Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Eneida Brasileira, de Odorico Mendes


Edição de base:

Projeto Odorico Mendes

ENEIDA BRAZILEIRA

OU

 TRADUCÇÃO POETICA

DA EPOPÉA

DE PUBLIO VIRGILIO MARO,

Por Manuel Odorico MENDES,

da cidade de S. Luiz do Maranhão.

PARÍS.

NA TYPOGRAPHIA DE RIGNOUX,

rua Monsieur - le - Prince, 31.

1854


AO PUBLICO.

                                     Sumite materiam vestris, qui scribitis, aequam

                                     Viribus. . .

                                                                                    (HORAT.)

Não possuindo o ingenho indispensavel para emprehender uma obra original ao menos de segunda ordem, persuadido porêm de que o estudo da lingua e a frequente lição da poesía me habilitavam para verter em portuguez a epopéa mais do meu gôsto; annos ha, com a Eneida me tenho occupado. Por contente me dou se obtenho um lugar ao pé de Annibal Caro, Pope, Monti, Francisco Manuel, e de outros bons traductores poetas; e, a ser-me isto vedado, consólo-me com o prazer bebido nas ficções de Virgilio; cujos versos, á medida que os ia passando, me transportavam ao tempo em que, aprendendo o latim sob o meu saudoso amigo Fr. Ignacio Caetano de Vilhena Ribeiro, vivi na patria com os condiscipulos, sem cuidados nem dissabores. Este prazer, em verdade, foi o que me sustentou em tam ardua e longa tarefa, ainda mais que o desejo de louvores; os quaes todavia agradam ao nosso amor proprio, e folgarei de os merecer.

                                                                  M. O. M.


ADVERTENCIA

Em as notas, que ajunto no fim de cada livro, ha dous numeros: um indica o verso do original; o segundo, o da traducção. Quando cito um só número, entenda-se que he do original. sigo o texto de Carlos de La Rue. Coméço a contar desde Ille ego qui quondam, etc., em razão do que declaro na primeira nota do livro primeiro.

Adoptei algumas palavras do latim e compuz não poucas por me parecerem necessarias na occasião. De algumas faço menção nas notas; de outras não tratei, por ser obvio o sentido em que as tómo.


ENEIDA.

LIVRO I.

Eu, que entoava na delgada avena

Rudes canções, e egresso das florestas,

Fiz que as vizinhas lavras contentassem

A avidez do colono, empresa grata

Aos aldeãos; de Marte ora as horriveis                         5

Armas canto, e o varão que, lá de Troia

Prófugo, á Italia e de Lavino ás praias

Trouxe-o primeiro o fado. Em mar e em terra

Muito o agitou violenta mão suprema,

E o lembrado rancor da seva Juno;                              10

Muito em guerras soffreu, na Ausonia quando

Funda a cidade e lhe introduz os deuses:

Donde a nação latina e albanos padres,

E os muros vem da sublimada Roma.

Musa, as causas me aponta, o offenso nume,               15

Ou por que mágoa a soberana déa

Compelliu na piedade o heroe famoso

A lances taes passar, volver taes casos.

Pois tantas iras em celestes peitos!

Colonia tyria no ultramar, Carthago,                            20

Do ítalo Tibre contraposta ás fozes,

Houve, possante emporio, antigo, asperrimo

N’arte da guerra; ao qual, se conta, Juno

Até pospoz a predilecta Samos:

Lá coche, armas lá teve; e annúa o fado,                    25

No orbe enthronal-a então já traça e tenta.

Porêm de Teucro ouvira que a progenie,

Dos Penos subvertendo as fortalezas,

Viria a ser, desmoronada a Libya,

A’ larga rei bellipotente povo:                                     30

Que assim no fuso as Parcas o fiavam.

Saturnia o teme, e a pró dos seus Achivos

Recorda as lides que excitara em Troia;

Nem d’alma aggravos risca, dôres cruas:

No íntimo impressa a decisão de Páris,                         35

A injúria da belleza em menoscabo,

E a raça detestada e as honras duram

Do rapto Ganymedes. Nestes odios

Sôbre-accesa, os da Grecia e immite Achilles

Salvos Troas, do Lacio ia alongando,                           40

Por todo o plaino undísono atirados;

E, em derredor vagando annos e annos,

De mar em mar a sorte os repulsava.

Tam grave era plantar de Roma a gente!

De Sicilia, amarando, mal velejam                                45

Ledos e o cobre rompe a salsa espuma,

Juno, dentro guardada eterna chaga:

“Eu, diz comsigo, desistir vencida!

Nem vedar posso a Italia ao rei dos Teucros!

Ah! tolhe-me o destino. A esquadra argiva                   50

Não queimou Pallas mesma, submergindo-os

Só de um Ajax Oileu por culpa e furias?

Do Tonante o corisco ella das nuvens

Darda, os baixéis desgarra, o ponto assanha;

Ao triste, que varado expira chammas,                        55

N’um torvelinho em rocha aguda o crava:

E eu, que raínha marcho ante as deidades,

Mulher e irmã de Jove, tantos annos

Guerreio um povo! E a Juno ha quem adore,

Ou súpplice inda a incense, a invoque e honre?”            60

No âmago isto fermenta, e a deusa á patria

De austros furentes, de chuveiros prenhe,

A’ Eolia parte. Aqui n’um antro immenso

O rei preme, encarcera, algema, enfreia

Luctantes ventos, roncas tempestades.                       65

Em tôrno aos claustros de indignados fremem

Com gran’rumor do monte. Em celsa roca

Sentado Eolo, arvora o sceptro, e as iras

Tempera e os amacia. Que o não faça,

Varridos mar e terra e o céo profundo                          70

Lá se vam pelos ares. Cauto, em negras

Furnas o omnipotente os aferrolha,

E, um cargo de montanhas sobrepondo,

Lhes deu rei, que mandado a ponto as bridas

Suster saiba ou laxar. Dest’arte Juno                           75

O exora humilde: “Eolo, o pae dos divos

E rei dos homens te concede as ondas

Sublevar e amainal-as; gente imiga

Me sulca as do Tyrrheno, Ilio e os domados

Penates para Italia transportando:                              80

Ventos açula, as pôpas mette a pique,

Ou dispersas no ponto as espedaça.

Quatorze esbeltas nymphas me cortejam,

Das quaes a mais formosa, Deiopeia,

Prometto unir comtigo em jugo estavel;                       85

Que em paga para sempre a ti se vote,

Meiga te procreando egregia prole.”

A quem Eolo: “Que o desejes basta;

Meu, raínha, he servir-te. Quanto valho

Tu m’o grangêas,  e este sceptro e Jove;                     90

Tu dás-me á diva mesa o recostar-me,

Ser em tufões potente e em tempestades.”

Dice; e um revez do conto a cava serra

A um lado impelle: em turbilhão, cerrados

N’um grupo os ventos, dada a porta, ruem,                   95

As terras varejando. Ao mar carregam,

E horrísonos revolvem-lhe as entranhas

Nôto mais Euro, e de borrascas fertil

Africo; ás praias vastas ondas rolam.

Homens gritam, zunindo a enxarcia ringe.                     100

Some-se ao nauta o céo, tolda-se o dia;

Pousa no pelago atra noite; os polos

Toam, o ether fuzila em crebros raios:

Tudo ameaça aos varões presente a morte.

Frígido, arripiado, Enéas geme,                                   105

E alça as palmas e exclama: “Afortunados

Oh! tres e quatro vezes, d’Ilio ás abas,

Os que aos olhos paternos feneceram!

O’ dos Danaos fortissimo Tydides,

A alma em Troia vertendo-me essa dextra,                   110

Não ficar eu nos campos, onde o bravo

Heitor d’Eacide ás lançadas, onde

Sarpédon jaz magnanimo, onde o Simois

Corpos e elmos de heroes e escudos tantos

Arrebatados na corrente volve!”                                 115

Bradava; e a sibilar ponteiro Bóreas

Rasga o panno, e a mareta aos astros joga.

Remos estalam; cruza a proa, e o bórdo

Rende; escarpado fluido monte empina-se.

As naus já no escarcéo pendem, já descem                  120

N’um sorvedouro á terra entre marouços:

Remoínha o esto na revôlta arêa.

Tres rouba Nôto e avexa n’uns abrolhos,

Abrolhos sob o mar, que Italos aras

Nomêam, dorso horrendo ao lume d’agua;                     125

Tres no parcel (que lastima!) Euro esbarra,

Encalha em vaos, de marachões rodêa.

