LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Eneida Brasileira, de Odorico Mendes
Edição de base:
LIVRO XI
Já do oceano a aurora despontava.
Bemque urja o tempo de inhumar seus mortos
E o turbe o funeral, no primo eôo
Piedoso o vencedor cumpria os votos.
N’um combro tancha desramada enzinha, 5
Veste-lhe de Mezencio o arnez lustroso,
Trophéo que a ti, Bellipotente, sagra:
Os dardos rotos, as sanguentas crinas
Lhe ata; á esquerda o pavez e a tiracollo
Suspende a eburnea espada. E assim de ovantes 10
Capitães escoltado, exhorta os socios:
“Fóra o temor, varões, que pouco resta
Por fazer; eis o espólio, eis as primicias
De um rei suberbo, que estas mãos puniram.
Eia, a Laurento agora: arma, arma, alerta; 15
Animo e fé! dos numes quando o aceno
Mova o campo, as bandeiras arrancadas,
Nem outro accôrdo vos detenha incautos,
Nem retarde os mancebos frouxo mêdo.
Entretanto os finados sepultemos, 20
Conta exigida no ínfimo Acheronte.
De feraes dons ornai-me os que esta patria,
Comprada com seu sangue, nos legaram;
Vá primeiro de Evandro aos tristes muros
Pallante, a quem não pobre de virtude 25
Mergulhou trago acerbo em noite escura.”
Dice, e á tenda chorando se retira,
Onde o alumno defunto Acetes guarda,
Velho escudeiro do Parrhasio Evandro,
Zeloso aio do filho, mas não dado 30
Com tam feliz auspicio. A turba em cêrco
E os famulos em dó, conforme o estilo
Desgrenhadas o seguem phrygias donas.
Pelos altos portões mal entra Enéas,
Levantam crebros ais, nos peitos ferem, 35
E remuge o real do lucto e pranto.
Como elle o níveo corpo, a face e a testa
Sustida olhou, da ausonia choupa o rombo
No seio liso, em lagrimas rebenta:
“Pois surriu-me a fortuna, e a mim te inveja, 40
Moço infeliz, que o reino meu não visses,
Nem tornasses em pompa ao lar paterno?
Não foi esta a promessa a Evandro feita;
Que abraçado, á partida, ao grande imperio
Me propunha, e entre sustos me advertia 45
De que era aspera a guerra e forte a gente.
E ora talvez, de balde esperançoso,
N’ ara devoto offrendas accumula,
Quando ao joven, já quite dos Supremos,
Exequias vãs prestamos. Desgraçado! 50
O funeral cruel verás do filho!
Que triste vólta! oh sonho de triumphos!
Eis a fé minha! Mas com vis feridas
Não te envergonhará, nem, salva a prole,
Tu pae desejarás o eterno somno. 55
Ai! quanto, Ausonia, quanto, Iulo, perdes!”
Neste lamento, escolhe mil guerreiros,
Que o misero cadaver acompanhem,
Obsequio extremo, e ás lagrimas assistam
Do afflicto pae; devida, mas pequena 60
Consolação do nojo e trago ingente.
Brando esquife engradado alguns de vêrgas
De medronho e carvalho não remissos
Tecem, de folha o extructo leito ensombram.
Fica na agreste cama o excelso moço, 65
Qual por virginio pollice apanhada
Molle violeta, ou languido jacintho;
A quem brilho nem cheiro inda fallece,
Mas não vigora e nutre a mãe terrena.
Duas purpúreas opas recamadas 70
Enéas tira, em que a Sidonia Dido
Com doce esmêro trabalhara mesma,
As telas de ouro fino entretecendo:
Mesto, em honra final, véste uma ao joven,
Com outra a coma para as chammas véla. 75
Manda lanças, frisões e tanto espólio
Da laurentina pugna, em longa serie
Dispôr; e atrás das costas maniatados
Os que ás sombras destina e regar devem
A pyra com seu sangue; e os chefes tragam 80
De hostis arnezes troncos revestidos,
Onde inimigos nomes se insculpiram.
Conduzem de annos gasto o pobre Acetes,
Que a punhadas o peito, o rosto a unhas
Desfigurando, pelo pó se estira. 85
Vem do rutulo sangue o tinto coche;
E atrás, posto o jaez, humidas gottas
Ethon, fero corsel, dos olhos verte.
Vem o elmo e a lança; o mais roubou-lhe Turno.
Lento a phalange marcha etrusca e teucra, 90
De armas em funeral o arcadio bando.
Dêsque em ordem se alonga o sahimento,
Retem-se Enéas, e suspira e geme:
“A outros prantos nos chama a fatal morte.
Salve, eximio Pallante, e para sempre 95
Adeus, amigo, adeus!” Nem mais profere,
E aos arraiaes tornando o passo alarga.
Já de oliva enramados oradores
Latinos pedem venia, a fim que esparsos
Corpos sepultem, victimas da guerra; 100
Que a não tenha com mortos e vencidos;
Poupe os hóspedes seus, outrora sogros.[1]
Bom Enéas attende ás justas preces:
“Que ruim fado, accrescenta, nesta lide
Vos implicou, Latinos, que de amigos 105
Nos renegais? E a paz quereis sómente
Para os da luz privados nas batalhas?
Eu quereria concedel-a aos vivos.
A não ser o destino, eu cá não vinha;
Nem a gente combato. Ao jus de hospicio 110
Preferiu vosso rei de Turno as armas.
Turno he melhor que á morte se exposera:
Se expulsar-nos pretende, o pleito acabe
N’um duello comigo; e um de nós reste
A quem seu nume ajude ou seu denodo. 115
Sus, á fogueira os cidadãos mesquinhos.”
Dice: absortos se olhando mudos ficam;
E o velho Drances, que odiento e infesto
Sempre a Turno crimina: “O’ tu, responde,
Varão maior que a fama, como te alças? 120
Não sei que mais te louve ou mais admire,
Se o valor, se a justiça? Iremos gratos
Na patria o publicar, e, dado o ensejo,
Ao rei te unir: allianças busque-as Turno.
Altear apraz-nos a fatal cidade, 125
Troianas pedras carregar aos hombros.”
Finda, e um consenso unanime sussurra.
Doze dias, em tregoas, juntos vagam
Por monte e selva os Teucros e os Latinos:
Da bipenne o alto freixo ao córte soa; 130
Tomba o aereo pinheiro; as cunhas racham
De contino orno, roble, odoro cedro;
Ao carrear chiando as rodas andam.
