-lhe algumas palavras ao ouvido. Despediram-se todos de Januário Garcia, tomaram os ca­valos e retiraram-se apressadamente.

— Que almas do inferno! exclamou o tal estalajadeiro.

— Beberam todo o vinho, não? É que vinham com sede, disse Garcia; e oxalá pudesse eu imitá-los!

— Sede?... Deus me defenda de semelhante sede! ... Oh se soubésseis o que eles me contaram...

— Está bem, dir-me-ás logo tudo quanto quise­res, dormirei mesmo ao narrar de teus contos, mas por agora dá-me aí um leito que anelo descansar; es­tou fatigado e sinto-me alguma coisa adoentado.

— Isso é que é mau, que não temos por aqui ci­rurgião nem curandeiro que seja: se a doença porém não é mais do que sono, entrai e repousai no primei­ro quarto à mão direita.

— Tem-me cuidado no cavalo, que suou e sua a fartar, dá-lhe milho, manda que o esfreguem com aguardente e chama-me daqui a uma hora.

— Farei como recomendais, respondeu o vendi­lhão entregando-lhe um rolo de cera aceso.

Entrou Januário no quarto indicado, desemba­raçou-se do poncho, desatou a cinta, meteu a faca de sob o travesseiro, e apagando a luz, arremessou-se ao leito, cujo enxergão de palha de milho chocalhan­do  em cada movimento, revolvia-se contra o in­comodado bem vindo que almejava conciliar o sono que sói tão bem restituir o alento ao alquebrado via­jante.

— Não, eu não quero nem devo ficar com este dinheiro; quem deve a Deus paga ao diabo, e ele que o guarde! dizia à porta o bom do estalajadeiro, e o dinheiro retinia nas pedras da calçada à entrada do pouso.

No entanto que Januário Garcia procurava, mas em vão, entregar-se ao sono; a imagem ensan­güentada do filho, do seu tão caro Antônio, apresentava-se-lhe à imaginação a bradar vingança, e todo compenetrado de idéias vingativas, ambicionava ele adiantar-se no caminho para chegar a Itu e vir no pronto conhecimento da sua morte. Arrependia-se já de ter pousado, por isso que não lhe era dado fa­zer-se, e estava no propósito de levantar-se para re­partir, quando as vozes do estalajadeiro vieram dis­trair-lhe a atenção, atraindo para um ponto que en­tretanto nada tinha de diferente quanto ao pensamen­to que o prendia e o preocupava há tantas horas.

— Sete, sete fariseus mal encarados, dizia o es­talajadeiro à mulher, e que fizeram pacto com o dia­bo para pagarem a Deus!

— E como assim? lhe perguntava a mulher.

— Entraram-me por aqui e foram logo pedindo uns após outros, tantas e tantas coisas que não havia aí nem mãos a medir, nem tempo a perder; um já querendo vinho do Porto, outro já desejando o de Lisboa, o terceiro já perguntando se tínhamos congonha, o quarto já gritando por cana, o quinto já exi­gindo cigarros, o sexto já instando por comer algu­ma coisa, o sétimo apetecendo peixe, caça, tudo, para por fim contentar-se com um copo de temperada. Sentaram-se após muita zambaia e cumprimen­tos, e eu que os servia sem saber a qual primeiro acu­disse, e que os tomava por sete folgazões, fiquei pouco depois tão arrepiado, que as pernas se me es­tremeciam como se fossem varas verdes, e eu camba­leava como se estivesse embriagado! Ah! ao ouvi-los, tremedeiras de horror, Catarina, procurarias persig­nar-te às escondidas, que não dessem eles por isso, e farias de boa vontade promessas aos teus santos mila­grosos, que te livrassem de tão ruins presenças!

— Em que, porém, falaram eles? Dize, homem de Deus.

— Em quê? Ah! se os ouvisses!... Falaram no que eu, hem a meu bom grado, pagar-lhes-ia ainda em cima para não ouvir e saber, e embora me enxu­gassem o vinho do Porto, o de Lisboa, a cana e a temperada, embora tomassem toda a congonha e fumassem todos os cigarros, que tudo isto nem valeria a pena de arriscar, contanto que me deixassem eles com o espírito tranqüilo e sossegado, como até aquitenho vivido! Foram sete demônios que aqui me en­traram, sete e cada qual mais formidável, mais temível... Escuta e vê se o caso é para menos, ainda mes­mo quando se tenha o coração traquejado de um não acabar de horrores que vai por todo esse mundo de Cristo. Relataram-me eles, como o fariam mouros, e cada qual querendo ser o narrador, que um moço de Sorocaba se havia enamorado de uma menina muito rica, muito linda de Du, e que por arte de na­moros, que tudo é facilitar ainda os mais invencíveis passos, conseguira introduzir-se em casa dela, mas com tanta infelicidade, que foi para logo acolhido às mãos do pai...

— De Antônio Simões! disse consigo Januário que o escutava e sentando-se na cama.

— Pobre moço, ajuntou a mulher em tom de verdadeira compaixão.

— E que pensas tu que faria ele?

— Deu-lhe de chicote?

— Bofé que não, minha Catarina, e antes mil vezes isso, que a infâmia apenas nos indigna, mas a maldade e a fereza horrorizam-nos a todos e dei­xam-nos o coração sangrando de dor.

— E então o que fez?

— Manietaram-no, continuou ele, como se houvessem capturado algum índio ou negro fugido, e entregaram-no a esses algozes que aí estiveram a be­ber, a comer, a fumar... e tão senhores de si!

— E eles?

— Eles, segundo a recomendação feita pela fa­mília da menina, deveriam levá-lo ao pai, contar-lhe o que se havia passado, e exigir que, como delinqüente, fosse castigado, a fim de se emendar para o futuro.

— E nada disso fizeram?

— Nada! Pegaram do mísero mancebo, ligaram-no a duas estacas e afiaram as suas navalhas...

— E depois, José?

— Esfolaram-no vivo! ...

— Vivo! Senhor Deus! exclamou a mulher.

— Vivo! vivo!.., replicou o estalajadeiro.

— Que horror, meu Deus! que horror...

— Depois cortaram-lhe perna por perna.., coxa por coxa... braço por braço... orelha por orelha... que tudo enviaram ao pai da menina; acabaram-no decepando-lhe enfim a cabeça e arrancando-lhe as entranhas.

— Ah! Jesus! que barbaridade!

— Assim foi; e como aqueles canibais que devoraram o bispo da Bahia, no monte que tornou-se para sempre estéril e com as fontes secas, eles não só se regozijavam de reproduzir por palavras o que haviam obrado sobre o mísero Antônio, mas até bebiam, comiam e fumavam tão senhores de si, que era abominável fúria vê-los tão criminosos e tão sem remorsos!... Assim estavam quando entrou Garcia, esse homem que aí dorme...

— Ah! fala baixo que te não ouça ele... disse Catarina.

— Sim, mas eu sempre hei de dizer-lhe alguma coisa; coitado! é sem dúvida algum parente... talvez o pai do moço!...

— Desgraçado!...

— Mal o viram que se deram por conhecidos; não sei, porém, o que disse ele, que todos perturba­ram-se; era a consciência que os atraiçoava. Mas o pobre do homem nem sequer deu por isso; enxugava os olhos que se lhe desfaziam em lágrimas, sufocava os soluços; quando eles aproveitando-se da ocasião, comunicaram-se por acenos, ergueram-se a um tem­po e vieram pagar-me. Maldito dinheiro, que rejeitei arremessando-o à estrada; lá está, e os pobres que dele se utilizem; Deus lhe ponha a virtude.

“— Toma, resmungou-me um dos tais, em voz sumida, ao ouvido, e dando-me algumas moedas; toma, e caluda! Para língua comprida, sete facas, sr. José!”

— E saíram.

— E tu o que fizeste?

— Eu, mal que os vi pela porta fora, tratei do vi­ajante.

— Oh! meu Deus! É ele! É o desgraçado pai! disse a mulher do estalajadeiro, apontando para Ja­nuário Garcia.

— É ele!!... acrescentou o estalajadeiro voltando-se e tornando-se pálido e imóvel.

Transido de horror, com os cabelos eriçados como a coma de javali, apareceu Januário Garcia, cuja figura infundia terror a quantos a viam; em pé, com a sua sombra estendida ante si, estava todo con­vulsivo, que os dentes lhe rangiam de raiva, os mús­culos estremeciam, e os trajos balançavam com ele; como quando palpita a terra, que tremem os troncos, e que se agita a folhagem, parecendo convulsas as árvores. Quis falar, mas as fauces secas, mas a língua presa, não lhe permitiram; e assim se conservou embargado por algum tempo ante o estalajadeiro e a mulher, mudo e imóvel como os troncos robustos do ermo.

— Precisais de alguma coisa, senhor? perguntou enfim o estalajadeiro.

— Falai, ajuntou a mulher.

— Nada, respondeu Garcia; e metendo a mão na algibeira, tirou de algumas moedas, que arremessou à banca; aí tendes o que eu te devo; é-me necessário que parta antes mesmo que amanheça; já não vou a Itu, como tencionava; meu rumo varia. Sim varia... Que a ponta de minha faca se volta para os assassinos de meu filho, que é o seu norte! Morte e vingança a esses sicários sequiosos de sangue, a essas onças fa­mintas de carne humana! Morte e vingança aos as­sassinos de meu caro Antônio! O meu cavalo, que quero partir, e lá saciar a sede de vingança que me devora; eu os seguirei, e eles tremerão de mini, e vingado que tenha tão bárbaro martírio, levar-lhes-ei as orelhas a esse homem vil, que deles recebeu as de meu filho. Vamos, estalajadeiro, vamos! Aviai-me!

Era ele, era Januário Garcia que pedia, ou antes que mandava, e força era obedecer-lhe, que essa figura incutia respeito, que essa voz que soava conio um trovão, impunha obediência. O estalajadeiro cumpriu-a, e arreiado e posto o cavalo imediatamente à sua disposição, saltou Januário Garcia sobre ele, bateu-lhe as rédeas, enterrou-lhe as esporas nos ilhais, e desapareceu entre nuvens de pó que tol­davam os ares.

Por todo o caminho tomava e exigia informações mais ou menos acertadas, e por todo o caminho, os viajantes lhe davam, e lhe confirmavam a um tempo, a notícia de haverem encontrado sete ca­valeiros que galopavam a bom galopar com direção à  Sorocaba.

— Vão levar-me a pele de meu filho, repetia consigo; vão.., e eu lá estarei para recebê-la!

E o cavalo voava; e o paulista percorria esses campos alastrados de boçorocas, por entre feiras de bestas, e cavalos vindos de Curitiba, e do Rio Gran­de do Sul, apinhadas de traficantes, de comercian­tes, e compradores, deixando após si esse gigante fa­moso do Ipanema, com as suas entranhas de ferro.

Atravessou o rio que dá nome à vila, avistou a igreja de Nossa Senhora da Ponte, padroeira da sua matriz, esclarecida já pelos primeiros raios do sol, que se elevava saudado pelo hino da terra, rompendo os nevoeiros, e como que incensado por essas flores­tas, donde se erguem, ao bafo da manhã, nuvens do aroma, que convidam à vida; e pouco depois apea­va-se à sua porta.

Saíram-lhe ao encontro Ana e Paulina, recebe­ram-no nos braços, e depois ouviram, entre brados de vingança, e arrepiadas de horror, a terrível narra­ção que ele, a espaços lhes fez do que, não havia mui­tas horas, tinha escutado do estalajadeiro do pouso de Cajuru.

Ah! já não era a morte de Antônio que deplora­vam, era esse martírio, o horrível morticínio, as atrocidades sobre atrocidades que ele sofrera antes de dar o espírito a quem lho tinha dado.

Era, porém, Januário Garcia, por uma dessas vontades de ferro, impassível; comera alguma coi­sa; e tranqüilo sobre sua sorte, firme em realizar seus fundos pensamentos, mudou de trajos, prepa­rando-se para mais dilatada viagem; dilatada, en­quanto não enchesse seus votos, enquanto o prazer da vingança não se convertesse em riso de triunfo e de satisfação derramando-se-lhe de sobre as faces.

— Ei-la aqui a minha faca! bradou ele; o único presente que de meu pai recebi, e em que, por lem­brança, gravei-lhe a firma sobre o cabo de prata; com ela atravessou ele sertões, subiu e desceu essas serras altíssimas, entranhou-se por brenhas, vagou pelas solidões das feras, e entretanto transmitiu-a ao filho, pura e brilhante, sem pinta de sangue, limpa como saíra das mãos do fabricante. Também esfor­cei-me até aqui por não manchá-la; era a melhor he­rança que deixaria ao meu Antônio; e no entanto, sete vezes o sangue de sete homens perversos, im­primir-lhe-ão inapagáveis manchas!... Ei-la aqui! Com ela rasgarei os peitos desses mais perversos, mais indignos monstros; sim, arrrancar-lhes-ei a vida, como eles arrancaram a de meu filho, e para provar a minha vingança, para mostrar que todos eles pagaram ao pai a dívida do filho, trazer-te-ei, mulher, uma orelha de cada um; trazer-te-ei pois sete orelhas!

“Cobardes! Sete contra um! Sete contra meu filho! Pois bem, agora tudo se vos mudou; agora será um contra sete! Eu só contra todos, eu só, que só eu devo marchar ao terrível combate! ... E eles não vieram? Receiaram o encontro do leão, a luta da vingança? Pois bem! Se preciso for, ir-me-ei ao fim do mundo a encontrá-los! Proteja Deus a mi­nha vingança, tenha ele piedade de mim, armando o meu braço do raio de sua justiça eterna, para desa­fronta de tantas atrocidades! Se os céus desaprovam esta minha vingança, que me deixem primeiramente encher meus votos, cumprir esta minha promessa cá na face da terra, e depois que me rejeitem lá para os seios do inferno! ...

— Misericórdia, meu Deus! murmurou Ana, le­vantando as mãos e os olhos em lágrimas para o céu; perdão para ele que blasfema na sua tribulação! ...

O paulista pegou na sua baluda, e disfarçado, partiu sem se despedir da esposa, e da filha.

Determinou-se assim para não condoer-se com as lágrimas de saudade, com os ais da dor da separa­ção e com os abraços da despedida, esses laços tão curtos que aperta  a partida, esses laços tão ter­nos que afrouxa  e desata  a ausência!

E depois, a inconsolável esposa, e a chorosa fi­lha, voltadas ambas para o lado para onde ele segui­ra, levavam saudosamente os olhos, e com eles bus­cavam-no através dos véus das lágrimas, que tudo envolviam...

Buscavam-no; mas em vão!

 

III

FUMO E CACHAÇA

Il le porte à sa bouche. Ô douleur! ô surprise!
Il voit ......................... ciel!...................
F. J. Ducis

Alta ia a noite; e no céu como que dormia a tempestade envolta em negro manto, com o seu res­pirar roufenho e prolongado, e lá de quando em quando como que despertava e vibrava terrível olhar, que amedrontava a terra; rugia o vento emara­nhado nas folhas da espessura, e ouvia-se ao longe o bramir feroz das sucuriúbas e das sussuruanas.

Só a pé, caminhava Januário Garcia, de noite como de dia, em cata dos assassinos do chorado filho, que o juramento que fizera em face de sua mulher e sua filha havia ele cumpri-lo, pois não há aí voltar atrás para a palavra do paulista.

Errante, vagava em busca de asilo em que lhe dessem gasalhado, a fim de repousar de tantas fadigas que começavam de acabrunhá-lo, quando avistou lá mui retirada e em solidão, uma luz que bruxuleava funebremente por entre a ramagem de alguns troncos do vale, e que lhe indicava a existência de o quer que era de habitação humana; e para ela se encaminhou.

Era tosca e humilde choupana que se elevava sobre um combro do vale; tinha a porta fechada, po­rém distinguia-se perfeitamente por entre as carco­midas grades que lhe guarneciam a janela, as prateleiras empoeiradas da taberna, que outra coisa não era ela. Havia botijas de cachaça, rolos de fumo, cabaças coin melaço, rapaduras, queijos... e sobre a banca que estava posta no meio da saleta, garrafas, copos, canecas e cangirões. Pendia do pilar uma enegrecida candeia, cuja luz alimentada de pinhões, derramava-se pelas esbroadas e encardidas paredes, cobertas de armas enferrujadas, e enfiando-se pelas grades da janela ia perder-se de reflexo em reflexo pela amplidão do vale. O coração de Januário exultou, que ainda bem não ia incomodar a algum pobre particular, cuja delicadeza se esforçasse por lhe fa­zer aceitar o seu leito; e sem mais hesitar bateu com força.

— Quem está aí? perguntou uma voz áspera e dura.

— Quem pede um pouso para si, respondeu Ja­nuário Garcia procurando ver com quem falava.

— A tais desoras! ... os quartos estão ocupados por viajantes que vieram mais cedo, que quem pri­meiro canja, primeiro manja.

— Que desaforo! Então os que primeiro chegam usurpam aos mais o direito da hospitalidade?

— Lá disso nada entendo.

— E não haverá qualquer cômodo que seja?

— Tudo está ocupado.

— Negras e pejadas nuvens anunciam próxima tormenta, o trovão ronca aproximando-se mais e mais, o frio tolhe-me os membros, e além disso es­tou mais que muito afrontado de afã e cansaço. Não há cômodos, mas se entanto me deixas, dormirei so­bre essa banca.

— Não pode ser.

— Maldito! bradou ele com energia; e a voz re­tumbou na choupana.

— É o que lhe digo, retorquiu-se-lhe com voz áspera e dura.

— Ou hei de entrar, disse Januário Garcia consigo experimentando a porta, ou as grades ou a porta me franquearão passagem.

— É tempo perdido teimar, que não abro a porta em tão adiantadas horas.

— E o que ternos para comer?

— Fumo e cachaça.

— O que temos para comer? interrogou de novo o paulista pensando não ter sido ouvido.

— Fumo e cachaça, repetiu o da choupana.

— Para comer?

— Fumo e cachaça.

— Fumo e cachaça!... Pois bem, abre-me, abre-me a tua porta; quando não, abri-la-ei eu à  coronhadas.

E aberta que foi a porta, entrou Januário Gar­cia e para logo achou-se frente a frente com um ho­mem claro e corado, de pouca barba, e que a tê-lo visto tão corpulento, por certo não falaria com tanta franqueza e audácia.

— Uma vara de fumo e um quartilho de cacha­ça, gritou ele fitando os olhos do indivíduo da chou­pana, que ficou imóvel sem que nada ousasse de fazer.

— Venha fumo e cachaça, replicou o paulista.

O taberneiro resolvendo-se a servi-lo apresen­tou-lhe uma botija de cachaça, cuja poeira teve o cui­dado de espanar, e uma vara de fumo que cortou do rolo.

Garcia que não o perdia de vista, levou a mão à cinta, sacou da faca e pôs-se a picar a vara de fumo.

— Dobrava-me eu de cansaço e negaste-me a tua choupana; temia-me da chuva e não me quiseste abrir a tua porta; tiritava de frio que todo me gelava e entorpecia, e não me valeste com o agasalho que ro­gava; ardia de sede, esfalfava-me de fome, e perguntando se tinhas alguma coisa de comer, respondeste-me que havia fumo e cachaça!

— Mas, senhor ...

— Tu bem me conheceste a voz: o tom pausado denunciou-te que ouvias a um paulista, a um desses papudos, a quem saúdas com o riso do sarcasmo nos lábios, que ouves com a irrisão da ironia no coração...

— Não há tal, eu só quis...

— Sim, acreditam geralmente por esse mundo de Cristo, que vive o paulista de mascar fumo e be­ber cachaça, e que cumprido que seja esse preceito, pode ele fazer o juramento que bem lhe parecer, que não o fará em vão. É essa uma zombaria provincianae bem ridícula, mas tudo por mais sagrado que seja se ridiculariza, e como a palavra do paulista vai-se tornando proverbial, tu e os da tua laia deram na ébia de ridicularizá-la.

— Sim, senhor; tudo isso, porém...

— Tudo isso porém que aqui está neste copo por certo que não será para mim, que sim para ti...

— Para mim?

— Aqui tens, que já misturei tudo, agora resta que o bebas e sem resistência.

— Senhor, pelo amor de Deus, que essa bebida não se acomodará muito com o meu estômago.

— Olha! Vês essas orelhas?

— Ah sois vós! exclamou o taberneiro horrori­zado.

— É verdade, sou eu, Januário Garcia, que com este nome deixo na terra o trilho da minha vingança e levo ante mim o temor a meus inimigos; que jurei não voltar ao seio da família, sem sete orelhas... Ainda me faltam quatro... Olha a faca que talvez jaz ainda tinta de sangue da última vítima... Bento Pin­to, Gonçalo e José Gomes, já se consomem para todo o sempre nas chamas do inferno... Vê pois o que fazes!

— Esperai, eu volto já.

— Não, tu não me hás de escapar assim tão fa­cilmente que estás seguro, e seguro pelo meu braço. Quiseste te divertir comigo; e eu sou agora quem me divirto contigo. E o que é desse teu falar tão ousado e arrogante? Temerário, que tanto te acobardas agora, que mais me pesa do teu atrevimento do que dele me ofendo.

— Por piedade!

— Pois bebe!

Ameaçava Januário Garcia ao pobre taberneiro segurando-o com um braço e com o outro empunhando a faca e apontando-lhe para o peito, quando dois indivíduos, cujos rostos ocultavam para não ser  facilmente conhecidos, o investem, caindo de improviso sobre ele.

— O número é desigual, exclamou ele com acento de Estentor; o número é desigual, que tendes do vosso lado três contra um; mas como o valor de um é para três, não há desigualdade alguma; acei­to o combate; e ai daquele em quem só roçar a ponta desta faca, que iguala à língua da maracabóia[11] cujo veneno é para logo morrer.

E a essas palavras já um dos indivíduos baqueava por terra e ensangüentava o chão, ferido no peito... Súbito o outro salvava a vida com a fuga, e o taberneiro prostrado de joelhos, implorava perdão e misericórdia...

— Miseráveis, tanto arrojo para tão pouca façanha, para tão vergonhosa fuga! Quero ver, quero conhecer quem é este que mui depressa rendeu-se à morte.

E o taberneiro que tudo era servir para hem merecer o perdão, que não esperava por suas culpas, deu-se pressa, trêmulo como estava, em arrancar ao exangue a máscara que lhe ocultava as feições, que não os olhos. E era ele, Tomé Lourenço, uma das vítimas de Garcia, que mais tarde ou mais cedo tinha que pagar-lhe com a vida a grande dívida.

Cheio de alegria satânica, com os olhos fuzilando de cólera, com as faces contraídas pelo sorriso maligno da vingança, precipitou-se Garcia sobre o cadáver no delírio da sua fúria e cortou-lhe uma das orelhas e a uniu às outras que pendiam do terrível colar que trazia consigo.

— Agora, disse ele dirigindo-se para o tabernei­ro, agora é todo meu empenho saber de ti uma única coisa, e perdôo-te o beber essa nauseabunda mistu­ra; o nome do outro? Vamos, responde! O nome do outro que escapou?

— João Gomes, murmurou o pobre vendilhão.

— João Gomes! Esse é um, cujo cadáver tam­bém necessito para cortar-lhe uma das três orelhas que ainda me faltam.

— Pois segui-o, segui-o sem perder tempo.

— Sim, dizes bem, segui-lo-ei; quer vivo, quer morto, tem ele de pagar-me essa dívida que contraiu com meu filho; por agora cumpre ainda que me di­gas para onde partiu.

— Por vida minha que o ignoro.

— Tu vês que um braço invisível me protege, vês que sei de tudo, e entretanto procuras iludir-me! Que faziam esses dois homens aqui? Por que tanto receio era o teu em me abrir a porta?

— Ah eles contaram-me tudo. Viram-vos atra­vessar de tarde a estrada, e vieram ocultar-se nesta choupana, e pediram-me que negasse a entrada a

quem quer que fosse; mas que conservasse a janela aberta na forma do costume, para não dar azo a des­confianças; três dias depois, quando já tivésseis tempo po de caminhar longe, deveriam partir, protegidos pela escuridão da noite.

— Para onde segue o que fugiu?

— Encontrá-lo-eis na estrada que vai para Ouro Preto, que é esse o seu destino.

— Pois bem, respondeu Januário Garcia prepa­rando-se para sair da choupana, amanhã ouvirá dizer que pela estrada que vai de São João del-Rei para Ouro Preto, foi achado um cadáver; pergunta se lhe faltava uma orelha: dir-te-ão que sim, e tu acrescen­tarás:

— Foi Januário Garcia quem matou esse ho­mem; faltam-lhe agora só duas!...

E pôs-se a caminho.

A porta da choupana fechou-se desde então para sempre, e lá a pouca distância, duas cruzes al­çadas, e algumas pedras que as rodeavam, indica­vam que ali jaziam dois corpos.

E o viajante que passava, apeava-se para lan­çar-lhe uma pedra; e depois prosseguia em seu cami­nho orando pelas almas dos finados.

 

IV

SÉTIMA E ÚLTIMA

Un ange ou un démon?

 A. de Vigny

.............Il tombe.......................

La vérité se montre! Tout est fini!

Madame Dudevant

O longo decorrer de tantos dias, qual o que en­cerra o espaço de dez anos, não pôde abrandar a cóle­ra do infatigável paulista, nem fazer-lhe esquecer os votos de vingança pronunciados havia tanto tempo!...

Dez anos tinham decorrido; e ainda o inflexí­vel Januário Garcia corria planícies, subia monta­nhas, descia vales, e se entranhava pelas brenhas, em procura da sua última vítima.

Embuçado no poncho, com o chapéu de largas abas, com a cinta onde prendia a faca, a terrível faca seis vezes banhada em sangue, e com a sua baluda de coronha de pé de cabra a tiracol, jazia uma noite recostado a uma sapocaeira, esperando o alvorecer da madrugada, para conhecer aonde  estava. O dia que não tardou em mostrar-se no hori­zonte rodeado de toda a pompa e majestade, fez-lhe ver que se achava ante uma povoação. — Foi como o grito de terra soltado a bordo que veio inundar-lhe o peito de júbilo; que esse corpo fatigado de tantos er­rores e desvios se enlanguecia, e necessário lhe era o repouso.

Caminhou Januário vagarosamente para essa nascente Vila Boa de Goiás, que parecia surgir do meio das flores e folhagem dos bosques que a Con­tornam, e sorrir-lhe benigna, como se fosse ele o seu bem vindo. O painel mais pomposo e mais belo da natureza, cheio de encanto, de vida, de harmonia e da poesia, desdobrava-se-lhe aos olhos, avezados à contemplação dessas cenas, e sempre nelas embeve­cidos!

Casa de aspecto menos rústico era essa que aí entre outras se elevava no princípio da vila; e Januá­rio Garcia parou à porta e pediu que o deixassem descansar. Abriu-se a porta e imediatamente achou-se na sala onde certo homem, cujos cabelos negros rarefaziam-se entre as brancas da idade madura apresentou-se-lhe, e ambos se cumprimentaram.

— Este semblante, murmurou a um tempo cada qual consigo, no mútuo entreolhar, não me é desco­nhecido!

— Senhor, disse o hóspede, vou mandar prepa­rar o almoço: comereis do que há por estas alturas da nossa Vila Boa de Goiás, e no entanto descansareis; podereis mesmo vos deitar se isso vos aprouver, pois que aqui não deveis fazer cerimônia de qualida­de alguma.

— Obrigado, respondeu friamente Januário.

— E voltarei para conversarmos; que sem dúvi­da haveis de saber muitas coisas antigas que serãonovidades para mim, e eu estarei no mesmo caso para convosco.

— Sim, senhor, voltou-lhe Januário.

— Esquecia-me perguntar se não quereis mudar de trajos.

— Agradecido.

Retirou-se o hóspede; e Januário pôs-se a pas­sear pela sala, na qual tudo lhe atraía a atenção. — A mobília simples e rústica, o sítio, as árvores apinha­das pelas planícies em graciosos grupos, as palmei­ras com seus leques abanados pela aragem, os pene­dos, as águas que serpejavam sonoramente retratan­do o azul do céu, tudo lhe trazia à memória doces e vivas lembranças, que lhe eram tão caras! Parando ante um espelho, refletiu atentamente na mudança de suas feições; e seus cabelos negros outrora, co­meçavam agora de alvejar; suspirou! Sentou-se; e gotas de lágrimas escoaram-lhe pelas faces que iam a enrugar! — Depois ergueu-se, volveu os olhos em tomo de si, e como que admirado do que via, fitou com atenção o olhar num painel que pendia da pare­de, e cuja cena tocante lhe oferecia um espetáculo que lhe partia o coração. — Era um paulista que junto da sua consorte gozava da frescura da tarde sob uma latada de passiflora coberta de rosas da Paixão e de frutos: escutava ele cheio de recolhimento a leitura das Horas, a que procedia uma linda menina; e vol­tava da caça um jovem, montado a cavalo, tocando a buzina, e precedido de cães veadeiros. — Declinava o sol entre as nuvens do horizonte e os derradeiros raios douravam os cumes das montanhas e dilatavam a Sombra das árvores nas planícies.

Era ele, sua esposa e seus filhos! — Não havia dúvida, esse quadro era seu; conhecia-o por esses rasgos de pintura que pertenciam ao pincel de uma donzela da sua vila, que qual a célebre pernambuca­na D. Rita Joana de Sousa, entregava-se a esse passatempo para quebrar o tédio do vagar do tempo; e que lho deixara em Sorocaba, na sala da casa, lá pendente da parede!

De Sorocaba a Goiás! A Goiás!... Tão longe! E porventura não estava ele aí? Mas que coincidência! que encontro! Como viria parar ele ali, como?

E mil pensamentos borbulhavam na mente de Januário, que sentou-se e começou de refletir mais seriamente.

— Talvez, disse ele consigo, conjecturando, tal­vez que minha esposa se visse em grande necessida­de e que o vendesse!

E pensava que a miséria, a miséria com todo o seu séqüito terrível, onde figuram todas as necessi­dades da vida com seus semblantes mirrados e lívi­dos, e com os olhos de sangue, já fartos de chorarem , açoitasse o seio da família, e assentava em si que necessário era volver-se a abraçá-la!

— Há tanto tempo! repetiu ele. Como os não ve­rei eu, esquecendo pesares de tantos anos por um momento de satisfação! Doce momento, que tanto tarda, pois falta-me a sétima e última! E em vão a busco, em vão: e eu jurei apresentar todas elas! Aonde  se esconderá esse homem que deve à terra um cadáver e a mim uma orelha? — O dono desta casa, continuava ele, explicar-me-á tudo isto! Mas dissi­mulemos, que não me é ele desconhecido. Já o vi, não sei aonde , e ele conhece-me, pois mi­rou-me desde os pés até a cabeça, trajo por trajo, fei­ção por feição! Quem será ele? Um anjo ou um de­mônio? — Um anjo, que salvou porventura minha fa­mília da miséria, e a quem ela, agradecida, mimose-ou com este quadro — ou um demônio que o roubou, e que hoje o possui?