Uma, em que Oronte fido e os Lycios vinham,

Ante Enéas, d’avante humido rôlo,

Do maior pino desabando, em pôpa                             130

Fere-a; do baque o prono mestre vôlto

Cahe de cabeça. O vagalhão tres vezes

Torce-a, revira, um vortice a devora.

Raros no vasto pégo a nadar surdem;

Taboas e armas viris e alfaias troicas,                         135

Prêa das ondas. A tormenta escala

A nau robusta de Ilioneu, de Abante,

As de Alethes grandevo e Achates forte:

Todas, frouxadas as junturas, sorvem

A inimiga torrente, e em fendas gretam.                       140

Mugir seu reino e o temporal desfeito,

Caixões do imo a brotar, sentiu Neptuno,

Torvo, abalado, e acode acima e exalta

A placida cabeça. A frota esparsa

Vê sossobrando, oppressos os Troianos                       145

Da marejada e do ruído ethereo.

De Juno irosa o dolo o irmão percebe;

Euro e Zephyro chama: “Herdastes, ventos,

Tal presumpção, que sem meu nume, ousados,

Terra e céo confundis e equoreas brenhas?                  150

Eu vos... Mas insta abonançar as vagas:

Caro m’o pagareis, guardo o castigo.

Ao rei vosso intimai, já já, que em sorte

Não lhe coube este imperio, que o tridente

Fero he só meu. Tem elle enormes fragas,                    155

Euro, vossas mansões: nessa aula ufano

Sôbre enclaustrados ventos reine Eolo.”

Nem cessa, e o mar se lança, o tempo alimpa

E abre o Sol. Finca a espadoa, e com Cymóthoe

As naus Tritão do escolho dsengasga;                         160

Mesmo o padre as alliva com seu sceptro,

Amplas syrtes afunda, aplaca os mares,

Por cima em rodas se deslisa leves.

Como, enraivado em popular tumulto,

Despara ignobil vulgo, e o facho e o canto                   165

Já voa, as armas o furor ministra;

Mas, se um pio ancião preclaro assoma,

Calam, para escutar o ouvido afiam;

Elle os convence e os animos abranda:

Assim baixa o fragor e o pégo amansa,                        170

Quando olha o deus, que os brutos no ar sereno

Dobra, e dá loros ao ligeiro carro.

Da costa proxima em demanda, á Libya

Os cansados Eneadas aproam.

N’um golpho alli secreto, com seus braços                    175

Faz barra ilha fronteira, onde a mareta

Quebra e se escoa em sinuosas rugas:

Penedia em redondo, e ao céo minazes

Ha dous picos irmãos, a cujo abrigo

Dorme diffuso o mar; de coruscantes                           180

Selvas prolonga-se eminente scena,

Descahe de atra espessura horrida sombra;

No tôpo ha gruta em pêndulos cachopos,

Com doce fonte, e em viva rocha bancos

Das nymphas séde: aqui não prende amarra                  185

Nem mordaz ferro adunco as lassas quilhas.

Com sete naus ao todo arriba Enéas;

E amorosos da terra, alvoroçados

Saltando os seus, do sal tabidos membros

Na arêa espraiam. Lume eis fere Achates,                    190

Toma em folhas, e em roda as accendalhas,

Nutre a faisca, e em lenha a chamma atêa.

Mareados pães e cereaes aprestos

Já desembarca a trabalhada chusma,

E os grãos põe-se a torrar e em pedra os pisa.              195

Trepa emtanto um penhasco, e ao largo Enéas

Regyra, a vêr se undívagos alcança

Antheu ou Capys, as biremes phrygias,

Ou armas de Caíco em altas pôpas.

Baixel nenhum; avista só tres cervos                           200

Na praia errantes; segue atrás o armento,

E enfileirado pelos valles pasta.

Retem-se, e o arco aferra e as settas ageis

Que armam Achates fido, e os guias logo,

De arboreas pontas entonados, prostra;                      205

Embrenha a demais turba e acossa a tiros,

Té que derriba sete ingentes corpos,

E iguala as naus. De vólta, elle os divide.

E os barris que, á partida, o heroe trinacrio

Bom de vinho atestara, aos seus larguêa;                    210

Dulcíloquo os mitiga: “Os males, socios,

Nada estranhamos; oh! mais agros foram:

Deus porá termo a estes. Vós de Scylla

De perto a raiva e escolhos resonantes,

Vós cyclopeos rochedos affrontastes:                         215

Animo! esse temor bani tristonho;

Talvez isto com gôsto inda nos lembre.

Por varios casos, transes mil, nos vamos

Ao Lacio onde o repouso os fados mostram:

Resurgir deve alli de Troia o reino.                               220

Tende-vos duros, da bonança á espera.”

Tal discursa, e affectando um ar seguro,

N’alma inferma suffoca a dôr profunda.

Lestos á presa atiram-se: este esfola,

Aquele desentranha, outro esposteja;                         225

Qual trementes no espeto enrosca os lombos,

Qual fogo atiça aos caldeirões na praia.

Fartos, na relva espalham-se, refeitos

De velho baccho e veação opíma.

Repleta a fome, e as mesas removidas,                        230

Dubios indagam, sôbre os seus praticam

Entre medo e esperança: estam com vida?

Ou na extrema agonia ao brado surdos?

Mormente o pio rei de Amyco chora

Ou de Lyco o desastre, o ardido Oronte,                      235

E o forte Gyas e Cloantho forte.

Das alturas, no fim, Jove esguardando

O mar velívolo e as jacentes plagas

E amplas nações, no vertice do Olympo

Quedo, os olhos fitou nos lybios reinos.                        240

Quando o absorviam taes cuidados, Venus

Triste, os gentis luzeiros orvalhando:

“O’ tu, queixou-se, que os mortaes e os deuses

Reges eterno e horrísono fulminas,

O que te fez meu filho, o que os Troianos,                    245

Que após tragos lethaes, não só d’Italia,

Do universo os cancellos se lhes fecham?

Roma delles tirar, delles os cabos

Que, eras volvendo, restaurado o sangue

De Teucro, o mar e a terra sofreiassem,                       250

Nos prometteste: quem mudou-te, ó padre?

Do occaso ao menos e desgraças d’Ilio

Isto, uns fados com outros compensando,

Me consolava. Igual fortuna arrasta

Ora os varões a riscos e a trabalhos:                          255

Quando os findas, gran’rei? De Acheus escapo,

Entrar salvo Antenor d’Illyria o seio

E internar-se em Liburnia, e a fonte obteve

De Timavo transpôr, donde por bôcas

Nove, a montanha a rimbombar, despenha-se               260

Ruidoso mar que empola e o campo alaga.

Sentou Patavio aqui, deu casa a Teucros,

Nome á gente, e os brasões fixou de Troia;

Descansa em doce paz. Nós tua estirpe,

Nós da celeste côrte, as naus submersas,                    265

Ah! de uma por furor, victimas somos,

Longe expulsos d’Italia? Deste modo

Se honra a piedade, os sceptros nos reservas?”

Sorrindo-se o autor de homens e numes,

C’um gesto que a tormenta e o céo serena,                  270

Da filha osculos liba, e assim pondera:

“Poupa esse medo, Cypria; immotos jazem

Dos teus os fados: nas lavinias tôrres

Has de revêr-te, e alar sôbre as estrellas

Teu grande Enéas. Jupiter não muda.                          275

O heroe na Italia (esta ancia te remorde,

Vou rasgar-te os arcanos do futuro)

Guerras tem de mover e amansar povos,

E instituir cidades e costumes,

Ao passo que reinando o vir no Lacio                           280

Terceiro estio, e os Rutulos domados,

Forem-se tres invernos. Posto ao leme

Ascanio, que hoje Iulo cognominam

(Ilo, em quanto florente Ilion se teve),

Cerrando os mezes trinta largos gyros,                        285

Ha-de, a séde lavinia trasladada,

Alba longa munir e abastecel-a.

Os Hectoreos aqui trezentos annos

Já reinarão, quando a vestal princeza

Ilia parir a Marte gemea prole.                                    290

Da nutriz loba em fulva pelle ovante,

Romulo ha de erigir mavorcios muros,

E á recebida gente impôr seu nome.

Métas nem tempos aos de Roma assino;

O imperio dei sem fim. Té Juno acerba,                        295

Que o mar ciosa e a terra e o céo fatiga,

Transmudada em melhor, tem de amparar-me

Do orbe os senhores e a nação togada.

Praz-me assim. Manem lustros, que inda a casa

De Assaraco ha de ser de Phthia e de Argos                 300

Senhora, e agrilhoar Mycenas clara.

D’Iulo garfo egregio, em nome e glória

Succedendo, as conquistas no oceano

Cesar teminará, nos céos a fama.