E a Fama já, que apregoava ha pouco
De Pallante as acções, do immenso lucto 135
Enche Evandro e de Evandro a casa e os muros.
O Arcadio ás portas rue, e ao modo avíto
Péga brandões, que ao longo a via aclaram;
A procissão funérea os agros fende,
Co’a turba phrygia encontra-se em lamentos. 140
As mães, vendo-os entrar, com pranto lugubre
Toda a cidade accendem. Nada a Evandro
Poude contêr; atira-se no meio;
Sôbre o deposto féretro curvado,
Se abraça com Pallante, e geme e chora, 145
Até que a dôr á falla abriu caminho:
“Filho, a palavra assim me desempenhas
De entregares-te cauto ao cru Mavorte!
No primeiro certame eu bem sabia
Quanto o louvor he doce e a nova glória. 150
Tristes primicias, rudimentos duros
Da finítima guerra! ai! preces minhas,
Votos por nenhum deus jamais ouvidos!
Oh! no morrer feliz, mui casta espôsa,
Não provas este mal! Sobrei-te em annos 155
Para carpir extincto o nosso filho!
De hostis lanças coberto, eu dera est’ alma
Sob os socios pendões! Fôsse esta pompa
Só para mim, não para ti, Pallante!
Vossa alliança e hospício eu não argúo; 160
Sorte era, ó Teucros, da velhice minha:
Mas, se immaturo cahe, mil Volscos mata,
Ao Lacio vos guiando, honrado acaba.
Mais digno entêrro não terás, meu filho,
Do que Enéas celebra, e seus magnatas, 165
E etruscos chefes, e esquadrões etruscos:
Dos que enviaste ao Orco os trophéos trazem.
Tambem gran’ tronco em armas cá serias,
Se idade igual á tua o roborasse,
Turno. Mas que! pranteio e a pugna tardo? 170
Phrygios, o que lhe digo ao rei contai-o:
Se a luz nesta orphandade eu soffro, Enéas,
A tua dextra he causa, ao filho e ao padre
Olha que deves Turno: este o serviço
Que do teu brio espero e da fortuna. 175
Gostos na vida enjeito, nem me assentam;
Sim, no inferno os receba o meu Pallante.”
Almo lume a verter, o albor canceiras
Renovava aos mortaes. Na curva praia
Em pyras cada qual, Enéas, Tárchon, 180
Dos seus, usança velha, os corpos queima;
Na caligem dos fogos sotopostos
Se ennoita o céo. Tres vezes decorrendo
A infantaria, em fulgurantes armas,
A rogal chamma fúnebre circula; 185
Tres a cavallaria; e ululam todos:
O chôro arnezes banha, a terra ensopa;
Grita, clangor, mugindo os ares fere.
Uns lançam na fogueira o ganho espólio,
Guarnecidas espadas, elmos, freios, 190
Rodas ferventes; uns, de offerta aos donos,
Os broquéis nótos e infelizes dardos.
Hecatombes á morte, para a queima
Cerdos e nos contornos apanhada
Immolam grei: na praia arder observam, 195
Em suas pyras semiardidas velam
Sem despegar-se, até que humida a noite
Inverte o céo de estrellas marchetado.
Nem menos tristes os Latinos erguem
Fogueiras mil; dos seus enterram parte, 200
Levam parte á cidade e ás vizinhanças:
Em confuso montão, sem conto e nome,
He consumido o vulgo. Ao longe e ao largo
A’ competencia os fogos alumiam.
Manhã terceira assoma; e, de altas cinzas 205
Doídos removendo os mistos ossos,
Terra sôbre elles tépida amontoam.
Mas na opulenta laurentina côrte
O alarido he maior, mais geme o lucto.
Mães, irmãs, noras, orphãos miseraveis, 210
Ferrenha guerra afflictos execrando
E os hymeneus de Turno, exigem que elle
No Lacio a primazia á espada obtenha.
Drances aggrava o caso, e attesta e jura
Que Turno a desafio he só chamado. 215
Muito a favor de Turno opinam varios:
Da raínha o respeito e a sombra o amparam;
Seu renome e trophéos o heroe sustentam.
Neste flagrante, em meio do alvorôto,
Do gran’ Diomedes pezarosos voltam 220
Com resposta os legados: nada as preces,
Nada os custos valeram da embaixada,
Nem dons em ouro; ou busque outra alliança,
Ou paz rogue Latino ao rei troiano.
Esmorece o bom velho em tanta angústia: 225
Que o céo protege a Enéas lhe confirmam
Irados numes, frescos os sepulcros.
Chama a conselho os principaes senhores;
Que logo, ao seu mandado, enchendo as ruas
Ao paço affluem. Do seu throno o digno 230
Ancião monarca, não com leda fronte,
Aos legados acena, e inquire e indaga
Com toda a pausa a etólica resposta.
Reina o silencio, e Vénulo obedece:
“Nós vimos, cidadãos, o argivo assento, 235
E, da jornada os riscos superando,
A mão tocámos que assolou Dardania.
Elle no apulio Gárgano Argyripa,
Cognome patrio, vencedor fundava.
Quando a vez tive, os dons lhe offerecendo, 240
Quem eramos declaro, e a guerra e causa
De em Arpo nos acharmos. Com socêgo
Nos torna o Grego: “[2]O’ reinos de Saturno,
Priscos Ausonios, venturosos povos!
Que fado a concitar vos solicíta 245
Ignotas guerras? Quantos profanámos
Com ferro Troia (os transes nella exhaustos
Omitto, e os que em si volve aquelle Símois)
Pelo orbe temos pago infandas penas,
Taes que Priamo proprio as lastimara: 250
Minerva o testemunhe, o Arcturo infausto,
O ultrice Caphareu, de Eubéa as penhas.
Dalli, de praia em praia desterrados,
Menelao de Proteu foi têr ás metas,
Aos Cyclopes trinacrios o Laercio. 255
De Pyrrho e Idomeneu subversos lares,
Ou lembrarei na Libya assentes Locros?
De vingar n’Asia um rapto ufano o Atrída
Rei dos rêis, por traição da atroz consorte,
Cahe do adultero ao ferro em seu palacio. 260
E o céo não me invejou revêr a patria
E a bella Calydona e a cara espôsa?
Hoje inda monstros horridos me assombram:
Perdidos socios (ai cruéis supplícios!)
Nos ares voam-me, aves da ribeira. 265
Com flébeis guinchos nos cachopos vagam.