E a esse tempo, sem ter repousado, a fadiga ti­nha-lhe desaparecido; e só almejava saber como viera ter aquele quadro à  Goiás, como se chamava o hóspede, e depois partir; — ou com o seu colar de ore-ibas completo, — ou em busca de mais uma, uma só! ...

Pensando assim, agitava-se todo com tais re­flexões, tremia com tantas incertezas; quando um menino tão galante, quanto pode ser um menino; tão vivo, tão espertinho, quanto se pode ser na tenra ida­de, a pular, a saltar, a rir-se de inocência e de ale­gria, ganhava a sala.

— Meu Deus! exclamou Januário encarando a criancinha, como que para reconhecer-lhe um a um os contornos da fisionomia, é o retrato de minha mu­lher... De minha mulher!... É seu filho, talvez... Oh!... As coincidências se multiplicam!... A fisio­nomia desse homem que não me é inteiramente des­conhecida.., e a fisionomia deste menino tão seme­lhante à de Ana... e o meu quadro!... Oh! que o co­ração se me despedaça em cem partes!...

E o inferno com todo o seu oceano de chamas se lhe entornava dentro do peito! E os dentes rangiam, e os músculos contraíam-se, e os olhos revolviam-se em órbitas de fogo, e as artérias pulsavam com vee­mência, e ele todo agitava-se, comovia-se.., até que Pouco e pouco, como procurando tranqüilizar-se, aproximou-se do menino, que ria como o anjo da alegria e inocência; buscou afagá-lo, e o menino sempre a rir pôs-se a brincar-lhe com os cabelos da longa barba embranquecida. Tomou-o ele afinal nos braços, sentou-o sobre a perna, e amimando-o, per­guntou-lhe como se chamava.

E uma voz tocante, harmoniosa, sensível, res­pondeu ternamente:

— Januário.

— Januário... repetiu Garcia, erguendo-se e largando o menino sobre o pavimento. — Que ultra­je! ... Que escarnecer de mim!... Não resta mais que duvidar nem conjeturas a tirar; é seu filho! ... O tem­po e os trabalhos me aumentaram os anos, branquea­ram esta barba, que me cresceu até o peito: o sol amorenou-me a tez e mudou-me as feições; o brilho dos meus olhos extinguiu-se no meio da aluvião das lágrimas, e a voz enrouqueceu-se... A notícia de mi­nha morte espalhou-se talvez de boca em boca, e de há muito que me acreditam de envolta com a poeira dos mortos... Desfigurado, não tido por entre os vi­vos, quem mais me há de conhecer? Ao verem-me os vizinhos, tomar-me-ão por novo hóspede, per­guntarão por meu nome, e admirar-se-ão quando me ouvirem dizer: — Eu sou Januário Garcia! — Não me conhecerão, mas eu conhecer-te-ei, mulher!... Ob­servada continuamente por mim, não deixarei esca­par uma palavra.., não deixarei perder o mínimo gesto, não deixarei fugir o menor movimento, e de­pois... Ah e depois que tremas! Ana, Ana, tu não sa­berás que os ultrajes de uma mulher a seu marido custam a vida? Que o sangue, que tão somente o San­gue, pode lavar a nódoa da desonra que o difama en­tre os mais homens? Tu não o saberás? Eu pois te en­sinarei! ...

E o menino, sempre a rir-se, o olhava terna-niente; porém Garcia aproximando-se da janela, conservou-se pensativo sem dar fé do que se passava em torno de si; porque a inspiração do inferno bor­bulhava-lhe na mente e refletia-lhe do coração.

De repente sentiu passos, voltou-se e deu com o dono da casa que participava-lhe estar pronto o almoço.

— Sinto-me incomodado; e por esse motivo desculpar-me-eis que não me utilize do vosso obséquio.

— E não quereis alguma coisa?

— Nada absolutamente; desculpai-me, que quan­do estou incomodado não costumo empregar meio algum para aliviar-me.

— Fazei o que quiserdes.

— E já que sois tão franco comigo, quisera antes de retirar-me, saber com quem aqui me acho.

— Era essa, amigo, disse o hóspede, justamente a pergunta que tinha que fazer-vos, pois que por cer­to não me sois inteiramente desconhecido, e já vos vi não sei aonde  . Porém, quanto ao que me diz respeito, dir-vos-ei em poucas palavras, o que basta. Procurei por algum tempo ocultar o meu nome e a minha pessoa, povoei a solidão, mas hoje, isento de todo o perigo com a morte do mais terrível dos ho­mens, o qual por indisposição e antipatias me jurara ódio implacável, posso sem temor dizer quem fui e quem sou, pois que, assaz conhecido nesta terra, sou estimado de todos, e gozo de reputação como ho­mem honrado.

— Sois filho do Brasil, não é assim?

— E nasci em Itu.

— E esse homem que já não existe, cuja morte vos fez exultar por vos ver livre do mais terrível dos homens, era de Sorocaba?

— Justamente; e acaso o conhecestes?

— Januário Garcia!

— E ainda hoje me horrorizo ao ouvir-lhe o nome! ...

— E pois não vos horrorizais de vê-lo!

— Como?... O que dizeis?...

— Sim, ele chamava-se Januário Garcia, e vós sois Pedro Luís...

— Ah! sabeis meu nome?

— E eu sou de Sorocaba!...

— E aí me vistes talvez, não?

— E eu sou Januário Garcia! ...

— Januário Garcia... Vós?... Que perdição para mim! ...

— Pedro Luís!...Pedro Luís, não me falta mais nem uma!...

— Januário Garcia, há dez anos que...

— Que assassinastes meu filho...

— Os outros foram...

— Aqui estão suas orelhas!... Seis orelhas!... Mas os assassinos foram sete, falta-me pois uma... e essa, dar-me-eis vós!... Meu corpo ao inferno, mi­nha alma ao demônio, se vo-lo perdoar!... Pedro Luís, resta-vos um instante, e nesse instante é para encomendar a Deus a vossa alma... A oração simbólica dos apóstolos!... Dizei-a de joelhos... E o meu Juramento há de cumprir-se em toda a sua extensão...

— Perdão, Januário, que vos cega a ira! ...

— Nem em nome de Deus; pedis em vão!

— A hospitalidade, Januário... E vossa filha... Ah esperai!

— Não me escapareis... Meu filho também im­plorava em nome de Deus, e vós, canibais, o ligáveis a um tronco; ele chorava, e vós, abutres de came hu­mana, lhe arrancáveis a pele; ele gemia, e vós, onças esfaimadas e carniceiras, lhe decepáveis membro por membro; e ele dava o último arranco, e vós, al­gozes da barbaridade, lhe tiráveis as entranhas ainda palpitantes! Ah! vós não sabeis por certo em que mãos horríveis caístes! ...

— Perdão por piedade!

— Não!

— Eu sou vosso...

E Januário Garcia sacava a faca, a terrível faca do seio da sua vítima, que estrebuchava inundada de sangue, quando uma mulher pálida, vestida de bran­co, com os cabelos soltos, e arquejando horrivel­mente precipitou-se sobre ele.

— Que fizeste?...

— Paulina, minha filha! ...

— Meu pai... Ele era meu marido!...

E caiu desfalecida em seus braços.

 

V

EI-LAS AQUI

.....................L'infernable compagne

Trembla si fortement.....................

Ant[oine] Deschamps.

Elle tomba froide et mourante.

Victor Hugo.

— E jurando trazer-me uma orelha de cada um dos sete, partiu... E há já dez anos que o espero; há já dez anos que ninguém me dá notícia dele... — antes propagam o boato de sua morte..., mas não o posso acreditar porque o coração não mo diz assim.

Desta sorte falava na pobre sala da sua casa de Sorocaba, a mísera mulher do implacável paulista, conversando com Manuela, senhora de rico fazen­deiro, há pouco estabelecido na vizinhança: — nessa sala que tão rica fora, e cujas paredes, com as pintu­ras envelhecidas, conservavam alguns lugares mais avivados, que apontavam à memória os lindos pai­néis de que se achavam despojados.

— Falastes-me de uma filha que tínheis? disse Manuela.

— Paulina era o seu nome, respondeu Ana. Há oito anos que um homem que aqui chegou, que me pediu hospitalidade, dizendo que seguia para o interior; não lha pude negar, pois que no tempo de meu marido era esta casa uma como osteria de peregri­nos, que procuravam-no pela probidade e honradez de seu caráter, se bem que propenso à  uma taciturnidade misteriosa, talvez gerada da meditação em que se engolfava de ordinário e da perseverança e energia com que concebia, planejava e executava os seus mais subidos projetos.

“Conversando expus-lhe sem rebuço e com singeleza, continuou Ana, a miséria em que me via com a ausência de meu marido, a necessidade que tive de vender as mulatas, minhas mucamas, e de desfazer-me das minhas crias. Ele ouviu-me com mágoa, e consolou-me; e querendo de alguma forma beneficiar-me, mostrou-se agradado de um quadro que pendia daquela parede, o qual representava ce­nas de nossa família, e era composição de uma moça destes arrabaldes; e oferecendo-lho eu, não o quis aceitar sem que me retribuísse generosidade por ge­nerosidade.

— Mas Paulina? Não falais de Paulina, de vossa filha, cuja sorte tanto me interessa como se a conhe­cesse? replicou Manuela.

— Tudo vos direi. Demorou-se esse homem em minha casa por alguns dias, e com vários pretextos meses inteiros; e como tivesse tempo para obser­vá-lo, notei em seus olhares certa inclinação amoro­sa, nesse dizer simbólico de amor, que se não pode encobrir, e que ele deixava entrever a seu mau gra­do, para com Paulina. Rodeada de necessidades, an­tevendo que breve a miséria vir-me-ia bater à porta, talvez para evitar que um futuro de angústias pe­sasse sobre mim, propus-lhe um casamento em bre­ves termos. Afinal ele anuiu de muito boa vontade. Passaram-se então alguns dias em preparativos; e tudo nele era apressar o momento do consórcio, e conquanto essas instâncias me fizessem recear al­gum tanto de um não sei quê de misterioso, contudo encontrava desculpas, quando mais calma e tranqüi­lamente meditando, via que era esse todo o desejo dos noivos. Mas no entanto há certos saltos inopinados do coração, certas idéias inesperadas que aco­metem a imaginação de improviso e que as mais das vezes deixamos passar desapercebidamente.

— E prontos que foram os preparativos, seguiu-se algum incidente talvez, não?

— Algum incidente!... Seguiu-se o casamento. Não é, porém, D. Manuela, sobo aspecto de calamidades que o infortúnio se nos antolha. Esse homem, que sacudindo o poncho orvalhado da chuva, bateu à minha porta, pediu-me hospitalidade, sentou-se à minha mesa, e dormiu sob meu teto, mal sabia eu quem era ele. Há certas impressões bem extraordi­nárias! ...

— Continuai que há muito que me tendes sus­pensa.

— Sempre que me voltava para ele, com o que primeiramente deparava era coin a bicha que lhe pendia da orelha, e que imprimia em mim um não sei quê de desconfiança...

— E bem extravagante era essa circunstância!

— Extravagante!... Era um reflexo revelador do futuro!

— Enfim, prosseguiu Ana, tudo se preparou da melhor maneira que me foi possível; dirigimo-nos uma tardinha à casa do vigário, e aí no seu oratório se receberam os noivos, ouviram as bênçãos do céu, e eu de joelhos rezava para que o Senhor fadasse em bem a sua união... quando senti espargir-se-me pela alma frio estremecimento, como que uma mão de ferro me apertasse o coração no peito e mo esmagasse; as trevas escureceram-me os olhos; e era a dor, era o desgosto, era o pesar, era o horror, era tudo isso em uma só coisa, que não há nome que a expri­ma...

E ao recordar essa agonia as lágrimas caíam-lhe em fio, e os soluços desprendiam-se-lhe dos lábios; mas prosseguiu.

— Uma voz terrível que partiu sem que soubes­se donde e como, e que soara no oratório me lançou em uma aluvião de males privando-me do sossego de tantos dias e noites como o brado da vingança:

“Esse homem, gritaram, deve uma orelha a Januário Garcia!”

— Era um dos sete!

— É verdade, era um dos sete. O menos crimi­noso, porém o mais afoito de todos, que vinha à mi­nha casa colher notícias de meu marido, e que con­traindo essa união sagrada com nossa filha, se supu­nha isento da sua vingança!

— E Paulina?

— Que havia de fazer? Habituar-se a olhar para um dos sete assassinos de seu irmão e pedir ao céu que desviasse a fatal faca do peito de seu marido. Não estava ele, porém, muito seguro da sua sorte, pelo menos não o afiançava eu, que sei até quanto um paulista se esforça para cumprir sua palavra; partiu pois, e partiu para tão longe que nunca mais ouvi notícias suas.

— E vossa filha, D. Ana?

— Partiu com ele; e como era sensível à sua par­tida, não quis despedir-me dela; quando vieram pela manhã comunicar-me que desejava abraçar-me, man­dei-lhe dizer que seguisse o seu destino, que eu fica­va a rezar para que se não perdesse de toda sobre a terra, já que não podia ser venturosa; nunca, oh nun­ca mais!

— Talvez que o céu vos ouvisse e ela seja feliz.

— Não. Meu marido jurou, e o seu juramento...

Ah! praza a Deus que ao menos, quando a sineta do portão retinir e anunciar a sua chegada, eu já não exista! ...

Não acabava quando a sineta do portão soou fortemente.

— Quem será? perguntou Manuela.

— Deus de misericórdia, há dez anos que a sine­ta não retine tão fortemente!

— E não ouvis o trotar de cavalo?

— E quem, quem será, minha Santa Virgem da Ponte?

Na maior ansiedade procuravam elas, através dos vidros da janela, ver se descobriam alguém; mas a noite era em extremo escura, e portanto impossível distinguir qualquer vulto que fosse, quando por um relâmpago que se abriu nas trevas, viram que um ca-aleiro se apeava junto à porta.

— Batem e os cães latem.

— E tão violentamente!

— Quem está aí? perguntaram de dentro.

— Abre, Ana, respondeu uma voz áspera e rouca.

E a porta gemeu sobre os gonzos; e um indiví­duo embuçado em um poncho desbotado, puído como o manto de um mendigo que aí vai de porta em porta chorando suas lamúrias, trazendo sobre a ca­beça já velho e roto chapéu de largas abas que lhe ro­çavam os ombros, descalço e enlameado até às cur­vas, com a baluda pendente a tiracol , entrou, cumprimentou a Manuela e apertou Ana em seus braços contra o coração.

Era ele, era Januário Garcia, o infatigável pau­lista, que voltava à sua casa, respirando de afã, con­tente do seu triunfo, satisfeito de sua vingança, e rico de despojos de suas vítimas.

— Ana, bradou ele a sorrir de prazer e com os olhos ondeados de lágrimas.

— Januário! ... exclamou a mulher estreitando-o nos braços, não sem alguma repugnância.

— Há tanto tempo.

— Há dez anos!

— E o que fizeste durante tão longo espaço?

— O que havia jurado.

— Quê? E será possível, meu Deus!

— Ei-las aqui!

Um brado de terror partiu de todos os lábios, retumbou por toda a sala, e Manuela escondendo os olhos com as mãos, recuou espavorida como se a mão de um fantasma a repelisse, e caiu sobre uma cadeira, que estalou, quebrando-se. Ana, não obstante estar já de há muito preparada ao golpe fatal, à terrível aparição, não pôde contudo deixar de olhá-lo com gesto de terror.

— Ei-las aqui, bradava ele, ei-las aqui para substituírem o quadro que tão de coração estimava, e que tu vendeste! Sim, Ana, aquele quadro que fiz pintar com tanto trabalho, que não havia aí quem mo preparasse, recordava a inocência, os gozos pacífi­cos e a tranqüilidade doméstica de nossa família, e estas orelhas mirradas e secas depois que as colhera a mão da morte, estas orelhas recordar-nos-ão coisas muito terríveis, aí suspensas no mesmo lugar que ainda nos mostra o vivo das tintas tanto tempo resguardadas por ele! Recordar-nos-ão a morte de um filho, o casamento de uma filha, e dez anos de fadi­gas, de trabalhos, de errores e desvios. Ei-las aqui!

— Ah tira-mas da vista! disse Ana toda contami­nada de horrorosa repugnância.

— Tirá-las da tua vista! Como difere nosso sen­tir! Ah lembrem-te elas o filho, lembrem-te elas que sete réprobos o esfolaram vivo, e depois corta­ram-lhe membro por membro, que nada os fartava do nosso sangue, como se a sede da febre de assassi­nos os devorasse; lembrem-te elas que são despojos de suas vítimas, e regozijar-te-ás comigo.

— Por Deus, pelo descanso eterno de teu filho, eu te peço, poupa-me a esse espetáculo. Depois da ausência de dez anos, não haverá mais em que fa­lar?...

— Durante dez anos de nada mais quis saber que não fosse notícias dos assassinos; e porventura não nos darão estas orelhas doravante eterno assunto para nossas conversas? Não serão elas daqui em di­ante o melhor ornamento de minha casa? Aos prodí­gios do painel de uma mulher, substituem as valentias da faca de um homem, que não do assassino. A ri­queza maior que possuo adquirida com o suor das fa­digas e das vigílias de dez anos! Assassinos! Oh! Eles bem sabiam quem eu era quando o amaniata­vam  ao jambeiro, e entretanto quiseram desafi­ar-me as iras! Viram a prudência em que eu vivia, e pensaram que era fraqueza; tomaram o sono do leão por debilidade de forças; acordaram-no com arre­messo furioso, e hoje dormem no leito da morte o eterno sono! Muitos deles sem uma cruz, que lhes lucre um ai por seu morrer, uma oração por sua alma! Nem sempre seria o pacífico Januário Garcia sorocabano, o amigo de seus paroquianos, tão respei­tado por eles, e o amante de sua família, tão amado por ela.

Assim dizendo, largou o chapéu, pendurou a sua baluda à parede, desembrulhou-se de seu pon­cho, e arrastando uma cadeira, sentou-se junto de Ana. Manuela que tornara a si, que mais a incomo­dara a queda, com o quebrar da cadeira, estava re­costada ao velho canapé, e algum tanto alentada; se bem que o frio do susto lhe coasse ainda nas veias, e a palidez lhe desbotasse as faces.

— Olha, Ana, disse Januário apresentando o terrível colar, e escuta a história das sete orelhas.

— Oh não, por piedade, suplicou ela pondo as mãos e levantando-as para o céu; oh não; deixa-me na incerteza; não ouves? não percebes?... Na incer­teza, sim... que ao menos ignore tudo... Na incerte­za, Garcia!...

— Sim, na incerteza, na incerteza, quando eu jurei não voltar ao seio da família sem sete orelhas; quando torno depois de dez anos, e quando tu não ig­noras que o paulista perde bens, deixa a herdade, e sacrifica todas as comodidades, afronta um a um to­dos os perigos, arrisca a vida, mas cumpre o que promete! E entretanto queres ficar na incerteza!

— Ah, Januário Garcia, é a única coisa que te peço nesta vida.

— Pobre mulher! E ainda a instar, sem que se regozije comigo! Enfim, não conhecerás dentre es­tas orelhas aquela que...

— Não... não... Januário.

— Aquela que tem uma bicha pendente com uma figa...

— Ah!... Não é verdade!...

— Depois de dez anos e de tanto procurá-lo, fui enfim encontrá-lo tão longe, em vila tão remota.... Vinguei a minha afronta: ei-la aqui; é de Pedro Luís, do assassino de teu filho e do marido de tua filha!...

E um ai, um ai de morte partiu dos lábios de Ana que caiu inanimada e fria, aos pés de Januário.

Forcejando por erguer-se, tomou Manuela, trêmula, como estava, o candeeiro, e aproximou-se; Januário, inclinando-se, tentou alevantá-la, mas ela abriu os olhos, volveu o rosto, suspirou languidamente e tornou a cerrar as pálpebras; Januário, rece­bendo o candeeiro, chegou-se a ela...

— Ana!... Ana! ... exclamou ele

— Ah está morta! murmurou a amiga apertan­do-a em seus braços e chorando.

— Morta! Morta! repetiu Januário ternamente e olhando-a com a mais viva penetração de amor e compaixão.

— Desgraçada família!... balbuciou Manuela.

— Desgraçada, sim! repetiu ele.

E de repente largando o candeeiro suspendeu a enfiada de orelhas e bradou horrivelmente:

— Mas que importa? Agora pode soar a trombe­ta do dia de juízo; eu me apresentarei a Deus com esta[s] orelhas — Deus me julgará!

 

VI

CONCLUSÃO

Alguns anos depois uma mulher cujas feições denotavam ainda a beleza da mocidade, e um moço trajando pesado dó, de joelhos e mãos postas, olhos em lágrimas, oravam tristemente ante a eça que sus­tentava em féretro.

Os sinos da vila dobravam funebremente.

Era Januário Garcia que se tinha finado, dei­xando ao inundo a sua tremenda e horrorosa memó­ria, e o terrível cognome: — O sete orelhas.

 

As Duas Órfãs

ROMANCE

O horrible! horrible! most horrible!

Shakespeare.

 

I

À GUERRA

Toda, toda eres perfecta

Toda eres donaire e gracia;

El amor vive en tus ojos,

Y la gloria esta en tu cara.

La libertad me has robado;

Y lo doy por bien robada;

Mas recibe el don benigna

Que mi humildad te consagra.

Meléndez.

Alta ia a tarde; — o sol desaparecia por entre as nuvens de rosas do poente, e as ondas do Una, refle­tindo a cor avermelhada do horizonte, se antolhavam como vagas de sangue ao conde de Nassau, que, à frente de um exército de 10.000 homens, aproximava-se de Porto Calvo. O seu tenente Henrique Vagamol o seguia, costeando, com algumas tropas, a bordo de pequenas embarcações, e a divisão de Crestofle d'Artischau, desembarcando na Barra Grande, acabava de se lhe reunir.

As Províncias Unidas, atemorizadas com as incursões de Henrique Dias, de Rabelo, Camarão e Souto, e da energia que havia desenvolvido o grande Matias de Albuquerque; e, querendo conservar sob o seu jugo as capitanias brasileiras que a tanto custo conquistaram, resolveram mandar um general em chefe com reforços e poderes ilimitados que, conservando as já conquistadas,[12] passasse a subjugar o resto do Brasil! João Maurício de Nassau[13], jovem ardente de glória e ávido de assinalar-se em grandes empresas, foi encarregado de tão honrosa quão árdua missão.

Partiu, pois, Nassau de Amsterdã com uma frota de doze navios de guerra guarnecida de 720 soldados, e chegou três meses depois ao Recife[14], trazendo por conselheiros a três dos principais ministros da Companhia das Índias Ocidentais[15].

Desenvolver toda a atividade, toda a energia possível a pôr termo às devastações dos brasileiros e submeter o Brasil ao domínio da Holanda, foi todo o seu empenho. Bem que tivessem os holandeses sido felizes no último sucesso, contudo começavam a sentir o revés da sorte; Artischau tinha sido obrigado a arrasar o forte de Peripoeira, a retirar-se ao Recife; graças às correrias destruidoras de Camarão, Souto e Rabelo, seus armazéns achavam-se exaustos; a fome, esse cancro que rói e consome, e a miséria lavravam pelo exército holandês, que, composto de mercenários de quase todas as nações, diminuía a olhos vistos, ao mesmo tempo que o nosso exército se engrossava com as suas deserções, e os destacamentos batiam às portas de seus estabelecimentos.

Distribuiu Nassau dois mil e seiscentos homens pelas guarnições, e com outros três mil formou um exército pronto à primeira voz; organizou um corpo de cerca de seiscentos indianos e negros, tirados das aldeias ou pedidos aos senhores, destinado à guerra de devastação e pilhagem, e convidou por uma proclamação aos colonos das capitanias submetidas a virem vender as suas mercadorias ao campo holandês.

Fortificado Bagnuolo em Porto Calvo com a artilharia, decidiu, pois, de acordo com os conselheiros, que as operações começariam pelo ataque da nascente vila; e ordenando preces gerais, como que implorando o arrimo dos céus, pôs-se em marcha para Porto Calvo.

Informado Bagnuolo da marcha do exército in­vasor, tímido e acobardado como quase sempre o foi, dispôs os meios para a sua fuga, mandando para Madalena sua bagagem, escoltada por uma manga de italianos, quando ao mesmo tempo — contraste singular! — ameaçava com pena de morte e confiscação de bens aos colonos que se retirassem ou fizessem transportar as suas famílias e objetos para o in­terior! Desprezando os pareceres que lhe deram em conselho os generais Francisco Dias de Andrada e Duarte de Albuquerque, para que fizesse ocupar todas as passagens, a fim de fatigar o inimigo em sua marcha, tanto mais que ele havia a vingar cinco léguas de caminho em algures montonhoso e alhures alagadiço, com passos aqui estreitos e ali perigosos, resolveu-se a esperar Nassau em Porto Calvo; e, reconcentrando todas as suas forças, chamou as tropas capitaneadas por Martim Soares, que guardavam o Una, por onde Nassau havia de passar, para guarnecer dois redutos que erigira no outeiro de Amador Araes, para cobrir a vilazinha, e que — ainda em mal! — mais úteis foram os contrários. De um dos redutos até o Manguaba fez elevar encoberta vereda que mais facilitasse-lhe a fuga!

Ao aspecto ameaçador de exército tão numeroso, como o qual ainda não tinha aparecido no Brasil, o pavor e o espanto tomaram-se gerais. Bagnuolo, que regozijara-se com a nomeação de general das tropas luso-hispano-brasílicas, lastimando-se então de sua posição, possuído de terror, ordenou ao governador de Porto Calvo, o general Miguel Giberton, que se fortificasse no forte da igreja com trezentos soldados, minadores, artilheiros, oficiais e munições para três meses; encarregou o comando da mor parte de suas tropas ao tenente-general D. Alonso Jiménez de Almirón e foi encerrar-se no reduto, cuja vereda o protegesse na premeditada fuga, acompanhado dos generais Andrada e Albuquerque e de muitos oficiais brasileiros, portugueses, espanhóis e italianos.

A indignação apoderou-se de todos os corações que palpitam pelo amor da pátria, da glória e da honra. À vista da inação do general, as mulheres com lágrimas nos olhos, apertando seus inocentes filhinhos contra o peito, enchiam os ares de gritos de desesperação, julgavam-se já vítimas da brutalidade dos soldados holandeses. Os habitantes, o exército, pediam a altos brados que os deixassem ir ao encontro dos invasores; e Bagnuolo, receioso , acobardado, ordenou-lhes, já tarde, que marchassem.

Acendeu-se então o entusiasmo em todos os peitos, como uma explosão que desabrocha por cem partes; e vivas a milhares à fé, à pátria e ao rei, ecoaram de boca em boca por espaço longo. E viu-se um guerreiro, esporeando o ginete que montava, correndo a bradar com voz pausada e sonora:

— À guerra! À guerra, senhoras brasileiras! Quem seria?

As feições eram belas, o perfil e contornos indianos; vivos, negros e expressivos os olhos; e os cabelos pretos e corredios, espargidos pelos ombros.

Quem seria?

Era uma brasileira, ilustre pelo seu nome e coragem[16]; — era a esposa de um bravo índio, do Cipião brasiliense; — era a intrépida D. Clara Felipe Camarão!

As senhoras e donzelas de Porto Calvo, incita­das com o seu exemplo, trajando como se guerreiros fossem, correram às armas; voaram aos braços de seus consortes e pais, ávidas de partilharem dos pe­rigos da guerra, da defensão da pátria e liberdade.

Existia entre elas uma que mais que todas sen­tia o amor da glória, o amor da pátria chamejar-lhe dentro no coração; seus cabelos, mais negros do que as asas do pátrio jacu, debruçavam-se-lhe pelos om­bros brincando em ondas; suas faces eram mais coradas que as rosas dos bosques brasilienses numa dessas belas tardes de verão, e os olhos pretos brilhavam como as estrelas nos céus anilados dos trópicos, cheios de vivacidade e amor. A elegante postura, o gracioso andar, o compassivo, terno e amoroso olhar sós, bastavam para reduzir, para cativar o mais duro coração!

Formosa como Mariana, Isabel, sua prima, achava-se a seu lado.

Não mimoseado pela fortuna, curvado ao peso de anos, vivia em Porto Calvo certo homem, cuja magnanimidade e filantropia eram cabalmente conhecidas de seus compatriotas. Tinha ele um filho a quem prestava todos os cuidados; e, não obstante seus acanhados recursos, havia se encarregado da educação de duas órfãs, Mariana e Isabel. Avezado desde a infância a entreter-se com as lindas meninas, afeiçoara-se o filho do velho Afonso Gonçalves a Mariana, e sua paixão aumentou com os anos. E

Que peito há tão isento de brandura,

Que não conheça o dom de uma beleza!

Quem pode resistir a um doce e brando

Quebrar de olhos que as almas vai ganhando!

Que forte foi no mundo conhecido

Que fôro à formosura não pagasse,

Tendo que por cobarde fosse tido

Se contra ela valente se mostrasse?[17]

Entretanto, Isabel era também amada pelo jovem Dinis Gonçalves; assentada junto dele, nos rochedos que banham o Pedras Brancas, ensombrada pelas frondosas mangabeiras, vendo as límpidas águas do rio resvalar-se mansamente com doce murmúrio por alvas pedras; ouvindo os ternos gorjeios dos gaturamos que adejam em torno às bananeiras; as melodias dos sabiás, pousados nos raminhos das laranjeiras; os trilos dos pardos coleirinhos que pulam pelos galhos da aroeira; as saudosas canções das patativas; e aqui e ali os beija-flores atravessando os ares, brilhando como raios de luz; prolongando a vista por esses floridos jardins da primavera, dourados pelos últimos clarões do sol, em que, roçando a brisa suave da tarde, vinha-lhe trazer os gratos eflúvios que se elevam das flores; — ah! muitas vezes escutou estas palavras, que muitas vezes se deslizaram de seus lábios:

“— Se Mariana não existisse, dizia ele, se ela não tivesse ganho o meu coração, quanto não te amaria eu! Fizera mais ainda, minha cara Isabel, adorar-te-ia como se fosses um anjo do céu sobre a terra!”

Sincera e pura confissão de cândida alma, mo­tora de tão sinistros projeto e desgraça!

