LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Eneida Brasileira, de Odorico Mendes
Edição de base:
LIVRO VIII
Mal Turno, os cornuos rouco estrepitando,
Pendões arvora no laurente alcaçar,
E os brutos afoguêa e incita as armas,
Revôlto o Lacio em trepido tumulto
Se conjura, e esbraveja a mocidade. 5
Chefes Messapo e Ufente, o atheu Mezencio,
Organizando levas, despovoam
Toda a campanha. A requerer o auxílio
Do gran’Diomedes, Venulo deputam;
A informar que, abordado ha pouco Enéas, 10
Os vencidos penates recolhendo,
Rei se inculcava por querer dos fados;
Que attrahe cem povos, e n’Ausonia lavra
Seu prestigio. Ao que tenda, e o que resulte 15
Se a fortuna o insuffla, he manifesto
Mais a Diomedes que a Latino ou Turno.
Derramada a notícia, o Laomedoncio
Em cuidados fluctua, e a mente vaga
Divide e agita, a meditar em tudo:
Como em bacia d’agua o tremulante 20
Raio da Lua ou Sol, repercutido,
A regyrar voluvel, monta aos ares
Do summo tecto os artesões ferindo.
Noite era; e gados, aves e alimarias,
Quando lassos na terra adormeciam, 25
Dos perigos afflicto, á riba Enéas,
Tardo repouso aos membros concedendo,
Sob o eixo do céo frio recostou-se.
Deus do sítio, a surgir do leito ameno,
Entre alemos se antolha o Tiberino: 30
Ao velho tenue bysso um verdoengo
Sendal compõe, e o touca umbrosa canna.
Ao Teucro falla e o peito lhe mitiga:
“Divo renôvo, que dos Gregos salva
Pérgamo eterna á Hesperia nos transportas, 35
Nestas laurentes veigas esperado,
Casa tens certa, certos os penates;
Avante! não te assuste a feia guerra:
O tumente furor cessou dos deuses.
Porque isto um sonho futil não reputes, 40
Em litoreo azinhal grande alva porca
Deitada encontrarás parida, e em roda
Nella a mamar trinta alvos bacorinhos.
Descanso aqui tereis; trinta annos vôltos,
Aqui fundando-a Iulo, deste agouro 45
Alba derivará seu claro nome.
Não dubio o vaticino. O modo em summa
Te ensinarei de conseguir victória.
Lá d’Arcadia emigrados que de Evandro
Sob a real brandeira aqui vieram, 50
Do bisavô Pallante por memoria,
Em montes assentaram Palantéa:
Com elles anda o Lacio em guerra assídua;
O arraial em commum, liga-te a elles.
Eu, por meu rio e margens te ajudando, 55
Farei que a remos a corrente venças.
Sus! roga a Juno; assimque os astros caiam,
Devoto e supplice, ó de Venus filho,
O odio minaz lhe adoça: ao triumphares
Me honres depois. Sou eu que em ampla chêa 60
Premo estas bordas, sulco e adubo as vargens,
Aos céos gratissimo, o ceruleo Tibre.
Meu paço he cá, de altas cidades mano.”
Dice, e immergiu-se: a noite a Enéas deixa.
Desperto olhando ao lucido oriente, 65
Nas côvas palmas, como he uso, apanha
Do licor fluvial, dest’arte orando:
“Nymphas, laurentes nymphas, geradoras
Dos mananciaes, com santa vêa ó Tibre,
Recebei vós a Enéas, resguardai-me. 70
Qualquer que seja a fonte, ou lago ou solo,
Donde formoso nasças e onde as nossas
Penas, rio cornígero, apiadas,
Sempre terás meu culto, offrendas sempre,
Tu das aguas hespericas monarca. 75
Assim me valhas e os augurios firmes.”
Da frota escolhe então biremes duas,
E de armas e remeiros as fornece.
Subito, oh maravilha! entre arvoredos,
Deitada em verde ribanceira, avistam 80
Com sua alva ninhada uma alva porca;
E a ti, maxima Juno, o pio Enéas
Com todo o parto a immola e te offerece.
Durante a noite amaina o inchado Tibre,
E em tacito remanso refluindo, 85
Qual tanque fica-se ou lagoa estôfa,
Que não obste ao remar. Crenado o pinho,
Com propício rumor, no equoreo plaino
Ligeiro se deslisa; e a onda e o bosque
Arnezes a fulgir de longe estranha, 90
Estranha os bucos a nadar pintados.
Afadigando á voga a noite e o dia,
E os estirões e as vóltas alcançando,
Sob a folhuda abobada, cortavam
No aquoso espelho as verdejantes ramas. 95
Igneo o Sol meridiano, he quando enxergam
Uns muros, um castello e tectos raros,
De Evandro haver mesquinho; que a pujança
Romana elevou tanto e aos céos o iguala:
Viram proas e ao burgo se approximam. 100
Acaso o arcade rei, n’um luco em face,
O Amphitryonio festejava e os divos.
Solemne, o seu Pallante, a flor dos jovens,
Pobre senado, o incenso ministravam,
Em cruor tepido a fumar as aras. 105
Surdir vendo os baixéis pela espessura,
E o nauta aos mudos remos debruçar-se,
Das mesas todos erguem-se assustados.
Veda romper-se o rito o audaz Pallante;
Saca uma lança e voa, e de afastado 110
Outeiro: “O que tentar vos fórça, ó moços,
Ignotas vias? de que partes vindes?
Quem sois? onde ides? paz quereis ou guerra?”
Maneando Enéas da alterosa pôpa
Fausta oliva, responde: “Phrygios dardos 115
Te apresento e inimigos dos Latinos,
Que em barbara aggressão nos repulsaram.
Saiba teu rei que os principaes Troianos
Lhe vem pedir junção e apoio de armas.”
Logo a tal nome attonito Pallante: 120
“Salta, e a meu pae dirige-te em pessoa;
Quem sejas, te agasalha em nossos lares.”
E a mão lhe aperta, cordial o abraça.
