Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Eneida Brasileira, de Odorico Mendes


Edição de base:

Projeto Odorico Mendes

LIVRO IV

Já traspassada, em vêas cria a chaga,

E se fina a raínha em cego fogo.

O alto valor do heroe, sua alta origem

Revolve; estampou n’alma o gesto e as fallas;

Do cuidado não dorme, não socega.                            5

A alva espanca do pólo a noite lenta,

Lustrando o mundo a lampada phebéa;

Louca á irmã confidente então se explica:

“Suspensa que visões, Anna, me aterram?

Que hóspede novo aporta ás nossas plagas?                 10

Quam gentil parecer! que acções! que esfôrço!

Creio, nem creio em vão, provêm dos deuses.

Temor vileza argúe. Dos fados jôgo,

Ai! que exhaustas batalhas decantava!

Se em grilhões nupciaes não mais prender-me               15

Fixo não fôsse em mim, dêsque trahiu-me

Com morte o amor fallaz; ao tóro e fachas

Tedio se não tivesse, eu talvez, Anna,

A esta só culpa succumbir podera.

Depois que o meu Sicheu me foi roubado,                     20

Mão fraterna os penates cruentando,

Este único abalou-me, eu t’o confesso,

E a vontade impelliu-me titubante:

Sinto os vestigios da primeira chamma.

Mas engula-me o abysmo, antes me arroje                   25

Do Omnipotente um raio ás sombras fundas,

Pallidas sombras do ennoitado inferno,

Que eu te viole, ó Pudor, e as leis te infrinja:

Quem a si conjuntou-me e a flor colheu-me,

Comsigo minha fé sepulto guarde.”                              30

Cala, e em seu seio as lagrimas borbulham.

E Anna: “O’ mais do que a vida irmã dilecta,

Murcharás teu verdor, viuva e triste,

Sem de Venus gozar, sem doces filhos?

Crês disto a campa cure e a cinza e os manes?             35

Bem: magoada enjeitaste esposos tyrios,

E ha pouco Iarbas e outros que em triumphos

Africa nutre: pois tambem repugnas

Ao grato amor? Nem onde estás reflectes?

Cá te cérca a pugnaz Getulia invicta,                          40

E a Syrte inhospita e Numidia infrene;

Lá por sequiosa a região deserta,

E á larga soltos os Barceus furentes.

Das guerras que direi que em Tyro engrossam?

Das ameaças do irmão? Divino auspicio,                       45

Mercê de Juno, esta arribada julgo

Das quilhas de Ilion. Como a cidade

Verás crescer? com tal consórcio, quantos

Reinos pular? A que auge irá das armas

Teucras a glória punica ajudada?                                50

Venia, irmã, pede aos céos, e abençoados

Os sacrifícios, o hóspede agasalha;

De o retêr causas tece, até que as ondas

A invernada embraveça e Orion chuvoso,

e, em destrôço os baixéis, embrusque o tempo.”            55

Com taes razões lhe atiça o interno incendio,

E alenta de esperança o ânimo dubio,

E desata o pudor. Primeiro correm

Aos delubros, e a paz nas aras catam:

Bimas ovelhas rituaes degollam                                   60

A’ legifera Ceres, mais a Phebo

E ao pae Lieu, mormente a Juno, guarda

Dos vinculos jugaes. Taça na dextra,

Por entre os cornos de alvadia vaca

Verte-a Dido pulcherrima, ou dos deuses                      65

Passêa em face pelas aras pingues;

Sagra o dia a oblações; consulta, as rezes

Pelos peitos abertas, respirantes

Entranhas, congoxosa. Ai! nescios vates!

Delubros, votos, á paixão que montam?                       70

Roe as medullas molle flamma, e a chaga

No amago vive tacita. A raínha

Arde insana, e infeliz vaga a cidade;

Qual cerva, a quem de sibilante setta,

A atirar o pastor nos cressios bosques,                        75

Varou de longe incauta, e inscio o volatil

Farpão lhe prega e deixa: ella na fuga

Discorre as selvas e dictéas matas;

A lethal canna ao lado se lhe aferra.

Ora o guia entre as obras, e as riquezas                      80

Tyrias e prestes a cidade ostenta:

Vai fallar, e se atalha a voz troncando;

Ora, o Sol descahindo, á mesa os casos

D’Ilio outravez sem tino ouvir demanda,

E da narrante bôca outravez pende.                            85

Já retirados, quando á Lua obscura

Encolher toca o lume e somno infundem

Cadentes astros, só na vacua sala

Mesta ao sofá se encosta em que elle esteve:

N’ausencia o escuta e o vê n’ausencia; ou tendo           90

No gremio Ascanio, enleva-se na imagem

Do pae, como illudindo o amor infando.

Nem medram tôrres, nem se exerce em armas

A mocidade; os portos não concertam,

Nem, defensas da guerra, os baluartes;                       95

Impendentes merlões, fábricas param;

Já não labora a máchina altaneira.

Tantoque a persentiu da peste iscada,

Sem á paixão a fama obstar, Saturnia,

Cara espôsa de Jove, nestes termos                           100

Commette a Venus: “Tu e o teu menino,

Certo, eximio louvor e espolios amplos

Ganhais e gran’renome, a ser vencida

Uma mulher por dolo de dous numes!

Não me escapou, receaste os nossos muros,                105

D’alta Carthago a estancia te he suspeita.

Onde isto irá? tantas contendas onde?

Porque antes não firmamos paz eterna

E ajustes conjugaes? Lograste o intento:

Ama Dido, o furor nos ossos prende.                            110

Os povos em commum, partindo o auspicio,

Rejamos pois: servir marido phrygio,

Com seus Tyrios dotar-te, se lhe outorgue.”

Venus, sentindo-a cavillar, da Italia

Porque o reino transfira ás margens libyas,                   115

Retorque assim: “Quem ha que a tal se furte,

Ou doudo queira guerrear comtigo?

Seja o que lembras, se a fortuna o approva.

Mas traz-me o fado incerta se he do gôsto

De Jupiter manter n’uma cidade                                  120

Com os de Troia os Tyrios, ou lhe apraza

Os povos confundir ou federal-os.

Es consorte: com preces a ti cabe

Tentar seu pensamento. Anda, eu te sigo.”

“Tómo isso a mim, replíca a real Juno:                         125

De effeituar o que urge ao plano attende.

A miserrima Dido ir com Enéas

Caçar propõe-se, mal Titan no oriente,

O orbe arraiando, crástino desponte.

Eu com basto granizo atro chuveiro,                            130

No açodar-se o tropel de alãos e tralhas

Cingindo a mata, soltarei das nuvens,

Crebros trovões estremecendo o pólo.

Derramada a companha, ha de abafal-a

Noite opáca: o Troiano ir-se-á com Dido                      135

A’ mesma gruta. Eu lá, se teu consenso

Me asseguras, atada em jugo estavel

Lh’a offertarei, sendo Hymeneu presente.”

Não adversando, ao rógo Cytheréa

Annúe, e riu do solapado engano.                               140

A aurora do oceano emtanto surge:

Dos mancebos a flor madruga ás portas,

Com laços, redes raras, com venabulos

De larga choupa; os equites massylos

Com farejantes cães de trote rompem.                        145

No camarim detendo-se a raínha,

A’ entrada os Penos principaes a esperam;

Em ostro e ouro o palafrem cosido,

Tasca o freio espumante, ardego e fero.

Assoma alfim da côrte ladeada:                                  150

A chlamyde sidonia lhe circumda

Multicôr franja; á banda aljava de ouro,

Trança em ouro a madeixa, e lhe conchega

Fivela de ouro a purpurina veste.

Não falta a phrygia companhia, e alegre                       155

Marcha Iulo. Galhardo mais que todos,

Socio Enéas se aggrega, e a sua escolta.

Phebo, quando abandona a Lycia hiberna

E o caudal Xantho; e, ao visitar a Delos

Materna, instaura os coros, pelas aras                         160

Mistos Cressos e Dryopes fremindo

E Agathyrsos pintados; por cabeços

Do Cyntho airoso pisa, e o crino undante

Atilando, enredado em molle folha,

De ouro ennastra; o carcaz aos hombros tinne:             165

Não menos senhoril Enéas ia;

Tanto garbo transluz no egregio rosto!

Chega-se a alpestres montes e ínvias furnas:

Eis, de ingrime rochedo despenhando-se,

Bravias cabras pelos picos pulam;                               170

D’alêm cervos, ligeiros a planicie

Transpondo, aos esquadrões pulverulentos

Ennovelam na fuga, e as brenhas deixam.

Mas no ardido ginete o moço Ascanio

Dos valles folga em meio; e aquelles passa,                  175

Estes pretere, e anhela que um javardo

Surda espumante d’entre o bando inerte,

Ou que fulvo leão da serra desça.

Entra a embrulhar-se o céo múrmuro e rouco:

De involta cahe saraiva e grossa chuva;                      180

E a tyria comitiva e os jovens teucros,

Do medo atropelados, e o dardanio

De Venus neto, agreste abrigo esparsos

Buscam: ribeiras das montanhas ruem.

Vam-se á mesma caverna Dido e Enéas;                      185

Tellus sinal deu logo e Juno prónuba:

Corisca, e o ether sabedor das bodas

Fulge, e no cimo as nymphas ulularam.

Este o dia lethal, dos males causa:

Reputação, decoro, nada a move;                              190

Nem mais Dido medita amor furtivo;

Chama-o consórcio, e o nome he véo da culpa.

Já corre a Fama as lybicas cidades;

Nem ha contagio mais veloz que a Fama.

Mobil vigora, e fôrça adquire andando:                         195

Tímida e fraca, eis se remonta ás auras;

No chão caminha, e a fronte ennubla e esconde.

