Por Iara Machado Pinheiro
Outubro 2025
⠀⠀⠀Tutti i nostri ieri, de 1952, é o terceiro romance de Natalia Ginzburg, o primeiro no qual a autora usa um narrador em terceira pessoa – escolha de perspectiva inusual na sua obra – e também a primeira das três narrativas que contam a história de uma família ao longo dos anos do fascismo e da Segunda Guerra Mundial – as outras duas são Le voci della sera [As vozes da noite], de 1961, e Lessico famigliare [Léxico familiar], de 1963. O livro foi publicado em novembro de 1952 e, em abril de 1953, venceu o prêmio Veillon.
⠀⠀⠀Alguns indícios encontrados em correspondências permitem estimar quando a narrativa foi escrita. Em uma missiva de 28 de junho de 1952, publicada no volume Lettere a Ludovica, Natalia Ginzburg escreve à amiga Ludovica Nagel que estava prestes a terminar um romance “muito comprido”, “o mais comprido” que já tinha escrito. Ela diz ainda que gosta muito dessa história, que se diverte muito escrevendo-a e que julga ser um romance “alegre embora morra uma penca de gente”. Já em 23 de dezembro do mesmo ano, Ginzburg anuncia à amiga que o livro foi lançado e afirma que está ansiosa para saber a opinião da destinatária, porque pensou nesse romance por muitos anos e começou a escrevê-lo muitas vezes.
⠀⠀⠀Nesse período Ginzburg trabalhava na editora Einaudi, ao lado de Italo Calvino. E em cartas conservadas no Fondo Einaudi, em Turim, há registros de um diálogo entre a escritora e o colega de editora acerca do paratexto que seria inserido, um indício de que Calvino é o responsável pelas palavras de apresentação da primeira edição do romance. Esse texto define Tutti i nostri ieri como a resposta de Ginzburg à convocação de escrever “um verdadeiro romance”, depois das narrativas breves La strada che va in città [O caminho que leva à cidade] (1942) e È stato così [Foi assim] (1947), e sugere “que talvez pela primeira vez um romance italiano consiga compreender” os anos do fascismo e da guerra “como um quadro unitário através de uma trama múltipla de personagens e ambientes”.
⠀⠀⠀O livro teve quatro edições pela Einaudi: além da primeira, de novembro de 1952, o romance é republicado em 1975; em 1996, com uma introdução de Giacomo Magrini; e em 2007. Além do mais, Tutti i nostri ieri foi incluído no primeiro volume das obras selecionadas de Ginzburg (no âmbito da coleção “Meridiani” da editora Mondadori) e foi publicado em duas coleções de tiragem limitada – em 2005 na “Collezione d’autore” do jornal piemontês “La Stampa” e em 2021 na coleção em homenagem aos 30 anos da morte da autora organizada por Domenico Scarpa, principal especialista na obra de Ginzburg, “Natalia Ginzburg, una voce per la nostra storia”.
⠀⠀⠀Tutti i nostri ieri foi o primeiro romance de Natalia Ginzburg a ter uma edição brasileira: com o título A vida não se importa e traduzido por J. Monteiro, foi publicado em 1960 pela editora paulistana Ibrase. Em 1986, o romance ganha uma nova tradução, dessa vez com o título Todas as nossas lembranças, realizada por Maria Betânia Amoroso e publicada pela Art Editora. Mais de trinta anos depois, Amoroso retraduz o romance para a Companhia das Letras, que em 2017 passa a publicar as obras de Ginzburg. A retradução ganha um título mais próximo do original, Todos os nossos ontens, e é publicada primeiramente em 2020 com tiragem limitada pelo Clube de Assinatura de Livros TAG, em parceria com a Companhia das Letras, e em 2023 pela editora de São Paulo. Tanto a edição de tiragem limitada da TAG de 2020 quanto a da Companhia das Letras de 2023 contam com um posfácio de Vilma Arêas (“As trevas”), autora que já tinha escrito anteriormente um paratexto a um romance de Ginzburg: o posfácio à edição de 2009 de Caro Michele, publicada pela editora Cosac Naify, e republicado na edição do romance de 2021 lançada pela Companhia das Letras.
⠀⠀⠀A edição de 2020 foi acompanhada de um livreto contendo uma entrevista com Emilio Fraia, editor responsável pelas obras de Ginzburg na Companhia das Letras. Fraia afirma que Amoroso “voltou à sua tradução dos anos 1980, fez uma revisão diligente, encontrou novas soluções de ritmo, sintaxe, vocabulário”, o que fez parte do esforço de se aproximar “das intenções da autora”, destacando também a decisão pelo título Todos os nossos ontens em vez de Todas as nossas lembranças.