Não desconhecia Afonso que o fogo da mais ardente paixão abrasava o peito de Dinis, conhecia — ainda em bem! — o amor em que Mariana ardia por seu filho; via que era necessário que quanto an­tes se ligassem pelo consórcio; mas, em extremo pobres, era antes de seu desejo uni-las a ricos filhos de lavradores de Porto Calvo, e esperava conse­gui-lo logo que os inimigos fossem expulsos das férteis terras americanas. Vã esperança!... Separar dois corações

Ardentes, onde amor ergueu seu trono,

Por seu próprio adotando o par mimoso,[18]

ligados por afeições da infância, é derramar neles o fel da morte.

Dinis ambicionando esposar Mariana não ocul­tava o seu desígnio à presumida Isabel: tanta candi­dez borbulhava em seu peito!

Ignorante!

Não previa que essa franca confissão ateava o facho do ciúme no coração da vaidosa donzela; facho que de há muito o abrasava e consumia. E Mariana beijava e afagava sua rival!

Inexperiente!

Ignorava que as flores engrinaldadas com os cheirosos festões da primavera ocultam em seu seio os ninhos das terríveis sucuriúbas, e que a água que pura e cristalina se nos antolha, muitas vezes se acha corrompida pela hálito da peste!

Amava muito Isabel a Dinis para cedê-lo à Mariana; e a idéia de que cedo ou tarde — mau grado seu — seria esposo de sua rival, perturbava-lhe as esperanças; e o ciúme, chama infernal que abrasava-lhe o coração, que incendiava-lhe a mente, inspirou-lhe horroroso projeto...

Em breve mediram os dois exércitos as suas forças; e nesse ensejo, nesse duelo horrendo, em que as leis da humanidade serão calcadas aos pés dos batalhadores, em que o retintim das armas, os trovões dos canhões e o sibilo das armas, cadenciando a orquestra infernal da guerra, nessa dança de sangue e de morticínio, imporão silêncio a seus ais, Mariana.., o ferro de Isabel estava destinado, não para encravar-se no peiro dos invasores, mas no de uma das defensoras da pátria, no de sua amiga da infância!

Quem o saberá?

A confusão, o horror da guerra serão propícios ao seu desígnio.

O tenente-coronel Jiménez de Almirón, com o sargento-mor Martim Ferreira da Câmara; os bravos capitães Francisco Rabelo, João Lopes Barbalho, Ascenso da Silva e Manuel de Sousa e Abreu, e oitocentos soldados; D. Antônio Felipe Camarão com os seus trezentos brasileiros; Henrique Dias com os seus oitenta negros, e D. Clara Felipe Camarão capitaneando as valorosas guerreiras, puseram-se em marcha; e chegando já sol posto à vista do inimigo, fizeram alto.

Assenhoreando-se o invasor de uma eminência, aquartelou-se nas casas do proprietário Domingos Vaz Barcelos.

Medonha e carregada, como o aspecto da guerra, diferia a noite o combate para o dia seguinte; os holandeses, porém, com quatro peças de campanha, não cessaram de fazer fogo contra os nossos.

 

II

A BATALHA

Anna! Anna! Tudo soa, tudo guerra!

Guerra o mar soa, soa guerra a terra!

Dos vales repulsando nos outeiros

Respondem guerra os ecos derradeiros!

Mouzinho de Quevedo.

O quente sangue espuma!

Qual belga foge, qual brasílio fere!

Quem evita o Mavorte

Na espada feminil encontra a morte!

J[osé] da N[atividade] Saldanha

O dia começava a despontar quando anunci­ou-se a marcha do exército inimigo, que desceu em três linhas até a falda do monte.

A primeira linha era comandada por Artischau.


A segunda por Sigismund von Schkoppe.

A terceira por Nassau; sua guarda compu­nha-se de cinqüenta arcabuzeiros.

Menos de dois mil brasileiros, portugueses e espanhóis acharam-se para logo frente a frente da li­nha dirigida por Sigismund von Schkoppe, e imedia­tamente seguiu-se horrendo combate.

O choque foi terrível.

Tudo tomou-se confusão e horror.

D. Clara, no seu animoso palafrém corria de fileira em fileira, exortando os seus guerreiros e bra­dando-lhes continuamente:

— Vitória ou morte!

O Cévola africano, o intrépido Henrique Dias, precedido de seus valentes soldados, pelejava denodadamente.

Camarão com os seus índios não era menos fa­tal aos holandeses.

Lanças, espadas, chuços, setas, o fogo contra o fogo, o ferro contra o ferro, se cruzavam e retiniam horrivelmente, como uma orquestra de raios! e con­tínuas descargas de mosquetaria, brados, gemidos e soluços mortais se mesclavam mais e mais, realçando o horror da guerra! Por toda a parte balas, fre­chas, sangue, fumo, pó, ruína, e em toda a parte a morte! a morte! a morte!

Lá se destaca do grupo negro dos pelejadores o terrível Henrique Dias; uma bala varou-lhe o punho, a amputação é o mais pronto remédio, e ei-lo que de novo se abalança ao conflito.

— Basta-me uma mão para servir a Deus, excla­ma ele, ao rei e à pátria! A fé de soldado em como cada dedo desta que me fica fornecer-me-á meio para a vingança! Não afrouxar, que Deus peleja por nós contra esses hereges. Animo, que a vitória é nossa!

E seus soldados se reanimavam por modo tal, que Sigismund von Schkoppe começou de recuar; porém veio o general Artischau com a primeira linha a reforçá-lo, e a batalha pareceu começar de novo.

Arrojou-se Jiménez de Almirón com a reserva a refazer o exército real; mas em crescido número eram as tropas de Nassau; e desacoroçoados os nos­sos deram de rosto aos contrários e à vitória, e segui­ram em boa ordem, sempre perseguidos pelos invasores, para o Comendaituba. Aí um punhado de bravos portugueses guardava a passagem: decididos a resis­tir novamente, ei-los encarniçados tigres de sobre os holandeses, que grandes estragos sofreram. Era de ver dois mil homens pleiteando contra um exército numeroso e guerreiro, sempre valentes, sempre gran­des, ainda mesmo prestes a serem vencidos!

O invicto general português Andrada, despre­zando as ordens do inerte Bagnuolo, abalou-se do reduto a sós com poucos soldados da guarnição ao meio dos holandeses; alentados os nossos com este exemplo de bravura e intrepidez, conseguiram re­chaçar os vencedores.

— Vitória! vitória! bradaram os soldados entu­siasmados.

— Avante, que ela é nossa! gritara Jiménez de Almirón.

— Meus amigos, três de vossos capitães já não existem, morreram como eu desejo de morrer, com­batendo como intrépidos que eram! Vosso sargen­to-mor lá jaz caído entre o tropel de mortos e feri­dos, sem que desmentisse de seu valor; vingai-os pois! Nada de desacoroçoamento! Não afrouxar, que Deus peleja por nós contra esses hereges! Ani­mo que a vitória é nossa! dizia o atrevido e bizarro Henrique Dias aos valentíssimos negros.

— Vitória ou morte! repetia D. Clara, espore­ando seu fogoso palafrém, que respirando enxofre e morte e tascando o freio envolto em espuma, em fogo e em sangue, se inflamava com o espetáculo da batalha, relinchava pulsando a terra com as patas.

D. Antônio Felipe Camarão acoroçoava os ro­bustos, esforçados índios, que governava com o exemplo de impavidez e denodo. Era mais amigo de obras que de palavras, e quando recuava não era como Ájax ameaçando, mas sempre pelejando, Um crucifixo lhe pendia de sobre o peito, bem como o hábito de Cristo com que o acabava de galardoar o tirano Felipe IV, honra que então a raros se concedia; mas hoje... Ufano, ele oferecia o peito à torrente de sibilantes pelouros, e parecia dizer a cada passo:

— Não temo a morte quando combato pela pá­tria e pela fé!

E avançavam os nossos pelejando com entu­siasmo.

Morria pela bala Pedro da Cruz, que brava­mente havia guerreado durante o conflito; e aí a seu lado ensangüentado, estiraçado o animoso Cosme Viana sustentava ainda a sua espada.

— Ah! meu amigo, tu também foste mártir da pátria! Somos companheiros na glória de morrer com ela!... disse Pedro da Cruz.

— Eu antes quisera, voltou-lhe o jovem Cosme Viana, ser companheiro desses que pleiteiam por ela e que com ela hão de vencer!... Oh! então, como cheio de prazer não voaria aos braços de minha mãe, levando-lhe a notícia da restauração da pátria!... Infeliz! De cinco filhos que mandara à guerra só lhe restava eu... só eu! E agora?... Ah!

Torceu o moço o rosto, calou-se, e seu silêncio foi de morte! Pedro da Cruz abraçou-o e seguiu-o.

D. Antônio Coutinho e o alferes Gaspar Ca­bral, João de Uchoa e outros tiveram a mesma sorte, foram abraçar-se à eternidade.

Não cessavam os soldados de energicamente carregar sobre os contrários; ações brilhantes, feitos de heroicidade se sucediam uns aos outros; cenas pungentes arrancariam lágrimas de quantos neste es­petáculo terrível se achavam, se a guerra as não ti­vesse estancado. Uma brasileira, fatigada de comba­ter, caiu sem alento; imediatamente um holandês va­rou-lhe o seio com a espada; sua filha, desesperada investe-o com o ferro em punho, rasga-lhe o peito, penetra os esquadrões inimigos, prostrando a quan­tos se lhe ousavam de antepor, causando estragos, derramando sangue; soltos os cabelos, cintilantes os olhos de raiva, parecia o gênio da vingança, anelante de sangue e de carnagem, regozijando-se com os es­tragos que deixava após si; e quando ferida e pros­trada exalou o seu último suspiro, suas palavras exprimiram a alegria e o contentamento de sua alma.

— Morro, mas depois de vingar-te, ó minha mãe, depois de dar a morte àqueles que te privaram da vida; morro, mas satisfeita!

Sorriu-se então, e pouco depois, cúmulo de mortos e feridos a esconderam aos olhos do inimigo.

Isabel, que ansiosa buscava a sua rival, desco­briu-a pouco distante, batalhando como uma Amazonas, ao lado do jovem Gonçalves, de quem ja­mais se apartara, e seu coração palpitou, e frio estre­mecimento percorreu-lhe fibra por fibra todo o cor­po. Trêmula como a taboca com o rumorejar da viração, armou o mosquete, e na desditosa amiga, na in­feliz rival, que odiava mais que aos contumazes ho­landeses, disparou a arma.

Ei-la no mesmo instante a braços com um ho­landês; a bala do mosquete apenas beijara levemente a face de Mariana, que num volver de olhos viu-a ameaçada de ser vítima do furor do fero soldado; correu pois a seu socorro, e quando este lhe ia a des­fechar um golpe mortal, o prostrou por terra. Toda­via Isabel estava ferida; Mariana só pôde impedir que o golpe lhe fosse menos funesto. Vendo-a pois quase a perder a vida, a arrastou para fora do lugar da ação, procurando minorar os sofrimentos daquela que pouco antes lhe dispunha a  morte!

Observando Nassau o desânimo que principia­va a apoderar-se de seu exército, envergonhado ao ver seis mil homens disputando tão obstinadamente a vitória a um exército cinco vezes mais numeroso, esqueceu-se de que era general para obrar como simples soldado; arrojou-se pois ao seio da batalha, arrostrou  perigos, incitou os seus a imitá-lo.

Estava a batalha quase a decidir-se, pendente a vitória aos destemidos defensores do Brasil; torna­ra-se o Comendaituba em ondas de sangue, quando Nassau, admirado de tanta intrepidez, e tão heróica, de tanta valentia e tão homérica da parte de seus ini­migos, ordenou que se tocasse a retirar.

E o grito — Vitória! — retumbou pelas campinas de Porto Calvo como um só brado.

A noite veio subitamente estender a mortalha da morte sobre o campo qualhado de sangue, juncado de mortos, e os exércitos acharam-se dividi­dos pelo Comendaituba.

Aproveitando-se das trevas da noite, tratou Nassau de enterrar os mortos e de curar dos feridos.

Lastimoso lhe era em extremo esses ais de dor que contínuos se desenlaçavam de seus corações, e esses corpos aqui e ali arquejando nas vascas da morte, sequiosos de vida.

Na oposta margem jaziam os nossos.

Um burburinho reinava por todo o exército.

Bagnuolo era o objeto de sérias reflexões.

Poucos soldados falavam das proezas que haviam obrado durante o conflito, e a mor parte ardia no desejo de ver de novo o dia para de novo dar provas de valor e expurgar as terras do Brasil dessa peste invasora, e Jiménez de Almirón conversava tristemente [com] o seu amigo Martim Ferreira da Câmara, quando lhe vi­eram trazer uma ordem de Bagnuolo; e pouco depois esse nome ecoava pelo campo coberto de maldições.

— Vamos depressa, bradou Jiménez de Almirón.

— Para onde? interrogaram todos a um tempo.

— Para a Madalena, nas Alagoas, respondeu o general.

— Para Madalena? perguntou Francisco Rabelo.

— Sim, foi a ordem que recebi do general Bag­nuolo.

— E ele?

— Acaba de partir para lá com uma companhia de soldados, acompanhado de Duarte de Albuquer­que Coelho.

— Covardia, disseram uns.

— Infâmia! replicaram outros.

— Viva a fé, viva a liberdade, viva a pátria, que havemos de defender enquanto tivermos vida! gritou Rabelo; e parte do exército respondeu a seus vivas.

— Vamos! O general Bagnuolo é...

— Traidor!

— O general Bagnuolo é quem ordena. Nin­guém pois se oponha à sua ordem!

— Para Madalena!

O exército, escoltando os habitantes de Porto Calvo, seguiu o caminho das Alagoas.

Avisado Nassau da fuga, e não podendo com­preender como soldados vitoriosos dessem de rosto aos vencidos, mandou que o seu sargento-mor com seiscentas praças, os perseguisse; mas este reco­lheu-se logo sem que diligenciasse encontrar-se com eles, o que por certo não era muito de seu gosto.

O outro dia, ao romper da alva, admirado o ge­neral Miguel Gilberton do silêncio que reinava na vila, mandou um oficial ao reduto de Bagnuolo pe­dir-lhe ordens; mas nem ordens nem avisos tinha Bagnuolo deixado: com tanta precipitação abando­nou ele a vila que devera defender! Restava um ex­pediente, e Miguel Gilberton não hesitou. As casas e os armazéns foram entregues ao fogo, e as peças das trincheiras encravadas.

O exército holandês atravessou o rio sem a me­nor oposição, e veio pôr cerco ao forte.

Os sitiados, não obstante a pequenez de seu nú­mero, corresponderam denodadamente ao fogo do inimigo, acometeram-no com coragem e inquieta­ram-no diversas vezes em animadas e hem dirigidas sortidas. Quinze dias haviam-se passado, e ainda duraya o cerco! Um punhado de heróis, capitaneado por um valente que soube cumprir as ordens que lhe prescrevera  tão pérfido general, mostrou aos estran­geiros como defendia-se a pátria com dignidade e honra. Tanta intrepidez, tanta coragem não deixa­ram de incitar a admiração e o respeito do honrado Nassau, que mandou-lhes oferecer capitulação, re­cusada ao princípio, mas que por fim foi aceita, quando já toda a resistência era-lhe inútil; que os pa­rapeitos estavam demolidos e entulhados os fossos. Saiu pois em frente da guarnição, mecha acesa, bala em boca e bandeiras despregadas.

Fortificado Porto Calvo e entregue ao capitão Peter Vanderverre, pôs-se Nassau em marcha com todas as suas forças de terra e mar em segui­mento do exército fugidio.

Tão cuidosa se esforçara por restabelecer a sua amiga e prima a boa Mariana, como alegre a viu salva do perigo que ameaçara levá-la à sepultura; e com ela e Dinis acompanhou o exército que, mal parando em Ma­dalena, marchou precipitadamente para São Francisco, deixando em seu trânsito desfalecidas mães em os bra­ços da miséria, e criancinhas, velhos e donzelas que caíam fatigados de longas marchas e devorados pela fome, que cobriam de maldições os nomes de Nassau e Bagnuolo, motores de todas as suas desgraças.

Chegados a São Francisco, foram guerreados e vencidos pelos holandeses.

Bagnuolo, esse desvalente general italiano que a Espanha nomeara para comandar corajosos brasi­leiros e esforçados portugueses, tinha fugido para Sergipe!

 

III

O BILHETE

Salut, dit-elle en soupirant, beau soleil

du Brésil! salut ! Pour la dernière fois (...)! *

Jakaré-Ouassou

Dans un billet..............................

Je lis son crime et je lis mon malheur!...

 Un coup de foudre eut été moins terrible!...

Parny

Vencedor, permitiu Nassau, tomando posse da vila de São Francisco do Penedo, que seus contrários se estabelecessem na margem setentrional do rio do mesmo nome. Aí encontrou Mariana o seu velho benfeitor; e Isabel, despindo-se de seu orgulho, con­fessou o horrendo projeto de assassinato, não mais a tendo por rival, não mais sendo Dinis o ídolo de seu coração, o enlevo de seus olhos, e o único pensa­mento que na alma lhe morava, Porém, as douradas esperanças que a lisonjeavam emurcheceram como as flores da primavera ao enregelado sopro do inver­no. Isabel enamorando-se de um jovem amigo de Di­nis, muito mais gentil do que ele, mas não dotado de tão brilhantes qualidades, deslembrou-se de seu pri­meiro amante, e deixou-se embalar no berço da esperança por sonhos encantadores que mentiam feli­cidades, mas a morte veio asinha despertá-la!...

Jerônimo, o desditoso amador de Isabel, su­cumbiu à rápida enfermidade que o acometera, e a vida da vaidosa donzela esteve por mais de um mo­mento a extinguir-se, semelhante à moribunda luz de urna candeia ao sopro rijo dos ventos. Os cuidados que Dinis lhe prodigalizara fizeram-na acreditar que era amada por ele, que seu coração se voltara para ela; — breve consolação a que deveu a vida; — conso­lação que o tempo destruiu, como a aragem dissipa as nuvens de aroma que se elevam de em torno dos mangueirais.

Conhecia o velho Gonçalves o como progredia a paixão de seu filho; sabia que era necessário evitar alguma desastrosa conseqüência, e decidiu-se a dar-lhe Mariana por esposa, certo de que, ainda mesmo pobres como eram, seriam felizes amando-se mutu­amente.

Ciente Isabel das intenções de seu benfeitor, sentiu-se de novo abrasada pelo ciúme, por essa cha­ma ateada pelo amor e pela inveja; e, para impedir a felicidade de sua rival, lançou mão de pérfido enredo.

Ditosa seria ela a não lhe serem inúteis os cui­dados de Afonso e a educação que tão sábia e cuida­dosamente lhe havia dado.

Fingiu, pois, a letra de Dinis, traçou algumas linhas, como a ela dirigidas, em que o amante de Mariana confessava amar-lhe e ajuntou outras ex­pressões bem fáceis de despedaçarem o coração; não sabendo, porém, como pudesse fazer com que esse bilhete ditado pela mais vil intriga caísse nas mãos de sua rival, passaram-se dias até que oportuna oca­sião veio coroar-lhe o intento.

A tarde ia alta; transmontava o sol desapare­cendo por entre os belos damascos de púrpura que desdobravam-se pelo horizonte; seus raios derrama­vam-se sobre as árvores e sumidades dos montes, emprestando-lhes por momentos véus de ouro; as soberbas vagas de São Francisco deslizavam-se ma­jestosamente com arruído; os passarinhos descanta­vam tão saudosos que parecia que celebravam as exéquias do dia, que pouco e pouco lá se esvaecia no ocidente, e branda e suave viração, embalsamada do odor dos floridos bosques, percorria as campinas co­roadas de coqueiros, agitando seus verdes leques. Mariana passeava gozando das pitorescas cenas que em quadros tão animados ofereciam aqueles sítios, e ante ela, não distante, caminhava Isabel, que tirando do seio um papelinho, deixou-o cair e continuou como se o não tivesse pressentido, na esperança de que Mariana o apanharia. Não enganou-se; e o fogo do ciúme que devora, aniquila e consome, inflamou pela primeira vez esse coração tão terno!

Buscou Isabel perder-se pelos labirintos de verdura das planícies de São Francisco, e Mariana dirigiu-se para a margem do rio: aí, sentada sobre um rochedo, olhos demissos e afogados em lágri­mas, o peito oprimido de dor, pôs-se a cantar triste­mente ao sussurro das ondas e dos coqueiros, que plácida e fagueiramente abanava a viração, estes versos que outrora do saudoso Bernardim Ribeiro, do poeta enamorado da bela lusitana, escutaram as montanhas aprazíveis de Sintra, e que ela muitas ve­zes repetia ao seu amador, nesse mesmo lugar, recli­nado  nesse mesmo rochedo:

“Ao longo de uma Ribeira,

que vai pelo pé da serra,

onde me a mi fez a guerra

muito tempo o grande amor,

me levou a minha dor;

já era tarde do dia,

e a agoa dela corria,

por antre um alto arvoredo,

onde ás vezes ia quedo

o Rio, e ás vezes não.

Entrada era do verão,

quando começam as aves,

com seus cantares suaves

fazer tudo gracioso;

ao rogido saudoso

das agoas cantavam elas.

Todalas minhas querelas

se me poseram diante;

ali morrer quisera ante,

que ver per onde passei,

mas eu que digo? passei...

antes inda hei de passar

em quanto hi houver pesar,

que sempre o hi ha de haver.

As agoas, que de correr

não cessavam um momento,

me trouxeram ó pensamento,

que assi eram minhas mágoas;

donde sempre correm agoas

per estes olhos mesquinhos,

que tem abertos caminhos,

polo meo do meu rosto;

e ja não tenho outro gosto

na grande desdita minha,

o que eu cuidava que tinha

foi-se-me assi não sei como;

donde eu certa crença tomo,

que pera me leixar veo.

As lágrimas que se lhe desataram dos olhos, os soluços que se lhe desenlaçaram do coração, lhe to­lheram a voz; os versos do trovador de Sintra pareciam tecidos para ela! Crendo ter perdido para sempre o objeto de seu amor que ela pensava idolatrar-lhe, re­cordava-se saudosamente dos dias risonhos de seus passados anos; lembrava-se do sítio onde vira pela vez primeira a luz do astro que agora se escondia no ocidente; e para ele volvendo os olhos, suspirando, o saudou pela derradeira vez. O sol brilhou ainda por alguns momentos e desapareceu... Ergueu-se então e foi caminho da choupana do velho Afonso; e, torcendo o rosto, lançou um olhar de saudades sobre as rochas que deixava, e magoado suspiro esca­pou-se-lhe dos lábios.

Era o último adeus que ela enviava aos lugares testemunhas de seus amores!...

Cedo desceu a noite, e o céu dos trópicos pa­tenteou-se em toda a sua pompa, como um oceano de luminosas estrelas. Assentados à porta da choupana, desfrutavam Afonso, Dinis Gonçalves e Isabel a fresca aragem da noite, e Mariana, reclinada à jane­la, meditava tristemente; tinha ela na mente um pen­samento terrível! Terrível, como uma inspiração do inferno! Terrível! — o suicídio!...

 

IV

DESESPERAÇÃO INFERNAL

Cleonice

Cediamo al destino. Da me lontano,

Vive felice, il tuo dolor consola.

Poco avrai da dolerti

Ch'io ti viva infidele, anima mia.

Giá de questo momento

Io comincio a morir. Que 'esto ch'io verso

Fors 'é l'ultimo pianto. Adio! Non dirme

Mai piú che infida e che sperjura in sono.

Alceste

Perdono, anima mia! Oh Dio, perdono!

Metastasio

O astro dos mortos ia placidamente pelo céu, derramando frouxos e amarelados raios, desapare­cendo de momento em momento para tornar a apare­cer dentre brancas nuvens que ensanefavam a abó­boda celeste. O rumorejar da viração, enfiada pela basta folhagem dos bosques, os bramidos das fero­zes onças e sucuriúbas, o ruído que faziam os taman­duás correndo pelas campinas em busca de formigueiros, e as capivaras atravessando o rio, os sibilos dos môchos pousados nas cumeeiras das cabanas,

.............................o grito agudo e triste

Nos velhos sapezais dos verdes grilos,[19]

o som repetido que espargiam de si rompendo os ares

Do agoureiro morcego as tênues asas[20]

e de quando em quando, lá tão longe, remoto,

A voz do cão, que rosna e vela em tomo.

Do humilde teto, que a inocência habita,[21]

a misturar-se com o cantar dos vigilantes galos, har­monizavam o hino da noite.

Era meia-noite! Afonso, ouvindo bradar por seu nome, ergueu-se; Mariana o chamava; Mariana, que languia  nas ânsias da morte...

O velho embuçado em pardo capote, chegou vagarosamente ao leito; beijou-lhe ela as rugosas mãos, e soluçando regou-as com copiosa torrente de lágrimas de fogo.

— Chamai, meu querido pai, que pai mo haveis sido, chamai Dinis e Isabel; quero deles me despe­dir; quero vê-los pela vez extrema, e morrer amada por eles...

Morrer! ... Morrer! ... exclamou o velho cheio de admiração.

— Sim, morrer! ... Meu Deus, todo poderoso, perdoai-me tamanho crime.., a voluntária morte que bebi na taça da desesperação e do crime! ...

Afonso, trêmulo, repassado de susto e de pa­vor, como se estivera ante alguma visão, ante algum fantasma, interrogou-a por vezes; instado, porém, fortemente, foi chamar Dinis e Isabel. Então ajoe­lhando-se ela ante o crucifixo que pendia da parede esbroada da cabeceira do seu leito, e alagada de lá­grimas, pôs-se a murmurar o símbolo dos apóstolos. Sentindo passos, persignou-se e deitou-se. Chegara Afonso seguido de Dinis e Isabel, e ao vê-los, novas lágrimas desprenderam-se desses olhos outrora tão belos, tão cheios de vida, tão repassados de amor e de ledice, e nos quais agora

Um não sei quê de magoado, e triste

Os corações mais duros enternece,[22]

e serpejaram em fio pelas faces

Que descoradas estavam como rosas

Que hão sido fora da estação cortadas,[23]

pois que iam perdendo

A branca e viva cor, co a doce vida.[24]

Tomou as mãos de ambos, cobriu-as de beijos, ligou-as; e depois suspirou tristemente.

— É teu, Isabel!... Eu to cedo! exclamou ela. Sê feliz com ele por toda a vida, que eu generosamente morro para seres ditosa, para que o possas lograr sem que o ciúme te mortifique, te exacerbe, te enfureça, e sem que também arme teu braço contra meu peito!

“E tu, meu caro Dinis, única consolação que eras de minha alma! Ah, tu devias fazer a minha feli­cidade, no entanto foste infiel, perjuraste! Pois hem, sê feliz com Isabel, a quem amas, que este bilhete... Oh, este bilhete em que li teu crime, em que li teu perjúrio, em que li minha desgraça, destruiu todas essas esperanças que me embalavam nos braços da ventura; envenenou esses dias que tão docemente es­coavam-se; turbou esses sonhos encantadores de amor que eu sonhava adormecida junto de ti, recli­nada sobre teu peito, acarinhada por teus beijos, afa­gada por tuas cantigas!

“Ei-lo aqui esse terrível escrito!

— Perdão, perdão! disse Isabel, caindo de joe­lhos, com os olhos arrasados de pranto.

Momento solene! Afonso, como estátua, con­templava esta cena sem poder compreendê-la; sua admiração aumentava-se de instante à  instante. Reinava o silêncio dos túmulos por toda a choupana, apenas quebrado de quando em quando por um ou outro soluço de morte, por um ai de arrependimen­to; a candeia que presa a esbroado pilar ardia fune­bremente, soltando baços clarões, parecia extin­guir-se de momento em momento. Dinis arrebatou o bilhete das mãos de Mariana, aproximou-se da can­deia, leu-o, conheceu o enredo traçado pela pérfida Isabel, e fê-lo em pedaços. Mariana, forcejando, sentou-se, e arrimando a cabeça ao ombro do velho Gonçalves, olhos embaciados pelo hálito da morte, gritou por Dinis, com voz trêmula e moribunda: cor­reu o moço para ela, cerrou-a nos seus braços, ba­nhou-a com lágrimas ardentes; e ela lhe entregando o último suspiro, tornou-se pálida e fria.

A candeia soltou seu último clarão e apagou-se...

Afonso abriu a janela, e a lua enfiando por ela seus débeis raios, foi palidejar sobre o cadáver de Mariana...

Dinis, com os cabelos alvoroçados, olhar cinti­lante de raiva, lançou mão de um punhal que lhe fi­cava a pouca distância, e arremessou-se desapiedado à  Isabel.

— Morre, pérfida! bradou ele pela voz do trovão.

— Perdão!... implorou ela, ajoelhando-se.

— Dinis! Meu filho! ...

Em nome de Deus, perdão!... repetiu Isabel.

— Morre! Morre! ...

— Ah! não me mates!...

E um gemido, e para sempre a morte!

— Que horror, meu Deus, que horror! excla­mou o velho precipitando-se sobre o desesperado amante, a quem dominavam as fúrias da vingança. Dinis acabava de sacar o ferro do seio de sua vítima, e ainda tinto de sangue, ainda tépido, ia a embebê-lo no coração, quando arrebatou-lho e furioso bra­dou-lhe que se contivesse. Porém nada, nada absolu­tamente pôde opor barreiras à ira de seu peito.

Abriu precipitadamente a porta e seu pai o se­guiu segurando-o pelo braço. De repente esca­pou-lhe, e como um relâmpago que se abre nas tre­vas, desapareceu a seus olhos para todo o sempre.

— Meu filho! Meu desgraçado filho!... excla­mou Afonso Gonçalves levantando as mãos para o céu e caindo de joe'lhos.

Ouviu-se ao longe:

— Mariana, eu já te sigo! Serei teu outra vez! E um gemido partiu do fundo das ondas.

 

V

CONCLUSÃO

Nunca mais os colonos de São Francisco ousa­ram de passar pelas margens do grande e caudaloso rio durante a meia-noite; e fama foi ainda por muito tempo depois que um vulto correndo despenhava-se nas ondas a bradar:

— Mariana, eu já te sigo; serei teu outra vez! E ao longe as ondas bramiam funebremente.

Fim do Romance

 

O TESTAMENTO FALSO

NOVELA

Belisario

Sin hacienda, siendo rico!

Yo quiero vengar-me ya

Del passado fraude y dolo!

.......................................

Loaysa

Pues primeiro..................

Quiero que me perdoneis.

….....................................

Belisario

Mas tu tam poco tuviste

Culpa en el mal que causaste,

Pues cobro en esta contienda

Una esposa y una hacienda!

Aguilar. El mercader amante

 

I

NOVA FUNESTA

Melicia

Gran secreto es el morir.

Paula

Mas es mucho declarado:

mayor secreto es vivir,

y ser cierto de partir,

y no estar aparejado.

Cada uno está engañado

y confiado

que tiene luenga la via.