Isto eu prevêr devia, malque insano
Corpos violei divinos, golpeando
A dextra a Venus mesma. A taes pelejas
Não me instigueis, oh! não. Dêsque assolada 270
Pérgamo foi, com Teucros nem combato,
Nem me recordo ou fólgo desses males,
Os dons que me offertais rendam-se a Enéas.
Com elle dardo a dardo e braço a braço,
Provei, crêde, quam lesto o escudo move, 275
Com que vortice esgrime ou gladio ou lança.
No Ida se dous varões como elle houvesse,
Dardania acommettera inachias plagas,
Trocara a Grecia os louros em cyprestes.
Em Troia pertinaz susteve os Graios, 280
Durante o assédio, a mão de Heitor e Enéas,
Que a victória dez annos retardaram:
Ambos no ânimo iguaes, iguaes no esfôrço,
Mais pio esse he. Tratai de congraçal-o,
E fugi de travar armas com armas.” 285
Eis a real sentença, ó rei sublime,
Sôbre tamanha guerra.” Dice; e corre
No conselho um murmúrio, como quando,
Seixos detendo o arrebatado rio,
No alveo ronca impedido, e em tôrno fremem 290
Da ribanceira as crepitantes ondas.
Quedo o alvorôço e placido o sussurro,
Ora aos deuses o rei, do throno falla:
“Eu, cidadãos, queria, e melhor fôra
Antes deliberar; não quando os muros 295
Preme o inimigo. Inopportuna guerra
Temos com taes varões, com diva estirpe,
A quem prelios nem cansam, nem vencidos
Sabem depôr o ferro. Se estribaveis
No etolo auxílio, o desengano chega; 300
Fie em si cada qual: fraca esperança!
Como em ruína as cousas nos declinam,
Vossos olhos o vêm, as mãos o apalpam.
Ninguem accuso: obrou-se o mais possivel;
Em pêso o reino se bateu brioso. 305
O que hei na dubia mente, agora em pouco
Vol-o explano; attenção. Proximo ao Tibre,
Sôbre as sicanas raias, para o occaso,
Agro antigo possuo; o qual semêam
Os Rutulos e Auruncos, e as collinas 310
Arando, em pasto o mais esteril deixam.
Esta região e o celso píneo monte
Ceda-se ao Teucro; e, justas leis dictadas,
Em amizade e em paz nos federemos.
Se o quer, fique e entre nós se estabeleça; 315
Mas, se outra gente, outro paiz prefere,
E ir-se daqui, naus vinte ou mais teçamos
De italo sôbro, as que precisas fôrem:
Madeira jaz á borda; elles prescrevam
Pontal, número, fórma; nós prestemos 320
Dinheiro, arsenaes, braços. E oradores
Cem d’entre os nobres deputar me agrada;
Que, nas mãos a oliveira, em brinde offertem
Marfim, talentos de ouro, e a trábea e a sella
Curul, do reino insignias. Em consulta, 325
Provêde ao bem do combalido estado.”
Drances, a quem de Turno a glória punge
De vesga e amara inveja, em bens profuso,
Mais largo em lingua, timorato e imbelle,
Não máo no alvitre, em sedições potente, 330
De incerto pae, da illustre mãe suberbo;
Se ergue, e em Turno carrega e incita as iras:
“Cousa, ó bom rei, suades nada obscura,
E escusas consultar. O que insta e cumpre
Cada um murmúra, e expôl-o não se atreve. 335
Fallar conceda, e a tumidez remitta
Quem, por funesto auspício, ambicioso
(Digo, e armado elle a morte me commine)
Extinguiu tantos cabos, e a cidade
E o povo enlucta; emquanto, em pés fiado, 340
Tenta o phrygio arraial e aterra o mundo.
Aos dons que ao Teucro, optimo rei, prodígas,
Um accrescentes, um; ninguem violento
Véde ao pae dar a filha a genro egregio,
Em laço eterno e honroso a paz segures. 345
Se he tanto o susto, humildes o obtestemos,
Peçamos venia; á patria e ao rei se digne
O jus nosso outorgar. Autor de angústias,
Porque impelles o Lacio a taes perigos?
Infausta guerra! a paz queremos, Turno; 350
O inviolavel penhor a paz confirme.
E eu, que a ti crês infenso (o que ora passo),
Eu te supplico para os teus piedade;
Cessa, e repulso vai-te. Assás matanças,
Vimos assás os campos desolados. 355
Ou, se a fama te pica e insito esfôrço,
Em dote se esta régia obter anceias,
Ousa, ao rival te afoutes peito a peito;
Nem, para que a princeza espose Turno,
Nós, vil turba insepulta e illagrimada, 360
O agro junquemos! Tu, se o patrio brio
Te anima e alenta, provocado arrosta-o.”
De Turno arde a violencia a taes dicterios;
Do imo suspira, em colera trasborda:
“Sempre em phrases abundas, quando a guerra 365
Pede obras, Drances; nos debates primas.
Contêr mal pode a curia essas bravatas,
Que, entricheirado a salvo, te borbolham,
Emquanto em sangue os fossos não se inundam.
Toa a usual facundia: eu sou cobarde, 370
Sim; tu Phrygios em pilha amontoaste,
Mil trophéos as façanhas te assinalam.
Teu vívido valor provar te cumpre:
He não longe o inimigo, os nossos muros
Em roda assalta; vamos encontral-o. 375
Como! tardas? ou sempre tens Mavorte
Nessa balofa lingua e fugaz planta?
Eu repulso! ha, villão, quem tal me assaque?
Será quem viu de sangue o Tibre inchar-se,
Quem de Evandro abatida a estirpe e casa, 380
O Arcade profligado? Certo Bicias
Não me arguirá, nem Pândaro e milhares
Que, na trincheira hostil encurralado,
Mandei n’um dia á Estyge victorioso.
Infausta a guerra? ao capitão dardanio 385
E a ti, louco, esse agouro. Embrulha, espanta,
Nem cesses de exaltar os bi-captivos
E deprimir as armas de Latino.
Do Phrygio ora estremecem Myrmidones,
Tydides ora e o Larisseu Achilles; 390
O Aufido o curso adriaco[3] desanda!
Finge o manhoso que de mim se teme,
Com seu medo fallaz me azéda o crime.
Nunca, descansa, mancharei meu braço;
N’um peito more torpe essa alma indigna. 395
Vólto-me, ó padre, agora aos teus projectos.
Se não tens confiança em nossas armas,
Se não muda a fortuna, e uma derrota
Nos destroe e nos perde sem regresso,
Paz roguemos, tendendo inermes dextras: 400
Bem que oh! se nos restasse o brio antigo,
Feliz na morte fôra e o mais egregio
Quem, por não vêl-o, o pó mordeu cahindo.