Trasposto o rio, ao bosque se encaminham;
E amigavel o padre: “Optimo Evandro, 125
Timbre dos Graios, a fortuna enseja
Que, ennastrado este ramo, eu te supplique;
Certo não te hei receio por Arcadio,
Chefe acheu, dos Atrídas consanguíneo:
Meu gôsto e leal peito, oragos santos, 130
Parentesco de avós, tua alta fama,
Por fatídico impulso, a ti me enlaçam.
Dardano, de Ilio autor, de Electra nado,
Para os Troas passou-se, a Grecia o affirma;
Do estellífero Atlante Electra he prole: 135
Vós de Mercurio o sois, e em frio cume
Cyllenio o concebeu candida Maia;
Maia, he crença geral, o mesmo Atlante,
O que os orbes sustenta, procreou-a.
De um tronco somos pois. Eis porque afouto 140
Nuncios não ensaiei que te sondassem:
Eu proprio, eu vim expôr-me e supplicar-te.
A Daunia, que te aprema em feroz guerra,
Cuida, a nos rechaçar, que nada a estorva
De metter sob o jugo a Hesperia inteira, 145
E o superior e o baixo mar que a lavam.
Presta e acceita-me a fé. Briosa temos
Aguerrida e valente mocidade.”
Attento ao seu discurso, Evandro os olhos
Curioso lhe examina e a bôca e o talhe; 150
Foi breve assás: “Fortissimo dos Teucros,
Com que prazer te hospedo! eu reconheço
De teu pae a facundia, o tom e o gesto!
A Hesione irmã sua o Laomedoncio,
Lembra-me, visitando em Salamina, 155
Honrou-me os gelos da vizinha Arcadia.
De flóreo buço a face então pungida,
Bem me admirei de Priamo e seus cabos;
Mas na grandeza os superava Anchises.
Cúpido joven, por tratal-o ardia 160
E a mão do heroe cerrar: obtendo accesso,
Aos muros de Pheneu lhe fui companha.
Partindo, insigne coldre e lycias frechas,
Chlamyde auri-bordada e uns aureos freios
Deu-me, de que ora he dono o meu Pallante. 165
Confirmo aquelle pacto; e satisfeitos
Vou na alvorada, amigos, despedir-vos
Com soccorro de gente e o mais que eu possa.
Emtanto, embora celebrai comnosco
Festa annual que differir he crime, 170
E dos socios á mesa habituai-vos.”
Dice, e os copos repôr e os pratos manda,
Senta os varões na relva; em tóro e pelle
De leão velloso a Enéas accommoda,
Cede throno de bôrdo a heroe tamanho. 175
Moços, do antiste ás ordens, lestos servem
Taureas tôstas fressuras, dons de Baccho,
De obras de Ceres cumuladas cestas.
De rêz inteira o dorso e os intestinos
Lustraes ministram pasto ao chefe e Troas. 180
Refreiado o appetite e a fome exhausta,
Disserta el-rei: “De tanto nume est’ara,
Esta pompa e festim, hóspede, usamos,
Não por superstição que os priscos deuses
Desconheça; de atroz perigo exemptos, 185
Merito culto renovâmos gratos.
Nota em penha suspensa aquella pedra:
Dispersa a mole jaz, do monte a furna
Deserta, e ao longe as ruínas dos rochedos.
Esta, em recesso vasto ao Sol defeso, 190
Era a espelunca do semihomem Caco,
Monstro immano; e, em recente morticinio
Sempre o chão tepido, aos portaes suberbos
De homens saniosas lívidas cabeças
Fixas pendiam. De Vulcano filho, 195
Turbidos fogos vomitando, a enorme
Corpulencia movia. Ao suspirarmos
Por divo auxílio, o vingador Alcides
Chega a tempo, e do espólio e morte ufano
Do trigémeo Gerion, de gado enchia, 200
Vencedor pastorando, o rio e valle.
Caco, infrene e brutal, que não se abstinha
Do mór flagicio ou dolo, da malhada
Touros quatro furtou-lhe os mais robustos,
Quatro novilhas de excellente fórma; 205
E, para nenhum rasto haver directo,
Puxando a cauda e a recuar, no opaco
Petreo bôjo os fechou: pégada alguma
Não guiava á caverna. O Amphitryonio,
Já gordo o gado e farto dos pastios, 210
Retirar-se dispunha, e os bois saudosos
Monte e bosque estrugiam de queixumes.
Do amplo encêrro igualmente uma das vacas
Muge, e de Caco as esperanças frustra.
Da injúria ardendo e em negro fel, das armas 215
Hercules péga e do nodoso roble,
Corre ao cabeço aereo. Aos nossos Caco
Trémulo e demudado aqui mostrou-se:
Fugindo euros transcende, e aos pés o medo
Azas lhe empresta. Já na gruta, abate 220
Penhasco ingente, rôtas as cadêas
Com que acima o ligava arte paterna,
E de espeques reforça e escora a entrada;
Eil-o, o Tirynthio em sanha os dentes range
Accesso a perscrutar: férvido e iroso, 225
Todo o Aventino vezes tres rodêa;
Tres contra a saxea porta o esfôrço balda;
Tres descansou no valle. Aguda roca,
Asado ninho de funestas aves,
Entre fraguras e a perder de vista, 230
Do antro estava no dorso: á esquerda o cimo
Sôbre o rio inclinava; á dextra Alcides
Carrega, e do imo a desarreiga e impelle:
Ao baque repentino o ethereo espaço
Retumba; e, as ribanceiras retremendo, 235
Reflue medroso o rio. A immensa régia
De Caco descobriu-se, e appareceram
Umbrosos penetraes: qual se abalada
Rasgasse a terra hiante o dos infernos
Pallido reino, aos deuses detestavel; 240
De cá se vendo, no profundo abysmo,
Da luz diffusa a trepidar os manes.
Do subito clarão se assusta o bruto,
A urrar disforme, na caverna preso;
De cima o ataca o deus, atira o que acha, 245
Calhas e galgas e lascados ramos.
Elle, oh monstro! não tendo outro refúgio,
Rouba-se á vista, a jacular das fauces
Tetro vapor; em cega nevoa baça
Involve a gruta, e mescla a luz e as trevas, 250
A fumífera noite agglomerando.