Nos astros sim, de espolios do oriente                         305

Onusto, o acolherás; e humanas preces

Tem de invocal-o. Então, deposta a guerra,

Se amolgue a ferrea idade; a encanecida

Fé com Vesta, os irmãos Quirino e Rhemo

Dictem leis; Jano trave as diras portas                         310

Com trancas e aldrabões; sôbre armas cruas

Dentro o impio Furor sentado, e roxos

Atrás os pulsos em cem nós de bronze,

Hediondo ruja com sanguinea bôca.”

Não mais; e expede o génito de Maia,                          315

Porque a recem Carthago hospicio aos Teucros

Franquêe, nem, do fado inscia, a raínha

Os extermine. O deus pelo ar patente

De azas remando, em Libya o vôo abate;

Fiel ás ordens, a fereza aos Penos                              320

Despe; e Dido primeira em pró dos Phrygios

Brandos affectos placidos concebe.

Toda a noite pensoso o heroe velando,

A alma luz mal branqueja, onde arribara

Dispõe sondar; e vendo incultas margens,                    325

Inquirir quem as tem, se homens, se feras,

E aos seus noticial-o. As naus mettidas

N’abra de uns bosques sob cavada penha,

Entre verde espessura e negras sombras,

Elle só, mais Achates, sahe brandindo                          330

Duas hastes que empunha de ancho ferro.

Da selva em meio a mãe se lhe apresenta,

Virgem no trajo e aspecto, em armas virgem

Lacena; ou qual Harpálice a threícia

Cansa os corseis e o Euro vence alífugo:                      325

Pois do hombro o arco destro, á caçadora,

Pendura, e ás auras a madeixa entrega,

Dos joelhos nua e a falda em nó colhida.

Eil-a: “O’ jovens, errante aqui topastes

Irmã minha, a gritar quiçá no encalço                          340

De javali sanhudo? A cinta aljava

Tem sobre a pelle de um manchado lynce.”

Isto Venus; e o filho assim responde:

“Nenhuma ouvi nem vi das irmãs tuas,

O’... quem direi? Não tens mortal semblante                  345

Nem voz de humano som; es deusa, ó virgem:

Irmã de Phebo ou nympha? As nossas penas

Tu, por quem es, minora: e nos ensina,

Pois vagueâmos sem saber por onde,

O paiz, clima ou povo, a que arrojou-nos                      350

Vento e escarcéo medonho. Hostias sem conto

Havemos de immolar nas aras tuas.”

“Não mereço honras taes, replíca Venus;

Usam de aljava, e ao bucho as virgens tyrias

Atar das pernas borzeguim purpúreo.                           355

Punicos reinos e agenorios muros

Vês, nos confins da indomita e guerreira

Libyca raça. O imperio atêm-se a Dido,

Que, por fugir do irmão, fugiu de Tyro.

He longa a injúria, tem rodeios longos;                         360

Mas traçarei seu curso em breve summa.

Sicheu, Phenicio em lavras opulento,

Foi da misera espôso, e müito amado:

Com bom preságio o pae lha dera intacta.

Pygmalion, façanhoso entre os malvados,                     365

Barbaro irmão, do estado se empossara.

Interveio o furor: de fome de ouro

Cego, e á paixão fraterna sem respeito,

Perfido, impio, a Sicheu nas aras mata;

O facto encobre, e a credula esperança                       370

Da amante afflicta largo espaço illude

Com mil simulações. Mas do inhumado

Consorte, com esgares espantosos,

Pallida em sonhos lhe apparece a imagem:

Da casa o crime e trama desenleia;                             375

A ara homecida, os retalhados peitos

Desnuda, e á patria intíma-lhe que fuja:

Prata immensa e ouro velho, soterrados,

Para o exilio descobre. Ella, inquieta,

Apressa a fuga, e attrahe os descontentes                  380

Que ou rancor ao tyranno ou medo instiga;

Acaso prestes naus, manda assaltal-as;

Dos thesouros do avaro carregadas

Empégam-se: a mulher conduz a empresa!

Chegam d’alta Carthago onde o castello                       385

Verás medrando agora e ingentes muros:

Mercam solo (do feito o alcunham Byrsa)

Quanto um coiro taurino abranja em tiras.

Mas vós-outros quem sois? donde he que vindes?

Que regiões buscais?” Elle ás perguntas                       390

Esta resposta suspirando arranca:

“O’ déa, se recorro á prima origem,

E annaes de angústias não te pejam, Vesper

No Olympo encerra o dia antesque eu finde.

Da antiga Troia (se has notícia della),                          395

Vagos no equoreo campo, arremessou-nos

Casual tempestade ás libyas costas.

Enéas sou, com fama alèm dos astros,

Que livrei de hostil garra os meus penates,

E piedoso os transporto á patria Ausonia;                     400

Do summo Jove a geração procuro.

Por guia a deusa mãe, submisso aos fados,

Em vinte naus commetto o phrygio ponto;

Rôtas do Euro e das ondas, restam sete.

Pobre, ignoto, percorro africos ermos,                         405

D’Asia e d’Europa excluso...” Nem mais Venus

Lamentos comportou, na dôr o atalha:

“Quem sejas, creio, não do céo malquisto,

Gozas d’aura vital, que a Tyro aportas.

Eia, ao regio palacio te encaminha.                             410

Sem risco os socios, ancorada a frota,

Com o rondar dos áquilos, te auguro,

Se em arte vã meus paes não me instruiram.

Attenta cysnes doze em bando alegres:

No espaço, o ether fendendo, os perseguia                  415

A ave de Jove; n’um cordão agora

Ou tem no pouso a mira, ou vam pousando;

Juntos batendo as estridentes azas,

Brincam cingindo o pólo, a salvo cantam:

Bem como os teus as pôpas atracaram,                       420

Ou de véla enfunada a foz embocam.

Sus, alli te dirige, a estrada he esta.”

Dá costas, e a cerviz rosada fulge,

De ambrosia odor celeste a coma expira;

A veste escoa aos pés; no andar se ostenta                425

Vera deusa. Elle atrás da mãe fuginte,

Reconhecendo-a, brada: “Porque o filho

Com taes ficções, cruel, enganas tanto?

Ligar dextra com dextra, ouvir-te ás claras,

Conversar-te em pessoa me he defeso?”                      430

Tal a argúe, e ás muralhas se endereça.

Ella porêm de ar fusco os viandantes

Tapa e os embuça em nevoa, que enxergal-os

Ou tocar ninguem possa, nem detel-os

Ou da vinda informar-se. A deusa a Paphos                  435

Remonta, a espairecer no sítio ameno

Onde o sabeu perfume arde em cem aras,

E recentes festões seu templo aromam.

Eis da azinhaga pela trilha cortam,

E um teso galgam já, que olha imminente                     440

A fronteira torrígera cidade.

Palhaes d’antes, a mole admira Enéas,

Admira o estrondo e as portas e as calçadas.

Tyro aferventa-se, a lançar os muros,

A avultar o castello, e a rolar pedras.                          445

Parte com sulcos marca os edificios;

Santo augusto senado, e o foro e a curia,

Se cria e elege: aqui se escavam portos;

Fundam-se alli magnificos theatros,

De marmor collossaes talham columnas,                       450

Pompa e decoro das futuras scenas.

Quaes abelhas ao sol por floreos prados

Lidam na primavera, quando ensaiam

O adulto enxame; ou doce fluido espessam,

Do nectar flavo retesando as cellas;                           455

Ou quando a carga das que vem recebem;

Ou em batalha expulsam da colmêa

Os zangãos, gente ignava. A obra ferve,

E a tomilho recende o mel fragrante.

“Ditoso quem seus tectos já levanta!”                         460

Exclama o heroe, e os coruchéos contempla.

Na cidade não visto, oh maravilha!

Se mistura ennublado. Em meio havia

Luco umbroso e fresquissimo, onde os Penos,

De ondas jogados e tufões, cavaram                           465

O tésto de um corsel, de Juno régia

Mostra e penhor que o povo, asado á glória,

Pugnaz e duro, insultaria os evos:

Lá punha Dido a Juno insigne templo,

Que dons e a rica effigie realçavam:                            470

No bronzeo limiar da[1] bronzea escada,

Craveja o bronze as traves, e a couceira

Range em portões de bronze. Um novo objeto

N’este bosque a lenir entra os receios;

Aqui primeiro ousou fiar-se Enéas                                475

E prometter-se allívio em seus pezares:

Pois quando, á espera da raínha, o templo

Nota peça por peça, quando o enlevam

De Carthago a fortuna, o gôsto fino,

O artificio, o primor, acha em pintura                           480

A fio as guerras d’Ilion, pelo orbe

Já soadas; o Atrida, o rei troiano,

E terror de ambos sebresahe[2] Achilles.