Mas, por nós frescas tropas se inda temos,
Florentes povos de ítalas cidades; 405
Se com tormenta igual de sangue e estragos
Tambem veio aos Troianos a victória,
Porque á primeira ignavos desmaiamos?
Trememos antesque a trombeta sôe!
Do tempo o vário andar melhora as cousas: 410
A muitos, que illudiu, fortuna instavel
Repoz em firme estado. Se Arpo etolia
O nega, auxílio nos darão Messapo
E o próspero Tolumnio, e os tantos cabos
De possantes nações; nem glória escassa 415
Aguarda a flor do Lacio e de Laurento;
E Camilla pugnaz, de illustres Volscos,
Turmas luzidas move e equestres fôrças.
Desafiado, apraz que eu só combata
Em proveito commum? não se me esquiva 420
Tanto a victória, que intentada enjeite
Essa esperança. Um proprio Achilles seja,
Vista e maneje o heroe vulcanias armas,
Contra animoso irei. Somenos Turno
A nenhum dos avós, te voto, ó patria, 425
E sagro esta alma. Enéas só me chama?
Chame, eu peço. Nem antes pague-o Drances,
Caso que o céo funesto se nos torne;
Nem sua intrepidez nos tire a palma.”
Entre a dubia contenda, o campo Enéas 430
Levanta e marcha. Um nuncio alvoroçado
Corre ao paço, e a Laurento enche de susto:
Que o teucro e tusco exército em batalha
Desce do Tibre, invade-se a campanha.
Turba-se o vulgo, os peitos se conturbam, 435
Não leve estímulo os furores cresce:
Armam-se á pressa, o moço armado freme,
Lamenta e rosna o velho; os ares fere
O discorde multíplice alarido:
Al não succede, se volateis bandos 440
Pousam no bosque, ou soam do piscoso
Pado em loquazes tanques roucos cysnes.
Turno o instante aproveita: “He bem, consocios,
Reuni conselho[4], a paz louvai sentados;
Elles de assalto ruam.” Nem mais dice; 445
Larga impetuoso a régia: “Tu, Voluso,
Volscas esquadras prestes, guia os Rutulos;
Messapo, e vós irmãos Catillo e Coras,
Derramai na planície os cavalleiros;
Parte as entradas guarde e occupe as tôrres; 450
A mais hoste me siga.” Eis da cidade
Corre-se aos muros. O conselho o mesmo
Latino pae suspende, e seus projectos
Nesta consternação tristonho adia:
Muito se accusa de não têr a Enéas 455
Por genro acceito e associado ao reino.
Pedra e estrepes carretam, fossos cavam:
Roncam buzinas o cruento a l’arma.
O muro, em varios grupos, lance extremo!
Coroaram matronas e meninos. 460
Dadivas, de Minerva ao celso alcaçar,
Com suas damas a raínha leva;
E ao pé, submissos os decoros olhos,
Vai, do mal causa insonte, a virgem filha.
As mães da comitiva o templo incensam, 465
Espargem do limiar carpidas vozes:
“Deusa da guerra, armipotente Pallas,
Quebra ao phrygio ladrão tu mesma a lança,
Prostado o abate, ás portas o destroça.”
Turno fogoso aos prelios se apparelha: 470
Já rutula coiraça eri-escamosa
Veste horrente, e nas pernas grevas de ouro,
Inda nu da cabeça, a espada á cinta,
Do castello, fulgindo, alegre pula,
E na idéa o triumpho se afigura: 475
Como, o cabresto quando emfim rebenta,
Livre o cavallo o aberto campo goza;
Ou vai-se ao pasto e ás eguas; ou, do rio
Nóto o banho, se deita á funda vêa,
A cerviz a entonar, viçoso rincha, 480
Brincam-lhe as crinas pelo collo e espadoas.
Vem Camilla encontral-o, e descavalga
A’s portas a raínha, antesque o façam
As volscas turmas, que depois a imitam.
“Turno, diz, se tem jus uma alma nobre 485
De em si crêr, de arrostar eu só te fico
Ilias cohortes, cavalleiros tuscos.
Estrear me permitte a guerra e os transes;
Tu defende as muralhas a pé firme.”
Turno olhos fixa na tremenda virgem: 490
“Que assás graças te posso, honra de Italia,
Aqui render? mas, já que a tua audacia
Tudo excede, comigo os riscos parte.
Enéas, como espias m’o confirmam,
Cavallaria avança que ligeira 495
Bata a campanha, e de ermos e arduos montes
Contra a cidade se despenha astuto:
Traço estar de emboscada em curvo atalho,
Soldadesca cercando as fauces bívias.
Tu, juntos os pendões, cahe nos Tyrrhenos; 500
O acre Messapo e as tiburtinas hostes
E as do Lacio terás: commanda em chefe.”
Vôlto a Messapo, o exhorta e os cabos todos,
E em busca do conflicto o passo aperta.
Apto ao bellico dolo, um valle inflexo, 505
Negra espessura o encerra; onde uma trilha
Por estreita garganta a custo guia.
Jaz de cima n’um cume, a cavalleiro,
Planura ignota, abrigo retirado,
Quer tentes atacar á dextra e á sestra, 510
Quer volver do cabeço enormes galgas.
Lá chega o joven por sabidas sendas,
E de atalaia está na iniqua selva.
Entretanto Latonia á veloz Opis,
Do seu virgineo côro uma das nymphas, 515
Lá no Olympo sentida assim fallava:
“Camilla, a quem mais prézo, á cruel guerra
Parte, cingida em vão das armas nossas;
Nem, Opis, este amor veio improviso
Obrar com doce estímulo em Diana. 520
Metabo, de Priverno antiga expulso
Por odio e prepotencia, entre os conflictos
Salva a trouxe do exílio companheira,
Tenra menina; com mudança pouca,
Da mãe Casmilla a nomeou Camilla. 525
Com ella ao collo por desertos soutos,
Longinquos serros, circumfusos Volscos
A perseguil-o a dardos o opprimiam.
Da fuga em meio, as nuvens desabando,
Eis o Amaseno alluvioso espuma: 530
Quiz nadar, mas temendo se reteve
Pela querida carga. Em si revolve,
E decide-se emfim: na mão robusta
Guerreiro tinha, de tostado sôbro,
Rija e nodosa lança; embrulha a filha 535
N’um cortiço, accommoda e a liga n’hastea;
E, com fôrça a libral-a, assim depreca:
“Alma virgem Latonia, a ti, cultora
Dos bosques, eu seu pae t’a voto serva;
Súpplice na tua arma eil-a que foge 540
Do inimigo; recebe-a, deusa, he tua,
Eu, t’a encommendo pelas dubias auras.”