Melicia

Ainsi fué la mia madre,

mal pecado.

Gil Vicente

Via-se no largo da Lapa, nesse lindo, aprazível e tão concorrido quarteirão do Rio de Janeiro, em uma noite de inverno, uma casa brilhantemente ilu­minada; aí reinava a música com todas as suas sedu­ções e a dança com toda a sua bela desordem; — era um sarau em honra da senhora do dono da casa.

Anselmo Rodrigues estava satisfeitíssimo no meio de seus convivas.

D. Maria Marcelina recebia mil parabéns pelo seu feliz aniversário. Lisonjeiros e aduladores vi­nham aos pares com estudadas finezas significar-lhe o seu prazer pelas boas disposições que, segundo eles, apresentava a ilustre representante de meio sé­culo; e ela mais desejosa que disposta a viver outro tanto tempo, recebia essas congratulações com gra­ça que não deixava também de ser estudada.

Bela e interessante como as meninas aos qua­torze anos, Margarida cativava mais que sua mãe as atenções, e não era para menos por amor daqueles expressivos, negros, grandes e brilhantes olhos, por amor daquela tez amorenada e corada à maneira do jambo, por amor daquele andar cheio de movimen­tos sedutores, por amor daquele falar meigo mais animoso, por amor daquele rir cheio de suavidade. Não era em honra dela o sarau, mas as honras da noi­te lhe pertenciam.

Havia-se já dançado, e muito, e àcerca  dela se ocupavam todos; àcerca  dela, a um canto da casa, conversava seu pai com Manuel Luís Faria, ne­gociante português, estabelecido há poucos anos no país, negreiro, contrabandista, ambicioso de riqueza e ávido de todas as honras criadas pela sociedade e por ela prostituídas aos sacerdotes de Pluto...

Sem ter perdido aquelas maneiras rústicas, os modos selvagens, seus ademans grotescos con­traídos desde o nascimento, procurava contudo po­lir-se conchegando-se àqueles cujas maneiras atrativas lhe serviam de estudo; era a bela Margarida o objeto de sua atenção, e gosto era vê-lo dirigir-se à interessante menina, que o desdenhava, que o aborrecia de morte.

Queixava-se agora ao pai por jamais haver conseguido dançar com ela, porque sempre a achava premunida de par, de maneira que via-se obrigado a valer-se da autoridade paterna.

Aí veio cair a conversa depois de haver versa­do sobre a beleza da menina tão gabada por Manuel Luís, ou sobre a educação planejada por Anselmo, quando este, sorrindo-se, acenou para um galante menino, sentado à  alguma distância.

Era seu filho, o último com que o céu abençoa­ra a sua união; falou-lhe ele ao ouvido, e o pequeno foi direito à irmã que passeava pelo braço de Henri­que, a quem muitos davam antecipadamente o título de doutor.

Margarida dirigiu-se imediatamente a seu pai; Henrique acompanhou-a.

Manuel Luís levantou-se, inclinou-se, arras­tando os pés; levantou a cadeira em que estava senta­do àcima de todas as cabeças, atirou com ela, não sem estrondo, em frente da cadeira de Anselmo Rodrigues.

— Ora aqui está um assento, disse ele.

— Agradecida, respondeu Margarida escusan­do-se.

— Margarida, espero um favor de ti.

— Mandais, senhor, e não pedis.

— Hoje peço.

— E se eu jamais pude negar-vos um favor, meu pai, quanto mais hoje.

— Bom, bom! acrescentou Faria esfregando as mãos, estou servido!

E pôs-se a calçar umas luvas.

— Espero que danceis como Sr. Manuel Luís.

Margarida calou-se e Henrique sorriu-se ma­lignamente.

— Ó diabo! exclamou Luís admirado que as lu­vas estivessem tão justas.

— E então? disse o pai.

— Tenho par para contradanças sem conta, que, segundo penso, não se dançarão hoje.

— Agora com quem danças?

— Com o Sr. doutor, respondeu Margarida re­ferindo-se a Henrique.

Henrique corou, titubeou, quis falar e nada disse. O velho deu mostras de impaciência.

— Eu cedo, disse Henrique esforçando-se sobre si. Margarida deu-lhe leve cotovelada.

Manuel Luís inclinou-se batendo com as mãos nas coxas.

— E eu estou pronto.

E vendo que as luvas se tinham aberto, pôs-se admirado a olhar para as mãos.

Margarida e Henrique puseram-se a rir. A orquestra deu sinal para a valsa.

— Vamos, disse Manuel Luís oferecendo o bra­ço a Margarida.

— Ainda é cedo, respondeu Margarida, não ou­vis o sinal para a valsa?

E começou a música.

Henrique tomou Margarida pela cintura, pegou-lhe da mão direita, e ao som animado da harmo­nia de Strauss deslizaram-se unidos pelo salão; eram dois anjos balançando-se sobre as nuvens, e o pavimento todo coberto de oleado, colorido, parecia rebentar em flores sob aqueles pés tão delicados, ligeiros e leves.

Manuel Luís deixou-se cair sobre urna cadeira; a raiva o dominava ao mesmo tempo que a admiração modificava-lhe a ira; achava-se mistificado, e para ele o negócio era mais que sério; e contudo invejava a Henrique o poder que lhe dera a arte e a na­tureza.

Terminada a valsa, conduziu Henrique a inte­ressante Margarida para bem distante de Manuel Luís; ofereceu-lhe um lugar no divã, de bela seda azul, todo brocado de ouro, e sentou-se a seu lado. Aí conversavam eles havia já alguns minutos, quan­do a orquestra deu o sinal para contradança.

— Vão cantar? perguntou Faria a Rodrigues.

— É o sinal...

— Ah! é o sinal, sim, eu não desgosto dessa mú­sica.

— Segue-se a contradança, digo-vos eu, ajuntou Anselmo.

— Sim, em segundo lugar a contradança, acres­centou Manuel Luís.

Anselmo riu-se e calou-se; Manuel Luís, per­cebendo que iam dançar, levantou-se, dirigiu-se a Margarida e ofereceu-lhe o braço, que ela aceitou sem pronunciar palavra, e sem que mesmo se dignasse de encará-lo.

Henrique, que ficara só, ergueu-se, e um ami­go veio lhe bater no ombro.

— Então, vamos?

— Oh! é verdade, disse Henrique, eu não danço agora.

— E como há de ser isso?

— Mas dançarás com o senhor, e servir-lhe-ás de vis-à-vis.

Sim, Sr. Dr. Silva, disse Manuel Luís, sir­va-me de aviso, que eu cá disso pesco muito pouco.

— Que diabo de lapuz é este, Henrique?

— Caluda! É o noivo de... Henrique aproxi­mou-se e falou-lhe ao ouvido; ah! Margarida ouviu perfeitamente o seu nome e corou.

— Ora, temos conversado, disse o doutor, vol­tando-lhe as costas com o maior desprezo; e Manuel Luís, mudo e em pé no meio da sala, olhava para to­dos os lados.

— O que vos falta, senhor? perguntou-lhe Hen­rique.

— O aviso.

Aqui estou eu.

— Mas não tendes dama.

— Ser-me-á fácil achá-la; não há senhora que não me queira para seu cavalheiro.

— Pois então arranje-se.

Henrique deixou-o, e Margarida guardou o maior silêncio para com seu cavalheiro.

Tendo a contradança começado, Henrique foi ocupar o lugar que lhe competia, em frente de Mar­garida. Então um sussurro lavrou por todos os dan­çantes; todos os olhos se ocupavam do par de Henri­que, da bela escolha que ele fizera: era a sua dama uma horrenda velha, e Manuel Luís mordia os bei­ços de raiva pelo excelente aviso que lhe dava o bom do moço.

— Então, senhor, disse Henrique passando por Margarida no chaine anglaise, não perdemos.

— Certamente, antes vis-à-vis que par.

— Mas o Manuel Luís é que se está mordendo de raiva.

— Onde fostes desencavar essa bruxa, Sr. dou­tor?

— É uma noiva para ele.

— Diabo! murmurou Luís, se eu soubesse não dançava.

E estendeu as mãos para Margarida; era um tour de mains.

Que mãos de ferro tem esse homem, obser­vou Margarida.

— Dança com garbo, ajuntou Henrique ofere­cendo a mão esquerda a Margarida no chaine de dame; olhai como dá com aqueles cotovelos à modode caixeiro de taverna que anda pelas ruas às pres­sas.

— Senhora, disse Manuel Luís, haveis de con­sentir que tire as luvas, que estão todas rotas.

— Ora, essa é boa, respondeu Margarida, pois não vedes que os vossos calos rasgarão as minhas como já rasgaram as vossas?

— Sois muito ríspida, D. Margarida, mas para mim que para um certo sujeito...

— Pois sabeis disso?

— Sei que...

— Ora, dizei.

— Henrique...

— Acabai.

— Empregais otimamente o vosso tempo.

— E não faço bem?

— Sim, porque ignorais quem ele seja.

— Outro tanto diria ele de vós se eu vos amasse, não sei se com mais razão.

— Se eu vos amasse, repetiu ele entre os dentes.

— E para que essas rivalidades?

— Se ele não fosse um intrigante, se...

— En avant deux, Sr. Manuel Luís, bradou-lhe o mestre-sala vendo-o parado; e Manuel Luís pôs-se em avant deux quando os outros já atravessavam, e todos puseram-se a rir.

— Manuel Luís, murmurou-lhe Anselmo sacu­dindo-lhe a aba da casaca.

— O que há lá, que não me deixam hoje com os diabos?

— Não sabeis?

— O que é, estais pálido?

— Lourenço Pinto de Sousa...

— O que tem?

— O que tem? ajuntou também Henrique atraí­do pelo nome de seu padrinho.

— Morreu agora mesmo!

— Morreu! repetiram os pares que o rodeavam e a nova funesta derramou-se pelo salão.

— E sem reconciliar-se comigo, balbuciou Hen­rique caindo sobre o divã.

— E sem ter feito talvez novo testamento! bra­dou Luís precipitando-se pelas escadas.

— O meu vidrinho de sais! gritou Marcelina para suas mucamas, dirigindo-se a Henrique, porém já lá estava Margarida para chamá-lo à vida com aqueles dois negros e cintilantes olhos.

Henrique estava sucumbido por aquele inespe­rado golpe.

— Que agouro, murmurou Maria Marcelina consigo, que agouro, logo nesta ocasião!

— Qual dos dois será o herdeiro? Qual do dois será também o marido de minha filha! Tal foi o pri­meiro pensamento de Anselmo.

Pouco depois uma sege conduzia Henrique para o seu domicílio, e o silêncio da noite veio por seu turno ocupar o bulício do sarau tão funestamente interrompido.

E tudo tornou-se trevas.

O sono e o descanso sucederam ao movimento e aos prazeres; e só dois entes velavam, só dois entes tão distantes! — se ocupavam com o mesmo objeto; o futuro!...

Só dois entes: — Margarida e Henrique!

 

II

QUERO PORQUE QUERO!

Tudo perdi, desgraçado,

Exclama o moço............

Só nesta alma o seu retrato

Dura com fogo gravado!

Mouzinho

Margarida tinha-se levantado tristonha de seu leito, e assim se conservara todo o dia; sentou-se à noite ao piano e pôs-se a cantar as mais tristes e fúne­bres modinhas que possuía.

— Há dias em que o coração parece que nos adi­vinha algum mal, disse ela consigo; estou tão triste e não sei a causa!

Fechou o piano; chegou à janela. Brilhava a lua e tudo era deserto. Notou no entanto um vulto que passava em frente da igreja e que se moveu dirigin­do-se para o lado de sua casa.

Margarida recuou algum tanto para dentro, e ao mesmo tempo sentiu cair na soleira da sacada, a seus pés, uma pedrinha.

Olhou e viu que o vulto tomava nova direção; abaixou-se e apanhou um papel atado a uma pedrinha.

Arremessou a pedra à rua e escondeu o papel no seio; no mesmo instante uma mão tocou-lhe de leve no ombro; olhou sobressaltada, e era sua mãe.

— Margarida!

— Senhora.

— São horas de acomodar-nos; Anselmo parece que faz tenção de se não recolher, nem é possível que o enterro deitasse para tão tarde.

— Ele não pode tardar, minha mãe, mas eu tam­bém não posso esperar que estou a cair de sono.

— Assim também estou eu; ontem tão alegre e hoje tão triste; aquela nova funesta me tem feito cis­mar, e bem.

— Tanto pior; esquecei-a se não quereis que vos seja em tudo sinistra.

— Sim, sim, mas aí é que está a dif... fi... cul... da... de... disse Marcelina bocejando.

— Talvez que o sono...

Margarida ia prosseguir quando lembrou-se de pôr fim à conversação.

— Vou deitar-me, ajuntou ela, que não posso com tanto sono.

E beijando a mão da mãe, recolheu-se a seu quarto. Aí, desenrolando o bilhetinho, leu com avi­dez e curiosidade devorando as letras:

“Senhora. — Perdoai o meu atrevimento; ti­nha-me imposto a mim mesmo o preceito de jamais fazer uso da pena para corresponder-me secreta­mente com senhora alguma; obriga-me porém a ne­cessidade a proceder de outra maneira; se me não perdoardes, não me culpareis daqui em diante, por­que espero que seja esta a primeira e a última vez.

“Estou pobre, desgraçado, que perdi tudo! Chegava ao fim de meus estudos, já no 6.° ano de medicina, e via contente coroados os meus esforços por vossa mão, pagava-me bem deles com a posse dela, quando a súbita morte de meu padrinho, que me devia fazer feliz e ditoso constituindo-me herdei­ro de imensa fortuna, me deixa para sempre desgra­çado, sem um real de esmola, que toda essa imensa riqueza de seiscentos mil cruzados foi pouca para premiar a intriga de Manuel Luís!

“Amava-vos ele, e já vosso pai estimava pelos seus haveres; se a avareza não apagou em seu coração o amor que vos tributava, sua vitória é certa; vossa mão já não será para mim, homem sem futuro; exi­gir-vos-ão um sim sem a mínima reflexão, e vós... Margarida! o passado é sem esperança! As que tínha­mos então repousavam no porvir... como num sonho!

“Aos quatorze anos o coração da mulher so­mente sabe amar; aos quatorze anos a ambição re­pousa nele, como as fezes no fundo de um vaso antes da fermentação; mas lá vem o tempo em que elas se revolvem, tudo toldando até ganhar a superfície; mas eu, longe de apelar para ele — ainda tão belo e inocente! — apelo para a vossa razão, que o futuro não seja para mim um remorso!

“Perdi, ainda no berço, minha mãe; e ainda em tenra idade, meu pai esteriçado  num ataúde pa­recia-me a mim que dormia; pobre, não fiquei sem amparo; perdi-o porém agora; e assim vejo fugir a minha esperança! Resta-me a resignação, que esta a tenho eu, para afrontar os rigores da sorte; mas outro tanto não espero de vós; associar-vos à minha ventura era o meu pensamento de todos os instantes; associar-vos à minha desgraça... Oh! nunca!

“Segui pois a vossa estrela; obedecei a vosso pai; amai o homem que vos pode fazer feliz, amai-o tanto como me amastes, e esquecei-me para todo o sempre, para que no meio da abundância e dos pra­zeres não vos venha uma lágrima manchar as vossas belas faces, lembrando-vos talvez que eu curto as mais pesadas necessidades da vida.

“Eu sim, não me esquecerei de vós; vossa ima­gem, gravada na minha mente, será como a lem­brança da bonança na tormenta!

“Ah! basta que haja um infeliz neste mundo; um só, e que esse seja eu!

“Sede feliz! A abenção divina caia sobre vós! Tornar-nos-emos a ver e a amar; — aonde? Deus o sabe. Adeus!

Henrique”.

Margarida tinha banhado das letras com suas lágrimas. Tornou a ler, e novas lágrimas caíram so­bre as páginas, como gotas de chuva sobre as folhas da taioba. Queria decorá-la lendo e relendo ainda muitas vezes, quando sentiu o ruído dos passos de seu pai subindo a escada e batendo de degrau em de­grau com a bengala.

Correu Maria Marcelina ao encontro de seu velho esposo; e Margarida, amarrotando a carta, es­condeu-a ligeiramente sob o travesseiro.

Anselmo Rodrigues, à proporção que entrava, ia fechando as portas sobre si, até que recolheu-se a seu aposento, vizinho ao de Margarida.

Franco por demais, não era muito para segredos; havia pois por costume de muitos anos trazer sua espo­sa inteirada de tudo quanto tinha feito, fazia e tenciona­va fazer: pôs-se pois a conversar com sua mulher.

Margarida ao ouvi-lo como que pronunciar seu nome, correu para junto da porta que comunicava um quarto com outro, mas que não era de estilo abrir-se, e escutou.

— Ora, eu tinha cá meu receio que o homem já não quisesse, pois que mudaram-se as circunstâncias.

— Sim, Anselmo, mudaram-se as circunstâncias, e é por isso que eu mudo também de parecer; agora, sim, consinto eu que Margarida se case com Faria; mas a dúvida já não é minha senão dela. Quererá?

— E que remédio terá senão estar pelo que qui­sermos? Porventura tiveste tu querer quando te fui pedir a teu pai?

— Eu recebi educação diferente, e bem te hás de lembrar que a primeira vez que te vi foi na igreja, pois que pelos quícios das portas e orifícios das fe­chaduras mal te podia distinguir; os tempos são idos e hoje em dia...

— E hoje em dia os pais têm o mesmo direito que nos tempos de dantes.

— Mas ela ama a Henrique, tem-lhe decidida in­clinação; e quem sabe se ele...

— Ora, pelo amor de Deus, não me fales nesse moço; ficou sem um vintém, e no entanto que Manu­el Luís está senhor de seis milhões! O padrinho que tal fez é certo que bem o conhecia; quando não, re­partiria a herança por igual.

— E nesse caso o que vemos? Que as intrigas de Manuel Luís prevaleceram.

— Não tanto assim; ambos se guerrearam a mais não poder, ambos tinham suas dívidas para com o velho Lourenço Pinto, porém o tal Henrique mais que o outro; Manuel Luís sempre é homem es­tabelecido, negociante...

— Mas sem educação e completamente bruto, ignorante e...

— Não importa, como tem dinheiro todo o mun­do o há de aturar e até mesmo poli-lo; e eu o que de­sejo é fazer o futuro de minha filha.

— E eu também.

— Pois bem, estamos concordes, e por todo este mês há de efetuar-se o casamento.

— Então é necessário cuidar do enxoval.

— Em nada; tudo será pronto; quem tem o seu con­dão em seis milhões, que mais necessita que acenar?

— Seis milhões!... repetiu a mulher.

— Seis milhões! disse ainda Anselmo meten­do-se na cama.

Ah! Margarida estava traspassada pelas pala­vras que ouvira; traspassada pelas palavras que ou­vira; traspassada como se fosse por agudas espadas!

Infelizmente para ela não era um sonho.

— Minha mãe, minha mãe! disse ela arremes­sando-se no leito, e também vós!

Dormiu, mas que sono! Todo ele agitado; e pela manhã, ao beijar a mão paterna, foi inteirada por Anselmo de seus desígnios.

Consultada sobre o casamento, respondeu-lhe que não tinha vontade própria.

— Estranho sobremaneira, lhe disse o pai, essa vossa resposta.

— Pois bem, respondeu Margarida, um sim ou um não não será o mesmo para quem está disposto a obrigar-me a casar, não com Henrique ou Manuel Luís, mas com seis milhões?

— E são para mim que os quero, minha filha!

— Não, meu pai, são para mim; o casamento está concluído: aqui está minha mão! A venda está feita, aqui está a escrava!

— Margarida! disse asperamente Marcelina, que tom é esse? Não falas com teu pai?

— Se vos ofendo, perdoai-me, mas esse tom im­perioso não o teria eu, tê-lo-íeis vós, minha mãe, se ainda advogásseis a minha causa.

Marcelina calou-se; Anselmo, pronto para sair, bateu com a bengala de rijo no pavimento, como que firmando sua vontade, o seu quero porque quero, a despeito dos bons desejos de sua filha, e desceu pau­sadamente a escada.

Então o pranto desatou-se daqueles olhos tão ne­gros e belos; e abraçada com sua mãe viu, não sem con­solação, que as lágrimas maternais também corriam.

Mas tudo em vão!

E no entanto quantas moças não lhe invejariam sorte?

Assim é tudo neste vale de lágrimas!...

 

III

O CASAMENTO

To mourn him?

Pierpont

Todo o largo da Lapa e suas ruas imediatas apresentavam o aspecto de um dia de festa; as carru­agens paradas à porta de Anselmo Rodrigues tinham atraído a atenção da vizinhança; as janelas estavam guarnecidas de moças cheias de curiosidade e tam­bém de inveja.

Era o dia aprazado para o casamento do Sr. Comendador Manuel Luís de Faria, cujas maneiras delicadas no trato de cortesão haviam sido adquiri­das na contagem de seiscentos mil cruzados!

Pomposa carruagem, tirada por uma quadriga de urcos, parou à porta de Anselmo; pajem de rica li­bré azul com vivos dourados desceu pressuroso a abrir a portinhola, e um homem trazendo uma sober­ba e disforme comenda no peito da casaca, sobre a algibeira da carteira, saltou e subiu a escada.

— O Sr. comendador!... bradou Anselmo para dentro, correndo à escada para recebê-lo com outras pessoas que se achavam em sua casa.

Manuel Luís foi introduzido na sala com os maiores cumprimentos, sem dúvida devidos ao sinal característico de sua casaca, emblema de suas riquezas.

— Então a menina ainda não está pronta? per­guntou ele.

— Ela não tarda, Sr. Comendador! está bela como uma noiva, que noiva é.

— Pois vamos aviar que o sol não tarda a reco­lher-se, disse o comendador.

— Que terá o sol com o casamento? Murmurou um dos convidados cujo negro bigode sobressaía à tez alva do rosto.

— Falai mais baixo, que ele pode ouvir, Rafael.

— Sem dúvida, ajuntou o Dr. Silva, estou enga­nado; trata-se talvez de um batizado.

— Isso é para mais tarde, respondeu Rafael; o Sr. comendador espera um baronato, para o que...

— Para o que já tem despendido algumas boas somas.

— Se lhe derem...

— Ora, se lhe darão! pois já não teve a Comenda de Cristo?

— E o que fez para isso?

— Ora o que fez? Fez todo o possível. Deu os passos precisos e alcançou-a.

Maria Marcelina apareceu na sala acompa­nhando a sua filha. O comendador correu a cumpri­mentá-la, e Rodrigues deu o sinal para a partida.

— Esperai, meu pai, disse Margarida; há um dever a cumprir ainda: não sairei senão com uma condição.

— Minha filha! bradou Marcelina como que in­quieta e indignada.

— Minha mãe, eu tenho direito a ser ouvida e muito mais atendida, e espero sê-lo. Sr. comenda­dor, acrescentou ela dirigindo-se para Manuel Luís, é de vossa bondade que espero me presteis toda a atenção.

— Eu vo-la prestarei, senhora; podeis falar com toda a liberdade.

Esta cena tinha tomado um caráter sério e atra­ído todas as atenções; nunca o comendador se havia saído tão bem; e Margarida, sem se perturbar, me­teu a mão no seio e tirou de um papelinho.

— Há um homem, disse ela, que deve de hoje em diante ser esquecido por mim; não que seja de ri­goroso dever para uma mulher deslembrar-se, só por casar-se, até daquele que foi o primeiro a ocupar um lugar em seu coração, mas porque ele exige, para minha completa ventura, que me olvide dele. Desgraçado, teme que a lembrança de suas misérias venha turbar o brilho de meus prazeres! Assim, eu quero que ele também esqueça-se de mim para sem­pre; que quando sinta o punhal do infortúnio enter­rar-se-lhe pelo peito não exclame: “Ela nada na abundância, e eu sofro!”

— Pois bem, disse o comendador, dar-lhe-emos algumas mensalidades.

— Nem eu, nem vós, senhor; que ele as receba sem que saiba de quem.

— Tanto melhor.

— Muito bem: já que sois generoso, sabei mais que pagais generosidade por generosidade; aqui ten­des e vede, senhor, como Margarida o amando vai entretanto ante o altar dar-vos a sua mão.

Margarida entregou a carta de Henrique a Ma­nuel Luís, que parecia devorar as letras com os olhos.

— Ela honra a Henrique, disse o comendador dobrando a carta; tive um rival assaz generoso!

— E procedeu, ajuntou Margarida, como mui­tos não se haveriam em seu caso.

— Pois bem, dar-lhe-ei mensalmente mil cruza­dos para ajuda de seus estudos.

O espanto foi geral. O comendador meteu a carta na algibeira e todos os olhos o acompanharam; pensaram todos, talvez, que tanta prodigalidade era inspirada pelas boas e bem empregadas expressões de Henrique; nem mesmo Margarida o compreen­deu, apenas um homem alto e magro, com a cara amorenada e coberta de escaras que lhe deixaram as terríveis bexigas, penetrou-lhe no fundo do coração, e viu os efeitos da causa fatal que mais tarde também viria por seu turno pedir contas à sua nova vítima.

E esse homem estremeceu.

Manuel Luís dirigiu-se a Rafael, murmurou-lhe algumas palavras ao ouvido, e o moço fez sinal afirmativo com a cabeça.

— Agora, disse Margarida, podemos partir.

Metidos em seus carros, segundo o cerimonial observado nessas ocasiões, caminhou o brilhante préstito pela rua do Passeio e foi parar junto à sacris­tia da igreja de São José, que se erguia de novo sobre suas velhas ruínas.

O recinto da capelinha estava atopetado de cu­riosos, atraídos uns pelo ruído dos carros, outros pela fama da riqueza de Faria, cuja boa sorte a mui­tos maravilhava, pois há um mês que o traficante de negros novos se elevava de tão humilde e desprezí­vel estado às mais altas condições da sociedade.

Manuel Luís apeou-se rapidamente e veio ofe­recer a mão a Margarida, que saltou trêmula e em extremo corada; abaixou os olhos e caminhou guia­da por sua mãe, sem ousar olhar em torno de si.

Um murmúrio desprendeu-se de todos os lábios!

— Que pena, disseram uns, tão bela e ainda tão mocinha, para semelhante rústico!

— Que homem feliz, disseram outros, boa he­rança e boa moça!

— São duas fortunas que quase sempre se li­gam, observou um velho.

— Falta a terceira, que quase sempre falta, que õ possuidor digno delas, acrescentou um jovem.

Chegou o sacerdote; vinha todo paramentado de novas vestimentas, lembrança feliz que lhe inspi­rara a esperança de uma boa espórtula.

A capelinha, iluminada, mostrava perfeita­mente todos os olhos fixos em Margarida.

Às expressões claras e sonoras do vigano suce­deu a sua voz trêmula e sumida, que sem duvida se per­deria se o maior silêncio não lhe reinasse em torno.

— Sim, balbuciou ela, e as lágrimas rebenta­ram-lhe dos olhos.

— Chorará por ele? murmurou Faria consigo.

E um ai surdo e abafado como que lhe respon­deu. Assim também sibila a viração, assim responde o eco por quebras do monte.

Terminada a cerimônia, seguiu Margarida con­duzida pelo braço de seu marido; acompanhavam-nos as testemunhas e convidados. Passou por um jo­vem que ali estava de joelhos, que lhe pegou na fím­bria do vestido de branca seda e beijou-a furtivamen­te no meio da confusão.

Deixou-lhe ela um raminho de flores de laran­jas que levava no peito; emblema de castidade e pu­reza, como talvez penhor de seu amor platônico; e o jovem não a compreendeu, que murmurou consigo:

— Para mim as flores, e para ele tudo! Maldito Lourenço Pinto de Sousa!

E saiu.

— Coitado! disse um sujeito bem trajado, alto, de rosto trigueiro e coberto de escaras de bexigas, testemunha até então muda de todo este ato; tanto se amavam e eu fi-los para sempre desgraçados! A um a herança! A ambos o amor! ...

Era o escrevente de um tabelião.

Henrique entrou em casa de seu amigo o Dr. Silva, cuja bolsa lhe havia sido aberta franca e gene­rosamente desde que seu padrinho Pinto de Sousa lhe suspendera a mensalidade que lhe dava, proibin­do-lhe a entrada em casa.

Sentou-se junto de uma mesa em que costumava a escrever, aflito e acabrunhado, e por acaso deparou com a nota da carta que dirigira a Margarida; quis despedaçá-la; conteve-se, porém, e começou a lê-la.

Recordando-se de seus protestos de resigna­ção, acalmou-se, e não chegava ainda ao fim, quan­do sentiu baterem à escada.

— Entre quem é, disse ele largando a carta e diri­gindo seus olhos para a porta de um escuro corredor.

Entrou um pajem negro de rica libré azul com vivos dourados.

 — O Sr. Dr. Henrique?

— Sou esse.

O pajem entregou uma carta volumosa que ti­rou da algibeira, entregou-a, e saiu imediatamente sem que ele desse por isso.

Abriu Henrique a carta, achou uma porção de notas, e leu com espanto:

“Doutor,

“Estude para completar a sua carreira; aí vai o dinheiro para o que necessitar; e igual remessa ser-lhe-á feita mensal e pontualmente, sem que ja­mais se exija de V.Sa. outra paga que o proceder franco e leal de homem honrado”.

Henrique, absorto, contou as notas, e achou que perfaziam a quantia de quatrocentos mil réis.

Procurou pelo pajem e não teve mais notícia dele; reuniu todos os dados para saber de que parte lhe viria semelhante donativo, mas nem pelas fei­ções ou libré do pajem, nem pela letra ou estilo da

carta, o pôde saber; todavia todas as suas presunções tinham seu grau de certeza.

— Nunca a fortuna me desamparou, disse ele a rir-se tristemente; é a estrela de Margarida que ainda luz para mim! é a voz de Lourenço Pinto de Sousa que ainda me socorre do fundo do sepulcro!

E reanimou-se, mas Margarida já não podia ser sua!

Felicidade, ó sonho incompleto da vida! não te possui por certo quem ainda deseja!

 

IV

CINQÜENTA CONTOS DE DOTE

Que quereis, señor, que diga?...

pero dejame topar con ela.

 Lope de Rueda

Havia mais de ano que Margarida tinha-se liga­do a Manuel Luís; levada a todos os divertimentos, nem por isso lhe era dado alegrar-se; mortal melan­colia se apoderara de seu coração desde a morte de sua mãe, que se finara balda de cismar com a nova funesta do dia de seus anos; vivia pois triste e recon­centrada no fundo de seu coração.

Também Manuel Luís por seu turno, não era o mesmo homem; magro e abaçanado, adivinhava-se-lhe o próximo fim, e entretanto a ambição das honras e grandezas o acometia desordenadamente. Preparava a sua casa para esplêndido baile, a fim de comemorar o seu baronato, graça que acabava de obter e que ainda lhe trazia as despesas do título de grandeza que ficara para ocasião mais azada, sem dúvida quando provasse evidentemente que a tinha.