Da ira dos deuses Terra mãe picada,

Posthuma a Celo e Encelado, he constante,

De pés leve engendrou-a e de azas lestes:                   200

Horrendo monstro ingente, que, oh prodigio!

No corpo quantas plumas tem, com tantos

Olhos por baixo véla, tantas linguas,

Tantas bôcas lhe soam, tende e alerta

Ouvidos tantos. Pelo céo de noite                               205

Revoa, e ruge na terrena sombra,

Nem os lumes declina ao meigo somno:

De dia, em celsa tôrre ou summo alcaçar,

Sentada espia e as capitaes aterra;

Do falso e ruim tenaz, do vero nuncia.                         210

Vária e palreira então com gaudio os povos

Aturde, e o feito e por fazer pregoa:

Que o varão teucro he vindo, ao qual dignava

Juntar-se a bella Dido: e, longo o inverno,

Em braços da volupia, em luxo torpe                            215

Se acalentando, os reinos esqueciam.

Isto de bôca em bôca a feia deusa

Diffunde, e o curso para Iarbas torce;

Brada, inflamma-lhe o peito, iras cumula.

De Ammon filho e da rapta Garamante                         220

Nympha, em amplo dominio ao pae cem bravos

Templos, cem aras poz; e um fogo eterno

Sagrou, dos deuses vivas sentinellas;

E o solo pingue do cruor das rezes,

E em mil festões florentes liminares.                            225

Fóra de si, da nova amarga acceso,

He voz que aos céos humilde alçara as palmas:

“Soberano, a quem brinda a maura gente,

Banqueteada em marchetados leitos,

Reparas nisto, ó padre? ou com torcidos                      230

Raios, cegos fuzis, trovões ruídosos,

Por demais nos assustas e apavoras?

Mulher que merca, errante em nossa extrema,

Para exigua cidade um chão foreiro

E ara uma praia, as bodas repulsou-nos,                      235

No reino admitte por senhor a Enéas!

E esse Páris, guiando uns semiviros,

Guedelha mádida em meonia mitra

Sob o mento enlaçada, o rapto logra:

Templos encher-te, fomentar nos baste                       240

Esteril nome”! - Assim queixoso, e ás aras

Pegado, ouvido foi do Omnipotente;

Que os olhos volve á côrte em que os amantes

A fama esquecem: “Vai, Mercurio, invoca

Os zephyros, nas pennas te deslisa,                            245

Filho; e a Byrsa, onde aguarda em ocio Enéas,

Sem respeito ás muralhas concedidas,

Sôbre as azas do vento este recado

Leva-lhe. Tal a genitriz formosa

Não nol-o prometteu, nem duas vezes                         250

Para isso o vendicou das armas gregas;

Antes seria quem regesse a Italia

De imperios grávida e a bramir por guerras,

Quem, propagando o altivo sangue teucro,

Avassallasse o orbe. Honra tamanha                            255

Se o não incende, nem se afana e lida

No alcance do louvor; he pae de Ascanio

E lhe inveja as romanas fortalezas?

Que faz? que espera entre inimiga gente?

Nem lhe importa Lavino e a prole ausonia?...                 260

Navegue: em summa, esta a messagem; parte.”

A’ voz do excelso pae se inclina e apresta:

Calça os aureos talares com que adeja

Sublime sôbre as terras, sôbre os mares,

Como rapido sôpro. A vara empunha,                           265

Com que as pallidas almas do Orco evoca,

No Tartaro sombrio outras afunda,

Tira e dá somnos, e da morte o sêllo

Nas palpebras imprime. Afouto as brizas

Com ella parte, e os nevoeiros trana.                          270

E já no surto avista o pino e encostas

Arduas de Atlante duro, que em seu tope

Aguenta o firmamento; o velho Atlante

Que de assiduos bulcões tolda a cabeça

Pinífera, açoutado de aguaceiros                                275

E vendavaes: de infusa neve a espadoa

Fórra, do queixo precipita rios,

E em caramello enrija horrida barba.

Mercurio, equilibrando-se nas azas,

Paira; de chofre atira o corpo ás ondas:                      280

Qual gaivota que, as praias e piscosos

Cachopos rodeando, humilde alêa

A’ flor das aguas; entre o céo e a terra

Cyllenio, ao longo da arenosa costa,

Do avô desce materno e os ares sulca.                        285

Assim que a planta alada os palhaes toca,

A fundar casas, torreões, castellos,

Descobre Enéas, cuja espada o fulvo

Jaspe estrellava, e aos hombros a descuido

A capa em tyrio múrice lhe ardia,                                290

Lavor das proprias mãos da rica Dido,

De aurea tela a mais fina entrelaçado:

“Que! lanças de Carthago os alisserces

E lindos muros maridoso traças?

Teu reino, ah! tudo esqueces! O alto nume,                  295

Cujo acenar abala o Olympo e o mundo,

Veloz do claro pólo a ti me envia:

Que meditas? na Lybia com que intuito

Gastas esse vagar? Se não te excita

Glória tanta, nem lidas e te afanas                              300

Trás o louvor, no teu herdeiro attenta,

No pullulante esperançoso Iulo,

De Italia ao sceptro e a Roma destinado.”

Nem acaba o Cyllenio, e os mortaes visos

Depondo, em fumo se esvaece tenue.                         305

Deste aspecto hirta a coma, a lingua presa,

Do aviso e mando summo o heroe pasmado,

Ir-se e largar anceia as doces margens.

Ai! que ousará? frenetica a raínha,

Com que ambages dispôl-a, com que exordios?              310

Aqui e alli, por tudo a mente versa;

Muda, varía, alterna, emfim resolve.

Cloantho convocou, Mnesteu, Sergesto;

Que, á surda apparelhando e a marinhagem

A’ frota recolhendo, apromptem armas,                        315

Da novidade a causa dissimulem:

Que elle, como romper-se amor tamanho

A bonissima Dido não recêe,

De conversal-a o ensejo tentaria,

A senda mais suave e o melhor geito.                          320

Todos com alvorôço as ordens cumprem.

Mas a raínha os dolos (quem a amante

Pode enganar!) pressente, e o que se urdia

Primeiro aventa, e o mais seguro teme.

Impia a Fama a exaspera, e lhe delata                         325

Que a vogar se arma a frota. Urra, chammeja,

Debaccha pelas praças, pelas ruas:

Qual Thyas quando, ao sacudir dos vultos

E thyrsos incitada, evoé bramindo,

Trietericas orgias a estimulam,                                   330

E o Cytheron nocturno a invoca a brados.

Topa a Enéas por fim: “Perfido, exclama,

Poder inda encobrir tam feio embuste

E te escoar do meu paiz contavas?

Nosso amor, a fé dada não te embarga,                       335

Nem de Elisa a funesta morte crua?

E até na hyberna quadra as naus fabrícas,

E na fôrça dos áquilos te apressas

A emmarar-te, cruel? Que! se não fôsses

A estranho solo e clima, Troia antiga                           340

Se em pé tivesses, pelas crespas vagas

Navegaras a Troia?... A mim me foges?

Por este pranto meu, por essa dextra

(Pois nada já me reservei mesquinha),

Por nosso matrimonio, pelas nupcias                            345

Encetadas, se um’ hora te fui doce

Ou bem te mereci, doa-te a minha

Casa em ruína, e, se he que as preces valem,

Despe tal pensamento, eu t’o supplico.

Por ti me odeiam nómades tyrannos,                           350

E a Libya inteira, infensos os meus Tyrios;

Por ti mesmo extinguiu-se o pejo, e aquella

Fama que d’antes me elevava aos astros.

Moribunda em que mãos me desamparas,

Hóspede?... Este só nome á espôsa resta.                    355

Que mais me falta? que os fraternos muros

Pygmalion me tale? que á Getulia

Seu rei me leve escrava? Antes da fuga,

Se de ti concebera, se em meus paços

Pequenino outro Enéas, cópia tua,                              360

Me brincasse, eu de todo escarnecida

Nem em tanto abandono me julgara.”

Dice. Elle, immota a vista e a mente em Jove,

Sopêa a dôr a custo, emfim responde:

“Eu nunca negarei favores tantos,                              365

E outros que enumerar, senhora, podes;

Nem de Elisa a lembrança ha de enfadar-me,

Emquanto eu mesmo fôr de mim lembrado,

E est’ alma o corpo reja. A escusa he breve.

Nem a furto ausentar-me, tal não penses,                    370

Cuidei; nem pretendi jamais as tedas,

Ou vim nunca em firmar esta alliança.

Se a meu gôsto compôr se me outorgasse

Da vida o curso, preferira em Troia

As dos meus cultivar doces reliquias;                           375

Refizera de Priamo os palacios,

Reconstruira Pérgamo aos vencidos.

Mas Grineu Phebo a Italia, a Italia agora

As sortes lycias demandar me ordenam:

Este o amor, esta a patria. As libyas tôrres                  380

De Carthago se a ti Phenissa prendem,

Na Ausonia estranhas que os Troianos fundem?

Novos reinos he lícito habitarmos.

A mim do padre Anchises, quantas vezes

De humida sombra a noite enlucta o globo,                   385

Quantas surgem igníferos luzeiros,

Insta em sonhos, me aterra a torva imagem;

Turba-me o tenro Ascanio, o vituperio

De cabeça tam cara, a quem defraudo

Do hesperico dominio e fataes campos.                        390

Inda ha pouco, da parte do Tonante

O intérprete divino (ambos attesto)

Frechando as auras trouxe-me recados:

A’s claras eu vi mesmo entrando os muros

O deus, bebi-lhe a voz nestes ouvidos.                        395

De inflammar cessa a mágoa tua e minha:

Não espontaneo para Italia sigo.”