Não o supporta Alcides, e de um pulo
Se arroja onde corisca e ondêa o fumo,
E em caligem mais basta a cóva estúa.
No incendio vão que expira agarra a Caco, 255
O estreita e afoga, e lhe esbugalha os olhos,
Sêcco na guela o sangue. Arranca as portas,
O antro escancara escuro; os bois e os furtos
Abjurados ao claro patentêa.
O corpo informe pelos pés arrastam: 260
Ninguem do semiféro a catadura
De olhar se cansa, e os peitos sedeúdos,
E na garganta os apagados fogos.
D’então ledos o dia celebrâmos;
Primeiro o fez Poticio, e a consagrada 265
Pinaria tribu ergueu no bosque est’ara,
Chamada sempre maxima, e que sempre
Maxima nos será. Mancebos, eia,
Brindai-me a nobre acção, de dextra em dextra
Os copos a gyrar, frondosa a coma, 270
Commum deus o invocai, bebei contentes.”
Presto as cãs lhe entretece e enfolha o choupo
De sombra herculea, bicolor pendendo;
Sagrado scypho empunha. Alegres todos
Em roda libam, deprecando os numes. 275
Já Vesper ao declive Olympo avança:
Tochas nas mãos, do estilo as pelles cintas,
Poticio á frente, os sacerdotes cobrem
De gratos postres a instaurada mesa;
Bandejas de mil dons o altar oneram. 280
Com populea capella, em tôrno os Salios
Da ara incensada ao cantico presentes,
Jovens em côro, em côro o entoam velhos
De Hercules em louvor: como estupendos
Os dragões da madrasta esmaga infante; 285
Como as grandes arrasa Echalia e Troia;
Como, a sabor de Juno, arduos trabalhos
Sob Eurystheu passou. “Tu mesmo, invicto,
A Pholo e Hyleu, nubígenas bimembres,
Tu cretenses prodigios, tu mataste 290
Na brenha o leão Nemeu desmesurado.
De ti a Estyge, na cruenta cóva
Tremeu do Orco o porteiro, sôbre ossadas
Meio-roídas a jazer. Phantasma
Nenhum lá, nem Typheu de cota enorme 295
Te foi terror; não te esmorece e atalha
Da hydra Lernéa a turba de cabeças.
Salve, ornamento aos divos accrescido,
Vera prole de Jove: ao teu festejo
Com pé desce propício, e nos assistas.” 300
Cantam proezas taes; por fim memoram
A furna e Caco resfolgando chammas.
Resoa a selva e o eccho nos outeiros.
Cheia a funcção, para a cidade voltam.
El-rei de annos cercado ia adiante, 305
Entre Enéas e o filho, em varios modos
Praticando o caminho aligeirava.
Por tudo ávido o heroe passsêa os olhos,
Mira, e cada vestigio dos maiores
Inquire e aprende. Evandro, que os primordios 310
Lançou da celsa Roma, então começa:
“Indígenas moravam nestas matas
Faunos e nymphas, e homens raça dura
Dos robles; que nem bois jungir sabiam,
Adquerir, nem poupar, sem lei, sem culto; 315
Montez caça os mantinha e agrestes frutas.
De Jupiter fugindo, aqui Saturno
Do Olympo veio, expulso do seu throno.
Selvagem povo indocil ajuntando,
Legislou, chamou Lacio a plaga antiga, 320
Onde um latente couto deparara.
No célebre reinou seculo de ouro,
De justiça e de paz; mas pouco a pouco
Em peior descorou-se a idade nossa,
Raiva bellaz surgindo e atroz cubiça. 325
De Ausonios e Sicanos invadida,
Variou de nomes a saturnia terra:
De um seu rei, Tibre aspérrimo gigante,
O Albula velho appellidou-se Tibre.
Cá nos confins do pégo, expatriado, 330
A omnipotente sorte ineluctavel,
De minha mãe Carmenta o serio aviso
E Apollo inspirador, me deposeram.”
Progredindo, elle mostra o altar e a porta
Que se intitula Carmental em Roma, 335
Por memoria da nympha que primeiro
Fatídica os Enéadas sublimes
E o brilho pallanteu vaticinara;
Mostra a mata em que asylo abriu Quirino
Sagaz, e o Lupercal, gélida gruta 340
De Pan lyceu, vocabulo parrhasio;
Mostra o Argileto bosque, e attesta e narra
De Argos hóspede a morte merecida.
Dalli guia ao Tarpeio, ao Capitolio,
Hoje aureo, outrora de urzes erriçado. 345
Os campestres então, da rocha e luco
Já com pavor tremiam religioso.
“No cimo, diz, frondente habita um nume;
Qual seja he dubio: Arcadios crem têr visto
Jove nubícogo a vibrar por vezes 350
A egide negrejante. Observa aquelles
Dous muros em ruínas: monumentos
Sam dos varões passados, sam reliquias
De Saturnia e Janículo, cidades
Que o pae Jano e Saturno edificaram.” 355
Do pobre Evandro á casa emtanto sobem;
No foro e lauto bairro das Carinas
Balava o armento. Ao limiar chegou-se:
“De Alcides vencedor foi este o alvergue,
Nesta régia o deus coube. Hóspede, imita-o, 360
A desprezar atreve-te as riquezas;
Desta míngoa de haveres não te enfades.”
Calou-se, e leva o heroe pela estreitura
Do exíguo tecto, e em leito o põe de folhas,
Do espólio de ursa libya tapetado. 365
Cahe ali-fusca noite e abrange o globo.
Não sem causa, aterrada a madre Venus
Do cru tumulto e ameaços dos Laurentes,
Carinhosa ao marido amor divino
No aureo thalamo inspira, assim fallando: 370
“Emquanto argivos rêis com fogo e ferro
A malfadada Pérgamo assolavam,
Nunca, espôso querido, ajuda ou armas
Roguei do teu lavor, nem quiz tua arte
Por miseraveis empenhar de balde; 375
Bem que eu devesse muito aos Priamídas,
E muito houvesse a Enéas deplorado.