Pára, e em lagrimas diz: “Que sítio ou clima

Cheio, Achates, não he dos nossos males?                   485

Eis Priamo! o louvor tem cá seus premios,

Doe mágoa alheia, e remanece o pranto.

Coragem! que em teu bem conspira a fama.”

Dice, e em vãos quadros se apascenta, e as faces

Gemebundo humedece em largo arroio.                        490

Vê de Pérgamo em roda a hoste graia

Do phrygio ardor fugir, fugir a teucra

Do instante carro do emplumado Achilles.

Ai! perto a Rheso por traição Tydides,

No primo somno, arrasa as niveas tendas,                    495

De carnagem cruento; e os acres brutos

Volve ao seu campo, sem gostado haverem

De Troia os pastos, nem bebido o Xantho.

Triste! as armas perdendo, alêm, Troílo,

Que arrostou-se menino ao proprio Achilles,                  500

He dos corséis tirado, e resupino,

Mas tendo os loros, do vazio carro

Pende; e a cerviz no pó, de rojo a coma,

Virada a lança hostil na arêa escreve.

Em cabello, as Iliades afflictas                                    505

Ao templo iam tambem da iniqua Pallas,

O peplo humildes offertando, e os peitos

Com punhadas ferindo: aversa a déa

Olhos no chão pregava. A Heitor Pelides

Tres vezes arrastara em tôrno aos muros,                    510

De ouro a pêso vendia-lhe o cadaver.

Do imo um gemido grande Enéas sólta,

No olhar o espólio, o coche, o amigo exanime,

E a Priamo estendendo as mãos inermes.

A si se reconhece entre os mais chefes.                      515

Do negro rei do eôo a turma e as armas

A’ testa de milhares de Amazonas

Com lunados broquéis, Penthesiléa

Se abraza em furia, bellicosa atando

Sob a despida mama um cinto de ouro,                        520

E virgem com varões brigar se atreve.

Quando extatico o heroe se embebe e enleia,

Ao templo a formosissima raínha

Marcha, de jovens com loução cortejo.

Qual nas ribas do Eurotas ou do Cyntho                       525

Pelos serros Diana exerce os coros,

E, de infindas Oreadas seguida,

Carcaz ao hombro, em garbo as sobreleva;

Rega-se em gôzo tacito Latona:

Tal era Dido, airosa e prazenteira,                               530

Do seu reino a grandeza apressurando.

No adyto sacro, em meio do zimborio,

De armas cercada, em solio majestoso

Senta-se. Os pleitos julga e leis prescreve,

Regra ou sortêa os publicos trabalhos.                         535

Subito Enéas no tropel devisa

A Cloantho brioso, Antheu, Sergesto,

E os mais que atra borrasca a longes costas

Remessara dispersos. Elle e Achates

Varados ficam de alegria e susto,                               540

Avidos ardem por travar as dextras;

Fôrça ignota os perturba. Dissimulam;

Qual a sorte dos seus do encêrro espreitam

Nebuloso, e onde surta a frota seja,

E com que fim das naus os mais conspicuos                  545

Clamando, a pedir venia, ao templo acodem.

Introduzidos, quando a vez tiveram,

Rompe o idoso Ilioneu, facundo e grave:

“Raínha, ó tu que por favor supremo

Ergues nova cidade, e justa enfreias                           550

Suberbas gentes, os Troianos ouve,

Que, dos ventos ludíbrio, os mares cruzam:

Livra do infando incendio a pia armada,

Poupa innocentes, nossa causa attende.

Nem vimos nós talar com ferro e fogo,                         555

Nem saquear os lybicos penates:

A vencidos não cabe audacia tanta.

Paíz antigo existe, em grego Hesperia,

Armipotente e uberrimo, colonia

Já de enotrios varões; agora he fama                          560

Que, de um seu capitão, se diz Italia:

Esta era a nossa róta; eis que em vaos cegos

Deu comnosco de salto Orion chuvoso,

E, em sanha o pelago e os protervos austros,

Nos derramou por ondas e ínvias fragas:                      565

Poucos ganhámos pé nas vossas praias.

Patria e raça feroz! barbara usança!

Pisar em terra mãos hostis vedam;

Da arêa o asylo a náufragos prohibem.

Se as armas desprezais e as leis humanas,                   570

O céo mede as acções, premeia e pune.

Rei nosso Enéas he, que a ninguem cede,

Pio e inteiro, valente e bellicoso:

Se aura ethérea o sustenta e o guarda o fado,

Se os manes o não tem, sem medo somos,                   575

De o penhorar primeira não te pezes.

Cidades em Sicilia e campos temos,

E do sangue troiano o claro Acestes.

Amarrar nos permitte a lassa frota,

Mastros, remos cortar, falcar antenas;                        580

Com que ledos, se Italia nos espera,

Os socios e o rei salvo, ao Lacio vamos:

Mas, se te ha consumido o lybio pégo,

Optimo pae dos Teucros, nem d’Iulo

Nos resta a segurança, ao pôrto embora,                     585

Donde arribámos, a lograr voltemos

A apercebida sicula hospedagem,

E o regio amparo.” O Dárdano termina:

Lavra entre os seus approvador sussurro.

O rosto abaixa Dido, e foi succinta:                             590

“Sus, Teucros, esforçai. Recente o estado

Ao rigor me constrange, e a defender-nos

Guarnecendo as fronteiras. Quem de Enéas

Desconhece a prosapia, e as guerras d’Ilio,

Seu valor, seus heroes, seu vasto incendio?                 595

Nem somos nós tam broncos, nem de Tyro

Tam desviado o Sol junge os cavallos.

Quer da saturnia Hesperia, quer as margens

D’Erix opteis, em que domina Acestes,

Contai com meu auxílio e salvaguarda.                         600

Folgais de aqui ficar? Esta cidade

Que erijo, he vossa; as naus que se approximem:

Não farei destincção de Phrygio a Peno.

Fôsse o rei vosso á Libya compellido

Do mesmo Nôto! O litoral já mando                              605

E os sertões perlustrar; se he que o naufragio

Em povoado ou brenha o traz perdido.”

Ambos álerta, o padre e o companheiro

Ha müito almejam por quebrar a nuvem.

A Enéas se antecipa o forte Achates:                          610

“Nado de Venus, que tenção meditas?

Tens a frota em seguro, os teus bemquistos;

Um só que falta, sossobrar o vimos:

Ao que a mãe te esboçou quadra o mais tudo.”

Mal acabava, a nuvem circumfusa                               615

Se rompe e funde nos delgados ares.

Um deus na espalda e vulto, á claridade

Resplende Enéas; que n’um sôpro a deusa

Ao filho a cabelleira em fulgor banha,

Em luz purpúrea o juvenil semblante,                           620

Em vivo terno agrado os olhos bellos:

Qual, pela indústria, com entalhos de ouro

Pário marmore, ou prata, ou marfim brilha.

De improviso á raínha e a todos clama:

“Eis quem buscais, dos libyos vaos escapo,                  625

Enéas sou. O’ tu que só tens mágoa

De tanto horror, que a nós de Troia restos,

Da Grecia escarneo, em terra e mar batidos,

Falhos de tudo, exhaustos, em teu reino,

Em casa, nos recolhes e associas!                              630

Nem pagar-te as finezas dignamente

Podêmos, Dido, nem os Phrygios todos

Quantos pelo universo peregrinam.

Se para os bons ha numes, he justiça,

Pague-te o céo e a propria consciencia.                      635

Que seculo feliz, que paes ditosos

Te houveram filha? Em quanto os vagos rios

Forem-se ao mar, em quanto em gyro a sombra

Vier do monte ao valle, em quanto o pólo

Pascer os astros, onde quer que eu viva                      640

Vivirá com louvor teu nome e fama.”

Dice; a dextra offerece ao velho amigo,

A sinistra a Seresto, e uns após outros,

A Gyas, a Cloantho, e aos mais guerreiros.

Da presença do heroe pasma a Phenissa,                     645

Tal successo a commove, e assim se exprime:

“Que fado te urge, ó filho da alma Venus,

A arduos perigos e a bravias plagas?

Es o Enéas que a deusa ao nobre Anchises

Gerou de Simoente ás phrygias margens?                     650

Bem me lembra que Teucro, expatriado,

Veio a Sidonia, para um novo assento,

Pedir a Belo ajuda: a opima Chypre

Já vencedor meu pae vastara e tinha.