Emquanto elle discorre, aversa o encara;

Tacitos lumes volve, e o mede e estronda:

“Nem mãe deusa, nem Dárdano has por tronco;             400

Gerou-te o Caucaso em penhascos duros,

Traidor! mamaste nas hircanas tigres.

Que dissimulo[1]? a que desdem me guardo?

Deu-me ao pranto uma lagrima, um suspiro?

Da amante se doeu! dignou-se olhar-me?                     405

Que affronta he mais pungente?... Ah! que até Juno

Nem Saturnio isto vê com rectos olhos.

Fé segura não ha. Naufrago e pobre

O recolhi, demente o puz no throno,

Do estrago as naus remi, da morte os socios.                410

Ai! que incendida as furias me arrebatam!

Ora agoureiro Apollo ou sortes lycias,

Ora expedido o intérprete de Jove

Traz pelas auras horridos mandados.

Dos supremos que emprêgo! uma tal ância                    415

Quebra o seu repousar. Nem te detenho,

Nem te refuto. Para Italia segue,

Sim, busca imperios pelas bravas ondas.

Se os numes valem pios, certo espero

Que entre escolhos supplicios mil devores,                    420

E invoques a miude o nome Dido.

Com negro facho ao longe hei de acercar-te;

E, quando a morte fria aos orgãos solva

O almo alento, ser-te-ei contínua sombra;

Terás o pago, hei-de, perverso, ouvil-o,                      425

A nova ha de baixar-me ao centro escuro.”

Nisto, corta-lhe a práctica, á luz foge,

Some-se afflicta, e o deixa embaraçado,

Muito dizer querendo e receando.

Levam-na em braços á marmorea alcova,                     430

E a deitam nos coxins desfallecida.

Bem que deseje mitigal-a Enéas

E remover-lhe as penas compassivo,

Sôlto em ais, do amor grande combalido,

Cumpre as ordens comtudo, as naus revista.                435

Afervoram-se os Teucros, desencalham

Celsos baixéis; crenado o casco nada;

Frondentes remos trazem, toscos robles,

No afôgo de abalar. De muda os viras,

Da cidade em torrentes borbotando.                            440

Em tulha assim de farro dam formigas

E em casa o põem, do inverno precatadas;

Campêa o negro exército, entre as hervas

Por trilha estreita acarretando a presa:

Parte hombros mette e grossos grãos empurra;             445

Parte urge os pellotões, pune as ronceiras:

Da pressa e afã toda a vereda ferve.

Ao contemplal-o, que sentias, Dido?

Quaes teus gemidos, de cimeira tôrre

Das praias enxergando o borborinho                            450

E antolhando com grita o mar fundir-se?

Os mortaes, fero amor, a quanto obrigas!

De novo ao rôgo, ás lagrimas recorre,

Do amor se humilha ao jugo; porque ao menos

Por tentar nada fique antes que expire.                       455

“Anna, eis revôlto o litoral; de roda

Concorre a chusma; o brim convida as auras,

E as pôpas já coroa o alegre nauta.

Se eu esperasse, irmã,  soffrera o golpe.

Anna, um serviço: o ingrato, que te estima,                  460

Só comtigo se abria, só conheces

O modo e ensejo de amolgar esse homem;

Ao suberbo inimigo vai, supplíca,

Por mim lhe falla, irmã: que eu nunca aos Danaos

Em Aulide jurei de Troia o excidio,                               465

Nem contra Pérgamo esquipei navios,

Nem os ossos cavei do padre Anchises;

Porque duro a escutar-me se recusa?

De tropel onde corre? A’ triste amante

Renda um favor: monção aguarde e fuja.                     470

O trahido hymeneu já não requeiro;

Nem do reino desista e pulchro Lacio.

Curto espaço ao furor, vã tregoa peço,

Té que a sorte me vença e á dôr me aveze.

Da irmã tem pena, esta mercê me obtenhas;                475

Ser-lhe-á paga sobeja a morte minha.”

Taes lamentos, miserrima, taes preces

Anna leva e releva; elle inconcusso

Razões nem chôro admitte: os fados obstam,

Um deus lhe obstrue os placidos ouvidos.                     480

Se, de annos rijo o válido carvalho,

Daqui dalli soprando alpinos bóreas,

Extirpal-o porfiam, berram, silvam,

E, do tronco as entranhas sacudidas,

Juncam o solo as folhas; aos rochedos                        485

Elle se agarra, e quanto com seu pico

Penetra o ethereo céo, tanto profunda

No Tartaro a raiz: não de outro modo

Assiduas vozes mil o heroe combatem,

E a grande alma suspira; a mente immovel                    490

Persiste, e rodam lagrimas baldias.

Dos fados treme Dido e a morte exora;

Da azul abobada aborrece o aspecto.

Na tenção mais se afinca e a luz detesta,

Quando o leite (que horror!) nos sacros vasos               495

Vê negrejar, e os derramados vinhos

Irem-se convertendo em sangue impuro.

Tal visão cala, nem da irmã confia.

Ao defunto Sicheu nos paços houve

Marmoreo templo, em que ella se esmerava,                 500

De vellos niveos e festões ornado.

Alli, tantoque a noite obumbra as terras,

Crê perceber queixumes e o marido

Mesto chamal-a, e solitario bufo

Nas grimpas feral verso estar carpindo                         505

E com tristura em flebil tom piando:

Cem velhas predicções a aterrorisam.

Enfurecida, o mesmo fero Enéas

Em sonhos a perturba, e se imagina

Sempre sózinha, ao desemparo sempre,                       510

Ir por veigas extensas, por desertos,

Em busca dos seus Tyrios. Tal, demente,

Pentheu figura batalhões de Eumenides,

Gêmeo o Sol, duas Thebas: tal, nas scenas,

Da mãe foge aos brandões e ás negras serpes              515

Vexado o Agamemnonio, e as flagellantes

Erinnyes topa ao limiar sentadas.

Mal que á dôr cede e, as furias concebendo,

Morrer decreta, o como e o quando elege;

E a triste Anna accorrendo, com disfarce,                    520

De serena esperança a fronte ameiga:

“Os parabens, irmã, que achei maneira

De attrahil-o ou soltar-me desse ingrato.

Nos confins do Oceano, para o occaso,

Um lugar derradeiro ha na Ethiopia,                             525

Onde o maximo Atlante ao hombro o ardente

Eixo estrellado vira. Entre os Massylos

Dalli sacerdotiza me inculcaram

Do templo das Hesperides, que os sacros

Ramos guardando n’arvore, a comida                           530

Ao dragão ministrava, untada em succo

De mel e dormideiras. Com seus carmes

Solver, gerar paixões; rios promette,

Astros atrás tornar, e infernos manes

Revocar: sob os pés mugindo a terra,                          535

Verás descerem da montanha os ornos.

Pelo céo, cara irmã, por vida tua,

Juro que invita á mágica recorro.

Tu lá dentro ergue ao ar secreta pyra,

E a roupa e as armas sobrepõe desse homem,               540

Que impio as deixou na camara pregadas,

E o tóro em que eu perdi-me: do malvado,

A maga o ordena, apaguem-se as memorias.”

Cala, e tingiu-se de pallor. Comtudo

Que os funeraes no sacrifício encubra                          545

Nem Anna o crê, nem tal furor suspeita,

Ou nada mais sinistro que na morte

De Sicheu teme: tudo emfim prepara.

Ao ar, com achas de azinheira e pinho,

N’um claustro escuso erecta ingente pyra,                   550

Colgado de capellas, a raínha

De rama funebre o lugar coroa;

Não do futuro ignara, sôbre o leito

Colloca a teucra espada, a roupa, a effigie.

De altares cérca-se, e em cabello a saga                     555

Toa a invocar trezentas divindades,

O Erebo, o Chaos, e a trina Hecate virgem,

Tergemina Diana. Alli despeja

Simulado licor da fonte Averna;

Segadas ao luar com fouce ahenea,                            560

O leite espreme de pubentes hervas,

Veneno tétrico; extrahido ajunta

O amor da fronte de nascente poldro

E subtrahido á mãe. Frouxa a petrina,

Mola nas pias mãos, de um pé descalça,                      565

Dido, entre as aras morredora, os deuses

Attesta e os astros, do seu fado conscios;

E, se ha nume que amantes patrocine,

Da ingratidão vingança lhe depreca.

Era noite, e em socêgo os lassos corpos                      570

Descansam: dorme a selva, o mar sanhudo;

Em meio gyro os astros escorregam;

Todo o campo emmudece; as alimarias

E aves de côres mil, quanto povoa

Liquidos lagos, asperas charnecas,                              575

No silencio nocturno os seus trabalhos

Adormentando, a pena alliviavam.

Só nos olhos ou peito a insomne Tyria

Não colhe a noite: as afflicções lhe brotam;

Surgindo e resurgindo o amor braveja,                         580

N’um fervedouro de iras fluctuando,

E a mente em si voltêa: “Que! zombada,

Requestando os primeiros pretendentes,

Hei-de em Numidia mendigar consorcios

Tam rejeitados? ou partir na frota,                              585

Conforme ás teucras derradeiras ordens?

Gratos ao beneficio, oh! quam lembrados

Dos meus favores sam! E ha, quando eu queira,

Quem m’o consinta, ou nos suberbos lenhos

Execrada me acceite? Nem tu sabes,                           590

Nem inda sentes, misera, os perjurios

Da raça laomedoncia? E então! sózinha

Irei atrás de aventureiros nautas,

Ou com todo o poder dos meus Sidonios?

E os que arranquei de Tyro, hei de arriscal-os               595

De novo, e dar as vélas?... Antes morre,

Que o mereces; com ferro a dôr atalha.