Dice, e o bucho contrahe, o hastil contorce:
Brame o rio; a infeliz por cima voa
No estridente arremêsso. Então Metabo, 545
Urgido mais e mais, se entrega ás aguas;
Da relva, em que a depoz, na lança a virgem
Arranca vencedor. Nem tecto ou muro
O acolheu, nem as mãos altivo dera:
Solitario pastor vivia em brenhas; 550
E alli, criando a filha em gruta brava,
De egua armental ás tetas, lhe mungia
Ferino leite nos mimosos labios.
Mal que a pino a menina as plantas firma,
Dardo agudo pejando-lhe as mãozinhas, 555
Pendura-se-lhe ao hombro aljava e arco;
Por aurea coifa, por comprido manto,
A’ costas lhe descahe tigrina pelle:
Já frechas pueris brincando joga,
Da cabeça em redor voltêa a funda, 560
Grou derriba strymonio ou branco cysne.
Nora a desejam muitas mães tyrrhenas;
Mas, dedicada a Phebe, amor eterno
Rende ás settas pudíca e á virgindade.
Oh! se bellaz não provocasse os Teucros, 565
E ora me fôsse companheira cara!
Sus, nympha, já que a preme atroz destino,
Do polo baixa manso onde os Latinos
Pugnam com sestro agouro. Ouve, e do coldre
Ultriz frecha prepara: Italo ou Phrygio, 570
Quemquer que a vulnerar sagrada e bella,
Com seu sangue m’o pague. Em nuvem cava
Trarei não desarmada a miseranda,
Porque em patrio jazigo a deposite.”
Não mais; e ella, em nublado escuro involta, 575
Pelas auras sonora se deslisa.
Mas já Teucros e Etruscos se appropinquam,
Toda a cavallaria em turmas certas:
Freme o sonípede, a pular garboso,
E aqui virado e alli, relucta ao freio; 580
Horrida em ferrea messe, arde a campina.
Com os latinos céleres Messapo,
E Coras com o irmão, Camilla e os Volscos,
Apparecendo oppostos, longe vibram
Zargunchos e hastas, retrahindo os braços: 585
De homens ferve o tropel, relinchos fervem.
A tiro, as hostes ambas fazem alto:
Rompe a cuquiada, incitam-se os cavallos;
Granizam como neve espessos dardos,
Que o céo tornam sombrio. Em reste as lanças, 590
Tyrrheno e Acônteo acerrimo ruídosos
Se investem logo, e os brutos se abalroam
Peito com peito: sacudido Acônteo,
Qual por trabuco o pêso, ou como raio,
Se precipita, e no ar a vida esparge. 595
Turbam-se; e, adargas para trás virando,
Os Latinos de trote aos muros voltam.
No alcance, o bravo Asylas quasi ás portas
Leva os Troas; e, em grita os collos dóceis
Revirando o inimigo, á redea sôlta 600
Por turno retrocedem: não diverso
Da maré que, alternada, ou rola ás terras,
E os cachopos orvalha, espuma e ronca,
Té lavar sinuosa a extrema arêa;
Ou, resorvidos os revôltos seixos, 605
Na ressaca lambendo ás praias foge.
Ora o Toscano ao Rutulo rechassa,
Ora o broquel tambem lhe ampara as costas;
Mas, no terceiro choque, barba a barba
Travam geral batalha: em ais e em gritos 610
Varões, corséis morrendo, e corpos e armas
Em sangue rodam, n’aspera carnagem.
A hasta ao frisão (que a Remulo tem medo)
Brande Orsilocho, espeta-o sob a orelha:
Da ferida o quadrupede impaciente, 615
Empinado, aos corcovos, escoucêa;
Vasa em terra o senhor. Catillo a Iolas
Derriba, e ao forte e corpulento Herminio;
Que nu de hombros, sem elmo a flava coma,
Rojões despreza, aberto affronta os golpes. 620
Fixo na larga espadoa o dardo treme;
O varão se contorce e á dôr se encurva.
O cruor mana, estragos multiplicam;
Mata-se, ou busca-se acabar com honra.
De aljava, cérceo um peito, em ar Camilla 625
De Amazona, entre a clade ufana e salta;
Já com pulso indefesso amiuda settas,
Já prompta esgrime a válida bipenne:
Soa o aureo carcaz, da Trívia as armas.
Se o dorso alquando vira, em retirada 630
O arco frechas alígeras despede.
Tulla a escolta e Larina, e erea secure
A manejar Tarpeia; ítalas virgens
Que, á divina senhora a côrte ornando,
Sam ministras na guerra e paz ditosa: 635
Quaes, de pintado arnez guerreiras thracias,
O Thermodonte as Amazonas pulsam;
Ou de Hippolyte em cêrco, ou da mavorcia
Raínha após o coche, uivando exulta
Com lunados broquéis femínea turba. 640
Quem primeiro, quem último, acre virgem,
Provou teu braço irado? a quantos prostras?
De Clycio o filho Euneu, com longo abeto
O opposto seio traspassado, arroios
Vomita rubros, traga o chão cruento, 645
Na chaga moribundo a convulsar-se.
Págaso e Liris cahe, um que ao varado
Bruto a cambalear sustinha as redeas,
O outro ao socio tendendo a inerme dextra;
A par os precipita. Ajunta o Hippotio 650
Amastro; enresta a lança, e a Demophoonte,
Chromis, Tereu e Harpalyco, persegue:
A môça a cada bote um varão mata.
Caçador, mas bisonho, Ornyto assoma
Em ginete iapygio: os hombros largos 655
Lhe arreia o espólio de brigão novilho;
Tem por elmo lupina ampla guela
E a queixada em que alveja a dentadura;
Empunha agreste chuça, e bizarrêa
E sobrepoja a todos. Ella o aterra 660
Sem trabalho, as catervas derrotadas;
Sôbre o corpo chasquêa: “Que! Tyrrheno,
Crêste que monteavas? chega o dia
Em que hasta mulheril te abata as roncas;
Porêm, não leve glória, aos patrios manes 665
Conta que de Camilla ás mãos succumbes.”