Estava pois o Sr. Barão do Engenho Queimado todo preocupado com os preparativos e disposições do baile, queria ele, para prova de seu mau gosto, que a casa fosse preparada como as nossas igrejas ou confeitarias pela Semana Santa, e da altercação que teve com o armador, encolerizou-se bastante; apare­ceu-lhe a tosse, e um escarro com seus laivos de san­gue veio patentear por mais esta vez o pouco tempo que mal tinha que gozar de sua imensa fortuna.

A Sra. baronesa, que havia acudido aos gritos com S. Exa. queria convencer o armador de seu bom gosto, ordenou imediatamente que fosse uma cabri­olé buscar o Dr. Silva, médico da casa.

Era Manuel Luís um desses homens que não sucumbe facilmente a  idéia da morte; no entan­to ataques sobre ataques complicavam os cuidados que prodigalizava a baronesa; felizmente, porém, para ela, o doutor apeava-se poucos momentos de­pois à porta de sua casa, na bela e espaçosa rua de São Joaquim.

— S. Exa. não deve enfezar-se, disse o doutor, nem eu consinto que se inteire de seus negócios; e demais, ajuntou ele olhando para Margarida, tem quem os dirija tão bem, que não deve ter motivos para amofinar-se.

Pegou depois da pena e receitou-lhe; deixou-o repousando sobre um leito de palhinha, e retirava-se quando a baronesa veio-lhe ao encontro:

— Então, Sr. Dr. aquilo é coisa de cuidado?

— Eu não faço, disse o doutor, mais que cum­prir o meu dever receitando, porém o seu mal já não tem mais cura; é uma tísica pulmonar que se agrava mais e mais, e que está prestes a despenhá-lo no se­pulcro.

— Porém tem caminhado tão rapidamente!

— Agora ainda mais, que vamos passar ao verão.

— Sra. baronesa, gritou o mordomo do barão, outro ataque!

A baronesa e o doutor se dirigiram para a câ­mara do enfermo.

O doutor tomou-lhe o pulso, e a baronesa ven­do que esse socorro lhe era improfícuo, chegou-lhe com um vidrinho de sais ao nariz, e pouco e pouco começou o Sr. do Engenho Queimado a recuperar os sentidos, e o doutor declarou à baronesa que o seu doente corria grande perigo, que devia mudar de ares quanto antes; e a baronesa prometeu-lhe que passava a dar todas as ordens para que seu marido fosse transportado para as Laranjeiras, já que tanto distava a sua Fazenda do Engenho Queimado, mas que devendo o baile ter lugar nessa noite, não o po­deria efetuar senão pela volta da madrugada do dia seguinte, pois que ele insistia em dar o baile.

O doutor retirou-se, e o mordomo, que era um antigo boleeiro cativo, homem pardo, circunspecto e honrado, e a quem Manuel Luís prometia as honras da liberdade, anunciou a chegada do Sr. Dr. Henrique.

A surpresa desenhou-se nas feições empalide­cidas de Margarida.

— Que entre, murmurou o barão com voz sumida.

Margarida, dissimulando, retirou-se para um gabinete vizinho, donde, sem ser vista, podia a salvo saber o objeto da visita de Henrique.

O jovem doutor entrou sem que visse Margari­da, e tomou assento ao pé do leito em que repousava Manuel Luís.

— Sr. barão...

— Meu caro doutor.

— Então como ides? acho-vos macilento, no en­tanto que tendes as faces coradas.

— Isto não está bom, disse o barão esforçan­do-se sobre si mesmo e sentando-se.

— Não tendes gozado de vossa fortuna, adoe­cestes logo, e...

— Doutor, interrompeu o barão, deixemos isso, vamos ao que serve; tais recordações me penalizam, me ralam, me matam ainda mais que esta febre que me escalda e me vai minando a existência. Mandei chamar-vos porque tenho que oferecer-vos uma pro­posta; e graças a Deus, ninguém nos ouve, acrescen­tou ele olhando em torno de si.

— O que será? foi o pensamento rápido de duas imaginações ardentes.

— Logo que cheguei ao Rio de Janeiro, prosse­guiu o barão, travei-me de amores com uma linda menina...

Margarida suspirou inquietando-se.

— Ela era linda, sim, bem linda..., e eu despe­nhei-a na sepultura! Ainda agora ouço a voz terrível que me amaldiçoa do fundo do sepulcro! Enganei-a; tirei-a de casa de seu pai que ma recusara... sem dú­vida por ignorar o que eu ainda seria um dia... e quando a mísera pensava que eu a conduzia à igreja, eu a arrastava para o leito de minha concupiscên­cia!...

Margarida estremeceu, como tocada pela cha­ma elétrica.

— Cecília foi o fruto desse amor desgraçado, herdeira do nome de sua infeliz mãe, e banhada com as lágrimas de seus olhos; a quem fiz educar no Re­colhimento, e a quem, finalmente, acabo de dotar com 50.0000000 rs.

Margarida estava fria como um cadáver; e Henrique, mergulhado no mais profundo silêncio, esperava impassível a proposta do barão.

— Sois jovem e solteiro, disse o barão depois de tão longa pausa, e os bons casamentos hoje são ra­ros, raríssimos. Uma insignificante rivalidade nas­cida entre nós, vos privando de parte da herança, me constituiu o único herdeiro de Lourenço Pinto de Sousa; prestes a deixar o mundo, eu quero concili­ar-me convosco e fazer-vos ditoso; Henrique, fazei também ditosa a minha filha!

Henrique conservou-se mudo até nos gestos.

— Meditai bem, acrescentou o barão cravan­do-lhe os olhos como que para ler no fundo de seu coração.

— Mais do que tenho meditado? perguntou Henrique.

— Olhai que são 50.0000000 rs. e uma linda menina.

— Não importa, eu não me vendo a uma mu­lher, ou não a recebo com indenizações; só me casa­rei com aquela a quem eu amar.

O barão mordeu os beiços e deixou cair a cabe­ça, como quem pensava, e largo suspiro rompeu-lhe dos lábios. No entanto que Margarida se animava e procurava não perder uma só palavra desta interes­sante entrevista.

— Tendes razão, disse o barão com voz firme e animada, vós deveis amá-la antes, e para amá-la é necessário que a vejais; ocorre-me uma idéia...

E passou a mão pela testa.

— Ocorre-me uma idéia, prosseguiu ele; esta noite deverá ter lugar em minha casa um sarau que solenize o meu despacho; vireis a ele e aqui encon­trareis Cecília.

— Pois sim, respondeu Henrique, a quem um pensamento luminoso acabava de despertar, estou pronto.

— O Sr. Anselmo Rodrigues, anunciou o mor­domo.

— Meu pai, murmurou Margarida correndo-lhe ao encontro.

— Pode entrar, disse o barão, e estendendo a mão a Henrique pediu-lhe as suas ordens.

— Até amanhã, Sr. barão.

— Sem falta, disse ele.

— Sim, respondeu Henrique, e saiu.

Anselmo e Margarida penetraram no aposento.

O barão ergueu-se e veio-lhes ao encontro mo­vendo-se vagarosamente como um espectro que se levanta do sepulcro, e caminha, e caminha...

— Então, barão, disse-lhe o sogro, não estás melhor?

— Não, respondeu ele, estou pior.

— Agoniou-se, meu pai, e o resultado foram dois ataques sucessivos.

— Mau, disse Anselmo consigo.

— Nada é; amanhã um baile, depois um casa­mento... e depois o testamento e a morte!

— Ora, barão, esquece-te disso. -Ah! meu sogro, ela é certa.

— O mal não é sem cura; tens os melhores dou­tores do Império, e cedo...

— À sepultura!

— Como estás desanimado!

— Prouvera não; ele já morreu! murmurou o barão sentando-se na poltrona e deixando cair a ca­beça sobre o peito.

A baronesa e Rodrigues depois de se olharem, arrastaram cadeiras e sentaram-se junto a seu lado.

— Ele? interrogou Rodrigues.

— Não vos lembrais, disse o barão (ainda não há dez meses que o viste) de um homem magro, alto, moreno, com a cara toda cheia de sinais de bexigas, e que todo vestido de preto nos acompanhou de nos­sa casa à igreja, na tarde do meu casamento?

— Tenho algumas reminiscências.

— Apanhou um resfriado no mesmo dia que eu, na mesma ocasião que eu, e pelo mesmo motivo que eu; pois fomos a um enterro em Santo Antônio, e quando descíamos a ladeira, a chuva que caía a cân­taros...

— E depois?

— Ele tinha consumido tudo quanto era seu; e desamparado de todos, não teve outro recurso que a Santa Casa de Misericórdia! Meu Deus! tua justiça não é uma quimera, ajuntou ele escondendo a cabeça entre as mãos.

Anselmo julgou dever calar-se; Margarida, com os olhos fitos em seu marido, procurava pene­trar a misteriosa causa de súbitas exclamações, ou de horrendos pesadelos; e o nome de Cecília, fixo em sua imaginação, parecia guiá-la em suas pesquisas.

O velho interrogou a filha com um olhar ex­pressivo.

— Prossegui, disse ela a seu marido, ávida de penetrar-lhe os segredos.

— Esta manhã, continuou ele, fui, segundo a minha devoção, à Santa Casa de Misericórdia, por ser sábado; ouvi missa, e depois visitei as enfermarias; corri todos os leitos um a um, consolando os pobres enfermos com minhas esmolas, já que não lhes podia dar a saúde, bem que só sabemos o que vale quando já não a podemos alcançar!

— É verdade, ajuntou Rodrigues lembrando-se de suas dores reumáticas.

— E logo que entrei na enfermaria dos tísicos, ele se me apresenta!... Estendeu-me a mão, já mal falava; o capelão à sua cabeceira, esperava o seu úl­timo instante. Imóvel, como os olhos fitos em seus olhos, eu lia em sua alma, e meus joelhos se dobra­ram insensivelmente.

“ — Um Padre Nosso por sua alma, bradou o capelão.”

— Ele tinha expirado, e aqueles olhos voltados e ainda abertos para mim, e aquela boca, não fecha­da de toda , com que ainda me falava... Oh! que tudo isto me comoveu bastante!

— Mas quem era esse homem? em que se ocu­pava ele que foi a morrer a um hospital? perguntou a baronesa.

— O fosso dos desgraçados o encerra para sem­pre; a terra da vala comum o cobre; e eu ainda o vejo, e eu ainda escuto a sua voz rouca e solene a bradar-me lá da eternidade:

“— E também tu, também tu, Manuel Luís!”

— Mas para que pensar nessas coisas? disse o sogro.

— Sim, eu quero me distrair; e é por isso que in­sisto contra o parecer da Sra.baronesa em dar o sa­rau, e que ele seja hoje.

— Mas há tantas outras distrações, ajuntou Ro­drigues.

— Já agora, disse Margarida, deixai que ele sa­tisfaça o seu gosto; quer que haja baile, pois haverá; não tomará parte nele como eu não tomarei, mas ao menos terá a satisfação de ver aqui reunidos todos os seus amigos. Não é assim, Sr. barão?

— Sim, respondeu ele sem notar na súbita mu­dança da opinião de Margarida.

— Pois muito bem, acrescentou Margarida; agora que sei a causa de vosso mal, aprovo as distra­ções; elas vos convêm; não pouparei pois todos os meios de pro[cu]rá-las; é o moral e não o físico que sofre!

— Agradecido, balbuciou friamente o barão re­clinando a cabeça no espaldar da poltrona.

— Meu pai, ele quer dormir.

— Pois então deixemo-lo sossegar.

Soaram duas horas no relógio do salão.

— Daqui a seis horas! murmurou Margarida consigo.

E saíram ambos.

 

V

VER E AMAR

Este amor

De terna loucura.

Só louca ternura

M'o pode pagar.

Pois bem, serei louco...

João de Lemos

Vasto salão, tapizado tal qual se a terra lhe re­bentasse em flores; papel tingindo azulada seda achamalotada, e claro teto de estuque dourado e re­camado de arabescos; portas e janelas guarnecidas de cortinas de ricas cambraias; majestosos tremós, belas e soberbas cadeiras de polissandra, divãs e pol­tronas de molas, e mil luzes em profusão pendentes do teto e presas às paredes; eis o recinto onde reina­va o prazer e a alegria, a música e a dança, a espe­rança e também o — remorso!...

A orquestra parara; e após a primeira contra­dança que tivera lugar, seguiu-se essa confusão tão bela e interessante, em que grupos e grupos de cava­leiros e damas se encontram em todos os senti­dos, passeando pelo salão.

— Sra. baronesa, Deus vos salve! disse um jo­vem que trazia uma linda menina pelo braço.

— Deus vos salve, Sr. doutor! respondeu a ba­ronesa.

— E também, ajuntou o doutor, a vosso marido.

— E também, acrescentou a baronesa, a vossa noiva.

Henrique prosseguiu com a linda menina, cu­jas faces se enrubeceram como duas pétalas de rosa, e Margarida, conduzida pelo braço do Barão de Itaíba, penetrou por entre a confusão e foi procurar um assento ao lado de seu marido.

— Já vos fiz a vontade, disse ela; dancei, e não dançarei mais.

— Pudesse eu! exclamou o barão.

— Sr. barão, disse Margarida batendo-lhe de leve no ombro, há aqui pessoas que não convidadas.

— São agregadas aos convidados; isso acontece nas grandes reuniões; acodem ao cheiro da festança; querem folgar e dançar, e como se lhes proporciona a ocasião...

— Sim, mas aqueles que vêm para estar amua­dos e tristes a um canto da casa?

— Gostam de ver!

— Oh! antes ficar em casa... Vede aquela meni­na que nem sequer sabe dar uma palavra, e que está tão admirada de tudo quanto vê, que creio que tem contado todas as luzes.

— É que nunca viu tanta gente, disse o barão dissimulando.

— Senhora, disse Henrique aproximando-se da baronesa, se V. Exa. ainda não tem par... e se me dá a honra...


Não danço mais, respondeu Margarida abai­xando os olhos e deixando-se trair pelo colorido das faces.

— Como ainda há pouco a vi...

— Dancei para satisfazer a meu marido, o Sr. barão.

— Doutor, disse o barão, a senhora não quer dançar; mas não faltam pares: olhai, vede aquela menina como está ali tão sozinha.

— Talvez não saiba dançar, disse Henrique.

Margarida ergueu os olhos e fitou-os em Hen­rique que sentando-se ao lado do barão, ficou entre ele e a baronesa.

— Sim, não saberá, respondeu o barão; mas o que é a dança para uma senhora tendo um bom cava­leiro? Eu que nunca soube dançar, observava os pares marcantes, fazia o que via fazer, e ainda as­sim a dama me guiava, pois deixava-me ir como que distraído.

— Pois bem; vou explicar-lhe essa boa lição, e veremos como ela se sai.

Henrique aproximou-se da senhora, que não teria mais que quatorze anos, pálida, e cujos olhos grandes nada tinham de brilhantes e expressivos; fa­lou-lhe, e ela, imediatamente abaixando os olhos, fez sinal negativo com a cabeça.

O doutor sentou-se e continuou a falar-lhe, e a pálida mocinha ergueu os olhos e os dirigiu para o lado do barão.

O barão, como que compreendesse o que lhe estava a dizer o jovem doutor, acenou-lhe com a ca­beça afirmativamente.

Margarida não deixou escapar esse movimento.

— Não há dúvida, disse ela consigo, é Cecília.

A orquestra deu o sinal para a contradança; Henrique ofereceu o braço à sua nova dama, e um sorriso de alegria derramou-se fugitivamente pelas faces do barão; a baronesa que observava tudo aten­tamente ergueu-se, e caminhava, quando um jovem bacharel lhe veio oferecer o braço.

— Onde quereis que vos conduza, Exma. Sra?

— Passearemos e sentar-me-ei depois junto de D. Carolina, que segundo todas as aparências...

— Acabai, disse o bacharel deixando-se condu­zir pela baronesa e sem mais saber o que lhe devia dizer.

— Ela vos ama, disse Margarida afetando pou­co interesse.

O bacharel calou-se, e Margarida lançou rápi­do olhar pelos pares postados em seus lugares à es­pera que a orquestra começasse.

— Aqui, disse ela sentando-se numa cadeira e agradecendo ao bacharel o seu favor.

— Logo aqui, disse uma linda menina, de pé, à sua frente e ao lado de seu cavaleiro.

— Sim, D. Carolina, respondeu a baronesa; não estou bem? Talvez que vos incomode, não?

— Em quê, Sra. baronesa?

— Porque o vosso par já não é o mesmo, e...


— Oh! percebo! se percebo! Maliciosa!

— Tendes uma penetração...

— Melhor é a vossa; ainda agora era eu noiva do doutor Henrique, e já agora sou do meu cavaleiro , não?

— Não.

— E então?

— Eis aí a prova de que não tenho penetração; e não me enganei? Vede o doutor com sua noiva, que estréia agora na dança e que tem cinqüenta contos de dote, e entretanto que...

— Quem, aquela menina?

— D. Cecília.

— De que família?

— Veio do Recolhimento.

— E tem cinqüenta contos de dote?

— Se Henrique se casar com ela; outro qualquer não.

— A contradança começa, Sra. baronesa, disse Carolina, dirigindo-se ao encontro da outra dama, tão confusa porém, que levou a confusão aos seus vis-à-vis, que se recolheram aos seus lugares sem saber o que dançavam. Rindo-se por dissimulação do mal que causara, volveu a bela menina os olhos e buscou a baronesa que se havia retirado; percorreu o salão e viu-se sentada por detrás de Henrique que conversava risonho com Cecília.

— Ah! ela o desfruta, e mofa de mim ao mesmo tempo!

— Sr. doutor, disse Margarida à  Henrique, eu vos dou os parabéns, sois um excelente mestre de dança.

— São lições antes de vosso marido, o... o Sr. barão, ajuntou Henrique, não sem malícia.

— Ai! exclamou Cecília pisando na fímbria de seu rico vestido de seda e rasgando-a, foi-se o meu vestido novo!

— Continuai, disse Henrique, não façais caso, que ides muito bem.

— Doutor, disse a baronesa, logo que termine a contradança, tende a bondade de conduzir a vossa dama ao toucador.

— Sim, respondeu Henrique, é necessário.

Margarida correu a esperá-la, e finda a contra­dança, Carolina, conduzida pela braço de seu cava­leiro , passou junto de Henrique.

— Deus salve a vossa noiva, disse ela; não é a baronesa, sou eu que vo-lo digo, Sr. doutor!

Henrique empalideceu; e oferecendo o braço a Cecilia conduziu-a até a porta do toucador.

— Ide depressa, Sr. doutor, murmurou Marga­rida aproximando-se da porta, que o bacharel Segis­mundo trata de vos roubar a bela Carolina, e menina dos olhos do Sr. de Itaíba.

Henrique voltou; trazia gravadas no pensa­mento as palavras com que Carolina saudara a sua noiva e as palavras da baronesa, e achou-se já enreda­do nessas intrigas sem conhecer-lhe o manejo; Segis­mundo estava sentado ao lado da filha do Sr. de Itaí­ba, rico negociante de carne seca, num tête-à-tête, e a baronesa, que ficara à espreita, retirou-se para dentro do toucador, certa de seu triunfo.

Dirigiu-se então Cecilia, à que estava a mi­rar-se num elegante e soberbo tremó; imprimiu-lhe um beijo nas pálidas faces, tomou-a pela mão, e em­purrando sobre si uma portinha que à primeira vista mal se conhecia, forrada de papel como a parede, le­vou-a para um quarto escuro como a noite.

A baronesa carregou sobre a mola de um vaso, e luminosa chama derramou a claridade do dia pelo pequeno aposento; pegou de uma palmatória e acen­deu a vela da chama, que cessou de brilhar, o que en­cheu de pasmo a Cecília, e colocou depois a palma­tória sobre um guéridon.

— Sentemo-nos, disse ela oferecendo um lugar numa conversadeira.

Cecília lançou os olhos em torno de si e sen­tou-se, ficando face a face com a baronesa.

— Sabeis quem eu sou? lhe perguntou ela.

— Não, senhora.

— Pois igual ignorância é a minha a vosso res­peito; sou a dona desta casa, vós uma visita, e entre­tanto não nos conhecemos! Com quem viestes?

— Eu tive ordem para vir; meteram-me numa sege e conduziram-me para aqui.

— Donde viestes?

— Do Recolhimento.

— Mas não vos disseram nada, não vos explica­ram coisa alguma?

— Disseram-me que era para ver um moço que deseja casar-se comigo.

— Quem é ele?

— O Dr. Henrique.

— Gostais dele?

— Não, senhora.

— Pois não é um moço elegante?

— Muito.

— E então?

Cecília calou-se.

— Amais a alguém? Dizei-o sem vexame.

Cecília corou, e Margarida como que vitoriosa respirou largamente.

— Amais, eu sei: ele está aqui, não?

— Está, respondeu ela abaixando os olhos e apertando as mãos.

— Como se chama?

— Rafael.

— E vos ama?

— Não.

— E então?

— Mas...

— Pois bem, eu farei a vossa felicidade, D. Ce­cília; mas é necessário que faleis ao Sr. barão como me falais; se responderdes que amais a Henrique, sereis mais desgraçada do que foi a vossa mãe.

— Minha mãe! repetiu Cecília em seu coração, essa palavra tão mágica!

Margarida pregou a barra do seu vestido com alguns alfinetes, e disse-lhe que podia sair.

Um moço alto, de rosto claro, que contrastava com negro bigode e que passava, ofereceu-se para conduzi-la.

— Dançareis comigo, D. Cecília, disse ele.

— Sim, Sr. Rafael, respondeu ela corando e abaixando os seus amortecidos olhos.

Margarida veio sentar-se junto do barão. Henrique aproximou-se.

— Então, doutor? interrogou o barão.

Henrique sentou-se a seu lado; a baronesa, desviando os olhos, prestava todavia atenção à con­versa que se ia travar.

— Nada sabe deste mundo; é simples, mas cân­dida, e essa candidez...

— Estais meio tentado?

— Sim, meio tentado.

— Pelos cinqüenta contos, murmurou o barão consigo.

— Pelo pouco que já mereço de Carolina, disse também Henrique em seu pensamento.

— Pois é preciso, ajuntou o barão, que não haja demora; quero tirá-la quanto antes daquela casa, a cujo regime tem se sujeitado há tanto tempo sem queixar-se, e que não é lá dos melhores.

— Sim, é preciso.

— E será a vós que deverei tamanho favor, doutor!

— Mas que não pagarei jamais os que mensal­mente recebo de vós!

— De mim? exclamou o barão, e retorceu-se na cadeira como se uma punhalada o tivesse ferido.

— Sim, vossa generosidade é grande para que possa se esconder, ela é como a luz do sol que se não oculta.

— Bem, disse o barão dissimulando a dor que sentia, pelas vossas expressões fico certo do vosso desígnio.

— Ficai.

— Então até amanhã.

— Até amanhã, Excelentíssimo.

Ergueu-se o barão vagarosamente e retirou-se para o seu aposento, seguido de Anselmo Rodrigues e do Barão de Itaíba, e Margarida acompanhando-os tornou a voltar daí a alguns instantes. Dançava-se já pela última vez, e Cecília era a dama de Rafael; Margarida, conduzida pelo braço do bacharel, que outras honras não almejara durante essa noite, pas­sou por junto dele.

— Rafael, disse ela baixinho, eu te preciso falar.

— Quando, senhora?

— Hoje mesmo, depois de tudo concluído.

— Em que lugar?

— Aqui.

— Então...

— Deixa-te ficar. A baronesa prosseguiu.

— Senhora, disse o bacharel depois de longo es­tudo, sois muito perspicaz; adivinhais.

— Vejo, acudiu a baronesa.


— Ela me ama, e eu ainda não o sabia!

— Bom, murmurou consigo Margarida, e diri­gindo-se a Segismundo, acrescentou:

— E vós, senhor?

— Eu também amava-a, mas temia dar-lhe a sa­ber isso mesmo.

— À mulher a dissimulação, ao homem o atrevi­mento, Sr. Doutor.

— É verdade.

— Pois casai-vos quanto antes; é bela e rica... ora, filha de um barão... e de nossa terra!

— E eu também tenho alguma coisa, ajuntou o bacharel.

— E podeis ser também barão, não é assim?

— Ao menos já tenho o Hábito da Rosa, disse o bacharel mostrando a fita rosada da casaca, e Mar­garida sorriu-se ligeiramente. Chegados de  junto a Henrique que se recostava sobre o divã, a ba­ronesa agradeceu ao espirituoso bacharel, que se pôs em procura de Carolina, e sentou-se ao pé do jovem doutor.

— Ver e amar! disse ela.

— Vi e amei-vos também, repetiu ele.

— Pedi a Deus que outro vo-la não roube.

— Como roubaram-me a outra para fazerem-na baronesa.

— Título vão, e bem vão! repetiu ela suspirando e deixando cair uma lágrima.

Henrique suspirou, mas ah!... ele não a com­preendeu!

 

VI

RAFAEL E CECÍLIA

N'ayons à deux qu'un espoir!

V. Hugo.

Já todos os convidados se haviam retirado, e Rafael, em frente de Cecília, aguardava a baronesa que havia acudido ao chamado do barão, que assaz se lastimava da indiferença com que havia sido trata­do pela aristocracia, pois que apenas o Sr. de Itaíba, barão sem grandeza, havia comparecido.

— Já não falo, dizia ele, dos aristocratas sober­bos de o serem pelo seu nascimento ou pelos servi­ços prestados à pátria no tempo da independência; porém esses que alcançaram o seu título como eu, oh! é muito...

— Eles se chegarão, respondeu a baronesa, tão depressa junteis ao título as honras de grandeza.

— Eu não as quero mais; ambicionamos, faze­mos sacrifícios por elas, mas afinal o que são essas honras, o que valem essas grandezas? A sociedade que sabe a maneira porque  elas se generalizam, também sabe dar-lhes o devido desconto. Meus há­bitos, minhas comendas, meu baronato, tudo isso dava eu de boa vontade pelo que eles não me podem outorgar: — a saúde!

— Essa virá pouco a pouco.

— A morte, sim, disse o barão deixando cair a cabeça sobre o travesseiro do leito em que pousava.

— A apreensão é que vos mata.

— Cecília ainda está aí?

— Quem? disse a baronesa dissimulando.

— Uma pobre menina do Recolhimento, de quem sou padrinho, e que fiz comparecer neste baile para... para desenvolver-se.

— Aí está.

—É tarde para partir; deve dormir conosco e ir amanhã; já dei as minhas ordens ao nosso mordomo para que a sege esteja pronta.

—Nada mais quereis?

—Não, baronesa, senão que a tua melancolia se dis­sipe como esta noite... Estavas tão animada, tão alegre!

—As distrações...

— Nem sempre elas triunfaram da mortal melan­colia que te acompanha, como hoje. Mas ainda bem que a esperança te volta; eu só tenho uma página no li­vro da minha vida, que só me resta ler o terrível fim! Vai ver Cecília, e que não parta sem a minha bênção.

— Não partirá mais.

— Como assim, Margarida?

— Simpatizei com ela; fiquei-lhe querendo tan­to bem... e demais, é tua afilhada... Tenho já o que tanto desejava: — uma companheira.

— Como quiserdes; mas nesse caso convém dar as providências necessárias para que o consinta o mordomo da Santa Casa.


— Rafael se entenderá com ele, amanhã, da vos­sa parte.

— Muito bem.

A baronesa saiu, chegou ao salão, tocou num timbre, e a sonora pancada se repercutiu pela casa: apareceu uma negra.

— Apronta depressa uma cama no meu quarto de dormir para a Sra. D. Cecília, e dize a Isabel que me venha falar.

Sentou-se a baronesa no divã assaz fatigada; acenou para Cecília, e fê-la sentar-se ao seu lado.

— Sr. Rafael, disse ela, amanhã dirigir-vos-eis ao quarto do barão a receber as suas ordens a respei­to da Senhora. Sabe, Cecília, disse ela com suavida­de carregando neste nome, Cecília, pois que de hoje em diante serás minha filha, sabe que esta casa é tua, e que nunca mais sairás daqui senão para casar.

O semblante de Cecília resplandeceu de ale­gria, mas duas lágrimas se deslizaram pelas suas pá­lidas faces:

— Sei, continuou a baronesa, que ser-te-á dolo­rosa a lembrança de tuas amigas, mas a vida enfado­nha que ali se passa far-te-á com que delas te esque­ças por melhores amigas.

Isabel apareceu.

— Aqui está, acrescentou ela, uma mucama para te servir; amanhã terás um aposento teu na nos­sa casa das Laranjeiras, onde encontrarás tudo; mas eu espero de ti um favor em paga de tudo isso.

Margarida acenou para a escrava que se reti­rasse.

— Falai, Sra. baronesa, disse Cecília.

— Sim, dar-me-ás esse tratamento; és urna afi­lhada de meu marido, e pode-lo-ás  dizer a todo o mundo; e em tempo mais conveniente instruir-te-ei da história do teu nascimento.

— Ela o saberá por mim, murmurou Rafael con­sigo.

— Quer o Sr. barão casar-te, mas contra a tua vontade; amas a Rafael, e é Henrique que te desti­nam para esposo; se lhe disseres que não queres, é uma declaração de guerra; ver-te-ás de novo encer­rada entre as paredes do Recolhimento que nem uma emparedada; se lhe disseres que sim, esposarás o ho­mem que não é da tua afeição, e deixarás Rafael, que te ama, privado de tua mão e para sempre!

— E nesse caso o que cumpre fazer, Sra. baro­nesa? interrogou Rafael.

— Ninguém melhor do que vós, Sr. Rafael, que viveis em contato com o barão, que sois o seu guar­da-livros, sabeis o que é mais conveniente.

— Ganhar tempo?

— Sois muito perspicaz, e até demais! Cumpre pois que sejais também em demasia prudente.

— Sê-lo-ei, Exma. Sra.

— Pois sim. Percebes, Cecília? disse ela voltan­do-se para a menina.

— Otimamente.

— Bem.

Margarida colocou o dedo sobre a mola do tim­bre, e o som argentino repercutiu-se pelo salão: apa­receu a mucama.

— Acompanha a senhora moça para o meu quarto.

Cecília saiu seguida da negra, cumprimentan­do ligeiramente a baronesa e Rafael.

— Mordomo!

— Ele dorme ali no corredor sobre o banco.

— Pobre velho! ajuntou Margarida; fazei o fa­vor de acordá-lo, e dai ordem que se apaguem estas luzes, e que a condução esteja pronta amanhã às dez horas, para nos levar à chácara.