Tu por meu pranto, irmã, tu me aggravaste

O furor e ao tyranno me exposeste.

Não podera eu viver de crime izenta,                           600

Como fera, solteira e sem martyrios?

Fementida a Sicheu manchei as cinzas.”

Taes do seu peito as queixas rebentavam.

Já, tudo a ponto, certo de ir Enéas

Adormecia a ré. Torna-lhe em sonhos                          605

E o reprehende a visão: Mercurio he toda

Em vulto, em côr, em voz, na loura coma,

No talhe esbelto e juvenil meneio.

[2]Como! filho da deusa, em tal perigo

No somno pégas? nem, demente! enxergas                   610

O que ha de roda? os zephyros suaves

Não ouves respirar? Perecedoura,

Ella enganos rumina e atroz maldade,

E n’um fluxo e refluxo irosa ondêa.

Podes inda, e o fugir não precipitas?                           615

Com madeiros verás turbar-se o pégo,

Tochas luzir, ferver em fogo as praias,

Se a aurora aqui te apanha. Eia, a tardança

Rompe: he sempre a mulher vária e mudavel.”

E assim na treva se involveu da noite.                         620

Espavorido acorda: “Acima, alerta,

Brada o heroe; pannos fóra, gente aos remos:

Insta comigo o messageiro ethereo

A que abale no instante e pique amarras.

Nós, santo deus, quem sejas, te seguimos,                   625

E ovantes outravez te obedecemos.

Oh! sê propicio e placido, e nos tragas

Faustas estrellas.” Dice, e da baínha

Saca o fulmineo gume e os cabos talha.

Tudo arde, á faina acode; as bordas largam:                630

De naus coalha-se o pelago; estribados,

Varrendo a azul campina, a espuma enrolam.

Já, de Tithon deixando a crocea cama,

A Aurora de luz nova alaga o mundo:

Mal Dido alvorecer e arfar em cheio                             635

Viu da atalaia a frota, e a praia e os portos

Nus da chusma sentiu, quatro e mais vezes

Lacera o bello peito e os aureos fios

Arrepella: “O’ deus summo! ha-de um estranho

Ir-se do nosso reino escarnecendo?                            640

Meu povo armas não toma, e o corre e os vasos

Dos arsenaes despede?... Já, de prompto,

Brandi fachos, dai vélas, forçai remos.

Que profiro? onde estou? desvairo insana?

Ai! Dido, hoje em ti pesa a mão do fado!                      645

Quando entregaste o sceptro, he que era tempo.

Que fé, que dextra aquella! E he quem se affirma

Que da patria os penates conduzira,

Que o pae caduco aos hombros carregara?

E empolgal-o não pude, esquartejal-o,                         650

Pelo mar desparzil-o, os seus á espada

Passar, e o mesmo Ascanio, e por comida

Pôl-o á paterna mesa? Mas do prelio

Fôra a fortuna duvidosa... Fôsse:

Vou morrer; qual o medo? A’s naus, de assalto,             655

De fogo enchera o bôjo; com tal raça

Pae e filho extinguira, e a mim com elles.

Sol, que lustras o globo e tudo aclaras;

Juno, intérprete e conscia destas penas;

Pelas cidades em nocturnos trivios                              660

Tu Hecate ululada, ultrices Furias,

Ouvi-me, ó deuses da expirante Elisa,

Vosso nume volvei contra os perversos,

E attendei nossos rogos. Se he fadado

E quer Jove que o monstro, em fixo termo,                   665

Poje em terra, audaz povo o ataque e avexe;

E errante, foragido, arrebatado

Dos abraços de Iulo, auxílio implore,

Veja dos seus os funeraes indignos;

Ou, curvo á iniqua paz, não goze o reino                      670

E appetecida luz; mas ante tempo

Caia, e insepulto sôbre a arêa jaza:

Com meu sangue esta praga última verto.

Tyrios! vosso rancor lhe acosse a estirpe,

De offerta á cinza minha: a alliança os povos                675

Nunca irmane. Dos ossos tu me nasce,

Taes colonos persegue a fogo e ferro,

O’ vingador: já, logo, em todo o sempre

Que haja fôrças, com praias travem praias,

Ondas com ondas guerra, armas com armas;                 680

Com seus netos, impreco, os meus pelejem.”

Por tudo o ânimo versa, e a têa odiosa

Traça em breve troncar. A Barce falla,

Do bom Sicheu nutriz, que em pó na antiga

Patria a sua ficou: “Nutriz querida,                              685

Chama cá minha irmã; que asperja o corpo

Com agua fluvial; não tarde, e as rezes

Venham com ella e as purgações prescriptas:

E tu com pia fita as fontes venda.

Os que encetei solemnes sacrificios                             690

A Jove Estygio concluir tenciono,

Findar meus males e entregar á pyra

A imagem do infiel.” Termina; a serva

Com senil zelo accelerava o passo.

Trépida e em fera empresa encarniçada,                      695

Vibrando olhos sanguineos, e ás trementes

Faces de nodoas salpicada, o interno

Claustro penetra, pallida a raínha

Já da futura morte, e furibunda

Sobe á fogueira, o troico ferro despe,                          700

Não para tal crueza reservado.

No iliaco despôjo e nota cama

Depois que attenta, em lagrimas, cuidosa,

Um pouco está suspensa, e reclinada

Finaes vozes[3] repete: “O’ doces prendas,                     705

Quando o queria um deus e o fado, est’alma

Recebei, libertai-me de pezares.

Vivi, perfiz o destinado curso:

Grande irá minha sombra agora ao Orco.

Fundei clara cidade, eu vi meus muros;                        710

No troculento irmão vinguei o espôso.

Feliz, ah! mui feliz, se as quilhas teucras

Aqui nunca abordassem!” Dice, e o rosto

No leito impresso: “Inulta morreremos?...

Pois morramos, sussurra; assim aos manes,                  715

Assim desço contente. O cru Dardanio

Do mar embeba os olhos nestas chammas,

E estes mortaes agouros o acompanhem.”

Não acabava; e sôbre o estoque as damas

A vêm cahir, de sangue as mãos tingidas                     720

E a lamina espumando. O clamor altos

Atrios atroa; ás tontas corre a Fama

De cabo a cabo; com soluços, gritos,

Com femineo ululado os tectos fremem;

Todo o ar retumba do alarido e pranto:                        725

Qual, de hostil assaltada, se em ruínas

Carthago, ou Tyro antiga ardesse em alas

Furentes, ateadas nas dos homens,

Nas cumieiras dos deuses. Aturdida,

A irmã convulsa, exanime, açodada,                            730

Carpe-se, afeia o rosto, os peitos fere,

Rompe o tropel, á moribunda exclama:

“Irmã, tu me illudias? Que! foi isto

Que aras, tochas, fogueiras me aprestavam?

Qual mais doe? o abandono, o desprezares                   735

Por socia a irmã? Teus fados repartisses;

Uma hora, um ferro, uma ancia nos tragasse.

Armei-te a pyra eu mesma, e os deuses patrios

Invoquei, para assim, cruel, jazeres

Na minha ausencia? A mim e a ti mataste,                    740

E o povo e os padres e a cidade tua.

Dai-me agua, eu lave o golpe; e nos seus labios,

Se alento algum vaguêa, os meus o colham.”

Não mais, e os degraus salva; ao collo aperta,

Beija a irmã semiviva; entre ais enxuga                        745

Na touca o tetro sangue. Os olhos graves

Quiz ella alçar, desmaia: a chaga dentro

Range a golfar. Tres vezes, arrimada

Ao cotovello foi-se erguer, tres vezes

Rolou no tóro; e, baça a vista errante,                        750

A luz no céo procura, e achando-a geme.

A omnipotente Juno da agonia

E angústia longa então commiserada,

Do Olympo Iris despacha, que a luctante

Alma desate dos liados membros:                                755

Pois nem de merecida ou fatal morte,

Mas subito immatura ah! perecia

De ira accesa; tirado a flava coma

Não lhe tinha Prosérpina, e a cabeça

A’ Estyge condemnado. Em croceas pennas,                 760

Cambiando côres mil do Sol opposto,

Roscida a nuncia vem parar sôbre ella:

“O tributo a Plutão mandada levo;

Do corpo eu t’o desligo.” Dice, e o corta:

Foi-se o calor e evaporou-se a vida.                           765

NOTAS AO LIVRO IV

Este livro he dos mais gabados, porque pinta o amor; paixão que fórma o principal assumpto dos romances e poesias modernas: o hábito advoga pelo poeta, sendo comtudo a causa de algumas injustiças. Nos demais livros consegui exprimir o autor em menos versos que no quarto; porque as paixões ternas sam mais expansivas, os vocabulos portuguezes em taes materias contêm mais syllabas; nem quiz expôr-me ao perigo do brevis esse laboro obscurus fio: em 765 he que pude verter os 705 versos do original, quando em poucos mais ou ainda em menos, effeito da energia e precisão do portuguez, obtive a traducção dos outros, sôbre tudo dos ultimos, que o escritor das Georgicas não teve tempo de emendar, e offerecem algumas redundancias que he mister cercear. Occasião tive de verificar o que asseverava Manuel Severim de Faria: “Esta brevidade, graça e decoro, se vêm praticadas nas comedias de Francisco de Sá e de Antonio Ferreira, e em algumas de Jorge Ferreira.... E quanto ás traducções claramente se mostra, assim nas de verso que fizeram Antonio Ferreira e Luiz de Camões, como nas de prosa do bispo D. Antonio Pinheiro e outros, que a lingua portugueza, se não he mais breve que a latina, ao menos não he mais larga.”