De Troia os casos desde então conheço,                     655

Teu nome, e os rêis pelasgos. Sempre ufano

Da anciã linhagem teucra, elle ofendido

Com enthusiasmo elogiava os Teucros.

Eia, á minha morada, ó moços, vinde.

Por transes mil trazida, iguaes destinos                        660

Cá me fixaram. Não do mal ignara

A socorrer os miseros aprendo.”

Isto a Enéas memora, e o guia aos paços,

E em solemne festejo occupa as aras.

Nem de enviar aos nautas se descuida                         665

Touros vinte, co’as mães cem gordos anhos,

Cem corpulentos sedeúdos porcos,

E o doce mimo do jocoso Bromio.

Luxo esplende real no interno alcaçar,

E opiparos banquetes se adereçam:                            670

Primoroso o tapiz, de ostro suberbo;

Nas mesas prataria; em ouro a historia

Patria esculpida, successão longuissima

De uns a outros varões desde alta origem.

Saudoso, impaciente, o pae de Ascanio                       675

Todo em seu filho está; para informal-o

E o conduzir de bórdo, expede Achates.

De troico exicio as preservadas prendas

Venham tambem: de escamas de ouro um manto

Brocado, um véo com orlas e recamos                         680

De croceo acantho, ornatos peregrinos.

Dons maternos de Leda á bella Argiva,

Que a Pérgamo os trouxera de Mycenas

A’ incasta boda; e o sceptro que Ilione,

Filha a maior de Priamo, hastiava,                               685

E engranzado collar de perlas finas,

E aurea coroa de engastadas gemmas.

Executivo ás naus caminha Achates.

Nova traça urde a Cypria, alvitres novos;

Que Amor, no meigo Iulo transformado,                        690

Com os dons nos ossos á raínha infiltre

Insano fogo. A estancia ambigua, os Tyrios

Bilingues teme; Juno atroz a inflamma;

Tresnoitada a pensar, por fim conjura

O alígero Cupido: “O’ filho, esteio                                695

Unico e meu poder, filho, que em pouco

Tens as typhéas soberanas armas,

Es meu refúgio, teu socorro imploro.

Sabes que a teu irmão de praia em praia

Fluctívago arremessa a iniqua Juno,                            700

E doe-te a nossa dôr. Com mil caricias

Tem-no a Sidonia Dido; e o paradeiro

Dos junonios hospicios mal enxergo:

O ensejo he de tental-a. Eu receosa

Previno os dolos, accender projecto                            705

A raínha; que um nume a não trastorne,

Mas firme, quanto eu mesma, a Enéas ame.

Ouve o como ha de ser. O infante regio,

Desvelo meu, do genitor chamado,

Levar a Byrsa as dadivas propõe-se,                           710

Das vagas restos e das teucras chammas.

Sopito em somno o esconderei no idalio

Jardim sacro, ou nos bosques de Cythera,

Porque os ardis não turbe inopinado.

Tu nelle te disfarça uma só noite,                               715

Do menino as feições veste menino;

E, entre o lieu licor e as reaes mesas,

Quando em seu gremio Dido, em cabo leda,

Amplexos te imprimir e doces beijos,

Fogo lhe inspires e subtil veneno.”                              720

A’ voz da cara mãe depondo azas,

Finge gozoso Amor de Iulo o porte.

Ella em somno abebera o neto amado;

No collo amima e o sobe ao luco idalio,

Onde molle e suave mangerona,                                 725

Entre flores o abraça e fresca sombra.

E obediente os regios dons Cupido

Leva aos Tyrios, folgando após Achates.

Já d’aurea tela em sumptuoso leito

Acha a Dido, bizarra entre os magnatas.                      730

Com sequito luzido o heroe concorre;

Tomam seu posto em purpura excellente.

Dá-se agua ás mãos, em canistréis vem Ceres,

Toalhas servem de tosada felpa.

Cincoenta moças frutas e viandas                               735

Arrumam dentro, aos divos thurificam;

Cem outras e iguaes moços põem nas mesas

A baixella, a bebida e as iguarias.

Em mó nas salas festivaes, os Tyrios

De ordem recostam-se em coxins lavrados.                   740

O padre, o falso Ascanio, o vulto admiram

Flagrante e a voz do deus; o manto, as joias,

De croceo acantho o véo. Não farta a mente

A misera Phenissa, á mortal peste

Votada, e mais e mais se abraza olhando                     745

O menino e seus dons. Do pae fingido

Elle nos braços, do pescoço appenso,

Mal sacia-lhe o amor, vai-se á raínha.

Com olhos e alma se lhe apega Dido,

No collo o assenta, sem saber, coitada!                       750

Que deus afaga. O alumno de Acidalia

Sicheu aos poucos remover começa,

E intenso ardor insinuar procura

N’um coração já frio e ha müito esquivo.

A primeira coberta alçada, os vinhos                           755

Bolham, coroados, em bojudas copas.

Retumba o tecto, o estrepito por amplos

Atrios reboa; de aureas architraves

Pendentes lustres e os brandões accesos

A noite vencem. Grave de ouro e gemmas                    760

Pede-a logo a raínha, e do mais puro

Enche a taça, que desde Belo usaram

Seus avós. Nos salões tudo em silencio:

“Jupiter, se he que aos hóspedes legislas,

Tam fausto alegre dia aos meus e aos Phrygios             765

Faze aos vindouros memoravel: Baccho

Porta-jubilo assista, e a boa Juno;

Vós o convite celebrai-me, ó Tyrios.”

Em honra então na mesa o vinho entorna,

Com seus labios o toca, e o dá libado                          770

A Bycias provocando: elle aguçoso

Empina a espumea taça, em transbordante

Ouro se ensopa: toda a côrte o imita.

Logo entoa as lições do sabio Atlante

Em aurea cithara o crinito Iopas:                                775

Canta a solar fadiga, a Lua instavel;

Donde homens e animaes, bulcões e raios;

Donde o nimboso Arcturo, e os Triões gemeos

E as Hyadas provêm; como apressados

Se tingem no aceano os soes hybernos,                       780

Ou que demora estorva as tardas noites.

Penos e Troas á porfia o applaudem.

O serão entretida ia estirando

A infeliz Dido, e longo o amor bebia,

Müito de Priamo, inquirindo müito                                785

De Heitor; que armas da Aurora o filho tinha,

Diomedes que frisões; que jando Achilles.

“Do princípio antes, hóspede, as insidias

Graias, dice, nos conta, e o patrio excidio,

E errores teus; que já seteno estio                             790

De praia em praia todo o mar voltêas.”[3] 


NOTAS AO LIVRO I

1.-1.-Alguns excluem o que precede á proposição. Se nas Georgicas menciona Virgilio as Bucolicas, não he müito que falle aqui não só destas como das Georgicas, composição que sabia ser das suas a melhor acabada. Camões nos Lusiadas allude ás poesias várias; e Menezes na Malaca ás amatorias que escrevera.

18.-21.-O Tibre tem duas fozes: os que verteram ostia por um singular, ou os que, como Delille, o omittem, foram inexactos.

24.-31.-Explico o sic volvere parcas como Ferreira na egloga Archigamia. Este sabio, imitando a Virgilio, exprimiu todo o sentido do latim. Em portuguez verteu bem só Barreto Fêo, postoque em sobejas palavras.

42.-43.-Mr. Villenave descobre contradicção em queixar-se a deusa de não poder afastar os Troianos do Lacio, tendo dito o poeta que do Lacio andavam arredios pelo odio de Juno. Virgilio, que toma a peito a causa do heroe, refere o facto de errarem os Troianos longamente; mas Juno, que os via seguir o seu caminho apezar dos embaraços que lhes suscitava, julga não ter feito assás: cada um falla segundo o seu interêsse. Contradicção fôra se Juno he que tivesse dito uma e outra cousa.

62.-69.-O Ni faciat contêm um como desafio: reflicta-se na fôrça que tem o presente do subjunctivo. O aliás insigne literato João Franco traduziu: Se assim não fôra; no que se aparta do original. Nem Delille, nem Bondi, Nem Dryden, nem mesmo o exacto Annibal Caro, ou algum dos que consultei, foram mais felizes que João Franco.

96.-105.-Nos Études sur Virgile, increpa-se o receio de Enéas. A esta crítica, já antiga, La Rue (chamam-no em nossas escolas Carlos Rueu) brevemente responde: “Aqui alguns accusam Enéas de pusillanime, mas temerariamente; elle não recêa a morte, sim a morte ingloria e inutil.” Mr. Tissot excusa o mesmo receio em Achilles e Ulysses: “D’ailleurs leur faiblesse, si c’en est une, repose encore sur la crainte de mourir d’une mort obscure, sans tombeau et sans apothéose.” De tempos a esta parte, os críticos amam achar máo em Virgilio o que louvam em Homero; meio modernissimo de alcançar fama de espirito profundo. Isto me faz lembrar dos beatos que, para camparem de religiosos, gostam só das tragedias de Racine e Corneille, e não soffrem a Merope e o Orphão da China, nem se commovem em Zatra e em Mahomet, por serem de Voltaire.