Rompe a Orsílocho e Butes, dous gigantes:
Entre o casco e a loriga a ponta em Butes
Crava, onde ao cavalleiro brilha o collo
E á séstra o escudo pende; em grande gyro 670
Do outro fugir simula, e mais por dentro
Corta as vóltas, seguindo o que a seguia:
Eil-a, alçada, a secure em armas e ossos
Mette ao varão que implora, os golpes dobra;
Quente no rosto o cérebro se esparge. 675
Com ella topa, estupefacto embaça
Do apenniniculo Auno o pugnaz filho,
Ligure em tretas guapo, emquanto poude.
Vendo que sem remédio era o combate,
Poisque instava a raínha; ardis e astucias 680
Comsigo meditando, assim começa:
“Em ligeiro frisão, mulher, te fias?
Não fujas, de mais perto em livre campo
A pé vem pelejar: saberás presto
A quem seja damnosa a fofa glória.” 685
Dice: ella em furia, accesa em dôr austera,
Dando o ginete á sócia, a pé galharda,
Ferro nu, puro o escudo, igual o espera.
Elle, o dolo efficaz julgando, abala,
Torce a brida na pressa, e com ferrado 690
Calcanhar o quadrupede esporêa.
“Ligure fanfarrão, de balde ufano,
As patrias artes lúbrico tentaste;
Salvo a teu pae a fraude não te renda.”
Nisto, ígnea a virgem com velozes plantas 695
Passa o cavallo, adversa o freio prende,
E se despica no inimigo sangue:
O sacro açor tam facil de alta penha
Adeja, empolga a remontada pomba,
De unhas aduncas no ar a desentranha; 700
Chove o cruor de cima e avulsas pennas.
Não descuidado olhando, o pae supremo
Do Olympo isto contempla; e, ao sevo marte
O etrusco Tárchon suscitando, o irrita
E estimula e exaspera. Entre a matança 705
E as frouxas alas eil-o a trote corre,
Grita aos seus, um por um nomêa e instiga;
Alenta e o prelio instaura: “O’ vis Tyrrhenos,
Fracos sempre e insensiveis, tanta ignavia,
Tal medo vos quebranta? as vossas turmas 710
Uma mulher derrota e as afugenta.
Porque o ferro cingis e empunhais lanças?
Lerdos não sois de noite em cyprias lides,
Ou, se aos coros vos soa a curva tibia,
Para o banquete lauto e lieus copos; 715
Vosso amor, vosso estudo: aos bosques santos
Ide, hostia gorda e o augur vos convida.”
Então, perecedouro, o bruto pica,
Turbido aferra a Vénulo e o desmonta,
Abraçado com impeto o arrebata. 720
Clamor se ergue; ante os olhos dos Latinos,
Tárchon fulgureo voa, e pelo campo
Leva o armado varão: quebra-lhe a choupa
Da haste, e a parte esquadrinha onde lh’a enterre.
Fôrça elle oppondo á fôrça, renitente 725
Sustêm, repelle do pescoço a dextra.
Quando aguia fulva a surto prêa a serpe,
Pés nella e a garra implica; vulnerado
O dragão volve as sinuosas roscas,
Hirta a escama, se enrija e silva e empina-se; 730
A aguia de bico adunco urge-o luctante
Mais e mais, e aleando açouta os ares:
Tárchon não menos da tiburcia prêsa
Folga; os Meonios com o exemplo investem.
Aqui, fadado á morte, o dardo em punho, 735
A’ pista Arunte da veloz Camilla,
Catando a occasião, por onde as turbas
Furente ella penetra, cauteloso
A rodêa, e por onde vencedora
Do inimigo reverte, a furto o joven 740
Retorce tacito a ligeira brida;
Esta aberta em circuito e aquella tenta,
Improbo o dardo a menear certeiro.
Chloreu sacro a Cybele, outrora antiste,
Brilhando em phrygio arnez, mettia o espumeo 745
Ginete em obra, com xairel de pelle
De enea malha e aureas plumas recamado:
Luz em ferrenha púrpura estrangeira,
Lycio o corno a vibrar cortynias frechas;
Dourados arco e morrião lhe tinnem; 750
Crócea a roupa, do linho os rugidores
Seios colhe em nó fulvo, e tem bordadas
A tunica e as barbaricas polainas.
A virgem, porque em templo insignias troicas
Fixe, ou caçando fulja em aureo espólio, 755
Cega após elle, sem que os mais lhe importem,
Incauta se abrazava, entre as fileiras,
No amor femíneo da vistosa prêsa.
Eis que a tempo á traição dardeja Arunte,
Depois que assim depreca: “Summo Apollo, 760
Do Soracte custodio venerado,
Em cujo culto píneo ardor cevamos,
E afoutos na piedade, em vivas brazas
Entre a fogueira os passos imprimimos,
Dá-me apagar, ó padre, a nossa injúria. 765
Trophéo não peço da prostrada virgem,
Nem seus despojos, honrem-me outros feitos:
Como ao golpe desta arma a dira peste
Derribe, á patria me retiro inglório.”
Parte lhe ouviu do rôgo o deus benigno, 770
Parte em auras dissipa: á morte annúe
Da sorpresa Camilla, mas lhe nega
Revêr a excelsa patria; e pelos nôtos
As procellas a voz lhe dispersaram.
Ao despregar da rechinante vira, 775
Convergem todos á raínha os Volscos
Turbidos olhos. Ella não pressente
O ar, o estridor, a farpa, até que á cércea
Mama ferra-se a ponta e funda o sangue
Virgineo bebe. Acodem logo as socias, 780
Trépidas a senhora sustentando.
Entre alegria e susto Arunte escapa-se;
Nem mais confia em dardo, nem da virgem
Arrostar ousa as lanças. Quando o lobo,
Antesque os tiros chovam, por desvios 785
Vai-se, morto o pastor ou nedio almalho,
Na montanha esconder; conscio da audacia,
Pavido o rabo encolhe e as selvas busca:
De evadir-se contente, assim medroso,
Arunte no tropel desapparece. 790
A haste ella a morrer saca; mas o ferro
Pregado ás costas fica-lhe entre os ossos.
Desmaia, baça a vista, exsangue e fria;
Desbotam-lhe no rosto as frescas rosas.
A donzella, a expirar, dos seus cuidados 795
A’ confidente e mui querida falla:
“Mais, Acca irmã, não posso; ao golpe acerbo
Falleço, e tudo se me ennoita em roda.