55. - 58. - A paixão de Dido parece mal a alguns, e diz Mr. Tissot: “Il m’est survenu un scrupule sur le fond des choses: Didon devait-elle être ainsi transformée à nos yeux? Je sais que sa passion a été allumée par le plus puissant des dieux, et qu’elle doit être portée aux dernières extrémités; mais ne fallait-il pas conserver à la vertu quelque respect d’elle-même? Une femme si courageuse, une si grande reine, ne devait-elle pas garder quelque soin de sa gloire!..... Dans Valerius Flaccus, une légère précaution suffit pour éviter un reproche au poëte. Il peint Médée semblable à la Bacchante qui résiste à son premier transport, et s’abandonne ensuite au dieu.” - Quiz Virgilio dar uma origem antiquissima ao odio entre Roma e Carthago, e imaginou o abandono de Dido por Enéas, derivando esse odio dos fundadores dos dous estados. Para honra sua, foi a raínha de exemplar virtude, e se resuscitasse com o poeta romano, deveria tentar um pleito e pedir-lhe a injúria; a nós toca averiguar se, dada a ficção, tirou-se della todo o proveito: os mais escrupulosos o affirmam, nem mesmo o duvída Mr. Tissot, apezar das suas restricções. Com o que não me accommodo he com o passe a Valerio Flacco: se este eximiu-se da culpa, com pintar Medéa ao modo da Bacchante que resiste ao primeiro transporte e ao depois se entrega ao deus, então absolva o crítico ao pobre Virgilio; porquanto, antes de se entregar a Enéas, Dido andou insana pela cidade, consultou entranhas de rezes, fez sacrificios e oblações, sem que nada lhe apagasse o amor; e, se o communicou logo a Anna, só dahi a dias, quando já lhe tinha mostrado e quasi offerecido a nova cidade, he que se foi descobrindo ao amante: se a paixão andou rapida, não foi sem combates e remorsos. Contra Medéa não se empenhou Cupído, como contra Dido, a rogos da propria Venus; o que sobra a desculpal-a e a justificar esta parte da ficção. - Quanto á pergunta se não era mister conservar á virtude algum respeito para comsigo mesma, respondo que Virgilio não faz da raínha de Carthago uma devassa e vil mulher, sem respeito algum á virtude; fal-a uma triste víctima dos deuses, que no meio das mais pungentes mágoas succumbe á violencia do amor; e he por ser uma grande raínha, tam boa e generosa, que mais nos doe a sua dôr, que a sua fraqueza he tragica e tam pathetica. Tanto ella cuidava na sua glória, que preferiu a morte á vergonha. O ser corajosa e magnanima não obsta, infelizmente, a tornar-se a mulher apaixonada e louca; e, ainda mais infelizmente, as proprias suas boas qualidades não poucas vezes lhe tem sido fataes em materias de amor. A nobreza mesma do coração de Dido concorreu á sua perda: o estrondo e fama das desgraças de Troia, que ella já tinha pintadas nas paredes do templo, a vista inopinada do heroe na sua côrte, a semelhança de ambos em terem emigrado, a esperança que lhe suscitou Anna de augmentar a colonia com o casamento, o desejo natural ao seu sexo de enlaçar o seu nome ao nome de um varão famigerado, o esfôrço de Venus e de Cupído, uniu-se tudo emfim para sua affronta e cegueira. As raínhas e senhoras, cujas empresas e feitos tem passado aos vindouros, todas com raras excepções se mostraram filhas de Eva, e muitas o foram sem se matarem. - Mr. de Lamartine (Voyage en Orient, pag. 69; 1835) diz tambem: “Virgile, comme tous les poëtes qui veulent faire mieux que la vérité, l’histoire et la nature, a bien plutôt gâté qu’embelli l’image de Didon. La Didon historique, veuve de Sychée et fidèle aux mânes de son premier époux, fait dresser son bûcher sur le cap da Carthage, et y monte sublime et volontaire victime d’un amour pur et d’une fidélité, même à la mort! Cela est un peu plus beau, un peu plus saint, un peu plus pathétique, que les froides galanteries que le poëte romais lui prête, avec son ridicule et pieux Enée, et son désespoir amoureux, auquel le lecteur ne peut sympathiser. Mais l’Anna soror et le magnifique adieu, et l’immortelle imprécation qui suivent, feront toujours pardonner à Virgile.” - Quando acabei de lêr este julgamento e reflecti sôbre todas as suas partes, me perguntei se com effeito seria do autor das Meditações, e a final vim a crêl-o por tres razões: uma he que o poeta francez tem deixado correr por sua conta um juizo tam estrambotico; a segunda he que he rarissimo um escritor como Horacio, ao mesmo tempo grande philosopho, grande poeta e grande crítico; a terceira he a epoca em que appareceu a Viagem ao Oriente, quando havia uma nescia prevenção contra os chamados classicos, e Mr. de Lamartine quiz sacrificar ao idolo do dia uma víctima pingue. - Que a Dido historica seja mais santa e respeitavel, ninguem o duvída; mas que seja mais bella poeticamente e mais pathetica, he o que negará quem tiver meditado na natureza humana, quem tiver estudado os poetas, principalmente os tragicos, em cuja alçada entra o pathetico mais a miude. “Quando eu nada mais devesse a Euripides, nos diz Racine, que a idéa do caracter de Phedra, poderia affirmar que lhe devo o que talvez de mais razoavel expuz no theatro. Não me assombra que este caracter fôsse do mais feliz exito naquelle tempo, e que ainda sahisse tam bem neste seculo, poisque tem quantas qualidades requer Aristoteles nos heroes da tragedia, e que sam proprias para excitar a compaixão e o terror. Na verdade, Phedra nem he de todo culpada, nem de todo innocente.” - E eis-aqui um dos mais sublimes genios da França, modêlo em seu genero, achando bello e pathetico o caracter de Phedra, incomparavelmente mais culpada que Dido; a qual, generosa e benéfica e heroica, só contra si peccou e contra seus escrupulos, mas não calumniou o enteado, concorrendo para a sua morte. O bello poetico nem sempre he o bello moral: se o fôsse, não seriam supportaveis os melhores trechos do Dante, muitos de Homero, de Sophocles, de Shakespeare, de Corneille, de Voltaire, de Goethe, e de outros ingenhos desta primeira plana. - He para notar que Mr. de Lamartine, fazendo esta crítica do ridicule Enée, considere bom unicamente l’Anna soror, le magnifique adieu et l’immortelle imprécation qui suivent. O Anna soror do crítico he difficil de saber ao que se reporta: no comêço do livro ha um discurso que principia por estas palavras, mas não he seguido de le magnifique adieu, nem de l’immortelle imprécation; e, no caso de referir-se ao que fica antes da imprécação, a qual abrange do verso 590 a 629, então lá não se trata de Anna soror, trata-se da partida de Enéas ao romper do dia. Isto me convence da pressa com que foi feita a crítica, talvez não tendo á mão M. de Lamartine um exemplar da Eneida para refrescar a sua lembrança. Não achar conforme á natureza o andamento dos amores de Dido em Virgilio, he opinião singular do nosso illustre contemporaneo: Mr. Tissot mesmo, com quantos tem censurado um ou outro lugar do episodio, não se atreve a involver na censura o episodio inteiro. Santo Agustinho, genio superior, sendo bem iniciado e experiente em materias amatorias, com especialidade se deleitava lendo este livro IV. Aqui dou, na traducção de Francisco Manuel, o que delle escreveu o autor dos Martyres, do monumento maior da literatura franceza nestos[4] ultimos tempos: “Pelas ribas, Que o vate descantou de immortal fama, Com a Eneida nas mãos ia Agustinho Ao lago Averno, á gruta da Cuméa, A Elysios campos, á Acheronte, á Estyge; De Dido acerbos fados lêr mormente Folgava sôbre a lousa desse ingenho, Terno e sublime quando os transes narra Da lastimada misera raínha.” - Mme de Staël, senhora de finissimo tacto, no seu livro da Literatura, dice: “L’émotion produite par les tragédies de Voltaire est donc plus forte, quoiqu’on admire davantage celles de Racine. Les sentiments, les situations, les caractères que Voltaire nous présente, tiennent de plus près à nos souvenirs. Il importe ao perfectionnement de la morale elle-même que le théâtre nous offre toujours quelques modêles au-dessus de nous; mais l’attendrissement est d’autant plus profond, que l’auteur sait mieux retracer nos propres affections à notre pensée.” Estas reflexões concordam com as de Racine no prefacio da Phedra quanto ao pathetico, e igualmente mostram que o poeta pode, não digo ir de encontro, mas aperfeiçoar a natureza (permitta-se-me a expressão) e modificar a história, ora para crear modelos acima de nós por interêsse da moral, ora para commover com a pintura das nossas fraquezas e das nossas affeições. E que! Mr. de Lamartine, quando quer antes ser grande poeta do que máo crítico, não pratíca o mesmo que reprova em theoria? Acaso em suas bellas paginas segue elle sempre a história, sem nada pôr, sem nada tirar? Acaso escreve só a verdade nua e crua, ou lhe prefere ás vezes a verosimilhança, conformando-se ao plano de suas concepções? Se os poetas fôssem coartados nesta liberdade, adeus poesia! - Quanto ás frias galanterias, direi que em toda esta verdadeira tragedia não ha um coloquio amoroso: a primeira vez que ha um dialogo entre Enéas e Dido, he quando ella, pressentindo que a frota vai partir, vem accusal-o de traição, e misturando súpplicas e queixas (admiravel passagem!) acaba por lhe deitar em rosto os beneficios, e sem lhe admittir as desculpas, o ameaça e foge, cahindo nos braços das famulas. Serão estas as frias galanterias da raínha de Carthago? - A proposito desta questão, offerecerei o juizo de Ferreira, cuja musa era a razão esclarecida. A’ vista de um retrato de Dido, em nome della, tomando o tom do philosopho que reclama o rigor da história, fez o seguinte epigramma: “A’ mão do pintor devo nova vida. Maro me deve a honra diffamada: Nem Dido foi de Enéas conhecida, Nem viu Carthago sua frota errada. Eu mesma me matei, porque sostida Fôsse a fé casta a meu Sycheu só dada; Vinguei sua morte, ergui nova cidade. Valha mais que os poetas a verdade.” Esta optima composição parece provar que o Horacio Lusitano rejeitava esta ficção de Virgilio; porêm não: como philosopho, pugnava pela verdade historica; como poeta, conhecia o proveito que da mesma ficção podia tirar-se, e a seguiu á risca na sua egloga VIII. De ambas as maneiras, patenteou o seu tino e delicadeza em discernir quando cumpre ou invocar a verdade ou ceder aos vôos da imaginação. Mas Ferreira não se contentava só do seu talento, folgava de o temperar com o saber accumulado pela experiencia dos antigos, e escrevia depois de longo exame.