106-123. - 116-136. - Mr. Nisard do Instituto de França, na sua estimavel obra sôbre os poetas latinos da decadencia, compara esta tempestade com a do livro XII da Odysséa, e tem que em Virgilio: “les Troyens sont presque moins intéressants que les effets de coups et d’hémistiches du poëte. Virgile, diz elle[4], sait déjà qu’une tempète est un morceau à effet, sur lequel on compte; il y met du soin, de la coquetterie; il ne croit pas qu’Eole pût faire assez bien les choses; il vient à son aide, il emploie tous les artifices du style: praeruptus aquae mons; Hi summo in fluctu pendent; Volvitur in caput. Le tout afin qu’un professeur de grammaire dise quelquefois: “Ne vous semble-t-il pas voir la montagne d’eau s’écrouler sur le vaisseau d’Oronte?... et ses navires ne sont-ils pas suspendus sur la crête des flots?... Le tableau, pour vouloir être plus complet, est plus vague; l’expression même est molle quelquefois. J’ai souligné le mot insequitur, qui vient deux fois, quoique ce soit le mot qui dise le moins de choses: il s’applique au temps, mais point aux objets... L’image du pilote tombant la tête la primière ne touche point, d’abord parce que c’est un incident imité d’Homère, ensuite parce que la circonstance qui amène cette mort est vague; on ne se figure pas bien un vaisseau soulevé par la poupe et qui verse dans la mer son pilote par la proue, au lieu qu’on se figure très-bien un mât fracassé qui écrase en tombant la tête du pilote et le précipite dans les flots. Ipsius ante oculos ne fait ressortir que davantage le peu de précision du détail de Virgile; car on se demande naturellement: qu’est-ce donc que voit Oronte? est-ce la vague qui vient prendre son vaisseau en poupe? Mais il est si naturel qu’il la voie, qu’il l’est par trop de le dire. Virgile a mis une variante à la catastrophe d’Homère, qui ne me paraît pas heureuse: il fait disparaître dans un tourbillon le vaisseau d’Oronte. Homère s’inquiète peu du vaisseau d’Ulysse, une fois que tout ce qui s’y trouvait d’êtres vivants a péri, et qu’il en a un débris, sur lequel Ulysse se sauvera du naufrage. Virgile ne baisse pas la toile sur ces Troyens qui nagent sur la lame immense; il trouve encore un désastre plus grand, et ce désastre, c’est la perte des armes, des planchers, des richesses troyennes, qui flottent sur les ondes.” - Peço venia para uma quasi dissertação: tenho de refutar a Mr. Nisard, escritor douto e espirituoso, e no seu arrezoado müitos sam os reparos contra esta passagem, admirada ha mais de 18 seculos. Concordo com elle no louvor ao pae da poesia epica: nada ha mais simples e preciso do que essa descripção na Odysséa. O crítico porêm não considerou a differença do assumpto: Ulysses, ainda que a Ithaca chegasse nu, como arribara á ilha dos Pheaces, tinha comsigo tudo que havia mister para attingir o seu fim, isto he para castigar os pretendentes e tomar conta de seu reino; mas Enéas, que ia fundar um imperio, se nu abordasse a Italia, sem gente, sem o que a tanto custo salvara das ruínas de Troia, nada poderia obter, e estava gorada a Eneida. Esta reflexão basta para justificar o poeta de julgar lamentavel a perda des richesses troyennes qui flottent sur les ondes: as riquezas, entre as quaes iam alfaias, armaduras e mil objectos, pertencentes a amigos e a guerreiros troianos, alèm de serem necessarias aos fugitivos, eram outras tantas lembranças da patria, cuja perda se devia lastimar. Assim, a lamentação de Virgilio, que se põe no lugar do heroe, não recahe sôbre cousas inanimadas de preferencia à ces Troyens qui nagent sur la lame immense, mas sôbre as pessoas queridas que esses objectos representavam, mas sôbre toda a sociedade troiana. Virgilio morreu sem limar a sua obra, e só a communicava a poucos: em sua vida pois não houve professor de grammatica que dicesse a seus discipulos: Ne vous semble-t-il pas voir la montagne d’eau s’écrouler sur le vaisseau d’Oronte? Não houve então ninguem que dicesse o mais que Mr. Nisard, com uma especie de fino gracejo, põe na bôca dos mestres de latim: o crítico deixou o seculo de Augusto, e collocou-se no nosso entre os pedantes das escolas; sem reflectir que esses hemistichios foram sempre saboreados pelos homens de melhor tacto em todos os seculos, e que a admiração que taes bellezas inspiram, passou dos sabios aos espiritos ordinarios. - Não vejo tambem porque l’image du pilote tombant la tête la première ne touche point, d’abord parce que c’est un incident imité d’Homère. He por ventura da natureza da imitação o nunca poder commover? Não pensaram assim Ovidio, Dante, Camões, Tasso, Milton, Voltaire, Chateaubriand; e o voto de ingenhos taes he para mim da maior excepção. Mr. Nisard não entendeu o ingens a vertice pontus: creu que a mareta veio da pôpa. Virgilio, que em não poucas viagens tinha observado os phenomenos do mar, sabia como o escarcéo que vem d’avante he mais perigoso, e quanto he raro sossobrar a embarcação que as vagas batem em pôpa. - Para justificar o poeta marinheiro, como o denomina M. Jal, autor da Archéologie navale, deixemos fallar este erudito, na sua breve mas profunda obra o Virgilius nauticus: “Il s’agit cette fois d’une lame immense qui, venant de la proue du navire d’Oronte, et tombant de haut (a vertice me paraît avoir ce double sens; il fortifie ingens, em même temps qu’il est en opposition avec puppim, comme extrémité du vaisseau), déferle sur la poupe, ébranle le capitaine, qui, au mouvement de tangage, est dèjá penché en avant (pronus), et le fait tomber roulant sur lui-même, la tête la première... Quant à vertice, quelques-uns  y ont vu la proue, d’autres ne se sont pas préoccupés de ce détail, et j’aime mieux leur oubli qu’un contre-sens comme celui qui a échappé à Servius.   Cet illustre commentateur veut que a vertice soit synonyme de a puppi; il ne réfléchi pas que, si la vague se dressant derrière la poupe était entrée dans le navire par l’arrière, ce n’est pas assurément sur la tête que serait tombé Oronte. Virgile a rendu avec sa rare habileté de poëte marin l’effet du tangage et l’embarquement par l’avant de cet effroyable paquet de mer qui couvre le vaisseau, et l’engloutit dans un tourbillon où il sombre, la proue en avant, en tournant trois fois sur lui-même. - Nem o texto, nem M. Jal com toda a competencia na materia, falla em Oronte cahir no mar; elle morreu com a tripulação n’um vortice do navio; cahiu no convez, por effeito da arfagem, e não fóra da embarcação: o poeta pinta phenomenos interessantes aos que tem feito maiores viagens que as dos batéis do Sena, e que talvez não sam aos que nunca viram uma tempestade no oceano ou junto de uma costa brava. - O ipsius ante oculos foi mal interpretado por M. Nisard: refere o ipsius a Oronte, devendo referil-o a Enéas. E porque diz o texto que era ante os olhos de Enéas? Eis-aqui: uma tempestade não dá com a mesma fôrça em todos os navios da mesma conserva, carrega mais em uns que nos outros; e, collocando-se a nau do chefe proxima da que sossobrou, mostra-se o perigo eminente do heroe; o que concorre para o interêsse da situação. Pode ainda tirar-se uma illação; isto he que, se não pereceu tambem a capitânea, Enéas o deveu á experiencia e cautelas do piloto mais perito da frota, o velho Palinuro, que estava a seu bórdo. - Das censuras só resta uma, o verbo insequitur duas vezes na mesma descripção: defeito levissimo, que não pode afeiar uma tam formosa passagem. Ainda assim, nesta justa censura ha duas inexactidões: o insequitur não he tam fraco como Mr. Nisard imagina, significa tambem instar, perseguir, e o crítico parece discorrer antes sôbre o simples sequitur do que sôbre o composto, a que a preposição in imprime uma fôrça maior; nem o verbo somente s’aplique au temps, mais point aux objets; o contrário se vê em Cicero, Philip. 2: [5]Si tum occisus est, quum tu illum in foro spectante populo romano gladio stricto insecutus es. - O praeruptus aquae mons acaba em um monosyllabo, como para mostrar o cimo da montanha d’agua. O nosso vocabulo monte he dissyllabo; e, se nelle terminasse o verso portuguez, não tinha a mesma graça: terminei-o no pronome se monosyllabico, referindo-se a monte, e obtive assim a vantagem do latino. Os que sentem as bellezas da versificação, creio, devem gostar do esdruxulo; que, tendo mais uma syllaba, parece augmentar a altura da vaga.