No rutulo paiz ora o tem Jove:
Mãe, nume augusto, emfim supplico-te armas
Que o protejam. Dobrou-te em pranto a espôsa 380
Tithonia, a filha de Nereu dobrou-te:
Olha que povos, que cerradas praças
Em meu damno e dos meus o alfange amolam.”
Aqui recurva a Cypria os níveos braços,
Com molle amplexo afaga o deus remisso; 385
A nota chamma aquece-lhe os tutanos,
Penetra o ardor nos quebrantados ossos:
Como quando estrondoso ignito sulco
Percorre coruscante as rôtas nuvens.
A bella o aventa, e conscia o ardil applaude. 390
De eterno amor captivo, então Vulcano:
“Que remotas razões! de mim, ó déa,
Já duvîdas? Se igual empenho houveras,
Armaramos os Phrygios; não vedavam
O pae summo e o destino que dez annos 395
Priamo inda reinasse. E pois desejas
Combater, esmerar-me eu te prometto
No que de ferro e de fundido electro
Possa obrar sôpro ou forja. Os rogos cessem,
Confia em teus encantos.” E abraçando 400
A gozosa consorte, em seu regaço
N’um suave repouso adormeceu-se.
Do primo somno, ao descahir das horas,
Se despertava; e a dona que só vive
Da roca e tenues obras de Minerva, 405
Suscita as cinzas e sopítas brazas,
Addindo a noite ás lidas, e em tarefa
Longa ante o lume as famulas exerce,
Por manter ao marido o casto leito
E criar tenros filhos: não mais tibio, 410
Da fofa cama salta o ignipotente,
E vai de golpe á férvida officina.
Junto á Sicania e Liparis eolia
Se ergue saxea fumante ilha escarpada;
Lá toa etnéa gruta por cyclopias 415
Fornalhas carcomida, e em safras malhos
Se ouvem gemer, dos Cálybes as chispas
Rugir e as fragoas resfolgar em ala:
De Vulcano appellida-se Vulcania.
Dos céos o alto forgeiro aqui descende. 420
No antro espaçoso o ferro trabalhavam
Nus Pyracmon e Estéropes e Brontes.
Nas mãos polido em parte, inda imperfeito,
Corisco tinham, dos que do ether Jove
Crebros joga: tres raios de saraiva 425
Torta ajuntaram, tres de aquosa nuvem,
Tres de rútilo fogo e de austro alado;
Fulgor terrífico e estampido e medo
Mesclavam-lhe e iras de sequazes flammas.
Rodas leves e o carro outros concertam 430
Com que homens e cidades Marte excita;
A egide horrivel da agastada Pallas
De aureas escamas á porfia brunem,
Onde ao seio da deusa enrosca as serpes
E inda olhos vira a Gorgóna estroncada. 435
“Fóra tudo, lhes clama, etneus Cyclopes,
Deponde esses trabalhos e attendei-me.
Vam-se armas fabricar a heroe famoso:
Fôrça agora e primor, destreza e pressa.”
Nem acaba, e o serviço elles sortêam: 440
Flue ouro e cobre a jorros, e em fornalha
Ampla o aço vulnífico liquesce.
Broquel tremendo formam, só bastante
Contra todos os tiros dos Latinos;
Laminas sete em orbes o roboram: 445
Ventosos folles o ar sorvido expellem;
No tanque ao temperar-se o metal chia;
O antro a bramir, os golpes nas bigornas
Braços nervudos em cadencia alternam,
Com tenaz pegam, rubra a massa volvem. 450
Na Eolia emquanto o Lemnio os aferventa,
A alma luz da cabana a Evandro acorda,
No tecto matinaes cantando as aves.
Enfia a tunica, as sandalias tuscas
Ata ás plantas o velho; e, a tiracollo 455
Tegéa espada, lança do hombro esquerdo
E sobraça uma pelle de pantera.
Marcham dous cães fiéis, que a porta guardam,
Pós seu dono. Em descargo da promessa,
O ancião buscava o camarim de Enéas; 460
Que tambem madrugara e já sahia:
A um Pallante acompanha, ao outro Achates.
Juntas as dextras, no salão do meio
Sentam-se, e francamente emfim se explicam.
El-rei começa: “O’ mór dos phrygios cabos, 465
Livre estás, por vencida eu não dou Troia.
Para um tal nome he fraco o auxílio nosso:
Cá tusco rio, lá me aperta armado
Circumsonando o Rutulo á muralha.
Mas bons guerreiros e opulentos reinos 470
Alliar-te vou: dos fados conduzido,
Conjunção tens aqui para salvar-te.
Não distante, em vetustos alisserces
De Agyla, outrora a brava gente lydia
Fundou cidade nos etruscos serros. 475
Florente prosperava, até que veio
Mezencio, máo tyranno, a subjugal-a.
Porque assassinios taes e atrocidades
Refirirei? Sôbre elle e os seus recaiam!
Vivos ligava a mortos, contrapondo 480
Mãos a mãos (que tormento!) e bôca a bôca,
E em triste abraço e putrida sangueira
Nesta agonia longa os acabava.
Lassos porêm da infanda crueldade,
Munidos cidadãos cercam-no em casa, 485
Queimam-na; os vis asseclas lhe degolam.
Da morte escapo, em Ardea achou guarida,
Do hóspede Turno as armas o defendem.
A Etruria toda, em furia e justo marte,
Pede insurgida o rei para o supplício. 490
Vou pôr-te á frente de milhares destes.
Querendo içar bandeira as pôpas fremem
Densas na praia: aruspice longevo
As retem prophetando: “O’ flor meonia,
Que, avito brio herdando, o aggravo accende 495
Em merito furor contra Mezencio,
Não pode Italo algum domar tal gente;
Chefe externo escolhei.” D’então, confuso
Do annúncio, o tusco exército acampou-se.
Tárchon mesmo enviou-me insignias régias; 500
Aos arraiaes tyrrhenos me convida
E o sceptro me offerece. Mas velhice
Tarda e frígida inveja-me este imperio,
E as debeis gastas fôrças me acobardam.
Suadira o filho, se daqui não fôra, 505
Gerado em mãe sabella. Tu, que a idade,
Que a patria favonêa, e os céos designam,
Vai, cabo egregio de Italos e Teucros.