Já, leva de Camilla o final termo:
Turno succeda-me, e repilla os Teucros. 800
Adeus, adeus.” E então largando as redeas,
Da sella cahe; gelada a morte aos poucos
Solve-lhe o corpo, languida a cabeça
E o collo pousa, demittindo as armas;
Geme e agastada a vida aos manes baixa; 805
Subito grita immensa atroa os astros,
Mais se encruece a pugna; em mó concorrem
Teucros, Tyrrhenos e de Evandro as alas.
Mas, por Diana, ha muito em celso monte
Espreita Opis impávida as pelejas; 810
E, avistando entre os jovens clamorosos
Ao passamento a víctima rendida,
Exclamou suspirosa: “Ai! triste virgem!
De encarares o Phrygio atroz castigo!
Honrar a Trivia por desertos matos, 815
Nem hombrear valeu-te aljavas nossas.
Porêm tua raínha em tal affronta
Não sem lustre ou renome te abandona,
Nem morrerás inulta. As justas penas,
Quemquerque seja o temerario, pague-as.” 820
De um teso ás faldas, sob azinha opáca,
Do lacio rei Dercenno havia antigo
De terreo acervo o mausuléo: parando
O impeto alli, do combro a nympha bella
Pesquisa Arunte; a relumbrar tumente 825
Como o avistou: “Vem cá; porque te afastas?
Recebe de Camilla os dignos premios.
Que! vam manchar-se em ti de Phebe as armas?”
Dice, e do aureo carcaz ligeira setta
Qual Thracia tira, e infensa o corno atesa, 830
Encurva e puxa, até que ajunta as pontas,
E toca a séstra mão no ferro agudo,
Na têta o nervo e a dextra: simultaneo
Ouve Arunte o zunido e o ar sonoro,
Sente o farpão no corpo. Em mortaes vascas 835
No ignito pó gemendo, os seus o esquecem;
E Opis libra-se, adeja á casa etheria.
Morta a raínha, a leve turma foge;
Fogem Rutulos, foge o mesmo Atinas;
Chefes e esquadras, por salvar-se, ao muro 840
Em confusão galopam destroçados.
Ninguem resiste aos sitibundos Phrygios
E aos letíferos dardos: mal sustentam
Os bambos arcos nos languentes hombros;
No trote o chão pulvéreo as patas batem. 845
Volve ás muralhas turbida caligem;
E dos balcões, os peitos lacerando,
Aos céos clamor femíneo as mães levantam.
Os que attingem primeiro as francas portas,
Baralhado o inimigo os acabrunha: 850
Ao patrio umbral, da morte não se evadem;
Em seus lares expiram traspassados.
Parte, os portões cerrando, abrir não ousa,
Nem recolher os socios que o supplicam:
Dos que prohibem, dos que entrar forcejam, 855
Nasce triste matança; atroz conflicto!
Os de fóra, ante os paes e as mães chorosas,
Uns, na ância, aos fossos em despenho rolam,
Uns, sôlta a brida, no alvorôto cegos,
De encontro a hombreiras e batentes marram. 860
Camilla ao vêrem (santo amor da patria!),
No último transe intrepidas matronas
Das amêas por ferro precipitam
Pértigas, fustes, achas; e as primeiras
Por morrer na defensa alli se inflammam. 865
Na emboscada porêm, cruel notícia!
Acca enche a Turno do tumulto ingente:
Que, perdida Camilla e os Volscos rotos,
O hostil próspero marte arrasa tudo;
Que avança o Phrygio, e o medo ganha os muros. 870
Furente (assim o quer severo Jove)
O aspero colle e fauces desoccupa.
Extra-alcance, mal que elle os campos toca,
Entra a livre espessura o padre Enéas,
Supera o cume, sahe da escura selva. 875
E entre si longos passos não distando,
Ambos em veloz marcha aos muros correm.
Tanto que a fumear enxerga Enéas
Poento o plaino e os batalhões laurentes;
Turno as armas conhece e o bravo chefe, 880
E o nitrído e o tropel dos brutos ouve.
Logo a batalha e as brigas travar-se-iam,
Se já no ibero ponto o roseo Phebo
Os cavallos cansados não tingira,
Cedendo á noite o dia. Ante a cidade 885
Assentam-se arraiaes e se entrincheiram.
NOTAS AO LIVRO XI
22-181. - 20-177. - As bellezas que ha nestes funeraes, na pintura do aio Acetes, e na do misero Evandro que ficava sem posteridade, não se podem enumerar; he mister sentil-as. Esta nota he para justificar Virgilio de duas arguições: 1º que o pio Enéas immola no túmulo de Pallante alguns dos prisioneiros; 2º que elle mata, no desfecho do poema, o seu rival Turno, apezar das preces do vencido. - Quanto á primeira arguição, opponho que pius significa religioso, temente aos deuses, amante de seu pae e familia; e, aindaque extensivamente signifique compassivo, a superstição e o habito arrastavam o chefe a crêr indespensavel tam barbaro sacrificio para aplacar os manes do morto. Enéas, bem que amigo da justiça, tinha as preoccupações do seu tempo, e a dureza de guerreiro o assaltava tambem: o seu natural o levava á compaixão; a colera, que lhe accendera a morte de Pallante, emprestou-lhe a crueldade que exerceu. Virgilio certamente não approvava esta acção; mas quiz nella pintar aquelle seculo feroz, em que os proprios homens bem formados não sabiam sopear sempre os impetos da vingança. E nós os christãos, criados com o leite puro da vera doutrina, esclarecidos á luz do evangelho, não temos por grandes e pios, mesmo por santos, a homens que obraram peior que Enéas? Se lhes perdoamos, devemos desculpar o furor de um pagão. Repetirei o que dice em outra nota, que Enéas só foi duro depois que lhe roubaram Pallante; e com taes rigores tambem tinha em vista aterrar e abreviar a guerra. De mais, a experiencia mostra que a ira he desmedida nos que raramente sam della assaltados. - Quanto á morte de Turno, a crítica nem mereceria resposta, se não fôsse tantas vezes renovada. Escolhi este lugar para a combater, por ser nele que vem a plena justificação do poeta. Enéas, acolhido pelo antigo hóspede de Anchises, tudo obtem da sua benevolencia, guerreiros, cavallos, víveres, a alliança de Tárchon e dos Tyrrhenos: e até um filho unico lhe confia Evandro, apezar dos seus tristes pressentimentos. Pallante, na flor dos annos, bravo, generoso, depois de ter obrado prodigios de valor, morre ás mãos de Turno, não em um encontro fortuito, mas por querer de proposito o rei dos Rutulos causar tamanha dôr ao pae, e mesmo na occasião dice que desejava alli a Evandro para testemunhar a scena. Soube-o Enéas, accusa-se de não ter precavido aquelle desastre; faz ao morto um pomposo funeral, e o envia a Pallantéa. Evandro sólta-se em pranto; mas