Margarida saiu, e Rafael acordou o velho par­do, que veio ajudar-lhe a apagar as luzes, e deixando apenas uma, retirou-se com ela para o seu aposento, que ficava vizinho ao do barão; o guarda-livros foi arrojar-se ao seu leito, todo preocupado de Cecília.

— Para Henrique, dizia ele consigo, que não para mim, senhor de seu segredo, que pago por mi­nha mão uma mensalidade pontualmente destinada para ela! Que procurei amá-la, que busquei ser visto por ela através das grades de uma janela, passando todas as tardes pelo Recolhimento! Para Henrique! que nunca a viu, que nunca soube da existência de semelhante criatura! Que mistério se envolve nesse projetado casamento! Henrique foi seu rival, e pres­tes a despenhar-se na sepultura, é quando o barão ainda se lembra dele para casá-lo com sua filha! Não contente com a pródiga mesada que dá para nu­trir-lhe o ócio, para alimentar-lhe a mania pelo jogo, para sustentar-lhe os vícios, ainda a filha e cinqüenta contos de dote, e talvez o reconhecimento, e depois metade de toda essa imensa fortuna!

Por outro lado desconfiava Rafael da proteção da baronesa, ela que havia amado Henrique! Con­jecturava e pouco depois pensava que o ciúme ainda lhe abrasava o coração, e que o barão era igualmente afetado do mesmo mal.

Lembrava-se de uma conversa que tivera com Henrique àcerca  de seu amor para com Caroli­na, e não podia compreender a súbita mudança se­não encarando o atrativo do dote e a idéia de urna he­rança ainda maior; a esperança de ver-se na posse das riquezas com que sonhara outrora.

E nestas alternativas adormeceu.

 

VII

UM RAPTO


Asi, que fiandome yo de un hombre de tanta honra,
me
haya enganado tain malamente! Ah! don traidor.
Lope de Rueda.

Há três dias que o barão habitava na espaçosa casa das Laranjeiras; há dois dias porém que o mal se lhe agravara de uma maneira espantosa: estava prostrado em seu leito, e já não se levantava, e na ra­zão que a enfermidade progredia, que o receio e o pavor da morte se lhe iam diminuindo, Margarida não se tirava de seu lado, e o barão tinha por mais de uma vez lhe pedido que fosse dispondo tudo para que se fizesse o seu testamento.

Sem filhos, ela temia que metade de sua fortu­na caísse nas mãos de Cecília, pois que Manoel Luís não tinha herdeiros, a menos que não quisesse lem­brar-se de remotos parentes, cuja ausência tão pro­longada os tinha lançado em esquecimento; e ajuda­da por seu pai, pretendia distraí-lo, dando-lhe espe­ranças de próximo restabelecimento.

Havia o dia amanhecido em extremo belo, e Margarida disting[u]iu pela janela do barão, através dos arbustos floridos do jardim, a figura elegante de

Henrique, o qual entrou e foi conduzido ao quarto do barão; e cumprimentando-o sentou-se junto do leito do aristocrático enfermo.

— Como vos achais?

— Não estou bom, disse o barão apontando para a escarradeira; neste instante deitei algumas golfa­das de sangue. E vós, doutor?

— Graças a Deus, vivo na melhor disposição possível.

O barão suspirou profundamente.

— Doutor, disse ele, isto está por um fio; seria bom ultimarmos o nosso negócio.

— Essa é a minha intenção.

— Sim, a dúvida não é vossa, mas a menina...

— Não quer?

— Nem o deixa de querer, vaga numa alternati­va completa; ainda não a compreendi.

— Talvez que se eu lhe falasse...

— Vou mandá-la chamar.

— Não: eu queria particularmente...

— Proporcionar-vos-ei ocasião; jantareis co­nosco, e à tarde passeareis com ela pelo jardim.

— Pois bem.

Anselmo Rodrigues entrou com o seu estudado bom modo.

— Ó meu excelente sogro!

— Meu barão!

Margarida ergueu-se para beijar-lhe a mão; Anselmo sentou-se, um pouco retirado, em um sofá de palhinha.

— Pensava em vós.

— É porque estava a entrar em vossa casa.

— Não: é porque ia falar de meu testamento.

— Ora, deixai isso para a velhice.

— Essa já não me apanha cá.

— Não se perde nada, disse Henrique; é coisa que depois se reforma; eu sempre recomendo aos meus doentes que se reconciliem com Deus e façam as suas disposições, porque elas não matam e deve­mos estar sempre prontos para morrer.

— Amanhã, disse o barão, devo me confessar; já dei ordem para que o Frei José de Santa Genoveva seja avisado.

— Lá isso, observou Anselmo, é caso diferente.

— Mas seria bom que eu sempre fizesse o meu testamento, ponderou o barão: o Dr. Silva que me disse que podia e era bom que me confessasse, tam­bém achou que o deveria fazer.

Rafael entrou depois de haver pedido licença, e dirigiu os seus cumprimentos.

— Deveis fazê-lo, ajuntou Henrique, tanto mais que...

— Que Rafael ama à Cecília, disse a baronesa a Henrique em voz muito baixa, debruçando-se sobre a cabeceira do barão, fingindo endireitar-lhe os tra­vesseiros que apoiavam-lhe a cabeça.

Henrique empalideceu.

O barão olhou para a baronesa com interrogação.

— Eles se amam, murmurou ela.

O barão fitou expressivo olhar em Rafael, a ba­ronesa saiu; e Anselmo seguiu os passos da filha.

Rafael como que fulminado por um raio, lia a cólera nos olhos do barão, e não podia compreender o que se passava em torno de si.

— Sr. guarda-livros! tendes abusado excelente­mente da confiança que depositei em vossa mão. Se­nhor de meu segredo, amais a minha filha, captais-lhe o amor, talvez sonhando que metade de meus bens passarão a vosso poder.

— Sr. barão...

— Eu não admito a menor reflexão, interrom­peu o barão metendo a mão por baixo do travesseiro e tirando de uma chavinha.

Rafael estremecia de raiva.

— Fazei o favor de abrir aquela secretária. O moço tomou a chave e abriu-a.

— Bem, disse ele, nessa primeira gavetinha do lado esquerdo tem uma carteira com dinheiro.

O guarda-livros entregou-lhe a carteira; o ba­rão contou algumas notas do tesouro e entregou-lhe.

— Aqui tendes o vosso ordenado, Sr. Rafael, que ainda há de vencer no fim deste mês.

— Então estou despedido? perguntou Rafael deixando cair algumas lágrimas.

— Sim, respondeu o barão friamente, e Deus queira que vos aproveite a lição. Adeus!

Rafael saiu.


— Bom, disse a baronesa que nada tinha perdido desta cena, tudo caminha à medida de meus desejos; e tomando o desconsolado guarda-livros pela mão, con­duziu-o para uma saleta, onde Anselmo a esperava.

Poucos momentos depois Henrique meteu-se em sua sege e partiu.

— Onde irá ele? disse a baronesa.

— Sem dúvida vai buscar o tabelião e as teste­munhas para o testamento.

— Meu pai, disse Margarida, aqui só há um meio para salvar-nos.

— E qual? perguntou Anselmo.

— Não há nem um, respondeu Rafael, porque V. Exa. acaba de divulgar tudo.

— Salvei-vos, disse ela, perdendo-vos.

— Como assim, senhora?

— Chama-me o barão, disse a baronesa ouvindo o timbre e correndo para o quarto.

— Quero um caldo, estou muito abatido, mur­murou ele.

— Bem.

Margarida tocou a campainha, a que acudiu um pajem negro.

— Um caldo para o senhor.

O pajem saiu, e voltou daí ha pouco com o que se lhe pedira.

— Henrique? perguntou a baronesa.

— Foi buscar um tabelião; quero fazer minhas disposições.

O barão tocou de leve na chávena e largou-a.

— Não quero; tudo me enjoa, disse ele escarran­do e retirando os olhos da escarradeira com aflição.

— O que tendes?

— Sangue! Sempre sangue! murmurou ele, e calou-se por algum tempo; no entanto que Margari­da ardia no desejo de voar ao encontro de Rafael e  seu pai.

— Cecília? interrogou o barão.

— Borda.

— Rafael?

— Creio que saiu, e, se me não engano, ia cho­rando.

— E teu pai?

— Eu vou chamá-lo.

Margarida precipitou-se na saleta onde Rafael e Anselmo a aguardavam na maior ansiedade.

— Não tenho tempo que perder, disse ela; o ta­belião não tarda, e o barão não me quer senão a seu lado; é preciso que adoteis uma resolução.

— Mas qual? interrogou Rafael. E demais, se Cecília não se casar com Henrique, como me pro­metestes, que medo tendes do testamento?

Margarida estremeceu; seu olhar rápido e bri­lhante penetrou no fundo do coração de Rafael, e viu toda a sua imensa ambição.

— O barão, acudiu ela, compenetrada de uma idéia que lhe veio em socorro, quer que o casamento se efetue depois do testamento; e hoje mesmo Henri­que deve esposá-la; Cecília, que ainda não sabe que é sua filha, não se há de recusar a isso quando ele lhe fizer saber que parte de tanta fortuna lhe deve per­tencer; ele já perguntou por ela, sem dúvida porque a quer ter presente no ato do testamento para a con­sultar.

— Certamente, afirmou Anselmo, admirando mais e mais a habilidade de sua filha.

— Eu vos garanto cinqüenta contos de dote, Ra­fael, disse Margarida; mas é necessário que fujais com Cecília, e já.

— Como?

— Na sege de meu pai; e deveis depositá-la em ua casa no largo da Lapa, onde ele vos irá encontrar daqui a instantes; dareis todos os passos, e antes da noite devereis estar casados.

— Sim, disse Anselmo ainda mais admirado, é a única resolução que temos que tomar.

— Já agora eu me submeto a tudo, disse Rafael, as cumpre que Cecília queira. Quererá?

Soou o timbre.

— Oh! é verdade, disse Margarida: meu pai, o arão vos deseja falar.

Anselmo chamou o seu boleeiro, murmurou-lhe em voz baixa algumas palavras, e dirigiu-se para o quarto do barão.

— Agora, disse Margarida a Rafael, vou falar a Cecília; esperai aqui.

E pouco depois partia a todo galope o carro de Anselmo, levando o tejadilho erguido e as cortinas caídas.

 

VIII

QUERO FAZER TESTAMENTO!

Margarida entrou no aposento do barão e olhou para seu pai, que compreendeu perfeitamente a expressão de seus olhos.

— Se eu pudesse dormir! disse o barão.

— E por que não dormes? perguntou Anselmo. Queres que feche a janela? Talvez que a claridade...

— Não, eu só desejo sossego, mas ele me foge; o ar me falta, não posso respirar.

— Não tendes tomado alimento algum; estais muito debilitado.

— Ah! Margarida, o que hei de eu tomar se tudo me sabe mal? Dá-me água com açucar.

Margarida apresentou-lhe o copo, e o barão sorveu algumas gotas e largou-o logo; voltou-se para a parede e tranqüilizou-se algum tanto.

— Dorme? perguntou Anselmo.

— Não, respondeu Margarida que estava debru­çada à sua cabeceira, está mais tranqüilo, porém não dorme.

O barão soluçou; Margarida fitou os olhos em seu pai; Anselmo, levando o dedo polegar aos lábios, fez um ligeiro sinal; e Margarida, aterrada, veio sentar-se a seu lado.

Havia já uma hora que Henrique tinha partido, e a demora era apreciada por Margarida, quando ou­viu-se o ruído de um carro que parava à porta.

Depois entrou Henrique com mais três homens, que vinham como ele, vestidos todos de preto.

— Licença, Sr. barão.

O barão voltou-se. Margarida procurou dissi­mular a sua perturbação.

— Oh! Sr. Anselmo, ainda por aqui!

— Pois então, meu caro doutor, contáveis-me já no número dos ausentes? tornou-lhe Rodrigues com cerimônia.

— Não é porque vos não deseje aqui.

— Pois pensei...

— Mas sim porque encontrei o vosso carro per­feitamente fechado, e ainda mais, com toda a veloci­dade, levando caminho da cidade.

— Estais enganado, disse Rodrigues, ocultando a satânica alegria que se apoderava de seu coração.

— Qual enganado; e tanto assim é que me admi­ro de vos ver aqui, não estando à porta o vosso carro.

— Falais sério ou gracejais?

— Pois averiguai o caso.

— Eu bem vos entendo, disse o velho mordendo os beiços, e saiu.

— Esta é célebre! disse o barão.

Henrique sentou-se, e o mesmo fizeram aque­les que o acompanhavam.

— Cecília? interrogou o barão.

— Vou mandar chamá-la, respondeu a baronesa ocultando a sua perturbação.

Margarida pôs o dedo sobre o timbre, que soou; chegou à porta e disse algumas palavras àl­guém  que acudiu ao reclamo.

— Sr. barão, Sr. barão, entrou gritando Ansel­mo, e que tal?

— O que houve?

— É verdade, meu pai? interrogou a baronesa.

— Coisa célebre! O carro foi-se; e sabeis com quem? com Rafael e Cecília!

— E Cecília! repetiu o barão fazendo grande es­forço para sentar-se.

— E Cecília! repetiu também Henrique.

— Sra. baronesa, que contas me dareis de Cecilia?

— Que contas? perguntou Margarida em pé, apoiando-se por detrás de uma cadeira, que contas?

— Não estava ela confiada à vossa guarda, Sra. baronesa?

— Sr. barão, vós bem podíeis ver que, quando uma mãe mal guardou sua própria filha, porque vós a seduzistes, a enganastes, e prometendo conduzi-la ao altar, a arrastastes para o leito da vossa concupis­cência, menos eu poderia guardar a filha dessa mu­lher, que foi vítima da brutal paixão de vossa alma.

— Margarida! bradou o barão desfalecendo so­bre suas almofadas.

A baronesa voltou-se em seu socorro; e Henri­que começou a empregar todos os esforços para cha­má-lo à vida.

— Emprestai-me o vosso carro, disse Anselmo para o doutor; quero ver se ao menos posso remediar o mal.

— Ide, respondeu Henrique.

O barão deu ligeiros sinais de vida.

— Ele respira, bradou a baronesa.

— Tanto melhor, ajuntou Rodrigues precipitan­do-se pela porta fora.

Henrique estava pálido e seus lábios se contra­íam de raiva.

— Cecília! balbuciou o barão como que da eter­nidade onde quase que o arrojara a síncope.

— Retirai-vos, disse Henrique para os assisten­tes, bom é que ele não tenha novos motivos para afli­gir-se.

— Eu fico, respondeu a baronesa com altivez.

— Não foi a vós que me dirigi, Sra. baronesa, redargüiu Henrique com azedume.

Os assistentes saíram, e o barão começou a re­cuperar os sentidos.

— Ainda não veio? foi a sua segunda pergunta.

— Meu pai saiu em sua procura.

— Há tempo já?

— Sim.

— Tranqüilizai-vos, Sr. barão; não vos lembreis mais disso: ao depois, ao depois.

— Ao depois, quando já não for tempo!

Calou-se o barão, e pareceu sossegar algum tempo: estava prostrado de fraqueza, e Margarida àsua cabeceira, e Henrique, sentado em frente, no pe­queno sofá de palhinha, o contemplavam pensativos.

Tinha volvido largo espaço no maior silêncio, quando o velho pardo, a quem o barão dava o título de seu mordomo, pediu licença, entrou e entregou a Margarida uma carta.

— Quem trouxe?

— Um boleeiro do Sr. Anselmo que acaba de apear-se neste instante.

Margarida rasgou a obra, e leu em silêncio.

— Está bem, respondeu ela ao velho, que saiu.

— É de vosso pai? perguntou-lhe o marido.

— Sim, Sr. barão.

— E que notícia nos dá ele de Cecília?

— Escutai.

E Margarida leu: “Minha filha,

“Cecília acha-se depositada em minha casa...”

O barão respirou largamente; Henrique deu mostras de curiosidade, e Margarida prosseguiu:

“Rafael dá todos os passos necessários para que seja hoje mesmo celebrado um casamento, que, conquanto não seja talvez do gosto de vosso marido, é todavia dos noivos, que muito se amam.”

Henrique deixou cair a cabeça sobre o peito.

— Prossegui, disse o barão tristemente.

Margarida leu ainda as seguintes linhas:

“Eu, longe de me opor (o que seria uma sem razão da minha parte), apresso-me em comuni­car a meu amigo que darei todas as providências a fim de que se realize esse casamento, única maneira de salvar as más aparências desse rapto.

Até à noite.”

— Pois bem, disse o barão, ninguém perdeu se­não eles. Meu Deus, que a tua vontade seja feita!...

— Quereis tomar alguma coisa? perguntou-lhe Henrique.

— O que há de ser, doutor? Ide antes jantar com esses homens que vos acompanharam, e podeis cer­tificar-lhe da minha parte que estou resolvido a mor­rer sem testamento.

Henrique retirou-se.

— Margarida, disse o barão, fostes bastante áspe­ra para comigo! Oh! como soubestes o meu segredo?

— Da vossa própria boca, de vossas exclama­ções, de vossos sonhos, de vossos pesadelos.

— Pois hem, perdoai-me; vós me haveis de per­doar, não?

Margarida calou-se.

— Nem respondes! Cecília é minha filha natu­ral; se eu a reconhecesse, parte dessa imensa fortuna era para ela; fôra isso porém premiar-lhe a desobe­diência que praticou para comigo, e realizar os so­nhos de Rafael, que tanto abusou da confiança que nele depositei; porém vós a dotareis com cinqüenta contos de réis.

Margarida fez um sinal afirmativo com a cabeça.

— Tenho ainda outra disposição que cumprireis: o meu mordomo ficará forro, que não quero que sir­va a mais ninguém.

Margarida inclinou ainda a cabeça.

— Dareis esmolas aos pobres e aos enfermos da Misericórdia, e às órfãs e viúvas, segundo a vossa generosidade; mandareis dizer missas por minha alma, e tudo o mais será vosso, tudo o mais, perto de seis milhões! Viúva aos quinze anos, bela, nobre e senhora de tanta fortuna, achareis mil pretendentes à vossa destra, e fareis a felicidade de um homem que virá ocupar o meu lugar! Aos quarenta anos eu baixo à sepultura, tendo tanto para gozar o mundo e sem poder! Ah!... Só Deus sabe o porquê!...

Margarida, enternecida, levou o lenço aos olhos para limpar as lágrimas que lhe caíam.

— Margarida, prosseguiu o barão, vós chorais? Bem, é que vossa alma é boa e sensível; é que sois ge­nerosa, e a prova me haveis de dar. Quero uma pro­messa, e uma promessa solene! É na hora da morte que vos peço, e aos moribundos se não falta!...

Margarida estremeceu.

— Não casareis... disse o barão, e interrompeu para encará-la.

— Tremeis, baronesa!... disse ele com um acen­to terrível. Ah! como nossas almas se compreendem! Sempre dele!...

O barão tocou no timbre e apareceu um pajem.

— O Sr. Dr. Henrique? disse ele.

— Está à mesa, respondeu o pajem.

— Dize-lhe que mudei de tenção: quero fazer testamento.

O pajem saiu e a baronesa, abrindo uma porti­nha que comunicava o aposento do barão coin o seu, retirou-se; e ganhando o corredor, deteve o pajem quando passava.

— Não digas nada, disse-lhe ela ao ouvido.

E veio sentar-se à porta do quarto onde estava o barão.

Pouco depois, Henrique, o tabelião e as teste­munhas vieram-se  despedir.

— Silêncio, disse a baronesa, ele dorme.

E eles saíram pisando sobre as pontas dos pés.

 

IX

OS DOIS

Arcades ambo

O barão, estranhando a demora de Henrique, tocou o timbre; a baronesa que se havia postado de sentinela à porta de seu aposento, entrou trazendo um não sei quê de confusão no olhar, que facilmente lhe traía o coração.

— Um obséquio, Sra. baronesa, disse ele para argarida, tocai essa campainha.

A baronesa obedeceu; e o pajem que devia acu­dir àquele reclamo, se lhe apresentou.

— O Sr. Henrique?

— Já saiu.

— E os outros senhores que jantavam com ele?

— Também saíram.

— Saíram todos! Não lhe deste o meu recado?

O pajem conservou-se calado, e Margarida, issimulando, deu alguns passos e postou-se à cabe­ceira do barão.

— Não lhe deste o meu recado? insistiu o barão com acrimônia.

Margarida fez um sinal negativo para o seu es­cravo.

— Não, senhor.

— E por quê? tornou o barão com aspereza. Margarida fez segundo sinal.

— Já tinha saído já, sim, senhor, meu senhor, respondeu o pajem.

— E entretanto nada me vieste dizer! Quem viu um viu todos!... Canalha!... Chama-me cá o meu mordomo.

— Quereis alguma coisa? interrogou Margarida.

— Quero escrever.

Retirou-se o pajem e veio logo o mordomo; e o barão mandando aproximar uma mesinha pediu-lhe que lhe desse tudo quanto fosse necessário para es­crever; e o velho pardo arrastando para o leito uma dessas ligeiras mesas de pé de galo, trouxe-lhe os aprestos precisos.

— Que irá ele escrever! murmurou Margarida consigo.

O barão forcejou, ajudado por sua esposa e pelo mordomo, para sentar-se, e começou a escre­ver. Tremia-lhe a mão, e os caracteres grandes e trê­mulos eram avidamente lidos pela baronesa.

O barão dobrou o papel e entregou-o a seu mordomo.

— É a liberdade, ajuntou ele.

Daniel, banhado em lágrimas, atirou-se dejoe­Ihos a beijar-lhe as mãos.

— É a recompensa de muitos anos de bons ser­viços; mas isto não quer dizer que te vás desta casa;ficarás até que eu morra... e isso será breve! Mas ao menos a mais ninguém servirás!

— Agradecido! agradecido! repetiu o mordomo.

— Meu bom amigo, continuou o barão, tu me serviste na vida como ninguém, e servir-me-ás ainda na hora da morte.

Daniel só respondia com soluços.

— Ninguém tenho por mim senão tu, e se me deixares nesta hora, morrerei... Deus sabe como!

O barão volveu-se, e viu que a baronesa chorava.

— A mulher chora quando quer, disse ele consi­go, misturando algumas lágrimas com as de Daniel, que lhe umedeciam as mãos ardentes, e calou-se.

Margarida compreendeu que o barão necessi­tava falar a sós com o seu mordomo, e retirou-se prontamente.

— Ninguém me ouve? perguntou o barão debru­çando-se do leito.

O mordomo ergueu-se e dirigiu-se para a porta que Margarida tinha fechado sobre seus passos.

— Ninguém, disse ele.

O barão apontou para a porta do seu aposento que comunicava com a da baronesa.

O mordomo encaminhou-se para ela.

Margarida afastou-se, escondendo-se por de­trás das cortinas de seu leito.

— Ninguém, respondeu de novo o mordomo.

— Pois bem, senta-te aqui.

O velho sentou-se junto do barão, que tornou a recostar-se nas suas almofadas.

— Hoje ou amanhã, ou quando muito depois, disse o barão, tudo se terá concluído; uma das cata­cumbas do Convento da Lapa do Desterro, de que sou irmão confrade, bastará para o palácio do teu ba­rão; tu ficas livre, e eu dou essa secretária com tudo o que nela houver; a chave ser-te-á entregue sem que ninguém ouse abri-la para examiná-la, ou que a exa­minem bem pouco se me dá. Ouves?

O mordomo inclinou a cabeça levemente.

— Abre-a, ajuntou o barão dando-lhe uma cha-vinha.

O mordomo ergueu-se e abriu-a.

— De um lado e outro está cheia de gavetinhas; puxa a última. O que tem?

— Papéis, muitos papéis.

— De nada servem; agora fecha com força.

— Senhor, ela tornou-se a abrir, e veio com ela...

— O quê?

— Outra gavetinha, disse o mordomo admirado.

— É o segredo; tem aí um maço envolto num pa­pel impresso atado por linhas[?]

— Sim, senhor.

— Pois põe tudo como estava.

O mordomo compeliu a primeira gavetinha so­bre a segunda, que ganhou a sua misteriosa colocação.

— Do outro lado há o mesmo segredo, ajuntou o barão; mas é necessário carregar na gavetinha com mais força, porque a outra está cheia de barras de ouro, mas a mola que a empurra é assaz forte para deixar de obedecer à mão que souber do segredo.

— Tu o dizes, barão! murmurou Margarida.

— Todo esse ouro é teu, que dou-to eu; aquele maço de papel, porém, esse me pertence; morto eu, ele deve acompanhar-me à sepultura, e tu o queima­rás sem que ninguém o veja, nem jamais o saiba.

— Obedecerei.

— Bem; agora tu irás num carro meu, sem que a Sra. baronesa nem de leve o suspeite, à cidade, avi­sar o tabelião, que já aqui esteve com o Sr. Dr. Hen­rique, que amanhã hei de fazer testamento.

Margarida deixou o seu aposento.

Ouviu-se o ruído de um carro que parou à por­ta, e pouco depois soou a campainha da cancela.

O mordomo correu a ver quem era, e voltando unciou ao barão a chegada do Sr. de Itaíba.

— É o único que não me esquece, murmurou ele.

— Meu caro Sr. Barão de Itaíba, há muito que não nos vemos.

— Não há tanto assim, pois que não há oito dias que tive o prazer de dançar com a Sra. baronesa.

— É verdade.

— E como vos achais? Eu tenho constantemente mandado saber da vossa saúde.

— E vo-lo agradeço; a vela está a apagar-se.

— Não falemos nisso, pelo que vejo estais mais disposto...

— Para a morte.

— Pior!

O Sr.do Engenho Queimado sorriu-se ligeira­mente. O mordomo trazendo um candelabro com velas acesas, colocou-o sobre a mesazinha dando as boas-noites.

— Senhor, ajuntou ele, não há condução para que eu parta a cumprir as ordens que me destes.

— Como assim? interrogou o barão.

— Um carro saiu às ordens da senhora, o outro está aí...

— E então?

— Porém as bestas ao prenderem-se a ele, solta­ram-se e lá vão desencabrestadas pela estrada fora.

— O meu carro está às vossas ordens, disse o Barão de Itaíba.

— Obrigado, respondeu o doente; já agora far-me-eis o obséquio de avisar ao tabelião, meu vi­zinho na cidade, para vir amanhã fazer o meu testa­mento.

— Bem, como quiserdes.

A baronesa entrou saudando o Barão de Itaíba, e perguntando por sua família sentou-se; e o mordo­mo retirou-se.

— Sr. Barão de Itaíba, disse a baronesa, fala-se muito num próximo casamento, no entanto que an­dais tão reservado para conosco...

— Não sei, respondeu o barão, no que me falais.

— Dizem, prosseguiu a baronesa, que a vossa filha D. Carolina estava pedida pelo bacharel Segis­mundo...

— É-me inteiramente estranho isso, senho­ra, e até é a primeira vez que tal ouço.

— Eu ouvi antes dizer, ajuntou o Barão do Engenho Queimado, que o Dr. Henrique tinha suas pretensões.

— Sim, fala-se nisso.

Margarida perturbou-se, mas dissimulando ajun­tou:

— E era uma feliz aquisição.

— Pobre moço, disse o Barão de Itaíba.

— Mas que tem excelentes qualidades, acres­centou o enfermo; outrora fomos inimigos; porém graças a Deus, todas essas rivalidades pueris desva­neceram-se.

— Sim, nada tem de seu, replicou o Barão de Itaíba referindo-se a Henrique.

— Porém pode ter; e se eles se amam, bom é fa­zer-lhes a felicidade; quanto daríeis à vossa filha de dote?

— Eu cá sei, homem?

— Cinqüenta contos de réis?

— Vá lá.

— Pois eu dou outro tanto a Henrique para que ele se case com a vossa filha.

— Deveras, Sr. barão?

— Sim, Sr. barão.

— Ora, essa na verdade é que é grande e me faz maravilhar!

— Como assim?

— Pois dais a um estranho tanto quanto eu dou a minha própria filha?

— Eu vos explico; há um motivo pois que parte de toda esta minha herança devia pertencer a Henri­que, a não serem  nossas rivalidades, e eu por comiseração...

— Ah! ah! agora sim vos compreendo perfeita­mente; pois o negócio não é mau quanto ao presente, mas para o futuro a menina há de ter mais...

— Tanto melhor; e esses cem contos terão ren­dido alguma coisa.

— Pois vá lá; casemos, eu a minha filha, e vós o vosso afilhado.

— O que quiserdes que seja; então falai-lhe nisso.

— Pois logo eu?

— Falai-lhe da minha parte, e hoje mesmo.

— Talvez fosse melhor mandá-lo chamar.

— Hoje?

— Sim.

— Pois então ordenai.

O Barão do Engenho Queimado tocou no tim­bre, e apareceu o prontíssimo pajem.

— Manda vir o meu boleeiro, disse o Sr. de Itaíba.

O pajem saiu, e Margarida abrindo a porta que dava para o seu aposento, sentou-se junto de uma co­modazinha, tomou um palito, e roçando-o pela pare­de, inflamou-se todo de azulada chama, deixando como que um froco de lume na parede, que se esvae­ceu; acendeu uma vela e pôs-se a escrever.

— Ele há de surpreender-se, disse o Barão de Itaíba.

— É uma indenização dupla, tanto pela parte do casamento como pela do dinheiro, ajuntou o Sr. do Engenho Queimado.

O Sr. de Itaíba deu com os ombros, como mal percebendo o que dizia o seu colega; e o boleeiro en­trou batendo com as esporas no pavimento.

— Tira a besta da montaria do carro e vai a toda a pressa à casa do Sr. Dr. Henrique, e dize que o Sr. Barão do Engenho Queimado lhe deseja falar, e que não deve passar de hoje.

O boleeiro ia saindo, quando Margarida do­brando o papel ligeiramente em que tinha escrito, foi ao seu encontro.

Havia um corredor escuro onde ela o aguarda­va, e ela o pressentiu pelo tinir das esporas.

— Mestre, disse a baronesa, sabes a casa do Dr. Segismundo?

— Sim, Excelentíssima, respondeu o boleeiro re­conhecendo a voz doce e harmoniosa de Margarida.

— Aqui tens um bilhete para ele, que deve ser entregue sem falta agora mesmo; mas se queres a re­compensa do teu trabalho, é preciso que façais ainda mais...

— S. Exa. ordene, respondeu ele em tom capa­doçal .

— Vás à casa do Sr. Dr. Henrique, não?

— Sim, Sra. baronesa.

— Se ele não estiver em casa, darás o recado do Sr. barão; se estiver, dirás que é para amanhã, hein?

— E se meu senhor...

— Eu respondo por tudo, mestre; avia-te; adeus.

O boleeiro desapareceu e Margarida reco­lheu-se a seu aposento.

— Talvez tudo perdido, murmurou ela consigo, e entretanto a vitória parecia ganha!