58. - 61. - O povo caçador, mesmo o pastor, guia-se antes por costumes que por leis; o povo agricultor precisa mais dellas: por isso he que Virgilio chama legífera a Ceres ou a agricultura. O adjectivo legislador se applica propriamente á pessoa ou corporação que faz as leis; legífero significa o que traz leis, isto he o que traz a precisão de as fazer: adoptei pois a palavra latina como necessaria. Já temos frugífero, alífero, sagittífero, e outros adjectivos deste cunho.

90-128. - 98-140. - Esta scena entre Juno e Venus, onde cada uma, sôbre tudo Juno, dissimula e tenta chamar a outra ao seu partido, cahiu debaixo da ferula de Mr. Tissot: “Empruntée peut-être d’une riante fiction de l’Iliade, cette scène, peu digne de la gravité épique, n’a ni ce naturel exquis, ni cette grâce naïve, ni ces traits d’imagination, qui donnent du charme à tout dans Homère. L’invention est pauvre et les détails mesquins; le rire malin de Vénus suffit seul pour faire la critique d’une invention convenable tout au plus dans une épopée comique. Junon, el faut l’avouer, se prépare à jouer un rôle assez étrange; Vénus elle-même en est étonnée.” - Antes de tratar do unico reparo positivo que ha nesta parlanda, cumpre lembrar que tanta não he a autoridade do crítico, nem a sua superioridade sôbre Virgilio tamanha, que o dispense de comprovar asserções desta natureza: sob a sua palavra não creio que a invenção seja pobre, nem mesquinhas as particularidades; era mister que isso nos fôsse demonstrado. A’cêrca da positiva censura do riso de Venus, direi que Virgilio, á imitação de Homero e com mais commedimento, presta aos deuses as paixões humanas; porque elles, segundo a sua fabulosa história, tinham fraquezas, commettiam crimes; e não he muito que o poeta a Venus attribua um riso maligno, quando percebeu as segundas tenções de Juno: querer julgar das falsas devindades segundo a idéa sublime da perfeição de Deus, he confundir os seculos e as crenças. O que mais cabe notar he a parcialidade em favor de Homero: poude o bom velho grego dar aos deuses uma risada inextinguivel, quando apanharam em flagrante a mesma Venus e Marte, sem que a scena fôsse peu digne de la gravité épique; poude fazer o sabio Ulysses esbordoar a Thersites, que se assenta choramingando e enxugando as lagrimas, com o inchado vergão nas costas, entre as gargalhadas e vaias dos Argivos; poude pintar a Juno agarrando os braços de Diana com a esquerda, arrancando-lhe o arco e a aljava, chamando-a cadella atrevida. Quem, a não estar preoccupado, negará que tudo isto pertence mais a uma epopéa comica do que o riso de Venus? Todavia não condemno a Homero, poisque empresta a seus deuses os costumes dos homens e retrata os homens desses tempos. De mais, não reputo indigno de um poema serio um ou outro gracejo, comtanto que se use desta liberdade com discrição: como o fez Camões a respeito de Velloso; como o fizera Virgilio mesmo, no livro V, a respeito do piloto Menetes.

129-159. - 141-178. - Aqui descreve-se a caçada, episodio no episodio principal, com que soube variar o poeta o assumpto deste livro. A Delille remetto o leitor, ou antes a Mr. Villenave, que traz boas cousas sôbre todo este lugar. O verbo madrugar me parece exprimir fielmente o It jubare exorto. O verso 152 tem a onomatopeia conservada no 170 da versão, e em geral guardei a harmonia imitativa de toda esta porção da Eneida.

160-164. - 179-184. - Usei do hyberbaton para pintar a confusão dos caçadores, ao fugirem da chuva que obrigou Dido e Enéas a recolher-se á mesma caverna.

173-188. - 193-210. - Eis uma allegoria, cujas imagens parecem exageradas, mas que se basêa na verdade. Gabando alguns a descripção, pensam comtudo que o monstro enorme, o qual toca o chão com os pés e occulta a cabeça nas nuvens, não podia sentar-se nas cumieiras dos palacios; mas não advertem que a Fama de Virgilio, postoque gigantesca, segundo convinha á irmã de Celo e de Encelado, he levissima e como aeria, com a faculdade de augmentar e diminuir, conforme se colhe do verso: Parva metu primo, mox sese attollit in auras. Assim, podia ella estar sentada em cima dos palacios, não obstante a sua grandeza. - Reparem no contraste entre o verso: Revoa e ruge na terrena sombra, e o que segue: Nem os lumes declina ao meigo somno. Isto me foi suggerido pelos versos de Camões: Não em plectro bellígero de Marte, Mas em suave e doce melodia; onde ha igual harmonia imitativa.

242-244. - 265-269. - Entendo lumina morte resignat como Delille, não como La Rue; que interpreta: ex morte aperit oculos; porque esta virtude da vara de Mercurio está já exprimida no animas ille evocat Orco.

249. - 275. - Duvida-se que haja pinheiros na Africa: se os não ha em toda, os ha no Atlante. Não he pois necessario ler-se penniferum, como insinua Heyne.

266. - 294. - Verto uxorius como o eruditissimo Antonio Ribeiro nas Odes de Horacio, bem que maridoso não venha em diccionarios: significa o mulherengo.

293-294. - 319-320. - Mr. Villenave não contou com o portuguez, ao asseverar que a expressão do poeta aditus et quae mollissima tempora não podia ser traspassada a nenhuma outra lingua: a traducção me parece ter conservado o arrôjo do original.

331-361. - 363-397. - Esta resposta he bem censurada; e com effeito fôra melhor que o poeta supprimisse os versos onde Enéas affirma que, a não ser o fado, preferiria voltar para a sua patria: sam inexcusaveis, mesmo naquelles tempos em que os heroes tam facilmente sacrificavam as mulheres. Entrando porêm no fundo da questão, deirei que Enéas obrou mal em se deixar vencer do amor e em se involver na precisão de abandonar a Dido, mas que em tal caso peior fôra ficar-se com ella do que seguir as ordens e querer dos fados: que máo conceito não merecera, a têr immolado á paixão o interêsse do filho e de seus compatriotas? O partido que se toma a favor da raínha, he a prova maior da excellencia desta insigne tragedia: o poeta quiz excitar o mais possivel a commiseração para com Dido; e, pelo que toca a Enéas, o seu fim era mostrar o esfôrço deste por vencer, alêm de tantos perigos, uma das paixões mais fortes, só para cumprir com o mais imperioso dever. Concedendo eu que Enéas obrou mal, estou longe de conceder que peccou nisso o poeta: pintando a quéda do chefe troiano e o triumpho que este obteve de si mesmo, apresentou-nos a um tempo a fraqueza humana e o heroismo que a supera. Se Enéas sacrificasse a infeliz Dido ao seu interêsse individual, como de ordinario fazem os homens desamparando as mulheres credulas, fôra um cruel sem piedade; mas elle não podia pôr de parte o bem dos Troianos e a glória da sua descendencia, que em suas mãos tinha depositado o destino.

362-392. - 398-431. - A réplica da raínha e a brusca maneira de cortar as desculpas de Enéas, sam lugares em que os rigoristas não tem podido aferrar o dente, sam de todo conformes á natureza. Taes lances e affectos, imitou-os Racine, Lefranc de Pompignan, e muitos outros.

402-407. - 441-447. - “Alguns commentadores, diz Mr. Villenave, tem achado esta bella comparação pouco digna da epopéa; sem attenderem a que na Iliada Homero tira uma comparação das moscas, e que Apollonio nos Argonautas as tira das moscas e das formigas.” Eu accrescento que não eram precisos taes exemplos para justificar a Virgilio: a comparação dos Troianos, carregando o necessario para a partida, com as formigas ao levarem o sustento para as cóvas, he da mais perfeita justeza; e o fino gôsto de Camões imitou o poeta romano com felicissimo exito.