Confio-te a só prole, meu confôrto,
Minha esperança. A militar comtigo 510
Aprenda e a têr em pouco o marcio pêso;
Novel, te observe e admire-te as façanhas.
Dar-te-ei duzentos guapos cavalleiros
De escolha, e iguaes te offertará Pallante.”
O Anchiseo, a vozes taes, e o fido Achates 515
No mesto coração mil duros transes,
Fixos em terra os vultos, presagiam,
Se não acena do alto Cytheréa.
Eis o ar vibrado relampêa e ronca:
Tudo estralar parece e de trombeta 520
Mugir clangor tyrrheno. A vista elevam:
[1]Trovão brama e rebrama; em nuvem clara,
Serena a região, pulsadas armas
Vêm rutilar toando. Os mais se espantam;
Mas o heroe, conhecendo o som divino: 525
“Hóspede, brada, o annúncio do portento
Não me inquiras: o Olympo me reclama.
Prometteu minha mãe, se a guerra instasse,
Transmittir-me o sinal e pelas auras
Armadura vulcania. Ah! que de estragos 530
Ameaça os Laurentinos! Caro, ó Turno,
M’o pagarás! Que escudos, corpos e elmos,
Pae Tiberino, involverás nas ondas!
Que ora peçam batalha e o pacto quebrem.”
Do solio aqui se ergueu; sopítas aras 535
Com teda herculea esperta; e alegre o de hontem
Lar busca e humildes hospedeiros divos;
Rezes do estilo bianejas mata:
O mesmo faz Evandro e os jovens teucros.
A’s naus depois caminha; e d’entre os socios 540
Elege os mais guerreiros e prestantes;
Outros vam rio abaixo, ao tom das aguas,
O que obteve seu pae contar a Ascanio.
Corséis arreiam para o campo etrusco;
A Enéas um loução: leonino o amanta 545
Fulvo teliz de auriluzentes unhas.
Veloz no exíguo burgo a nova grassa
De ir a cavallaria ás tuscas tendas.
As mães duplicam votos, medra o susto,
Mór o perigo e a lide se afigura. 550
Na despedida Evandro ao filho a dextra,
Lagrimando insaciado, aperta e falla:
“Oxalá que eu tornasse ao vigor d’antes!
Quando, a vanguarda ufano destruindo,
Em Preneste incendiei montões de escudos; 555
E, remettendo ao Orco o regio Herilo,
Tres almas, que ao nascer a mãe Feronia
Lhe infundira, oh prodigio! este meu braço
Lh’as desfez, derribando-o com tres mortes,
E o despojei da tríplice armadura: 560
Então, meu doce filho, do teu lado
Nunca me apartaria; nem Mezencio,
A’s minhas barbas tanto horror cevando,
A viuva cidade funestara.
Mas, vós deuses, tu Jupiter supremo, 565
Do afflicto arcadio rei compadecei-vos,
Prece escutai paterna: se Pallante
O vosso nume e os fados m’o conservam,
Se hei de vel-o e adunal-o, a vida imploro;
Tragarei quaesquer penas: mas, Fortuna, 570
Se ameaças caso horrendo, agora, agora
Estale a cruel têa, emquanto ambíguo
Temo e espero o futuro, emquanto, ó caro,
Meu só e último gôsto, aqui te abraço:
Nuncio ingrato os ouvidos não me fira.” 575
Tal neste adeus se exprime e chora o velho;
Desfallecido, os servos o recolhem.
Pelas portas as turmas já despedem,
A’ testa o heroe e Achates, e outros Phrygios
Dos mais grados: no centro luz Pallante, 580
De arnez pintado e chlâmyde vistoso;
Qual, do oceano orvalhada, a estrella d’alva,
A quem sôbre os mais astros Venus ama,
Altêa aos céos a fronte e solve as trevas.
Pávidas mães aos muros, de olhos seguem 585
Nuvem pulverea e o bando eri-fulgente.
Por encurtar jornada, espinhaes trilham;
Formam-se ao grito, a esboroal-o bate
Com som quadrupedante a ungula o campo.
Bosque ante o frio Cérite se estende, 590
Antigo e venerado; o qual circumdam
Negros abetos, curvos montes fecham.
Priscos Pelasgos, íncolas do Lacio,
Um dia e o luco he fama que a Silvano,
Deus das lavras e gados, consagraram. 595
Tárchon lá tinha os arraiaes seguros;
De uma collina o exército espalhado
Já se descortinava e ao largo as tendas.
Com seus guerreiros se adianta Enéas;
Lassos, dos corpos, dos cavallos curam. 600
A candida Cyprina os dons pelo ether
Nimboso traz, e ao filho em valle escuso
Retrahido enxergando á fresca margem,
Lhe dice rosto a rosto: “Eis os presentes
Que ingenhou meu consorte: não recêes 605
Laurentes suberbões nem fero Turno
Provocar.” Nisto, enreda-se nos braços
Do seu querido, e á sombra de um carvalho
Depoz fronteiro as fulgurantes armas.
Gostoso de honra tanta, em si não cabe; 610
Mira tudo e remira; embraça e apalpa,
Menêa e prova, de terrivel crista
O elmo flammívomo, a letal espada;
Bronzi-rija e sanguínea a gran’coiraça,
Qual se aos raios de Sol cerulea nuvem 615
Longe esplende e rubeja; as finas grevas
De electro e ouro acendrado, e a cota e a lança,
E a do broquel textura inexplicavel.
Nelle, o porvir sabendo e as profecias,
O artifice gravou de Italia as cousas 620
E os triumphos romanos, desde Iulo
A estirpe toda, e a serie das batalhas.
De Marte em verde gruta alli parida
Loba jaz, e a brincar das tetas pendem
Gemeos que a chupam sem pavor, e afagos, 625
Nedia a cerviz dobrando, a mãe reveza,
E os corpinhos lambendo os afeiçoa.
Gravou Roma, e as Sabinas do theatro
Raptas sem modo nos circenses ludos;
Entre os Romuleos e os severos Cures 630
Do velho Tacio a desparada guerra.