139-149. - 151-160. - Vaga de per si quer dizer onda agitada; omitti pois motos. Em semelhantes casos assim o faço; o que torna esta traducção a mais concisa de quantas tenho examindado. - Lançar-se o mar por abonançar he dos bons antigos. Desengasgar, postoque portuguez e vulgar, falta nos nossos melhores diccionarios.

163. - 175. - Chateaubriand, no Itinerario, he da opinião do doutor Shaw, de que esta bahia não existiu só na cabeça de Virgilio, mas ao pé de Carthago. Assemelha-se todavia ao pôrto de Phorcyna em Homero.

183. - 195. - Naquella epoca não se usava de fermento para levedar o pão, nem havia moínhos; torravam-se os grãos e quebravam-se em pedra. Quando imprimi este livro em separado, usei mal do vocabulo . João Franco usa do vocabulo pedra; mas accrescentando o adjectivo orbicular, parece ter tido o mesmo engano que eu. O Snr. Lima Leitão pondo mó, o Snr. João Gualberto e Barreto Fêo pondo moer, tambem se enganaram.

186. - 199. - Caíco tinha mais de um navio sob as suas ordens immediatas, o que indica o plural puppibus. Sigo a La Rue e Mr. Jal na opinião de que arma não sam bandeiras, nem armas pintadas, mas broquéis, lanças, que se suspendiam no alto das pòpas. Annibal Caro e João Franco traduzem arma por bandeiras.

210. - 223. - Este verso, exprimindo a prudencia do chefe que suffoca seus temores, tem merecido a approvação geral; mas Mr. Tissot o acha máo, porque Enéas desespera da sua fortuna e desconfia dos deuses, e um tal varão não he feito pour gouverner les passions et les volontés de ses semblables. Enéas, bem que pio, he natural que ás vezes desconfiasse dos oraculos, e ainda mais da sua fortuna; e se nunca tivesse tal desconfiança, crendo que o fado o ajudava em todas as empresas, a certeza de obter tudo com o favor supremo diminuiria o preço da sua coragem pessoal: as mais das vezes porêm he a confiança nos deuses que o acorçoava. O poeta conhecia melhor a nossa natureza do que os seus criticos, e não exagerava os sentimentos; folgava de deixar vêr o homem no heroe.

215-228. - 224-228. - Observe-se a brevidade e concisão do portuguez: o nosso esfolar verte fielmente o tergora diripiunt costis; o nosso espostejar, o in frustra secant; o nosso desentranhar, o viscera nudant. Para o verubusque trementia[6] figunt servi-me de quasi um verso do harmonioso e correctissimo Garção. Conservo o epitheto velivolum, postoque Mr. Villenave o tenha, com razão, por menos bem applicado a mare do que aos barcos, preferindo o emprêgo que delle fez Ovidio, nas Pont., liv IV, epist.5.

251-252. - 262- 263. - Antenor fundou Padua, a qual primeiro denominou Troia, e alli estabeleceu a pequena colonia dos Antenoridas; Enéas foi quem ao Lacio conduziu o grosso da nação: he por isso que, fallando de Antenor, digo deu casa a Teucros, e fallando de Enéas, direi deu casa aos Teucros. Distincção não feita pelos traductores, talvez minuciosa, mas tendente á exactidão e á clareza.

290-291. - 302-304. - Mr. Tissot, a proposito desta passagem, sentencêa que o poeta, en donnant toutes les perfections à ses principaux personages, Auguste et Énée, a méconnu la nature et s’est privé des ressources que lui aurait fournies une imitation plus fidèle de la vérité. Parece incrivel que seja isto de quem ha pouco vimos tachando o heroe troiano de não ser para governar as paixões e vontades de seus semelhantes; o peior defeito de um chefe. Para confutar a Mr. Tissot, recorro a Mr. Tissot. - Se fôssem verdadeiras as baldas que á Eneida assacam, não digo os Zoilos, mas os seus mesmos apaixonados, seria ella o mais reles dos poemas. Assim, o pintor que expunha um gabado quadro para colher as críticas e aperfeiçoal-o, viu que o público o admirava; porêm que tantos eram os defeitos que lhe achavam os admiradores, que melhor seria ou ficar o quadro como estava, ou borral-o e compôr outro. Assim, a môça formosa, a quem todo o rancho dos gamenhos applaude, quando as invejosas lhe analysam a belleza, bem que em geral não lhe neguem o merecimento, sam taes os senões que nella cada uma encontra, que a pobre se deveria ir esconder, como a coruja mais feia e hedionda.

317. - 335. - Em vez de Hebrum leio Eurum, com Heyne e outros; porque, exagerando-se a carreira de Harpalyce, nada admiraria que ella a cavallo vencesse o curso de um rio; tanto mais, que o Hebro da Thracia não he impetuoso. Assim, cahe por si mesma a censura de Heliez, na sua Geographia de Virgilio, de que as Amazonas sam collocadas na Thracia européa, sendo habitadoras da asiatica. Compuz alifugo para exprimir o volucrem fuga.

347. - 362. - Alguns substituem ditissimus agri por ditissimus auri, contra a lição antiga, com o fundamento de que os Phenicios, ricos em commercio, o eram pouco em lavras; o que não basta a justificar a emenda: o terem sido os Phenicios mediocres na agricultura nada obsta a que Sicheu entre eles fôsse o mais opulento em bens territoriaes.

368. - 384. - Dux femina facti verteu João Franco: “Do feito a Dido sam as honras dadas.” He obvio que femina he essencial: a ousadia da empresa mais sobresahe por ser mulher quem a effeituou.

382-383. - 398-400. - Na antiguidade, os homens illustres se gabavam sem offenderem o decoro e o costume geral: como Ulysses na Odysséa; como ao depois Horacio e Ovidio; como, entre os modernos, Camões, Ercilla, Cervantes, Corneille, Antonio Diniz; como, em nossos dias, Bocage, Chateaubriand, Mr. de Lamartine, e outros: nota-se porêm que os mais chegados a nós o fazem com mais cautela e menos claramente. He a justificação de Virgilio e de Enéas.

434-440. - 452-459. - “A comparação, diz Delille, teria mais justeza e graça, a reconhecerem as abelhas de Virgilio, em vez de um rei, uma raínha.” O texto não falla de rei nem raínha: Delille he que em sua traducção introduz um rei das abelhas. Este engano veio de que o poeta romano nas Georgicas dá um rei com effeito ás abelhas; êrro do seu tempo, que foi reconhecido por experiencias modernas.

466. - 487. - “On ne peut que sentir ce vers, diz Mr. Villenave, en désespérant de le traduire. Si le poëte eût dit: sunt res lacrimabiles, c’eût été la même pensée; mais le sentiment se fût affaibli, une touchante image eût disparu. Il est donc des pensées communes qui deviennent grandes par la place d’un mot.” Concordo com a observação geral, não com o sentido em que he tomado sunt lacrimae rerum. Não significa só que ha cousas lagrimaveis, sim que das cousas restam lagrimas, ou por outra, que alli choravam-se as desgraças passadas e dellas fallavam os monumentos publicos; prova de que os Troianos estavam em terra policiada, e não em brenhas, como receara Enéas. Os selvagens, os barbaros, prantêam as desgraças presentes e lamentam seus males; mas sós os que já tem um certo grau de civilisação he que a seus monumentos encommendam o passado, e a perfeição dos monumentos segue a perfeição da intelligencia dos povos. Se pois o poeta, em vez de sunt lacrimae rerum, tivesse dito sunt res lacrimabiles, não desapparecia unicamente a imagem, desapparecia tambem o pensamento. Esta passagem, das mais sensiveis e maviosas que se encontram nos poetas sublimes, encerra ainda um acabado elogio das bellas artes, escolhido um só traço, mas o principal. - Camões, ingenho quasi igual a Virgilio, dice no mesmo sentido: “De que a memoria em lagrimas existe.” Ferreira, alma propria para sentir as bellezas dos antigos, dice: “Que ficam, senão prantos e saudades tristes, Daquellas cousas grandes que acabaram?” Ha um resaibo do mesmo pensamento no verso de Petrarca: “Ahi! null’altro che pianto al mondo dura.” Sam os melhores commentadores de Virgilio, em primeiro lugar Virgilio mesmo, sendo bem estudado, e em segundo lugar os verdadeiros poetas que o sentiram e imitaram.