 

X

ESPERANÇA

Valerian

De mis esperanzas buenas

Si las logras...

Elvira

Qué he de hacer

Para eso?

Valerian

A tu, señora,

 Este papel.

Guillén de Castro

Havia já hora e meia que o boleeiro partira com o recado do barão; quando regressou, e ao entrar no aposento do nobre enfermo, Margarida, tremendo que ele lhe quisesse certificar da entrega do bilhete que mandara a Segismundo, dirigiu-se com disfarce para o seu aposento.

— O Sr. Dr. Henrique não estava em casa; dei­xei o recado, mas há de recolher-se tarde, pois que foi ao teatro.

Margarida respirou; e ambos os barões se olharam.

— Está bem, disse o Sr. de Itaíba, o que não tem remédio remediado está.

O boleeiro retirou-se e Margarida foi encon­trá-lo.

— Então, mestre?

— Tudo como V. Exa. recomendou-me; aqui está a resposta.

A baronesa recebeu um bilhete da mão do bole­eiro, retribuindo-lhe com uma nota.

— Obrigadíssimo, respondeu o capadócio sem compreender qual tinha sido a sua missão.

A baronesa dirigiu-se para o seu gabinete, e aí leu:

“Exma. Sra.

Hoje mesmo, neste mesmíssimo instante, vou esperar o Barão de Itaíba; no entanto que corro, aproveitando-me da sua ausência, a informar a D. Carolina do que se há passado. Não há palavras com que eu possa agradecer-lhe um tamanho favor.

Beijo as mãos de V. Exa.

Vosso obrigadíssimo criado,

Segismundo”.

Guardou Margarida o bilhete na sua secretária, e veio colocar-se ao lado de seu marido.

— Já vejo, disse o Barão de Itaíba, que por hoje nada podemos fazer; amanhã de manhã procurarei o doutor, e lhe comunicarei tudo da vossa parte.

— É o melhor.

— E por hoje basta de visita; estais doente e as­saz tenho abusado de vossa bondade.

— Não, Sr. barão, tenho passado mais dis... tra... í... do, disse o Barão do Engenho Queimado a bocejar.

— São horas; até amanhã.

A baronesa ergueu-se, conduziu o Sr. de Itaíba até à porta, e voltou para o lado de seu esposo.

— Quereis alguma coisa? perguntou-lhe ela.

— Nada, respondeu ele secamente.

O barão guardou por muito tempo o mais pro­fundo silêncio; a baronesa tomou um livro e pôs-se a ler. Ouviram os tiros dos vasos de guerra surtos no porto: eram oito horas, e anunciou o velho mordomo a chegada do Dr. Silva.

O médico entrou, e depois de tomar-lhe o pul­so, passou a examinar a escarradeira.

— Não tenho cessado, disse o barão interrom­pendo o silêncio, de escarrar sangue, que não sei como ainda o tenho; mas o que a mim mais me inco­moda é essa falta de sono que me atormenta, no en­tanto que já me custa a estar deitado.

— Quereis dormir um pouco?

— Se eu pudesse!

O doutor dirigiu-se para uma cômoda coberta de vidros com tinturas e óleos e de vasos cheios de medicamentos; tomou de uma chávena, e pôs-se a preparar uma tisana.

— Bebei, disse o doutor, apresentando-lhe a chávena.

— E dormirei?

— Alguma coisa.

O barão tomou até o meio e repugnou o resto.

— Bem, é bastante, disse o médico.

— Mordomo, balbuciou o barão.

— Daniel, bradou Margarida.

O mordomo apareceu, e o barão apontou-lhe para a cadeira, e Daniel sentou-se.

— Enquanto eu dormir tu velarás.

— Pois dormi, disse o doutor retirando-se e pondo a chávena sobre a comodazinha.

— Senhora, o chá está na mesa, disse o pajem.

— Já sei, respondeu Margarida.

E aproximou-se do barão.

— Está quase a dormir, disse Daniel.

— Tanto melhor; o que resta é que o enfermeiro não durma também.

— Não, senhora.

— Queres o teu chá?

— Se a minha senhora faz o obséquio, quererei antes uma xícara de café.

— Pois eu to mandarei.

A baronesa saiu; e ao passar pela comodazita levou consigo a chávena que ali deixara o doutor.

Pouco depois o pajem apareceu, voltando com uma xícara de café, que entregou a Daniel.

— Hoje está péssimo, disse ele sorvendo a últi­ma gota, que o tal cozinheiro sem dúvida está de mofa.

A baronesa voltou e já o barão dormia, e o mordomo, recostado à cadeira com os braços caí­dos, roncava em profundo sono.

Margarida meteu a mão com destreza por bai-dos travesseiros do seu marido e tirou de uma avinha.

— E também tu!... e também tu, Manuel Luís! balbuciou o barão.

A baronesa, que se encaminhava para a secre­tária, estremeceu e deteve-se.

— O papel queimarás e as barras de ouro são para ti, murmurou o mordomo.

— Eles sonham, disse Margarida dirigindo-se para a secretária.

Abriu-a, calcou sobre uma gavetinha, e esta, contida por sua mão, abriu-se brandamente por si, trazendo outra ao lugar que deixava.

Abriu a segunda gavetinha, achou um maço de papel embrulhado num impresso e atado por uma li­nha, e meteu-o no bolso do vestido.

Compelindo da mesma maneira outra gaveti­nha abriu o outro segredo, que estava recheado de barras de ouro.

Margarida tirou-as uma por uma até cinqüenta, e fechando a secretária de novo, pegou da chavinha e foi colocá-la em seu lugar; apagou a luz e dirigiu-se para o seu aposento, guiada pelo pálido clarão da lamparina, que lá bruxuleava.

Depositou todo o ouro num segredo de sua se­cretária, rasgou o papel que envolvia o maço que sub­traiu, e nele achou algumas folhas de papel cozidas outrora, lacradas e com linhas rotas presas ao lacre.

Abriu e leu com a maior surpresa, e a palidez da morte pintou-se em seu rosto; dobrou de novo to­das aquelas folhas e meteu-as entre o colchão e a cama, e pôs-se a pensar.

— O mordomo, disse ela, responderá a seu amo por ele e pelo seu ouro: miserável! confiava o segre­do ao escravo, e temia-se da esposa; pois bem!...

O barão bradou pelo seu mordomo.

— Será sonho? disse Margarida.

Tornou a bradar.

A baronesa acudiu com a luz: o mordomo dormia.

— Adormeceu, disse a baronesa.

— Velho e cansado, ajuntou o barão.

— Mas eu, acrescentou a baronesa, nunca dur­mo, e no entanto não me quisestes hoje a vosso lado!

— Até agora éreis uma, agora sois outra.

— Enquanto não soube dos vossos segredos, não é assim?

O mordomo, esfregando os olhos, admirou-se da tenacidade do sono, que mal o queria desampa­rar; e o barão para evitar que a troca da palavras en­tre ele e sua esposa se azedasse, pôs-se a mofar do velho pardo.

Bateram de rijo na porta.

— Quem será? disse o barão.

— Que horas são? interrogou-lhe o barão.

— Dez horas.

— Não é tarde.

— O boleeiro do Sr. Barão de Taft deseja falar meu senhor, disse uma voz à porta.

— Que entre.

Entrou o boleeiro, e metendo a mão na algibei­ra de sua comprida sobrecasaca de largos cabeções, tirou de uma carta que entregou ao barão.

— Está bem, disse ele depois de havê-la procu­rado ler por muito tempo; assim havia de ser! Henri­que há de ser infeliz toda a sua vida! Má estrela pre­sidiu o seu nascimento.

O boleeiro retirou-se marcando cada passo com o tinir das desmarcadas esporas prateadas.

— Alguma desgraça? perguntou a baronesa com dissimulação.

— Não havíamos tratado aqui ainda ha pouco de um casamento para Henrique?

— Sim; e então?

— Desta vez não teve por contendor a Rafael, as sim a Segismundo; o barão apressa-se em dar arte para que não vá eu falar a Henrique em coisa ue já não tem lugar. Seria melhor que o mandasse savisar do que ter pressa em dar tal notícia.

— Pensou que fazia hem; e se ele vier...

— Não há de vir; manda-lhe dizer logo pela ma­nhã que já não necessito mais.

— Pois bem.

— Aquele homem! Vê como sua alma é mesqui­nha! Achou um casamento com mais dinheiro, e la­menta-se então que a culpa é da filha, dizia o barão entregando a carta à baronesa.

Margarida devorou rapidamente as letras da mal ortografada carta do Sr. de Itaíba, e exultou de prazer.

— Já uma vez, disse ela, Segismundo teve prés­timo nesta vida!

— E como as coisas se combinam! replicou o barão; aqui a conversarmos sobre um objeto, e lá Se­gismundo cuidando da mesma coisa, que nem que ele tivesse aviso ou adivinhado.

— E agora que fareis a Henrique?

— Isso é o que me mata; e vós, Margarida, não compreendeis o meu coração, e eu leio no vosso. Tudo, tudo é à medida de vossos desejos, como se o céu...

O barão interrompeu-se.

— O que tendes? perguntou Margarida vendo o seu olhar fixar-se no mordomo.

— Coitado! disse o barão a rir-se; tornou a dor­mir, e em pé!

— Foi sempre assim...

— Só o meu sono foi tão curto e agitado; dormi para sonhar, e que sonhos!

— E o que sonhastes então?

— Extravagâncias, sonhos, puros sonhos... nada... coisa nenhuma.

— Coisa nenhuma! Sempre o remorso, repetiu a baronesa consigo.

— São horas; ide ver se dormis, que por agora nada quero de vós.

A baronesa chamou o pajem para substituir o mordomo, a quem mandou deitar-se, e pediu ao ba­rão que à menor novidade a fizesse chamar.

— Graças a Deus! murmurou ela, tudo não está perdido!

 

XI

MAL POR BEM

Mordomo, disse a baronesa ao erguer-se do leito, o Sr. barão passou a noite malissimamente.

— E eu, senhora, que dormi como nunca; foi um sono pesado!

— É quase o teu costume.

— Sim senhora, durmo a todo o instante, mas tenho um sono muito leve.

— A todos quantos procurarem o Sr. barão vir-me-ás dar parte, visto que ele não pode receber visita alguma.

— Porém talvez que ele...

— Sempre tens observação para me fazer!

— Perdoe, minha senhora; o Sr. barão porém deseja saber quem entra e quem sai, e era isso que eu lhe ia dar parte da visita do Sr. Henrique.

— Eu vou recebê-lo.

A baronesa entrou na sala de visita, onde Hen­rique, em pé, de costas para ela, examinava um bor­dado de tapeçaria.

— Que tal, Sr. doutor?

— Oh! Exma. Sra., tendes muito bom gosto, se o desenho é vosso; e bordais excelentemente em ponto de marca, se o bordado é de vossas mãos.

— São lembranças do tempo de solteira.

— Feliz tempo!

— Aqui estão estas pombinhas; separam-se am­bas levando no bico o extremo de uma fita que tem um laço no meio; quanto mais se apartarem tanto mais apertarão o nó.

— É bem ideado!

— Separam-se, continuou Margarida, mas o laço da união se aperta mais e mais.

— Falta o quer que seja aqui, observou Henri­que, para tornar o quadro fiel.

— Como assim?

— Falta a causa desta separação.

— Tanto melhor, ajuntou Margarida.

— Ao menos sejam elas ditosas, e jamais um ca­çador ou qualquer laço que seja lhes estorve a união que tão docemente gozam.

— Pelo quê? pois há quem faça isto?

— Pois não sabeis? E quase sempre o mal nos vem de onde desejaríamos o bem.

— Tanto pior para se chorar; porém há males que vêm para bem; verdade é que nem todos refle­tem no provérbio quando sofrem, que se refletis­sem...

— Mas nem todos, disse Henrique, querem es­tar por isso; se Pope acredita nele, Voltaire sorri-se impiamente, que não vê a bondade na maldade dos acontecimentos.

— E vós?

— Eu penso que quem faz mal não nos deseja nem um bem.

— Mudareis de opinião, e talvez mesmo agora, sabendo que Segismundo casa-se com D. Carolina.

— Já o sabia.

— Ora eis aí como sois levado de mistificação em mistificação! Fui amada por vós, e Manuel Luís obstou que nos casássemos; pretendíeis a mão de Cecília, e fostes indeferido por causa de Rafael; ago­ra Segismundo por sua vez vos rouba o coração de Carolina que parecia já vos pertencer.

— E não tendes concorrido para tudo isto? -E não tendes compreendido tudo isso?

— Como?

— Desejais falar a meu marido? Ele não vos pode falar: pretendeis alguma coisa? Dizei.

— Eu vinha saber o que pretendia de mim pelo recado que recebi ontem; verdade é que hoje recebi contra-ordem, contudo sou-lhe grato... antes não fosse!...

A baronesa deixou escapar um sorriso maligno.

— Sorri-vos?

— O barão, disse a baronesa, nada tem convos­co; o que pretendia de vós já não deseja: tomai este quadro de pombinhas, levai-o para casa e refleti hem nele! Doutor, se o compreenderdes, ponde aqui um raminho de violetas já murchas e umas flores de la­ranja, que não terão ainda desbotado!

— Que mistério, disse Henrique, se encerra em vossas palavras!

Margarida calou-se.

— Senhora! bradou o pajem, o Sr. Rafael e a Sra. D. Cecília pedem licença.

Henrique empalideceu

[-] Doutor, disse a baronesa, escondei-vos nes­ta saleta, e logo que eles tiverem passado, saireis; quereis não vos ocultar dele?

— Lede no meu coração, Sra. baronesa.

— E sei o que vos atormenta, o que desejais e o que não alcançareis.

Henrique recolheu-se à saleta; a baronesa fez sinal ao pajem que abrisse a porta.

Cecília, com as faces tintas de pudor; e Rafael, já sem aquele negro bigode que tanta graça lhe dava, penetraram na sala.

Margarida, que veio ao seu encontro, os con­duziu para uma varanda que dava para um dos jar­dins laterais da casa.

Henrique saiu ruminando as palavras da baro­nesa; tinha ela a ousadia de dar a conhecer as suas mais íntimas intenções, mas sabia igualmente con­fundi-las com frases que não eram para ser compre­endidas facilmente, e muitas vezes só para destruí­rem o efeito de outras.

— Ela parece que me fala no futuro, dizia Henri­que, porém não me disse ela: “Eu sei o que vos ator­menta, o que desejais, o que jamais alcançareis?”

O jovem doutor montou em seu fogoso cavalo, e seguiu a trote largo para a cidade, entregue a tais pensamentos.

Entretanto a baronesa sentada na varanda ao lado de Cecília, opunha-se fortemente a que ela fa­lasse ao barão.

— É meu pai, disse Cecília, e não há forças que me privem de lhe falar.

— Sr. Rafael, disse a baronesa, tenho bastante ouro para pagar o dote que vos prometi; não é isso o que quereis?

— Não; vós sabeis que desejo muito concili­ar-me com o Sr. barão, e Cecília deseja pela primei­ra vez a sua bênção paternal.

— Mas não há aí nada que me force a contrariar ordens mui positivas que dei; o barão não recebe mais visitas, e, ajuntou Margarida com malícia, já fez testamento.

— Não viemos cá por isso, respondeu Cecília com enfado.

— Como vos acho interessante, minha menina! Já não sois a mesma, mudastes de botão para rosa aberta com incrível velocidade! Pago-vos o dote prometido, e já; mas se insistis em adiar o seu rece­bimento com a mira numa herança que nem por so­nhos vos pode pertencer, então o dito por não dito.

— Sois a senhora mais célebre que tenho visto, ajuntou Rafael; de protetora que éreis, temos em vós uma terrível contrária, uma completa inimiga.

— Também o amor que tão puro despontava em vosso peito é hoje pura ambição; bem vedes, Sr. Ra­fael, que se protegi um, não posso me decidir por outro.

— Bem; nesse caso tomaremos o vosso exemplo por nosso guia; protetora, nós vos respeitamos; por contrária, não queremos senão antepor a nossa força à vossa injustiça.

— Fazei o que quiserdes; o barão...

— O Sr. barão vos deseja falar, Sra. baronesa. Margarida correu à voz de seu esposo.

— Mordomo, direis ao barão que estamos aqui...

— O Sr. barão não recebe visita de qualidade al­guma.

— São ordens dele?

— Não, senhor; são da Sra. baronesa.

— Ah! está bem!

Daniel retirou-se.

— Vinde, disse Rafael para Cecília seguindo os passos do mordomo; ele é vosso pai, e sua porta se abrirá à vossa voz.

Rafael e Cecília pararam à porta do quarto do barão.

Chegou o Dr. Silva, que entrou.

— Dá licença, Sr. barão?

O barão fez sinal que abrissem a porta.

A baronesa opôs-se, e balbuciou algumas pala­vras ao ouvido do doutor.

— De maneira nenhuma, bradou o Dr. Silva.

Cecília, impelindo a porta, lançou-se aos pés do barão.

— Meu pai!

— Cecília, disse ele esmorecido.

Rafael contemplava mudamente o que se pas­sava em torno de si.

— Estas cenas de comoções são perigosas para o enfermo, observou o doutor.

Cecília regava de lágrimas as mãos de seu pai, Rafael deixava também cair algumas lágrimas.

— Que quereis? disse o barão, esse pranto me atormenta; não martirizeis os meus últimos instantes.

— É o perdão que eu peço.

— É a herança que eles ambicionam, murmurou Margarida.

O doutor aproximou-se do barão e sentou-se a seu lado.

— Perdoai-lhes, lhe disse ele, e acabai com isso tudo, que nos é doloroso.

— O tabelião! anunciou o mordomo.

A alegria satânica brilhou nas faces orvalhadas de pranto de Rafael.

A baronesa sentiu um tremor de frio da cabeça aos pés, e saiu.

— Sr. tabelião, disse ela com voz baixa e apro­ximando-se dele o mais que lhe foi possível, o meu marido não pode fazer testamento.

O tabelião deixou cair os ombros.

— Direis pois ao Sr. barão que o não faça, isto é bastante; direis mais que não convém até para a sal­vação de sua alma.

O tabelião olhou espantado para Margarida sem compreendê-la.

A baronesa pediu-lhe que a esperasse, e vol­tando rapidamente entregou-lhe uma nota.

O tabelião desenrolou o papel, e súbita alegria brilhou-lhe pelas faces.

A baronesa entrou para o seu aposento, e pas­sou-se para o quarto do barão onde penetrou o tabelião.

— Saiam todos, disse o barão, que quero ditar minhas disposições.

— Vós, Sr. barão, não podeis fazer testamento.

— Como assim? perguntou o barão esforçan­do-se e sentando-se com o arrimo de suas almofadas.

— Até, ajuntou o tabelião, para salvação de vos­sa alma.

— Para a salvação de minha alma: repetiu o ba­rão. Meu Deus! ajuntou ele apoiando a cabeça entre as mãos, este homem sabe de tudo! ... Dar-se-á aca­so?... Quem sabe!

— E porque não? disse Rafael.

— Porque sim, respondeu o tabelião.

— Basta! basta! disse o barão, estou perdido! Saiam todos e deixem-me com o meu fiel mordomo.

Retiraram-se todos, e o barão ordenou que cer­rassem as portas.

— Estou, disse o barão, estou atraiçoado! Nin­guém senão tu sabia dos meus segredos! Tu me traíste.

— Eu, meu senhor!

— Pois bem, disse o barão, como é então que o tabelião sabe o que só tu poderias saber depois de mi­nha morte se soubesses ler? Abre aquela secretária.

O mordomo abriu.

— Carrega nas gavetinhas de segredo.

O mordomo carregou.

O barão tornou-se lívido e frio.

— Que é do papel? que é do papel?

— Ainda ontem aqui estava!

— Enquanto não sabias dele! e agora que eu queria entregá-lo às chamas! Daniel, tu és um la­drão!

— Meu senhor...

— Abre a outra.

O mordomo carregou na mola, e a gavetinha secreta impeliu a outra e apareceu.

— Vazia! vazia! exclamou o barão com um sor­iso de amarga ironia.

O mordomo estava ferido de morte.

— Daniel! Daniel! que dizes a isto? Roubas­te-me o ouro antes que eu me arrependesse; e o pa­pel, e o papel, que não sei eu para que o guardava, também desapareceu! ... Pérfido, que é da carta de liberdade que te dei?

— Aqui está, disse o mordomo debulhado em lágrimas.

— Pois toma, disse o barão rasgando e lançan­do-lhe os pedaços, agora és livre! escravo! agora... E as golfadas de sangue impediram-lhe o resto; e o doutor acudindo aos gritos de Daniel, veio em so­corro do barão, e com ele a baronesa.

— Mande vir o padre, o barão não chega a noite; olhai, disse o doutor apontando para a escarradeira, vede, ajuntou ele descobrindo-lhe os pés que haviam inchado de uma maneira espantosa.

A baronesa lançou um rápido volver de olhos sobre a secretária, e viu os segredos patentes, e reti­rou-se.

Poucos instantes depois o seu carro partia a todo o galope para a cidade.

 

XII

A HORA DA MORTE

...Ali no leito

Jazia um moribundo; em torno os olhos

Cheios de pasmo, de terror volvia,

Bebendo pelos sôfregos ouvidos

Mal sentido rumor!... *

G. Dias

O sol descambava no ocidente por entre negras nuvens que amea[ça]vam muita chuva, quando vie­ram bater na porta da célula de Fr. José da Santa Ge­noveva

O bom do monge, apressando-se em abrir a porta, parou para ouvir o recado que um pajem lhe vinha trazer.

Era um negro, trajando uma rica sobrecasaca azul toda agaloada de ouro, colete e calças brancas, e botas de montar por cima das calças.

— A Sra. Baronesa do Engenho Queimado, dis­se ele com essa voz de capadócio que tanto distingue os nossos boleeiros, manda pedir a Fr. José de Santa

Genoveva o favor de ir confessar o Sr. barão, que está em perigo de vida.

— Com que então não tem tido melhoras? inter­rogou Fr. Santa Genoveva.

— Não, senhor: parece-me que não chega à noi­te, e o Sr. doutor disse que era bom que se confessas­se quanto antes.

— Está bem, ajuntou Fr. José sorvendo uma pi­tada de rapé, eu lá vou sem demora.

— Tenho o carro às ordens de meu senhor.

— Tanto melhor, disse Fr. José, chegarei lá mais depressa; e, ajuntou ele falando com seu hábi­to, em tom de compaixão, não iremos com risco de grande molho.

Cinco minutos depois saía o gordo monge de seu Convento do Carmo na Lapa do Desterro, não se esquecendo de sua bela caixa de tartaruga atopetada de louro rapé.

Entrou vagarosamente no carro, arregaçando o hábito com tanto donaire e graça como a mais bela menina da nossa corte faria ao seu vestido.

— Vamos lá, bradou ele.

E o trote largo das bestas arrastou o carro pela rua da Glória, com direção às Laranjeiras.

Chovia já, e os raios do sol se refrangindo nes­ses chuveiros, eram como uma chuva de ouro em pó que caísse sobre a terra.

As árvores aqui e ali verdejando pelo meio dos edifícios à beira da estrada, se cobriam de um esmal­te como da esmeralda, despindo-se do manto de poeira que há tanto tempo as cobria.

Mas Fr. José não levava na imaginação senão a dolorosa idéia da última hora de seu amigo, e por mais pitadas de tabaco que tomasse para distrair-se, o instante do passamento se lhe apresentava à mente.

Parou o carro e apeou-se ele à porta da elegante casa das Laranjeiras, adornada de um magnífico jar­dim à entrada; penetrou silenciosamente, tendo tido o cuidado de tirar o seu pesado chapéu de largas e enroladas abas.

Tudo era silêncio; parou na sala, sentou-se, co­locou o chapéu sobre uma cadeira e pôs-se a pensar.

Daí ha  poucos instantes veio a baronesa chamá-lo, e conduziu-o para o quarto do barão, e deixando-o a sós com ele fechou a porta.

A baronesa trajava um lindo e justo roupão de seda roxa e tinha um não sei quê de triste na fisiono­mia que assaz dizia com a simplicidade e cor de suas roupas.

Margarida sentou-se junto da porta e parecia que aguardava a saída de Fr. José.

O frade demorava-se, e Margarida se impaci­entava.

Um quarto de hora seria bastante para uma confissão; meia hora já lá havia decorrido.

Eram seis horas da tarde quando entrou o fra­de, e deram oito horas.

— Há duas horas! disse Margarida, e nada de vo!...

E o frade falou algum tanto alto; ouviu-se per­feitamente uma voz trêmula e rouca, e era a voz do barão.

— É uma confissão geral, disse Margarida, uma confissão de ano santo.

O desejo de espiar pelo orifício da fechadura, de aplicar o ouvido, a arrastava para a porta.

— É impossível que ainda se confesse, disse ela; estão conversando.

O frade bateu e Margarida abriu-lhe a porta.

— Entrai, Exma. baronesa, que muito necessi­tamos da vossa presença.

Margarida pediu luzes; o pajem as veio colocar ante um crucifixo que ela tinha posto sobre um altar portátil.

— Mandai, disse Fr. José, chamar o Dr. Henri­que a toda a pressa; a sua presença também nos é ne­cessária.

Margarida tocou no timbre; apareceu o pajem, e suas ordens foram imediatamente executadas.

Então o monge voltando a chave para dentro fechou a porta sobre si.

O barão estava meio sentado sobre ricas almo­fadas de damasco orladas de ouro: seu aposento res­pirava uma suntuosidade, que fez com que o frade suspirasse mais de uma vez.

— Margarida, disse o barão.

— Que desejais?

— Escutai. Fr. José de Santa Genoveva vai fa­lar-vos, mas antes perdoai-me.

— O quê, Sr. barão?

— Chama-me Manuel, que é o meu nome. Ah! Margarida! nem da mulher com quem vivi sempre,nem do confessor a quem sempre narrei os meus pe­cados, confiei jamais o maior dos meus segredos. Sei que morro, ajuntou ele, e nessa hora solene não quero levar comigo à sepultura o segredo do meu crime, que em parte... aquele mordomo... Daniel apressou-me o último instante.

— O testamento falso! murmurou Margarida consigo.

— Fr. José, prosseguiu ele, bom e amável, aca­a de aconselhar-me àcerca a marcha que devo seguir; resta porém que vós e ele o queiram.

— Fr. José de Santa Genoveva, acrescentou o barão voltando-se para o monge, exponde-lhe tudo; já me rouqueja a voz e me vai faltando de todo em todo; além disso... a vergonha!... balbuciou ele.

Margarida estava aterrada; já não havia dúvida para ela.

Fr. José, sentado à cabeceira do doente, vol­tou-se para a baronesa que se apoiava numa cadeira de braços.

— Senhora, disse ele, tudo isto quanto aqui está, tudo quanto tendes logrado não vos pertence, todas estas riquezas foram usurpadas por vosso marido por meio de um testamento falso!

Margarida cravou os olhos em seu marido, como que para interrogá-lo.

Manuel sentiu um não sei quê de terrível pe­sar-lhe sobre o coração; deixou-se escorregar pela almofada, pegou do lençol e cobriu lentamente o rosto, voltando-se para a parede.

— Prossegui, disse Margarida para o monge, prossegui; a miséria me espera depois de tanta opulência, porém vós me ensinareis a sofrê-la com re­signação...

— Escutai.

Fr. José sorveu longamente uma pitada de rapé que tinha entre os dedos, e continuou:

— Nada disso é vosso, tudo tem um dono que ignora, na melhor boa fé, que, senhor de tanta rique­za, viveu sempre, e ainda vive, sem fausto, à mercê das esmolas de vosso esposo!

— Meu Deus! vós me despedaçais o coração!

— Havia um homem nessa nossa cidade do Rio de Janeiro, rico e sem filhos e herdeiros, e como fi­zesse tenção de constituir por seus herdeiros a dois de seus afilhados, aconteceu que o vosso marido promoveu os maiores enredos para se fazer único dono de tantas riquezas!

“O outro afilhado procurou destruir suas intri­gas, e por isso lançou mão de todos os recursos.

“O primeiro cuidado do nosso homem foi de em­pregar a um no comércio, e o outro mandou estudar na Academia de Medicina; dando ao primeiro alguns con­tos de réis, que ele empregara em especulações.

“Viviam eles em casa do velho, que se tinha retirado do comércio, entregando suas casas a seus caixeiros e felicitando-os; mas eles aborreciam-se de morte, e no entanto mostravam viver na mais perfei­ta harmonia.

“Tinha Lourenço Pinto de Sousa em sua casa uma órfã, uma moçazinha, a quem prodigalizava to­dos os carinhos, em falta de um filho que os recebes­se, se é que não era sua filha! Requestavam-na am­bos, e isso deu motivo a que o velho negociante os!despedisse; fechou-lhes a sua porta, mas não a sua bolsa: continuou a prodigalizar-lhes favores, tendo tido o cuidado de evitar uma terrível desgraça.

“Pensou, mas não o conseguiu; a moça desapa­receu, e Henrique fez recair todas as suspeitas em seu companheiro.

“O velho Lourenço Pinto de Sousa acreditou ao princípio, porém tendo ouvido a Manuel Luís, fi­cou meio abalado, e suspendeu o seu juízo até que o tempo descobrisse o verdadeiro autor do rapto.

“No ímpeto da cólera, lembrando-se do que lhe dissera Henrique, rasgou o testamento em que constituía Manuel seu testamenteiro e herdeiro, hem como a Henrique, e constituiu somente a este, pri­vando aquele de tudo.

“Tal foi o que ele declarou a Manuel no dia em que este lhe veio trazer falsos documentos de sua inocência, apresentando-lhe um seu antigo caixeiro como autor do rapto da bela órfã: pobre homem, que por dinheiro a isso se prestara!

“Lourenço voltou-se contra Henrique, e sendo a sua intenção fazer novo testamento no dia seguin­te, foi subitamente acometido de uma apoplexia ful­minante.

“Correu Manuel Luís à sua casa com a nova de sua morte; e entre os seus papéis achou o seu testa­mento; lembrou-se de seu infortúnio, e quis lançá-lo às chamas, mas pensando com isso fazer mal a ou­tros que não tinham culpa alguma do que lhe aconte­cera, foi levá-lo à autoridade competente.

“Aberto que foi o testamento, lastimou-se este do seu infortúnio; porém o maldito de um serventuário lhe deu esperanças, lhe acendeu a cobiça arrasta­do pela avareza.

“— Tudo se arranja, disse ele; regista-se o testa­mento tal qual, só com a troca de seu nome, que substituirá o de Henrique; a fortuna toda lhe perten­ce, menos a ele; o senhor vai para casa, cuida do en­terro, e depois declara e anuncia que perdeu o testa­mento, e pede outro por certidão, que lhe passarei.

“— Aceito o conselho, disse Manuel Luís.