408-436. - 448-476. - Fallando do Littora et vacuos sensit sine remige portus, assevera Delille que Virgilio he inferior a Catullo, quando pinta a mágoa de Dido á partida de Enéas, por se contentar de a fazer contemplar da tôrre a frota que largava as praias; e que então o poeta se dirige á amante abandonada, perguntando-lhe o que sentia naquelle momento. Confundiu o traductor francez a passagem que vai adiante com a presente: he nesta que Virgilio pergunta á raínha o que experimentava, não quando partia a frota, porêm antes, quando a chusma acarretava o necessario para a viagem. A pergunta não foi na occasião da sahida; pois Dido ainda mandou a irmã fazer proposições a Enéas, e não tinha chegado ao último apuro a sua desesperação. Mas quando o heroe ficou inabalavel, Dido, em vez de subir a uma montanha para com os olhos seguir a nau que desaparecia, em vez de desmaiar e enfurecer, em si recolheu toda a sua dôr, concebeu o projecto de se matar, e dissimulando o poz em execução: isto he mais forte e mais terrivel do que o fez Ariadna. A preferencia dada a Catullo não he portanto justa, bemque por alguns tenha sido abraçada sem exame. O que ha em Catullo de melhor que em Virgilio, he a passagem: Omnia muta, Omnia consternata, ostentant omnia mortem, ainda mais bella que o verso: Littoraque et vacuos, etc., que representa a mesma idéa; e tambem a comparação de Ariadna com a effigie de pedra de uma Bacchante: em tudo o mais he Virgilio superior a Catullo, mais terrivel e mais pathetico. - Os diccionarios latinos trazem videre com a significação de ouvir, e todos citam a Virgilio, sem dúvida fundados neste lugar: Prospiceres arce ex summa totumque videres Misceri ante oculos tantis clamoribus aequor. Eu penso que o verbo videres não significa ouvir; mas que exprime uma fina observação do poeta. Quando ha um ruído que se não ouve bem, feito pela multidão, os movimentos e os gestos, percebidos pela vista, ajudam a ouvir e a destinguir os sons: he isto o que pinta Virgilio, e a minha versão he neste sentido. - Viri do verso 424 he omittido pelos traductores, sendo comtudo essencial; porque Dido com esta palavra exprobra a dureza ordinaria dos homens para com as mulheres. - Leio o verso 436: Quam mihi cum dederit, cumulatam morte remittam, referindo cumulatam a veniam, e traduzo o lugar á maneira de Delille e de Mr. Tissot.

440-449. - 479-491. - “Aqui Virgilio, para desculpar a Enéas, não se contenta com dizer que este obedece aos deuses, accrescenta que um deus lhe tapa os ouvidos ás preces de Dido. Não se podia melhor pintar aquella virtuosa inflexibilidade, do que pela comparação que se segue, tam insigne pela belleza das imagens como pela harmonia.” Tal he o parecer de Delille; o de Mr. Tissot, em cujas palavras jura Mr. Villenave, he o contrário: “Quem se poderia comparar a um carvalho já velho, he Anchises, não Enéas, no vigor da idade; Enéas, reposto em todo o brilho da mocidade por sua mãe. Aliás, o heroe aqui tam pouco de grandeza ostenta, que não merece um parallelo tam ambicioso. Duas mulheres a chorar e a supplicar não se assemelham aos aquilões soltos sôbre os Alpes: apenas se poderia soffrer esta imagem, se se tratasse de duas amantes furiosas e desesperadas, como Camilla e Hermione... A exageração minuciosa aggrava mais a falta do poeta; que a leva ao cúmulo ajuntando que Enéas, exposto a continuos assaltos, sente uma dôr profunda; supposição desmentida no momento por estas palavras: Il reste inébranlable, et seulement quelques larmes inutiles coulent de ses yeux. - A maior parte desta crítica nasce de não ter seu autor meditado no texto. Uma arvore muito nova não tem robustez; he preciso têr chegado (peço venia) á sua virilidade para chamar-se válida: o válido carvalho de Virgilio não era velho, estava na fôrça dos annos, unico sentido da expressão annoso robore; e assim he bem comparado com Enéas, que não estava na primeira mocidade, mas na que se tem nomeado a idade heroica, isto he cêrca dos quarenta annos; porquanto, sendo homem feito e casado no comêco da guerra que durou dez annos, e tendo-se já passado sete depois do triumpho grego, he evidente que andava pelos seus trinta e seis a trinta e oito. Com Anchises he que fôra uma sandice comparar o válido carvalho no vigor da idade; com Anchises, decrepito e paralytico, fugindo carregado por seu filho: o carvalho comparavel a Anchises seria um já carcomido, que fôsse extirpado pelos aquilões, e não um tam rijo que resistiu aos ventos dos Alpes. Quanto á incongruencia de assemelhar Enéas a um carvalho, parallelo que o crítico appellida ambicioso, atrás já refutámos as razões em que se estriba a sentença; e repito que elle obrou mal em se enamorar de Dido com quem não podia casar, mas cumpriu um dever sacrificando a paixão ao interêsse do filho e dos seus nacionaes, e portou-se briosamente esforçando-se por vencel-a: do contrário, merecera que os Troianos o apedrejassem. - Se o poeta assemelha as preces e arguições de Dido, por intermedio e bôca de Anna, aos embates dos furacões dos Alpes, não he por serem de duas mulheres, he pela fôrça que havia nessas preces e arguições; as quaes punham patente aos olhos do amante a mágoa da infeliz Dido e o damno que elle fizera com o seu êrro e fraqueza. Ora, a fôrça dessas razões he que lhe commovia o coração, he que lhe fazia verter as lagrimas que nada remediavam a dôr e desgraça da raínha. Neste ponto Mr. Tissot não fez a differença que faz o poeta: o que era inabalavel foi a resolução de partir, que lhe aconselhava o interêsse dos Troianos; mas o coração do heroe estava grandemente commovido, segundo se vê do verso: “Multa gemens magnoque animum labefactus amore.” A phrase mens immota se refere á razão, á potencia intellectiva de Enéas, não á sensibilidade de sua alma. Mr. Tissot he que traduziu incorrectamente: Il reste inébranlable; devera dizer: A sua razão, ou a sua mente, ficou immovel; isto he que, posto fôsse profunda a sua mágoa, os esforços da razão o tinham tornado firme e inconcusso, ajudado mesmo por um deus que lhe fechava os ouvidos ás palavras de Anna. Elle até quiz vêr se conciliava o amor com o dever de ir buscar a Italia, e por via de Anna propoz a Dido que se embarcasse e o seguisse, como o demonstra o verso 537 e os seguintes; mas a nobre e generosa raínha, recusando ou deixar os seus ou fazel-os de novo entregar-se aos mares e aos acasos, preferiu a morte. Esta proposta de Enéas, do embarque de Dido, não tem sido attentada pelos criticos e commentadores que conheço.

450-503. - 492-548. - La Rue, cujos commentarios tem voga nas escolas do Brazil e de Portugal, traz muitos esclarecimentos sôbre todos estes versos; e como nada tenho que refutar ou accrescentar, ás suas notas remetto o leitor, ou a La Cerda ou a Mr. Villenave, que as trazem curiosas e eruditas.

518. - 564. - O in veste recincta tómo no sentido em que Nascimbeno e os antigos o tomaram; não achando sufficiente, para enjeitar-se a interpretação commum, a razão de que era preciso colher o vestido a fim de se vêrem os pés nus; sendo mais forte para mim o que diz o mesmo Nascimbeno, isto he que nihil in sacrificiis non solutum esse oportebat. - Sôbre este sacrificio e magica, descriptos neste verso, nos de cima e nos subsequentes, de novo remetto o leitor aos intérpretes citados; e peço licença para o adjectivo pubentes: convinha conservar a idéa de Virgilio, que assim compara a lanugem das hervas com o buço dos adolescentes.

555. - 605. - “Jupiter e o destino, exclama Mr. Villenave, acaso lhe ordenavam esta ultrajante insensibilidade? Aqui nem se vê o homem nem o heroe..... Elle dorme tranquillo em seu navio, até que Mercurio o desperte.” De vagar, senhor crítico, de vagar: o carpebat somnos, colhia o somno, pegara no somno, sam expressões que não indicam um dormir pesado, e os sonhos, de que despertou sobresaltado, provam de sobejo que Enéas não dormia tranquillo. Tinha trabalhado muito nos preparativos da viagem, tinha-se affligido muito com os pezares e queixumes da raínha: fatigado pois de corpo e de espirito, o pegar no somno está bem longe de mostrar nelle insensibilidade, antes he um effeito e consequencia dessa fatiga; o somno em taes casos he caminho que a natureza busca para allivial-a. Medicos experientes, de saber e de gôsto, a cuja autoridade recorri sôbre este ponto, me fizeram vêr que, depois do cansaço e de tantas afflicções, o adormecimento não era indício de dureza; que uma boa parte dos condemnados á morte, apezar do terror, não deixam de adormecer, e ás vezes profundamente, como aconteceu ao marechal Ney, a quem vieram despertar para o matarem. Virgilio, que a tam variados conhecimentos ajuntava os da medicina, soube o que escrevia e o fez com madureza; e, introduzindo na acção a Mercurio que por ordem suprema adverte a Enéas do perigo e intíma-lhe que parta, o poeta nos deixa entrevêr que nesse adormecimento, aliás natural, interveio o destino. Tudo portanto he conforme á razão e á natureza, e não merece a menor censura.

586-629. - 635-681. - He aqui a famosa imprecação de Dido, ao enxergar de cima de uma tôrre a frota que se ia apartando. Mr. Tissot, com a sua usual sem-ceremonia, suppõe em Enéas o dom da ubiquidade: “Que papel, nesse momento, representa um heroe que attrahiu sôbre si tam cruéis ameaças?” Respondo que nesse momento, estando elle a navegar, não podia ouvir as ameaças da raínha, e o papel que representava era o de um chefe que, se bem compungido e com sinistros presentimentos, conduz os seus compatriotas a um lugar promettido pelos fados, cumprindo assim um restricto dever. Pasma o crítico de que Enéas, o homem do destino, a quem Jupiter fez tam magníficas promessas, fuja carregado de maldições: e o que devia elle fazer? Enéas não ouvia essas maldições, e se as ouvisse, não havia de voltar para Carthago, frustrando assim a esperança e os interêsses dos que nelle se tinham confiado; e, por mais que se esforçasse, era-lhe impossivel apaziguar a amante exacerbada, salvo se ficasse com ella e trahisse os Troianos. Escolha Mr. Tissot.