a final, como se Enéas estivesse presente, rompe nestas vozes: “Se a luz nesta orphandade eu soffro, Enéas, A tua dextra he causa, ao filho e ao padre Olha que deves Turno: este o serviço Que do teu brio espero e da fortuna.” E este recado he enviado ao heroe troiano. Encontram-se os dous rivaes, rende-se Turno, e aos seus rogos Enéas quasi ia cedendo, quando vê o talim de Pallante ao hombro do seu vencedor; então, lembrado das preces de Evandro e dos seus deveres para com elle, immola a Turno, dizendo-lhe que era Pallante quem naquelle golpe o matava. Se Enéas em taes circumstancias lhe perdoasse, por certo obraria como um anticipado discipulo de Christo, mas não obraria bem segundo as idéas e opiniões do seu seculo, e segundo as obrigações contrahidas para com Evandro. Eu sublinhei o adverbio quasi, porque Virgilio, que julgava ser uma necessidade para Enéas aquella morte, não diz que tivesse lugar só por causa do talim, mas que tal apparecimento lhe apagou a momentanea compaixão. Se acontecesse o contrario, então he que devia Enéas ser tido por um bom córte de frade capucho, como alguns lhe tem chamado. - Nos versos que abrange esta nota lê-se o que elle tornou em resposta aos embaixadores latinos, quando vieram pedir tregoas para enterrar os mortos: “E a paz, diz entre outras razões, quereis somente Para os da luz privados nas batalhas? Eu quereria concedel-a aos vivos.” Isto, a repugnancia com que matou a Lauso, o duello que offerece para evitar effusão de sangue, as generosas condições que propoz no caso de vencer, ao revez das de Turno e Latino, convencem da injustiça com que Mr. Amar, comparando Enéas a Achilles, diz assim de Virgilio: “Si du moins il prêtait de temps en temps à son héros ces retours de sensibilité que l’on retrouve avec tant de plaisir dans Achille lui-même!...” De sorte que, na opinião de Mr. Amar, em Achilles ha mais toques de sensibilidade que em Enéas! E este nem de tempos a tempos a tem!!
225-293. - 219-285. - Este pedaço, bem pouco apreciado, he um dos mais bellos, e em que mais se mostra a philosophia do autor. Latino e Turno deputam Venulo a Diomedes, pedindo-lhe auxílio contra Enéas: Diomedes recusa, e o poeta põe o elogio da paz na bôca desse guerreiro, que outrora só conhecia o jus da espada, e se atreveu a acommetter e ferir o proprio deus Marte[5]. Repare-se na habilidade do poeta em o fazer tecer os louvores de Enéas, lembrando o combate que ambos tiveram, como consta da Iliada liv. V. O que porêm assinaladamente se deve approvar, he o patriotismo com que Virgilio aproveita a occasião de recommendar o repouso de que necessitava o seu paiz, depois de tantas e tam cruas guerras intestinas.
300-485. - 292-469. - No conselho por Latino convocado, que principiou alguns versos atrás, sam admiraveis os discursos do rei, de Drances, e mórmente o de Turno: a prudencia e o fim pacífico de um, as insinuações cavillosas e o zêlo emprestado ao outro pela inveja, a fôrça de razões e movimentos que ha no terceiro, collocam Virgilio entre os mais eloquentes oradores, que tem sabido graduar as paixões e casar a facundia com a logica. - Observe-se como Turno, ao annúncio de que vinha o rival sôbre a cidade, por si delibera, toma todas as medidas, marcha a encontrar o inimigo. - No meio da consternação, mulheres e meninos estam defendendo os muros; e com suas damas leva dons a Minerva a raínha Amata, ao pé da qual se acha Lavinia de olhos baixos e calada. Alguns criticos, suppondo que as donzellas na antiguidade eram como certas modernas, bem fallantes e rhetoricas, a cortar em política e a decidir questões de chimica e mesmo de anatomia, ralham contra a introducção desta personagem muda; mas Virgilio, que melhor conhecia estas cousas do que quanto La Harpe tem havido, viu bem que a princeza, creada ao bafo materno e submissa á vontade paternal, sem têr amor a nenhum, devia sujeitar-se ao que fôsse de proveito ao reino; e, se as instancias da mãe advogavam por Turno, os desejos do pae e os oraculos, a que por sua idade e educação dava assás pêso, a punham em balança; e eram proprias da sua situação a expectativa e a neutralidade. O caracter de Lavinia, longe de ser uma falta no poeta, he mais uma prova do seu juizo.
649. - 625. - Deste verso em diante Camilla, atrás já mencionada, apparece na scena e a enche quasi toda até o fim deste livro. Attente-se em que o poeta, havendo no VII descripto as outras personagens contrárias aos Troianos, menciona Camilla com menos extensão: esta reserva foi calculada; porque, se alli se tivesse contado o nascimento e a educação da virgem, o leitor poderia ter esquecido essas miudezas, e têr-se-ia perdido parte do interêsse da sua morte; interêsse que em grande parte mana das primeiras circumstancias da vida da heroina. Acha-se na mesma pagina tudo o que a torna insigne: seu nascimento, as scenas da infancia, as esperanças da mocidade, sua glória, sua morte emfim, ante a qual vai tudo murchar.
689. - 666. - Mr. Amar deste applauso que se dá Camilla, dizendo que he honroso cahir ás mãos de uma heroina como ella, a justifica pelo calor da acção e pela embriaguez do triumpho. Mas accrescenta que o heroe não tem a mesma excusa, porque, sendo pio, não devera (liv. X, v. 830, ou 815-816 da traducção) dizer a Lauso que era uma consolação morrer ás mãos do grande Enéas. - Mas entre os guerreiros, como se vê aqui e se lê em Ossian, era consolador acabar ás mãos dos bravos; e o dito de Enéas, que em outra occasião seria uma jactancia, mostra a compaixão do heroe, que assim quiz adoçar os derradeiros momentos de Lauso.
Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
Apoio
CNPq / CAPES
UFSC / PRPG
[1] No original, há aqui aspas injustificadas, suprimidas na segunda edição.
[2] No original, não há aspas nesse lugar.
[3] No original, “ádriaco”, corrigido na segunda edição.
[4] No original, “concelho”, corrigido na segunda edição.
[5] Na verdade, Diomedes feriu Vênus; na segunda edição ainda aparece esse lapso de Odorico.