“Então o escrivão abriu a gaveta e apresen­tou-lhe algumas letras.

“Ele exigia vinte contos de réis.

“Vinte contos de réis lhe foram dados em letras por Manuel Luís.

“Eis aqui pois como essa fortuna nunca vos pertenceu.”

— E agora, Fr. José, o que resta fazer?

— É entregá-la a seu dono, que não tardará em vir tomar conta dela.

— Porém se Lourenço Pinto não sucumbisse nessa noite?

— Deus não o quis. O homem põe e Ele dispõe.

— Fr. José, exclamou Margarida erguendo-se e olhando para seu marido ainda coberto pelo lençol, eu tenho um meio para sanar todas estas dificulda­des...

— E qual é, senhora?

Margarida chegou-se ao ouvido do frade e bal­buciou algumas palavras.

— Ele vive, senhora, exclamou o padre apon­tando para o barão.

Margarida arregaçou o lençol levemente, e um cadáver lívido e frio foi o espetáculo que lhe feriu os olhos.

— Morto! exclamou ela deixando-se cair sobre a cadeira em que esteve sentado Fr. José de Santa Genoveva.

O monge saiu desesperado, desembaraçan­do-se de Rafael e Cecília que, parados à porta, pers­crutavam tudo quanto se passava no aposento.

— Senhora, bradou um boleeiro à porta do quarto, o Sr. Dr. Henrique acaba de desaparecer; perdeu ontem ao sair do teatro toda a sua fortuna numa casa de jogo.

— Meu Deus! bradou Margarida prost[r]an­do-se ante a imagem do Crucificado que ali estava; e também Henrique!...

Rafael e Cecília com os olhos ondeados de pranto penetraram no aposento.

Ouviram-se soluços de partir o coração de dor. Era Daniel, que não ousava de entrar.

 

XIII

JURAMENTO

Num segundo andar de um prédio da rua do Hospício morava o Dr. Silva, e em seu relógio aca­bavam de soar dez horas.

Ouviu que uma carruagem parava à porta, e depois sentiu bater.

O doutor, que repousava numa poltrona a ler, veio à escada saber quem o procurava, e conduziu um moço todo vestido de luto para o seu sofá.

— Pensei, disse ele, encontrar-vos no enterro; mas enganei-me, e por isso vim.

— Não costumo enterrar, disse o doutor a rir-se, aqueles a quem mato.

— Para isso tendes licença.

— Creio que fostes bem sucedido na missão de que vos encarregou a baronesa.

— A prova aqui está, respondeu o moço tirando de um maço de papéis que entregou ao doutor, des­pedindo-se.

— Então já, Sr. Segismundo?

— Tenho pressa.

O Dr. Silva que o acompanhou até à escada, di­rigiu-se pelo corredor para outra sala, espiou pelo orifício da fechadura de uma porta que estava fecha­da, viu a luz e bateu.

— Quem é? interrogou uma voz doce, mas com acento assaz comovido.

— Abre, respondeu o doutor.

E ouviu-se o som áspero da chave rolando so­bre as molas da fechadura, e a porta cedeu então ao impulso da mão de Silva, e tornou-se a fechar.

— Que diabo de melancolia é a tua? Queres en­louquecer com tanto cismar?

— Devo, devo, e devo muito, respondeu o moço belo e elegante, e que estava embuçado num rico robe de chambre de cetim carmesim bordado de fios de ouro.

— Manda todos esses jogadores para o chefe de polícia, e que vão dele cobrar o que perdeste.

— Isso era bom se eu não tivesse assinado letras sobre a fatal mesa do maldito monte! Vinte mil cru­zados em tão poucos instantes!...

— E quando vencem essas letras?

— Já te disse que de oito em oito dias, segundo os prazos de cada uma delas, tenho que dar um conto de réis até o final do pagamento?

— Daqui a dois meses terás pago tudo.

— Como? com que dinheiro?

— Eu te posso emprestar, disse o Dr. Silva olhando para um quadro que pendia da parede.

— Eu não posso exigir de ti tanto sacrifício.

— Falo-te com sinceridade, respondeu o doutor com os olhos fitos no quadro.

— Que estás aí a mirar?

— Este quadro de tapeçaria, que é novo nesta sala, e coroado com flores de laranjeira e violetas já tão ressequidas.

— Ah! bagatelas.

— Bagatelas! E entretanto dar-te-ia de boa von­tade as tuas letras em troca delas.

— Gracejas? Queres fazer-me rir quando tenho a dor cravada no coração como se um punhal mo di­lacerasse!

— Falo-te sério.

— Mudemos de conversa.

— Não; sou um pouco teimoso, e muito, se não me cedem logo.

— Ora! para que te havia de dar a mania!

— Queres ou não? O negócio é sério.

— Só para me ver livre de ti dar-te-ia o quadro.

— Pois então aceito-o.

O doutor, elevando-se sobre uma cadeira, des­prendeu o quadro da parede.

— Também queres as flores?

— Quero tudo.

O jovem deixou cair os ombros; sentado em frente de uma mesa, cruzou sobre ela os braços e en­costou a cabeça, olhando para o chão. O doutor de­positou sobre a mesa um maçozinho de papéis, no qual escreveu algumas palavras, e abrindo a porta, saiu.

O jovem ergueu-se, fechou a porta, e ao voltar para o seu lugar, deu com o maço de papéis em que leu as corridas e ligeiras palavras:

“Ao Sr. Henrique: preço de seu quadro”. Abriu-o, e eram as suas letras!

Henrique estava pasmo; pareceu-lhe um sonho quanto via, abriu a porta e dirigiu-se para a sala de seu amigo.

O doutor tinha guardado o quadro, e pusera-se a ler.

— Doutor, disse ele, não me explicarás todo esse enigma?

— É fácil; obtive as tuas letras, e em troco delas o teu quadro!

— O meu quadro!

— É muito simbólico, e pelo pincel conhece-se que só a mão de uma senhora...

— Entre nós não há mistérios, disse Henrique sentando-se, e tu sabes que o obtive da baronesa...

— E que o hei de restituir, não é assim?

— Restituí-lo?

— À baronesa.

— Como assim?

— Não mo vendestes, homem de Deus?

— Doutor, estás disposto a folgar à minha custa?

— Seo queres, dou-te já; mas nesse caso restitu­ir-me-ás as letras.

— Triste posição na verdade é a minha! respon­deu Henrique rasgando entre os dedos as fatais letras.

Bateram de rijo na porta, e Henrique estremeceu.

— Não estás salvo? perguntou-lhe o Dr. Silva, e depois ajuntou:

— Entre quem é.

— O Senhor seja nesta casa!

— Um frade! murmuraram os dois amigos le­vantando-se com acatamento.

— Desejo falar ao Sr. Henrique.

— Sou esse.

O monge inclinou a respeitável cabeça meio encanecida, e fitou os olhos em Silva.

— Podeis falar, ajuntou Henrique, é meu ami­go, um protetor... para ele não tenho segredo de qualidade alguma.

— Então, disse o frade, sentar-nos-emos.

— Dar-me-eis licença, disse o Dr. Silva apon­tando para o livro que tinha postado na estante de sua poltrona, que continue?

— Como quiserdes, disse o frade conchegan­do-se para Henrique. Doutor, continuou ele toman­do um acento solene, sei que pretendíeis suici­dar-vos, e é por isso que ousei de vir bater à vossa porta.

Henrique tornou-se pálido como as paredes que o rodeavam; Silva fechou o livro e concentrou toda a sua atenção nas palavras do monge.

— Depois das mais esplêndidas, pomposas e douradas esperanças de opulência, vistes-vos redu­zido à miséria; porém o vosso coração ainda era grande e nobre para sucumbir, e o Senhor conheceu o vosso peso na balança de sua divina justiça pela vossa resignação; lembrou-se de vós, conheceu-vos na miséria e quis pesar-vos, não na opulência, mas na grandeza, que muito vos deu Ele; então mostras­tes o que faria de vossa opulência, se a tivésseis her­dado, e os divertimentos e distrações, a concupis­cência e os festins, e afinal o jogo, a dissipação, a ru­ína, e depois — o suicídio!...

— Meu bom padre, disse Henrique, falais a pura verdade; a minha alma perdeu-se no caminho das flores; falho de experiência...

— A experiência não a dá só a pobreza; vivei, e acusareis ainda ao Senhor, porque diante de vossos desvarios jamais a colocará: ainda não chegastes ao abismo a que vos leva o caminho de flores, e já caís­tes, e hei de ser eu que vos hei de dar a mão para vos ajudar a erguer, porém para que retrocedais, que não para prosseguirdes. Dizei-me: tentastes com efeito pôr fim à vossa existência?

— Hesitei por algumas horas, escondido, en­vergonhado dos homens.

— E não de Deus, meu filho!

— Meu padre!...

— Sois capaz de ser pobre, mas o vosso coração havia de desvairar-se no meio da opulência; ressoa­riam nos vossos salões magníficos e suntuosos os hi­nos das orgias, e a lamúria do mendigo seria ouvida como uma importunação, e vê-lo-íeis com seus an­drajos como uma nódoa no vosso solar de mármore e palissandra, de prata e ouro, de veludos e damasco, de cristais e porcelanas, de tapetes e esteiras, e es­tender-vos-ia a mão para receber um vintém, e lho negaríeis colocando sobre as cartas da fortuna o suor de vossos escravos, as lágrimas do infortúnio de tan­tas famílias, ou o cativeiro da tantos desgraçados!

Juraríeis amar a uma só mulher, e ante a face do altar prometeríeis amá-la como Cristo amou a sua igreja, e as alcovas de vossas escandalosas concubinas, tes­temunhas de vossas lascivas torpezas, ressoariam com os protestos de vossos amores! Ao grande e opulento cederíeis o passo, inclinaríeis a cerviz arro­gante aos de maiores fortunas do que vós; mas vosso pé, pobre barro que sustenta um ventre de ferro, um peito de prata, uma cabeça de ouro, esmagaria os pe­quenos que não obedecessem ao vosso aceno, que não se dobrassem ao vosso — quero e mando!

— Não! não!

— Quê! já a experiência amestrou-vos! Deixa­reis jamais de jogar depois de vos haver deixado en­levar pela magia das cartas? Ah! que mais lucra a so­ciedade com o vosso suicídio do que perde; a moral porém o obsta, que o perde ela; é mais um exemplo para que o homem se anime a esconder-se de seus se­melhantes sem se lembrar que leva uma alma macu­lada de tamanho crime Aquele que o criou. Mas, meu filho, ditoso de quem cedo se arrepende, que para isso sempre é tempo. Hesitáveis!... É que no fundo de vosso coração ainda ficou alguma coisa de sã; ele não se corrompeu de todo. Emendar-vos-eis, não é assim?

— Eu vo-lo prometo, meu padre.

— Pois bem, bradou o monge erguendo-se, ju­rai-o sobre a última vontade de um homem, em nome da Santíssima Trindade!

Henrique e Silva se levantaram.

O frade, apresentando um papel todo dobrado, cheio de linhas cortadas presas a lacre encarnado .

Henrique prostrou-se com gravidade e deu solene juramento com a sua mão direita sobre ele.

— Pois bem, Henrique, ajuntou o monge to­mando o seu negro chapéu de largas e enroladas abas, e deixando-lhe o papel nas mãos, lembrai-vos de Margarida!

Olharam-se os dois amigos com espanto e ad­miração, e o monge inclinou a cabeça e saiu.

 

XIV

GENEROSIDADE POR GENEROSIDADE

I am your wife, if you will marry-me.

Tempest.

No dia seguinte, ao amanhecer, meteu-se Hen­rique num carro e foi apear-se nas Laranjeiras, à porta do falecido Barão do Engenho Queimado.

Bateu, e o velho mordomo, todo vestido de luto, correu a abrir-lhe a porta.

— Morreu o Sr. barão, heim?

— Sim, senhor; sepultou-se a tarde passada na igreja da Lapa do Desterro.

— E a Sra. baronesa está em casa? — Sim, senhor; pode entrar.

Henrique, trajando pesado luto, mal entrou na sala destinada às visitas, que deu com os olhos no quadro de tapeçaria que a baronesa lhe havia dado; lembrou-se das fatais letras, e compreendeu todo o enigma da reserva de seu amigo.

A baronesa, em rigoroso luto, penetrou na sala, pálida e triste como uma rosa branca cortada e perdida sobre a margem de um ribeiro, e Henrique comovido sentou-se junto dela.

— Aqui tendes tudo, tomai posse, senhor, do que sempre vos pertenceu, e que no entanto...

— Ah! D. Margarida, disse Henrique enterneci­do pelas suas palavras, não venho para isso, e pre­serve-me Deus de tal; venho apenas para saber o mistério de todo esse drama.

— Fr. José de Santa Genoveva nada vos disse?

— Entregou-me o testamento de Lourenço Pin­to de Sousa em que me constituiu de há muito único herdeiro de todas as suas riquezas.

— Documento que salvei das chamas, e que, sem que Fr. José soubesse que eu o tinha, lhe fiz en­trega, já por deliberação minha, já por conselho de meu pai, para que fosse ter à vossa mão; e para sal­vá-lo comprometi a inocência de um pobre homem, fi-lo até passar por ladrão, que não queria eu que o desaparecimento tão somente de um papel fizesse duvidar a sua culpabilidade, e só por amor dele exi­giria de vós um pequeno prêmio.

— Sra. baronesa, tudo é vosso, haveis de dispor de tudo como até aqui; eu nada mais quero que...

— Este traje diz-me muito bem, disse a barone­sa interrompendo-o com ligeiro sorriso sobre os lá­bios e inclinando-se para um lado a fim de ganhar o reflexo de um espelho.

— Ah! por certo que não!

— Espero pois, prosseguiu ela, que esse prêmio seja a carta de liberdade que outorgareis a Daniel com cinqüenta barras de ouro que achareis na secretária...que foi minha; rogo-vos que tomeis conta de vossa casa, pois já é tempo de retirar-me.

— Retirar-vos? e para onde?

— Para a casa de meu pai, na Lapa, de onde me arrancou a opulência de Manuel Luís, e a que me restitui minha pobreza.

— E onde eu poderei ir buscar-vos, não é assim?

Margarida compôs o seu negro vestido de lon­ga cauda.

Ouviu-se o rumor de um carro que parou à porta.

— Ah! é meu pai, bradou ela correndo para re­cebê-lo.

Anselmo entrou; cumprimentou com indife­rença ao doutor; e dando a beijar sua mão a Margari­da, imprimiu-lhe um ósculo na testa.

— Vamos.

— Estou pronta.

Margarida subiu a uma cadeira, desprendeu o seu quadro, e depois, tomando de uma campainha, tocou-a por um instante.

Compareceram na sala todos os seus escravos e mucamas, que silenciosos aguardavam as suas ordens.

— Aqui tendes, disse ela, o vosso novo senhor; e ajuntou ela voltando-se para o doutor:

— Aqui tendes a vossa casa.

E inclinando a cabeça, dispunha para se reti­rar, quando Henrique, acenando para os escravos que se retirassem, embargou-lhe os passos.

— Excelentíssima, disse ele, e não me restituireis o meu quadro, as minhas flores? Já não vos lem­brais que tudo isso me foi dado por vós?

— E esqueceste-vos que o resgatei a peso de ouro? ou pensais que tendes direito a esse dinheiro por não saberdes que ainda tenho em poder de meu pai cento e vinte contos de réis de minha legítima materna?

— Pois bem, não terei direito a todas as usurpa­ções que me fez Manuel Luís, o barão?

Anselmo empalideceu.

— Tendes, senhor, respondeu Margarida com calma; exigis algumas indenizações? Aí tendes toda a vossa fortuna; talvez seja pouca, mas não podemos dar-vos mais, a menos que não queirais também a nossa própria miséria; essa a sós nos ficará.

— Quero, Sra. baronesa, quero a vossa mão que ele usurpou-me; mas não é o milionário quem vo-la pede, nem o herdeiro de Lourenço Pinto; é, ajuntou ele metendo a mão na algibeira e tirando de um papel dobrado e cheio de linhas cortadas, mas presas ao la­cre, e rasgando-o, é, Margarida, o pobre e desgraça­do Henrique!

As lágrimas de Margarida rebentaram em fio; e Anselmo, tocado da generosidade e amor de Hen­rique, correu a apertá-lo em seus braços.

— Sois um homem de bem, balbuciou ele entre soluços.

— Sois por demais generoso, Sr. Henrique, eu vo-lo agradeço; não posso eu pagar generosidade com generosidade, mas uma mulher, aos quinze anos, na idade da ambição e da vaidade, também sacrifica o seu título ao vosso amor! Deixarei de ser baronesa, mas serei a Margarida de Henrique, a quem amei sempre. Fiz-vos mal, estorvei-vos casa­mentos, urdi enredos contra vós, uns após outros; mas ah! que foi tudo levado pelo ciúme de vos ver em braços de outra. Pois bem, agora esqueçamo-nos de tudo e vivamos um para o outro.

— Ouviremos a missa do sétimo dia, e depois trataremos do nosso casamento.

— Sim, marcai o dia que vos parecer; sois vós quem mandais e não Margarida.

— Casar-nos-emos no dia em que se casar D. Ca­rolina; quero provar-lhe que ganhei mais do que ela.

— E Cecília assistirá também, para que vejais que eu tinha razão.

— Nesse dia aconselhou Anselmo, faremos coi­sa melhor: cumpriremos nossa promessa, dar-lhe-emos os cinqüenta contos de réis de dote, não?

— Sim, disse Margarida, para que Rafael se apazigúe comigo, pois que, instruído pela narração de Fr. José de Santa Genoveva, quis, mal viu o barão expirar, que eu lhe cedesse parte do que a vós vos pertencia, ou quando não, que tudo vos seria divul­gado.

— E me importava? Ele não pensou jam[a]is en­contrar um coração como o vosso.

— Nem uma alma como a de Henrique.

— E Daniel? interrogou Anselmo.

— Eu vou dar-lhe a liberdade, respondeu a ba­ronesa, e bem assim as cinqüenta barras de ouro que o barão lhas havia dado, não, Sr. Henrique?

— Sim, Margarida, que tudo podeis dispor, me­nos, porém...

— De quê, senhor?

— De meu quadro.

Margarida a sorrir-se, tanto quanto lhe pudes­se dizer com os seus negros trajos, restitui-lhe o qua­dro e as flores, e pediu-lhe que todos os dias a viesse visitar.

Anselmo ofereceu o carro ao futuro genro, e partiram ambos para a cidade.

— Ah! disse a baronesa vendo-o sair, nunca me enganei! Ele foi e será sempre o eleito de meu cora­ção! Agora, sim, possuo a felicidade completa, que nada mais desejo!

 

XV

O FESTIM

Há oito dias que Henrique havia desposado a bela Margarida; contente de sua sorte, tinha disposto tudo para um solene festim que havia terminar com um faustoso banquete, e para isso convidou a quan­tos amigos tinha e a quantas pessoas conhecia.

No aprazível arrabalde de Botafogo, numa chácara que alugara de propósito para tal, fez levan­tar um vasto avarandado em frente da casa, sustenta­do por cem elegantes colunas, cujos capitéis eram como cocares de palmeiras; o teto era composto de palmas verdes de coqueiro que formavam uma abó­bada de esmeralda, e da qual pendiam frutos de ouro; da profusão de arandelas que cingiam as colu­nas, e dos lustres que caíam do teto refletiam cente­nares de luzes; o chão era tapizado de vistosos tape­tes, como se a terra se desabrochasse em flores; de coluna em coluna prendiam-se gradis enastrados de flores, folhas e frutos naturais colhidos nas chácaras ou nas florestas do Corcovado; belos divãs de velu­do verde entre pilastras e vasos simulavam assentos de grama; ricas cadeiras de canas próprias de jar­dins, soberbos espelhos que ocupavam o vão de uma a outra coluna, davam à varanda do baile um aspecto de suntuosidade, brilho e luxo de mistura com a pompa da natureza.

O toucador destinado para as senhoras dizia com o salão do baile: era como um caramanchão todo de canas tecidas e entrelaçadas de passiflora com suas folhas acetinadas, suas gavinhas de froco, com seus maracujás de ouro, seus roxos martírios de seda; coberto de oleado imitando conchas, com as­sentos de veludo verde e iluminado por globos de co­res. O toucador propriamente dito, era uma cascata toda formada de objetos de perfumaria que substitu­íam as conchinhas e mariscos com primor e graça; fios de cristal que saíam da urna de um velho que nela se recostava, e que vinham cair sobre um espelho obliquamente encravado numa moldura como se fos­se mármore, fingiam águas, completavam o tanque.

Na sala do festim, que era sob uma alameda de mangueiras, o teto era com um dossel de flores, don­de pendiam de envolta com globos coloridos e ilumi­nados, os frutos que se deviam servir na ceia e esqui­sitos doces que os imitavam.

Aos ramos das árvores que se cruzavam esta­vam ligadas por trancelins bonitas cestas de palhinha de taquaras cheias de pombinhas brancas, de cujos bicos ondulavam fitas com dourados dísticos.

A mesa descansava sobre pilastras, das quais sobejavam vasos de porcelana adornados com car­damomo, magnólias, dracenias, pulquérrimas, e independências de um efeito maravilhoso, e figu­ras como que de alabastro revestiam as cabeceiras. No meio um repuxo de mármore, de cujas águas re­fletiam, como que de cristal, as luzes das arandelas presas aos troncos das mangueiras.

No fundo, no lugar da cabeceira da mesa, onde deviam sentar-se os noivos via-se um quadro fin­gindo uma fonte; no outro extremo, um bosque es­pesso.

O coreto da música ocupava o centro de todo o campestre edifício, mas não era visível a pessoa al­guma.

À hora aprazada começaram a chegar os convi­dados em carros ou cavalos, e eram recebidos por Cecilia e Rafael, pois que Henrique e Margarida de­viam vir por mar com Carolina e Segismundo e o Barão de Itaíba.

Brilhava a lua, e sua frouxa e débia  luz se derramava como um manto vaporoso sobre a super­fície das águas da baía de Botafogo, com seus mon­tes de verdura e seus gigantes de granito.

Ouviu-se uma música bela e longínqua, e pou­co depois avistou-se o escaler de Henrique todo ilu­minado a espelhar-se na superfície das águas.

Tocou a orquestra, e os convidados vieram ao encontro dos ditosos noivos.

Margarida, conduzida por Segismundo, Caro­lina por Henrique, e Anselmo com seu filho, pene­traram na elegante varanda, recebendo os parabéns de toda a sociedade.

— O tal Manuel Luís, disse o Sr. de Itaíba para um conhecido seu, não tinha tanto gosto!

— Quem? perguntou-lhe o moço.

— O defunto barão.

— Ah! pois bastava-lhe o ser isso!

O Sr. de Itaíba abaixou-lhe os ombros e seguiu a examinar todos os adornos.

— Que diabo! murmurou ele, onde puseram a sala de jogo que não há saber dela?

Pouco depois começaram as contradanças, e a varanda tomou um aspecto esplêndido.

— Não esperáveis tanta suntuosidade, Sra. ba­ronesa?

— Ah! Sr. doutor, disse Margarida, chamai-me pelo meu nome.

— Ainda o mereceis ser, insistiu o Dr. Silva ao passar por ela num tran versé.

Mas não o desejo.

— E que dizeis de tudo isso?

— Causou-me suma surpresa, porém os convi­dados deviam estar à fantasia, trajando roupas de jardineiros e gentes de campo.

— Seria belo e até poético.

Henrique estava satisfeito com o contentamen­to que lhe testemunhavam seus amigos, e para ele o tempo corria rapidamente.

O Sr. de Itaíba apenas roncava meio mergulha­do num macio assento de relva aveludado, aborreci­do de não dar com a sala de jogo.

Às três horas os cavalheiros, conduzindo as se­nhoras para a sala do banquete, começou a ceia.

— À saúde, disse Henrique entregando um pa­pel a Margarida, da Sra. Baronesa do Engenho Res­taurado!

— Oh! oh! oh! muitos parabéns! bradou o único representante que ali tinha a aristocracia, o Barão de Itaíba, a erguer-se nas pontas dos pés.


— Hip! hip! hip! Hurra! Repetiram todos.

— Vai à inglesa, murmurou Segismundo ao ou­vido de sua noiva.

— E entretanto, redargüiu-lhe ela, que eu, filha de um barão, nada tive!

— Ao depois, com vagar, respondeu ele satiri­camente; isso se arranja, é um despacho lá para o fu­turo que depende do presente de cada um.

Estrondosas gargalhadas rebentaram do extre­mo da mesa.

— De que se riem eles? perguntou Henrique.

— É de um pobre que brada aí por uma esmola a tais desoras, respondeu um dos criados.

— Um pobre... um pobre!... murmurou Henri­que erguendo-se.

— Dê m-lhe lá algum osso, e que se retire, disse Segismundo.

— Não! não! bradou o novo barão; faze entrar esse pobre e traze-o até aqui.

O criado obedeceu.

Um velho, coberto de sacos e andrajos, com roto e amassado chapéu pardo numa mão, já sem forma, e um bordão na outra, chegou-se à  Hen­rique e cumprimentou-o.

— Aqui uma cadeira; comerá a meu lado.

— Ao pé de minha senhora? perguntou Segis­mundo.

— Nesse caso, entre mim e a Baronesa do Enge­nho Restaurado.

Margarida afastou a sua cadeira com afabilidade.

O mendigo agradeceu, e conservou-se de pé. E o silêncio era solene e majestoso.

Henrique, servindo-se de vinho por suas pró­prias mãos, apresentou-lhe o copo.

— É de Lavradio, velho e magnífico; provai-o!

— À saúde, bradou o pobre, de quem é e será fiel ao seu juramento!

Os convidados chegaram seus cálices aos lábios em silêncio.

Henrique e Silva cravaram-lhe os olhos.

Então o velho mendigo levou a mão aos cabe­los e arrancou a cabeleira.

— Um frade! bradaram todos a um tempo.

— Fr. José de Santa Genoveva! disse Henrique abrindo-lhe os braços.

O frade desembaraçando-se de seus andrajos, abraçou o jovem doutor e sentou-se entre Margarida e Henrique.

— Casei-vos, abençoei-vos, disse ele; reparti milhares de esmolas que destinastes aos pobres, e quis também por um instante assistir a vosso festim.

Henrique, agradecendo-lhe tanta bondade, ba­teu de leve no quadro que tinha por detrás de si e que representava uma fonte, e começou a trovejar.

Uma como chuva de gotas odorosas caía das flores sobre os convivas.

De repente aumenta-se a trovoada, chovem confeitos como granizo, e se transforma o quadro no retrato de Margarida todo iluminado e cercado de flores e luzes brilhantíssimas.

As pombinhas agitam as brancas asas em seus braços de vimes que se embalançam como que agita­dos pelo sopro da viração; miríades de borboletas, trazendo em cada asa versos alusivos ao festim, ade­jam e caem sobre os convidados como uma chuva de flores.

O pano de fundo, que representava um bosque, se arregaça, e aparece um jardim todo iluminado; soa a música, e meninos vestidos de jardineiros exe­cutam breves e ligeiras danças.

Os convidados se erguem e afluem para o en­cantado teatro, cujas danças dão fim ao divertimento.

 

XVI

CONCLUSÃO

No dia seguinte o barão e a baronesa, acompa­nhados de Anselmo, embarcavam-se para a interes­sante e pitoresca Niterói e partiam para a sua Fazen­da do Engenho Restaurado, do rico município de Campos.

— Que eles sejam felizes e que Henrique jamais se esqueça de seu juramento! disse o velho monge recebendo a notícia de sua partida.

FIM

TIP. FLUMINENSE DE C. M. LOPES

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



[1] Seja-me lícito transcrever o seguinte trecho de um escritor que, sem que me conhecesse, me contemplou em o núme­ro dos autores desses ensaios; e ao mesmo tempo aproveito o lugar para lhe agradecer publicamente a sua bondade maior que o  nem um mérito de meus escritos: “Os fi­lhos de Santa Cruz, diz o Sr. Victor de Canovaz, tinham adquirido grande nomeada na poesia clássica, e a literatura romântica também lhes deve primorosas obras entre as quais avultam os Suspiros poéticos do Sr. Magalhães e os Primeiros cantos do Sr. G. Dias. E se poucas são as novelas que as suas penas têm escrito, já nesses mesmos traços de seu pincel romântico, se reconhece a aptidão de seu en­genho para este género de composições. Seu espírito melan­cólico e a sensibilidade de sua alma transluzem nos vôos ju­venis de sua imaginação. Aos Srs. Norberto, Pereira da Sil­va, Porto-Alegre e Teixeira e Sousa se devem alguns ensaios de verdadeiro mérito. E nessa casta de trabalhos literários ganhou o Sr. Macedo a coroa de romancista distinto, que orna a lira do autor da Moreninha e do Moço louro”.

[2] O Sr. V. de Almeida Garretti no seu poema Camões.

[3] Os contos e legendas serão publicados ao depois.

[4] O Sr. A. P. Lopes de Mendonça.

[5] Freire, Vida de D. João de Castro.

[6] A gaivota, assim chamada dos indianos

[7] Garção. Epistola

[8] João de Barros, assim chamado dos portugueses.

[9] M. de Araújo Porto-Alegre.

[10] Basilio da Gama, O uruguai

[11] A cobra cascavel, assim chamada dos indígenas, cujo ve­neno violentíssimo se desenvolve rapidamente.

 

[12] Pernambuco, [I]tamaracá, Paraíba e Rio Grande do Norte.

[13] Segundo Stathonder da Holanda, filho do Conde de Nas­sau e Dillemburg e de Margarida, princesa de Alsácia.

[14] Saiu em 5 de outubro de 1636 e chegou em 23 de janeiro do ano seguinte.

 

[15] Mathias van Ceulen e Johan Gisselingh, que voltavam ao Brasil, representando em Amsterdã e outro Middelburg; e Adriaen van der Dussen, as cidades de Roterdã e Groningen.

[16] Veja-se o artigo biográfico que escrevi sobre ela e que vem na Revista Trimensal do Instituto Histórico.

 

[17] Mouzinho de Quevedo. Afonso africano.

[18] W. Jones, na tradução do poema pérsico de Hafiz –

Os amores de Luigi e Majnun:

Love rais'din their ardent bosoms his trone

Adopting the blooming pair as his own.

[19]  J. B. de Andrada e Silva. Uma tarde no sítio de Santo Amaro.

[20] Idem, ibidem.

[21] J'entends au loin, vers ce riant sejour.

  La voix du chien qui gronde et veille autour

  De l'humble toît qu' habite l'innocence.

  Chateaubriand Nuit de printemps.

[22] Basílio da Gama. O uruguai.

 

[23] Descolorido estava como a rosa que ha sido feita de sazon cortada. Garsilaso de la Vega.

[24] Camões. Os Lusíadas.