588. - 613. - M. Villenave censura a Delille, Binet, de Guerle, por terem referido unus abest a socios, e não ao navio. A construção da phrase, como elle confessa, a tal opinião os levou, e muito bem, porque o masculino unus não pode concordar com classem, nem com navem que se subentenda. Verdade he que não foi só Oronte que pereceu, foi conjuntamente a nau; o que não obsta a que unus se refira ao commandante. Sendo vista aquella desgraça por Achates e Enéas, basta que se falle do commandante para, por associação de idéas, vir á memoria a nau. Quanto á fidelidade, vale tanto uma como a outra cousa; poisque a subversão da nau lembra a de Oronte, e vice versa.

634. - 661-662. - Pondera Chateaubriand, no Genio do christianismo, que Virgilio amava exprimir-se negativamente, o que concorre para a melancolia dos seus versos; cuida que esta maneira lhe nasceu dos desgostos que o poeta provavelmente experimentou em seus amores. Fóra a conjectura, fica-nos a observação verdadeira de que elle emprega frequentes negativas, o que augmenta a melancolia que inspiram suas obras. Não direi que o traductor infallivelmente verta essas negativas; sim que em geral o deve de fazer, a fim de conservar mais uma propriedade do seu estilo divino, como lhe chama o mesmo Chateaubriand. Neste non ignara[7] mali a negativa por certo vem muito a proposito. Nem Delille, nem o Snr. Lima Leitão que o imitou, João Franco, nem o Snr. João Gualberto, nem algum dos outros que consultei, fizeram caso desta particularidade; exceptos Iriarte e Mr. Villenave. Mais ainda me agrada a traducção do último; porque o Hespanhol põe no plural disgracias, e o Francez emprega o singular malheur: postoque o verso do poeta contenha uma maxima geral, Dido não a proferiu como tal; no mali especialmente allude ao exilio da patria, no que o seu fado assemelha o de Enéas.

693-698. - 721-726. - Para doçura e harmonia, aqui se empregam líquidas e vogaes: a nossa lingua poude em versos iguaes traduzir essas bellezas, o que talvez não consiga outra alguma das vivas da Europa; ao menos ainda não o fizeram as duas mais suaves, a hespanhola e a italiana.

703-710. - 729-738. - Julga Delille que o banquete poderia ser descripto com mais imaginação e poesia, e não nos diz o como; accusa o poeta de nimia sobriedade, e affirma que o festim cessou com o hymno solemne de Iopas, quando só terminou com a narrativa de Enéas, que toma os livros II e III. Não reflectiu que he a descripção completa, e que Virgilio fundiu muito em pouco: a prataria das mesas e bofetes, as peças de ouro esculpidas com a historia de Tyro e a serie dos avós da raínha, o luxo dos tapetes, dos leitos, dos coxins, tudo mostra a magnificencia do banquete e o esplendor do serão. Que tal devera ser, quando era servido por cem mòços e cem mòças, e destas havia dentro cincoenta para incensar os penates e arrumar frutas e viandas! Delille, censor de Lucano em theorica, he um dos que mais poseram em voga as descripções estiradas: varios modernos, que o reprehendem pela mania de fugir da palavra propria e por suas periphrases, delle sam discipulos na longura insaciavel das taes descripções. - Na crítica deste festim sobejamente se desmandou Mr. Tissot: “Froid, silencieux, Énée assite au festin, et ne prend part à rien, parce que rien ne le touche; il ne paraît pas s’apercevoir de l’attention passionnée dont il est l’objet.... Virgile ne nous donne qu’une exquisse, à la place d’un tableau. Ce n’est pas avec cette négligence et cette froideur que Fénelon a représenté la passion naissante de Calypso, et son ardeur à connaître et à écouter les aventures du jeune héros en qui elle retrouve l’image d’Ulysse. Milton exprime avec bien plus de grâce, de chaleur et de retenue, le désir qu’Adam et Ève éprouvent d’entendre, de la bouche de Raphaël, le récit des merveilles de la création.” - Havia poucas horas que se tinha Dido encontrado com Enéas no templo; acolhe-o com agrado, e lhe dá um festim, que durou muito alêm da meia noite: o principe troiano não podia s’apercevoir de l’attention passionnée dont il est l’objet; ainda não se cria, nem se devia crer o objecto de uma paixão amorosa, sim de uma delicada attenção da parte da raínha para com um guerreiro da sua ordem, da casa de Priamo e de sangue divino. Se cuidasse Enéas que Dido, assimque o viu, perdeu-se de amores por elle, fôra vaidade mal assente em um varão grave, só propria de um dos nossos leões ou adamados casquilhos: dias depois he que deu por esse amor, em que tanto influiu a narração posterior dos seus trabalhos. Se para desculpar a paixão de Dido o poeta imagina o engano de Cupido, transformado em Ascanio, e sem embargo affectados, que fingem desconhecer neste ponto a humana fraqueza, acham-na por extremo repentina; que se não diria do heroe se, não tendo a excusa de ser incitado pela propria Venus, começasse logo a dizer finezas á raínha de Carthago? Tam contagiosa he a doença dos adocicados romances (não trato aqui dos de Fielding, Scott, Lesage, e de outros ingenhos desta têmpera), que até homens da melhor doutrina literaria se deixam levar do exemplo. - Quanto ao silencio de Enéas, he a arguição mais destituida de fundamento que dar-se pode: o poeta, que tinha de fechar o serão com a narrativa, de preferencia pinta a nascente paixão da raínha; pois em dous livros inteiros iria Enéas apparecer em todo o brilho. Postoque não venha expresso, bem se conhece que o heroe conversou muito com Dido, que frequentemente o interrogava sôbre Heitor, Priamo, Memnon, Diomedes e Achilles: se não se referem as respotas, he porque, tendo Enéas de obedecer á raínha que lhe pede a narração completa, basta que ahi venham todas ellas. - Na confrontação de Virgilio com Fenelon, esqueceu-se Mr. Tissot de que não era com Enéas, mas com Dido, que devera comparar Calypso, na sua paixão nascente e no ardor de conhecer e escutar as aventuras do joven Telemaco; pois na Eneida he Dido quem escuta, e he Enéas quem narra. Se Fenelon resuscitasse, havia de pasmar de se vêr preferido ao mestre cujas pisadas seguia, a este mestre sublime e profundo no desinvolver e pintar o amor, sem igual na antiguidade, nunca excedido pelos modernos, os quaes nesta parte vencem aos antigos. Mme de Staël, a quem lhe impugnava esta opinião com os exemplos da Eneida, responde: “Eu pudera recusar uma objecção tirada de Virgilio, poisque o citei como o poeta mais sensivel.” E quem o diz he a autora de Corinna. - Não foi mais feliz M. Tissot com a allegação de Milton: não he Enéas, he Dido que elle devera confrontar com Adam e Eva; Enéas he quem ia narrar, como Raphael. Sem dúvida Milton, quando pinta os amores dos nossos primeiros paes, não he inferior a Virgilio; os dous genios tiraram toda a vantagem do assumpto, bem que diffiram muito: um, sob a influencia paganismo, não podia pintar o amor com os toques do outro, inspirado pelas idéas do velho e do novo testamento: cada um escreve conforme aos tempos e ás crenças. Nem o primeiro amor de uma virgem, ignorante e simples, devera ser tratado como o de uma viuva de trinta annos.

743-773. - Conservei a audacia do original, que diz : pleno proluit auro. O modo por que me exprimo, não he mais atrevido que o lugar de Ferreira, na formosissima elegia a Maio; onde, com o seu vigor e costumada energia, assim falla de Venus, que se despe e sólta os cabellos para se banhar: “Ella a neve descobre e sólta o ouro; Banham-na as Graças na mais clara fonte: Apparece de amor rico thesouro.”        

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística

Apoio
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UFSC / PRPG



[1] No original, consta .

[2] Sebresahe está por sobresahe, erro tipográfico corrigido na segunda edição.

[3] No original de Odorico, faltam estas aspas, óbvio erro tipográfico.

[4] Esta incisiva, que não faz sentido algum, foi suprimida na segunda edição.

[5] Na primeira edição, apareciam, aqui, aspas que não eram fechadas ao final da citação, suprimidas na segunda edição.

[6] No original, consta termentia, erro tipográfico corrigido na segunda edição. 

[7] No original, ignora.