Depois, da ara de Jove os rêis armados,
Posto o certame, tendo em mãos as taças,
Em penhor da alliança a porca ferem.
Perto, oppostas quadrigas fustigadas, 635
Mecio esquartejam; visceras e membros
(Tu Albano perjuro, a fé guardasses)
Roja Tullo, e os sarçaes gottêam sangue.
Lá, para impôr Tarquinio expulso a Roma,
Porsena a cérca e opprime: a libertal-a 640
Contra o ferro os Enéadas remettem.
Como indignar-se o viras, torvo e irado,
Porque ouse Cocles só cortar a ponte,
E as prisões rompa Clelia e trane o rio.
No cimo, a rocha a vigiar Tarpeia, 645
Manlio o templo defende e o Capitolio;
Colmo romuleo o paço novo encrespa.
Argenteo ganso ao portico dourado
A esvoaçar dos Gallos dá rebate,
Que entre o mato, a favor da opaca noite, 650
Vinham-se approximando á fortaleza.
Aureo o crino, aurea a veste, e o saio em listras,
Luzem de aurea cadêa aos lacteos collos;
Cada qual dous rojões alpinos brande,
Com oblongos escudos se resguardam. 655
Abriu Salios dansando e nus Lupercos,
Topes lanosos, e do céo cahidas
Ancilias: castas mães em molles andas
Guiam pela cidade as sacras pompas.
Longe, o Tartaro abriu, plutonias fauces, 660
E os castigos da culpa; e a ti suspenso,
O’ Catilina, de um minaz rochedo,
Ante as Furias tremendo; e á parte os justos,
A quem rígidas leis Catão dictava.
Tambem de ouro, a espumar com branca vaga, 665
Representa o ceruleo inchado plaino;
Delphins de argenteo brilho, ás voltas, o esto
Rasgam, de cauda o pélago açoutando.
No meio, eneas armadas, accias guerras,
Todo a ferver Leucate em marte instructo, 670
Com o ouro viras fulgurar as ondas.
Cá, n’alta pôpa, Augusto arrasta aos prelios
Senado e povo, os deuses e os penates;
De ambas as fontes ledo exhala flammas;
Na cabeça lhe fulge a estrella patria. 675
Agrippa lá, propicios vento e numes,
Arduo commanda; e a frota victoriosa
Rostrada se orna da naval coroa.
Antonio alêm, ovante com o auxílio
Barbaro e vário, as fôrças traz do extremo 680
Bactro e eôos confins e roxas praias;
Com todo o Egypto, oh pejo! segue a espôsa.
A’ uma ruem, se empégam; freme e alveja
O mar dos remos e esporões tridentes.
Crês despregadas Cycladas nadarem, 685
Montes baterem montes: com tal mole
Instam varões das torreadas pôpas!
Fachos estupeos voam, farpas zunem,
Rubra do fresco estrago a azul campina.
Sem vêr pós si dous áspides, com patrio 690
Sistro anima Cleópatra os soldados.
Contra Pallas, Neptuno e Venus, se arma
Com omnígenos deuses monstruosos
O ladrador Anubis: no conflicto
Marte, em ferro entalhado, se embravece; 695
Do ether as negras Diras, e ufanosa
Marcha a Discordia, espedaçado o manto;
Com sanguento flagello atrás Bellona.
O accio Apollo attentando o arco atesa
De cima: de terror o Arabe, o Egypcio, 700
O Indo, o Sabeu, voltaram todos costas.
Mesmo a raínha parecia os ventos
Invocar, soltar cabos, dar as vélas.
Já da futura morte em pallor tinta,
Da clade o rei do fogo fez que a tirem 705
O Iapyx e a corrente: mas defronte
Mesto abre o seio, e a veste arregaçando,
Ao verde gremio e latebrosas fontes
Chama os vencidos o gigante Nilo.
Com tríplice triumpho entrado em Roma, 710
De Italia aos deuses cumpre os votos Cesar,
Trezentos sagra amplissimos delubros.
Festa, applauso, alegria as ruas soam:
Em cada templo um côro ha de matronas,
Aras em todos ha, perante as aras 715
Touros immolam, de que a terra juncam.
Sentado ao niveo limiar de Phebo,
Reconhece elle as dadivas dos povos,
E dos portaes suberbos as pendura.
As vencidas nações longo desfilam, 720
Tam diversas em lingua, em trajo, em armas.
Nomades e Afros descingidos, Cares,
Lelagas, sagittíferos Celonos
Mulciber esculpira; e já mais brando
O Euphrates, e os Morinos derradeiros, 725
E os indomitos Dahas, e o bicorne
Rheno, e da ponte o Araxes indignado.
O heroe admira o dom, primor vulcanio;
Da imagem do porvir gozando ignaro,
Dos seus glória e destino ao hombro leva. 730
NOTAS AO LIVRO VIII
1-6. - 1-5. - A tropa romana, quando cada soldado jurava não largar as armas antes do fim da guerra, chamava-se militia legítima ou sacramentum. Quando, em grande perigo e tumulto, o general subia ao Capitolio, e levantando dous estandartes convocava os que o quizessem acompanhar, essa tropa, que jurava em massa e por acclamação, chamava-se conjuratio: o estandarte vermelho era para a infantaria; o azul, para a cavallaria. Quando se mandavam fazer levas á fôrça, a tropa se dizia evocatio: alguns affirmam que a evocatio era quando o povo em armas se ajuntava tumultuariamente; mas a primeira opinião, que he a de Servio, parece a mais seguida. Virgilio aqui, segundo a sua maneira, allude ao costume romano e o deriva de uma alta antiguidade. O estandarte que em latim se nomeava vexillum, quadrado e suspenso de uma haste, em portuguez commummente se diz pendão.