664. - 719. - “O poeta, pondera Mr. Villenave, parece esquecer que Dido afastou todas as mulheres do palacio e todas as testemunhas do horrivel sacrificio que meditava.” Eu digo porêm, com os olhos no texto, que o poeta não afastou todas as mulheres; afastou sim a irmã e a Barce ama de Sicheu, não do palacio, mas do claustro em que accendera a fogueira, porque estas duas deviam estar perto e baldariam o sacrificio; e quanto ás outras mulheres, como lhes cumpria ficar no posto em que a raínha as collocara, não ouviam as palavras de Dido sôbre a fogueira, e só conheceram a funesta resolução no momento de ser executada, e então romperam em grande alarido. A infeliz, dissimulada  e precavida, não quiz mandar embora as mulheres para não despertar a desconfiança das duas mais attentas. Considere-se o lugar da scena, e ver-se-á que as damas, em um espaçoso claustro, podiam estar á vista e comtudo em uma distancia que as impedisse de ouvir: ellas criam que a senhora desempenhava o rito magico, e não que se despunha a morrer. Todas estas cautelas provam a irrevogavel tenção da raínha, e augmentam o terror.

Permitta-se-me agora terminar as observações a este livro IV mostrando a injustiça de Delille para com Luiz de Camões.[5] Delille, cujas reflexões ácêrca desta parte da Eneida sam as mais justas e recommendaveis, conclue a sua analyse pelos poetas que tem imitado o romano, e diz assim: “Todos os epicos julgaram dever consagrar um dos seus cantos ao amor: Camões faz tambem desembarcar os Portuguezes em uma ilha, onde as Nereidas imflammadas por Venus e Cupído, de concêrto com o Padre-Eterno, se esforçam por demoral-os. Independente da mistura monstruosa das divindades do paganismo com a religião christã, este episodio se descreve com tam pouca circumspecção, que a ilha encantada dos Lusiadas muito mais se assemelha a um alcouce que a uma residencia de deuses. Comparar iguaes producções ás de Virgilio fôra ultrajal-o.” - Delille não leu a Camões, como acontece á maioria dos Francezes que de Camões fallam; os quaes, logoque se trata do Homero portuguez, clamam: “Como he bello o episodio de Ignez! E o do gigante Adamastor!! Assim não tivesse o poeta confundido o paganismo com o christianismo!” Tudo isto porêm não he delles, he apenas o apressado juizo de Voltaire com emphase repetido. Delille fez mais que lêr a Voltaire, leu a pessima e ridicula traducção de La Harpe, e leu-a mesmo sem attenção. - A ilha dos amores não he imitada de Virgilio, he totalmente original; nem pode ser confrontada com o episodio de Dido, por ser materia hetorogenea. O grande epico imagina que Venus, a protectora dos Portuguezes, fez nascer no meio dos mares uma ilha encantada em que os seus valídos repousem das fadigas da viagem, e com auxílio de Cupído inflamma[6] as Nereidas; as quaes, vencidas dos navegantes, em dansas e tangeres, os recebem e alegram, rendidas ás suas caricias. A descripção do pomar e jardim, a das nymphas que, estando a banhar-se, se escondem n’agua para não lhes apparecerem nuas; a pintura das aves e outros animaes, tudo, tudo he primoroso. Se Camões porêm neste episodio não imita o seu mestre, com elle se assemelha no estilo, sempre conciso e imaginoso; a harmonia imitativa he tanta e perfeitissima, estupenda a variedade,[7] a melodia inteiramente virgiliana. Quam poetica não he a lembrança de introduzir Thetys, a espôsa de Neptuno, acolhendo a Vasco da Gama com pompa honesta e régia, e tomando-o pela mão para lhe explicar a rica fábrica do mundo! O descobridor da nova róta das Indias merecia bem estas honras da parte da raínha do oceano. Quam sublime não he o canto da nympha (a quem, pela voz, Camões chama angelica Sirena, e alguns críticos tem crido ser uma serêa) quando vaticina as façanhas futuras dos Portuguezes! Aqui he que o poeta imita a Virgilio no livro VI da Eneida, mas com quanta originalidade! - Ora, comparar tudo isto aos amores de Dido he comparar uma tragedia com um idyllio, uma nenia com um hymno de alegria. Em vez de recorrer a Voltaire, genio extraordinario, mas que se enganou lendo os Lusiadas por uma inexacta versão ingleza; em vez de recorrer ao pedantesco[8] juizo de La Harpe, e a estas miserias de Delille; em vez de recorrer ás inexactidões de Sismondi, o qual confessa não ter lido muitas das obras que se atreve a criticar, todo Francez que ignora o portuguez, se quizer conhecer a Camões razoavelmente, recorra a Mr. Ferdinand Denis, seu autor o mais instruído nas cousas do Brazil e de Portugal, ou tambem á traducção de Mr. Millié, bem como ás notas que lhe vem annexas: nellas falla-se da ficção da ilha encantada, mostra-se que he uma allegoria desconhecida pelos criticos, e defende-se o autor ácêrca da mistura do christianismo com o paganismo. Verdade he que uma ou outra vez algum máo uso faz elle da fábula, defeito que lhe era commum com os contemporaneos, e que se lhe lança em rosto exclusivamente; mas he tambem verdade, como notou o sagaz ingenho de Mme de Staël, que só emprega o maravilhoso do paganismo na pintura dos prazeres, e o do christianismo nas cousas graves e sérias da vida: o heroe Vasco da Gama, por exemplo, nunca se dirige a Mercurio ou a Jupiter; e para a ficção da ilha dos amores não houve concêrto do Padre-Eterno com Venus e Cupído, como inexactamente o affirma o paraphraseador da Eneida. O seu triste juizo a respeito de Camões foi para mim uma occasião de grande prazer, o de lêr mais uma vez o episodio da ilha dos amores. - Se Delille tivesse meditado, e não se contentasse de ostentar a este respeito uma falsa erudição, observaria que, a ser este canto indigno de emparelhar com a poesia de Virgilio, não teria sido o modêlo da ilha de Armida. A idéa principal tirou-a Tasso de Camões, a quem tanto amava, e do poeta latino imitou muitos rasgos sensiveis; tecendo porêm tudo com tanta arte, e do seu accrescentando bellezas taes, que esta parte da Jerusalem, não sendo a ilha do bom Luiz, como elle chama o seu unico rival nesses tempos, nem o livro IV de Virgilio, he um dos melhores trechos entre antigos e modernos.

Na mesma passagem em que Delille tanto se desmanda, affirma que o palacio encantado, obra do Amor, tam caro a Armida, emquanto he habitado por Reinaldo, e entregue ás chammas depois da sua partida, he uma das idéas mais felizes concebida jamais por nenhum poeta epico. - Postoque seja uma digressão, consintam-me refutar esta affirmativa; refutação que redunda em honra da literatura da nossa lingua. Francisco de Moraes, no Palmeirim de Inglaterra (em prosa, mas bella composição poetica do genero epico) concebeu o palacio de Leonarda; palacio encantado onde essa princeza, fructo de um amor infeliz, foi encerrada, e que tambem desappareceu, depois que ella desencantada sahiu dalli para casar. A imaginação do poeta portuguez não he menos fertil que a do italiano, e a aventura da copa, que precede ao desencantamento, he igual ao melhor de Ariosto. A mais atreveu-se[9] Francisco de Moraes, compoz dous desencantamentos, este que mencionámos, e o da mesma Leonarda pelo cavalleiro do selvagem e por Daliarte do Valle-Escuro; isto com tal invenção, que nos dous desencantamentos não ha lance em que um se pareça com o outro. Não he de balde que Cervantes queria uma caixa onde o Palmeirim fôsse guardado com as obras do poeta Homero; não he de balde que Walter-Scott falla delle com tanto louvor.

Quem attentamente examinar o episodio de Camões e o poema de Moraes, autores que escreveram antes do Tasso, verá que este se aproveitou assim de um como do outro, se bem de um modo magistral e com toques originaes. O palacio de Armida não he o mesmo que o de Leonarda, mas offerece muitos pontos de contacto; e no desencantamento da selva, operado pelo bravo Reinaldo, bem se conhece que não foi inutil a Tasso a leitura de Moraes, assim como a este não o tinha sido a do Orlando furioso. Os poetas aprendem uns dos outros; o que nada obsta ao talento e á fôrça creadora; antes, como diz Mme de Staël, fallando de Petrarca e de seus profundos estudos, conhecer muito serve para inventar, e o genio he tanto mais original, quanto, semelhante ás fôrças eternas, sabe estar presente a todos os seculos.

Ao concluir esta refutação, não quero dissimular que na ilha dos amores ha quatro ou seis versos condemnaveis, por contêrem idéas lascivas, se bem exprimidas com palavras decentes; e não he só nesta linda composição que deve ser Camões reprehendido por taes descuidos, de que Virgilio nunca lhe deu o exemplo. Esses versos comtudo não podem embaciar o esplendor de um episodio que abrange boa parte do canto nono e entra muito pelo decimo, no fim do qual ha pensamentos grandiosos, da mais bella poesia e da moral mais sublime.                     

  

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística

Apoio
CNPq / CAPES
UFSC / PRPG



[1] No original, “dissímulo”, corrigido na segunda edição.

[2] É bem possível que as primeiras aspas, ausentes do original, comecem nesse verso (609).

[3] “Fozes”, no original, corrigido na segunda edição.

[4] É um possível erro tipográfico: nestes.

[5] No original está Comões.

[6] Mais acima, está imflammadas.

[7] No original, está variadade.

[8] No original, está pedandesco.

[9] No original, está atraveu-se.