⠀⠀⠀Vale destacar que “Tutti i nostri ieri” é uma referência a Macbeth (“And all our yesterdays have lighted fools/ The way to dusty death”) – Gabriele Baldini, com quem Ginzburg era casada quando escreveu o romance, era um especialista em Shakespeare, e na carta de dezembro de 1952 a Ludovica Nagel, a escritora afirma que foi dele a ideia do título. A escolha de Todos os nossos ontens, portanto, é um recurso para preservar a referência shakespeariana e mantém a alusão ao passado sem substancializá-lo ou particularizá-lo como uma recordação. Além de ser mais abrangente que “lembranças”, “ontens” também preserva atributos do romance enfatizados por críticos, como a interpretação de Elena Clementelli (1986) de que a narrativa é a história compartilhada por uma geração, ou a leitura de Maria Antonietta Grignani (2007) de que o narrador em terceira pessoa opera como uma “amálgama de vozes”.
⠀⠀⠀Menos evidente que a alteração do título mas ainda significativa, considerando a cadência repetitiva da prosa de Ginzburg e a habitual proliferação de apelidos em suas histórias, uma das mudanças entre a primeira e a segunda tradução de Amoroso chama a atenção por se tratar de um apelido com teor irônico. Trata-se do modo como Emanuele, vizinho e amigo da família que protagoniza o romance, um homem adulto, chama sua mãe. Na edição de 1986, o termo “mammina” é traduzido como “mamãezinha”; e na de 2020/2023 a tradutora usa a palavra “mãezinha”. Outra mudança de um vocábulo repetido muitas vezes ao longo do texto concerne a um referencial espacial: em 1986 a tradutora optou por deixar a palavra em italiano “visciole”, nome da casa de veraneio da família protagonista; já na edição de 2020/2023 Amoroso escolheu usar a palavra “amarenas”, entre aspas.
⠀⠀⠀No geral, porém, as duas traduções dão conta de reproduzir a cadência fluente de um texto que substancialmente se adere ao cotidiano de uma família em tempos instáveis e a ironia sutil, tão parte do estilo da autora, que se manifesta por exemplo, no modo como o narrador e os outros personagens se apoderam dos apelidos colocados em cena por uma das vozes que formam a “amálgama”, como é o caso da “mammina” de Emanuele.
Este texto é resultado da pesquisa “Così ti ricordo: casas, partidas e retornos impraticáveis”, financiada pela FAPESP (2019/18937-5).
Entrevista com Emilio Fraia. In: Posfácio. Todos os nossos ontens. Porto Alegre: TAG, junho de 2020, p. 16.
ARÊAS, V. As trevas. In: GINZBURG, N. Todos os nossos ontens. São Paulo: Companhia das Letras, 2023.
ARÊAS, V. Ofício de escrever. In: GINZBURG, N. Caro Michele. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
ARÊAS, V. Ofício de escrever. In: GINZBURG, N. Caro Michele. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
BALBO, F.; GINZBURG, N.; PAVESE, C. Lettere a Ludovica. GINZBURG, C. (org.) Milano: Archinto editore, 2008.
CLEMENTELLI, E. Invito alla lettura di Natalia Ginzburg. Milano: Mursia editore, 1986.
GRIGNANI, M. A. Novecento plurale: scrittori e lingua. Napoli: Liguori Editore, 2007
GINZBURG, N. Tutti i nostri ieri. Torino: Einaudi, 1952. (“Supercoralli”, n. 77).
GINZBURG, N. Tutti i nostri ieri. Torino: Einaudi, 1975. (“Nuovi coralli”, n. 132).
GINZBURG, N. Tutti i nostri ieri. Introduzione di Giacomo Magrini, Torino: Einaudi, 1996. (“ET”, n. 345).
GINZBURG, N. Tutti i nostri ieri. Torino: La Stampa, 2005. (“Collezione d’autore”).
GINZBURG, N. Tutti i nostri ieri. Torino: Einaudi, 2007. (“ET scrittori”).
GINZBURG, N. Tutti i nostri ieri. Roma: La Repubblica. Torino: La Stampa, 2021. (“Natalia Ginzburg, una voce per la nostra storia”, a cura di Domenico Scarpa).
GINZBURG, N. Le voci della sera. Introduzione di Italo Calvino, a cura di Domenico Scarpa. Torino: Einaudi, 2015. (“ET scrittori”).
GINZBURG, N. Lessico famigliare. A cura di Domenico Scarpa. Torino: Einaudi, 2010, 2014. (“Super ET”).
GINZBURG, N. Opere raccolte e ordinate dall’Autore, volume primo. Prefazione di Cesare Garboli. Milano: Mondadori, 1986.
GINZBURG, N. A vida não se importa. Tradução de J. Monteiro. São Paulo: Ibrase, 1960.
GINZBURG, N. Todas as nossas lembranças. Tradução de Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Art Editora, 1986.
GINZBURG, N. Todos os nossos ontens. Tradução de Maria Betânia Amoroso. Posfácio de Vilma Arêas. São Paulo/ Porto Alegre: Companhia das Letras/ Tag, 2020.
GINZBURG, N. Todos os nossos ontens. Tradução de Maria Betânia Amoroso. Posfácio de Vilma Arêas. São Paulo: Companhia das Letras, 2023.
GINZBURG, Natalia. Todas as nossas lembranças. Tradução de Maria Betânia Amoroso. 1. ed. São Paulo, SP: Círculo do Livro, 1988.