31-65. - 29-53. - Enéas fatigado se deita á borda do Tibre, e em sonhos lhe apparece o deus; aconselha-o que vá a Pallantéa pedir soccorro a Evandro, que andava em guerra com os Latinos: desta bella creação aproveita-se o poeta para fallar ainda dos primordios de Roma. Camões imitou-o no canto IV dos Lusiadas; e a imitação he superior ao original: não só o estilo do Portuguez he alli de uma perfeição que nem a Virgilio cede, mas a causa da apresentação do Indo e do Ganges a D. Manuel he muito e muito maior: o Tiberino avisa a Enéas que ajunte o seu campo com o de Evandro e peça-lhe auxílio; o Ganges, o mais grave na pessoa, brada ao monarca portuguez que mande receber os tributos que os povos das suas ribeiras e das do Indo haviam de lhe pagar, postoque depois de uma guerra sanguinolenta: a causa, repitirei, da apparição dos dous rios da Asia he mais importante; e, assim como não poucas vezes Virgilio imitando excede a Homero, desta feita o seu imitador o sobreleva evidentemente. A visão que o rei teve das varias nações que lhe deviam obedecer; o andar majestoso dos dous velhos, baços e denegridos, como os que habitam as margens regadas por suas aguas; a cansada presença do Ganges, que vinha de mais longe; os ramos e hervas desconhecidas que ambos nas mãos traziam, tudo he da mais sublime poesia; tudo encerra finos e tantos pensamentos, que excedem as palavras. Em nenhuma outra parte das suas obras Camões foi mais digno de ser comparado ao poeta latino pela precisão e belleza das imagens. - Quanto ao celsis caput urbibus exit, escreve Mr. Bonstetten: “Plinio assevera que no seu tempo o Tibre era ornado de mais palacios do que havia no resto do mundo. Perto de Ancio, no fundo, ao longo da praia, avistam-se palacios tam bem conservados nos alisserces, que parece terem-se desenhado nas aguas plantas de architectura, e em terra se deixam vêr outras immensas ruínas.”
68-77. - 65-75. - O costume dos antigos de se voltarem ao oriente, quando oravam, foi adoptado pelos christãos. A agua benta vem da agua lustral dos pagãos. Dá-se aos rios o epitheto cornígero, porque eram honrados sob a figura de um touro, ou por causa dos mugidos das suas ondas, ou por terem muitos braços: eram tambem representados sob a figura humana, mas de cornos na testa.
97-114. - 94-111. - Ao se approximarem as embarcações ao pobre e pequeno burgo de Pallantéa, assento futuro de Roma, Pallante se ergue da mesa, onde se achava com seu pae Evandro e com os principaes da terra, em um festim solemne em honra de Hercules; péga da lança, e de um outeiro exclama aos Troianos: “Juvenes, quae causa subegit Ignotas tentare vias? quo tenditis?..., etc.” Delille com razão admira as poucas palavras empregadas para informar-se de tanta cousa. Esta concisão lembra-me a estancia L do canto VI dos Lusiadas, onde o autor em dous versos diz que aos doze de Inglaterra as damas escreveram, cada uma ao seu; todas a D. João I, e o duque de Alencastro, a cada um dos cavalleiros e ao rei.
127.-133. - 123-128. - Mr. Tissot, a quem segue Mr. Villenave, pondera: “Aqui não ha esfôrço de virtude, nem occasião de blasonar da coragem de vir expôr a cabeça a um perigo imaginario. Apenas poderia assim fallar Enéas a um tyranno cruel e feroz como era Mezencio.” Ora, postoque Evandro fôsse bom de coração, o têr sido um dos chefes dos Gregos, ser parente dos Atridas, inimigo dos Troianos outrora, eram circumstancias que deviam ser attendiveis a um principe que, por qualquer imprudencia, podia comprometter a grande causa: todavia as outras considerações, que elle expende a baixo, venceram esse tal qual receio. E he por um artificio oratorio que Enéas faz valer a franqueza com que se expõe a pedir auxílio a um antagonista de Troia; pois deste modo se insinuava no espirito de Evandro, mostrando-lhe a seguridade que lhe inspiravam as pessoaes virtudes do grego monarca. De mais, Mr. Tissot interpretou mal o mea virtus do verso 131: aqui não significa esfôrço de virtude e coragem da parte de Enéas; significa sim, como reflecte o padre La Rue, a consciencia de nada ter feito para incorrer no odio de Evandro, a confiança na propria lealdade. Neste sentido verti este lugar; e o mesmo fizeram o Snr. João Gualberto e Barreto Fêo.
162-163. - 157. - “Mr. Tissot, diz Mr. Villenave, com razão se maravilha de que Evandro nada ache louvavel em seu amigo velho senão a estatura: Cunctis altior ibat.” Os dous criticos se mostraram bem pouco sabedores da[2] opinião dos antigos neste ponto: elles criam que a altura era propria dos heroes, e que só por excepção podia ser valente um homem de pequeno talhe. Chateaubriand, que gyrava em outra esphera de erudição, no livro II dos Martyres, na bôca de Demodoco põe o que dou aqui traduzido por Francisco Manuel: “Bem que aos paes nunca em talhe igualem filhos, E ao pae ceda em vigor e em talhe Eudoro, Pelo talhe de heroe o eu conhecera.” Evandro pois da superioridade da estatura de Anchises infiria que elle se avantajava em fôrças e denodo. O mais forte e corajoso dos Gregos, segundo Homero, era tambem o mais alto e esbelto.
190-267. - 185-261. - O poeta não tirou o episodio de Caco da sua imaginação; o facto era contado pelos historiadores: Dionysio de Halicarnasso e Tito Livio o referem. He sabido que este pedaço he uma obra prima, pela harmonia, pelas imagens, pela belleza das expressões e pelo todo da narração. Delille traz excellentes reflexões ácêrca deste episodio, e a Delille me reporto. Observe-se a arte com que se introduz esta fábula: como Enéas encontra a Evandro no acto de celebrar um sacrificio a Hercules, sacrificio a que se associou por convite do mesmo Evandro, era bem factivel que este lhe explicasse a causa; e assim o episodio nasce da acção com naturalidade. Tem-se opinado que a pompa do estilo e a rapidez parecem não conformar com a velhice do rei, cuja imaginação devera ser mais lenta; porêm a excitação em que elle se achava, a religiosidade propria do seu caracter e mesmo dos seus annos, justificam plenamente o tom solemne da narração de uma façanha de que fôra testemunha: os velhos tomam fogo ao se transportarem ás cousas do seu tempo. - A opinião dos antigos, fundada em inscripções, bem como a da maior parte dos modernos, he que a caverna de Caco era vulcanica, junto ao monte Aventino; mas Mr. Bonstetten differe: “Não ha ahi caverna de Caco; a de Virgilio existiu certamente nos arredores de Roma. Uma conheço eu não longe do Aventino, da outra banda do Tibre, no Monte-Verde, pouco mais ou menos como elle descreveu a de Caco. O governo a fechou para que não servisse de couto aos Cacos modernos, isto he aos ladrões. He voz que a fábula de Caco tinha por fundamento historico a lembrança de um volcão; não ha probabilidade alguma de que o houvesse no Aventino, cujo local a isso repugna absolutamente.”
271-272. - 265-266. - Heyne e outros pensam que ha aqui interpolação. Refere porêm Servio que o altar de Hercules, chamado Ara Maxima, existia em seu tempo no forum Boarium, e era de prodigiosa grandeza. Ora sendo assim, conforme tambem se colhe de Propercio e de Ovidio, não vejo o porque Heyne acha o lugar indigno do poeta; o qual tinha em vista, como por vezes havemos notado, celebrar as antiguidades romanas, mórmente as do sítio em que he fundada a cidade eterna. Repare-se que, ao diante, elle não se descuida do seu proposito, fallando da porta Camental, do Lupercal no Palatino, do bosque Argileto, do Capitolio, do Tarpeio, e fazendo o contraste de começos tam humildes com a magnificencia da côrte de Augusto.
363-453. - 364-448. - Este episodio entre Vulcano e Venus, tudo que se passa na officina dos Cyclopes, he da mais alta poesia. Ao depois, no fim do livro, se faz a descripção das armas pelo deus encommendadas, e do broquel em que elle proprio trabalhou. Sendo uma imitação de Homero, concordam todos que he muito superior ao lugar da Iliada; pois o que vem gravado no broquel de Achilles, podia pertencer a qualquer outro guerreiro; e o que vem no de Enéas, lhe he proprio e particular, por ser um vaticinio do que tinha de acontecer aos seus descendentes.
558-593. - 549-584. - A falla de Evandro he uma das mais ternas do poema, e realça o caracter do rei. - He admiravel o perfeito quadro que representam os dous versos 592-593, vertidos nos meus 587-588. - Veja-se Delille, tanto ácêrca da falla, como dos versos.
594-596. - 585-587. - He bem conhecida esta passagem por causa do último verso, cuja onomatopeia imita o galope dos cavallos. Tratei de exprimil-a, e para isso preferi o termo antigo ungula ao moderno unha ou casco, que não tinham um som conveniente.
670. - 662. - Na descripção do escudo vem a figura de Catão de Utica a dictar o direito. Este só rasgo mostra o rigorismo dos que chamam o poeta adulador de Augusto. O pobre filho do camponez que, sendo despojado da sua herdade, a recuperou por graça do senhor do mundo, necessariamente lh’o havia de agradecer, e o meio era louval-o em seus versos; nem elle se tinha jamais apresentado como homem político, para ser esse louvor uma contradicção com a sua vida passada. Reflicta-se que Virgílio só gaba o bom que Augusto praticava para apagar o pessimo que fez quando Octavio; e, escrevendo a respeito das guerras civis, fulmina a todas, sem destinguir entre o seu protector e os contrarios. Louvou porêm ao mesmo tempo os inimigos de Augusto em quem achava merecimento e virtude, como nesta passagem a Catão, como a Gallo na egloga X. Não se podia exigir nem esperar mais do pacífico burguez de Mantua. - Horacio, que tem sido accusado da mesma tacha, encontrou defensor habilissimo em Mr. Patin; o qual, com o lyrico latino em mão, demonstra que este sujeitou-se ao vencedor quatro annos depois, quando os maiores republicanos tinham cedido á necessidade, como aconteceu a Pollion, ao filho de Cicero, a Messala, tam brilhante na batalha de Philippos; e que o illustre filho do liberto, apezar dos afagos do seu poderoso amigo, nunca renegou o seu caro Bruto, e ousava jactar-se de têr merecido a confiança daquelle grande cidadão. Quantos autores ha, mesmo entre os vivos, que, depois de haverem troado contra as lisonjas de Horacio e Virgilio, vam accender podre incenso a rêis e magnatas, que sem possuirem as nobres qualidades de Augusto, só tem seus vicios e hypocrisia! - De mais, havia entre os dous grandes poetas e o imperador um ponto de contacto que os tornava amigos: apaixonados eram os tres da poesia e das bellas artes. Os poetas folgavam de louvar um principe esclarecido que as protegia, que tinha o mesmo gôsto que elles: nada ha mais natural. E note-se que Augusto com tanta igualdade os tratava, que os visitava em suas casas, e até compoz versos em honra de Virgilio. Luiz XIV, que fazia sentir que era monarca a Racine e aos outros seus protegidos, foi todavia lisongeado por todos; e não he tanto moda chamar a Racine adulador, como ao epico e ao lyrico romanos. Supponde que Augusto os houvesse olhado com desdem: em vez de estalar como o tragico francez, provavelmente Virgilio teria deixado a côrte sem nimio desprazer, indo para a sua Mantua ou para a sua aldêa de Andes; e o philosopho Horacio, em alguma satyra ou carta familiar, com finissimas allusões, teria rido da pequenez e do orgulho dos homens.
731. - 728. - O verso do remate, que Addison cria um dos mais bellos da Eneida, foi condemnado por Servio. Em materias de erudição he recommendavel o commentador, não em materias de gôsto. “Nesta descripção, diz Delille, o leitor havia perdido de vista a Enéas para só pensar em Augusto; mas Virgilio chama a attenção sôbre elle do modo mais destro e ingenhoso. N’um verso teve a arte de louvar os Romanos, lisongear a Augusto e celebrar o heroe. O presente, o passado, e o futuro, tudo alli se contêm, e o assumpto da Eneida se acha inteiro nesta imagem pictoresca.”
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[1] No original, há aspas injustificadas nesse lugar.
[2] No original, está do.