Por Davi Pessoa
Outubro/2024
⠀⠀⠀O escritor Emanuele Trevi, numa dada entrevista, diz: “Duas vidas não é um romance sobre dois amigos, mas sobre como dois amigos são suavizados por uma presença feminina. Pia era dotada de um charme que não tínhamos, e por isso descrever Rocco foi muito mais fácil para mim, porque as amizades entre homens, principalmente quando jovens, têm um caráter competitivo, brincalhão, irônico, que era muito fácil de recriar. A ideia do feminino, por outro lado, era mais complexa, me custou muitas reescritas. Pia sempre me dizia: "Você chega a conclusões facilmente." Foi ela quem me ensinou que a confiança entre homens e mulheres tem pontos cegos que implicam um desafio maior do que a empatia. Isso não é tanto uma premissa psicológica, mas uma questão de escrita: como faço para tornar crível algo que eu mesmo acho difícil descrever? Se eu disser uma palavra sobre Pia, por exemplo, que ela era encantadora, como eu realmente faço para transmitir tal sensação o leitor? É isso que está em jogo. Não meu testemunho, mas a possibilidade de fazer essa pessoa imaginar. Aqueles que conheceram Rocco e Pia constituem claramente a minoria de meus leitores, e não são os leitores mais gratificantes, porque têm uma muleta, seu conhecimento, o que torna a leitura mais fácil e agradável. Escrevo para pessoas que nunca imaginaram a existência desses dois seres humanos maravilhosos.”
Os leitores italianos, assim como os brasileiros, desconhecem essas maravilhosas existências, às quais estão tendo acesso por meio do gesto amoroso de Emanuele Trevi. O pensamento de Emanuele Trevi rompe com as fronteiras. Como ele mesmo afirmou certa vez, ele escreve como quem pinta, como quem realiza uma montagem cinematográfica, o que tem a ver com a noção de “escritura” que lhe é tão cara. Duas vidas é, ao mesmo tempo, um diário, um pequeno romance, um ensaio, uma tela composta por camadas de vidas, um texto crítico. Numa entrevista ele anota que a escritura é “uma espécie de experiência alucinógena, semelhante ao efeito dessas substâncias psicotrópicas que ampliam os limites da consciência”.
⠀⠀⠀Além disso, Trevi nunca foi um crítico e um escritor presente nos círculos de eventos literários, vinculados aos “desejos do mercado”. Aliás, ele sempre soube perturbar esses espaços que, na verdade, nada tem a ver com o pensamento, com a literatura. E não por acaso ele é tocado pelas vidas de Rocco Carbone e Pia Pera, duas figuras que jamais estiveram no centro dos interesses mercadológicos, ou seja, no centro do Poder. Muito pelo contrário. Rocco Carbone, em 1998, renuncia à carreira universitária para ensinar na escola na ala das mulheres presas no presídio romano de Rebibbia, uma experiência que será muito profunda em sua vida. Pia Pera, professora de literatura russa na Universidade de Trento, tradutora de escritores russos desconhecidos à época no contexto italiano. Assim, acredito que o gesto de publicar Duas vidas no Brasil tenha essa força de desfazer os centros de poder mercadológicos, que acabam por definir o que “devemos” ler. Experiências mais radicais ficam sempre de fora da ordem logocêntrica de nossas existências. Nesse sentido, Duas vidas nos narra uma relação não de "filiação", cujo pressuposto se funda em herança e propriedade, mas sim de "philiação", de 'philía', de amizade, que se coloca contra a ordem imperiosa de toda e qualquer propriedade, de todo e qualquer tipo de poder. Não por acaso, Emanuele Trevi é um leitor assíduo de Pier Paolo Pasolini.
⠀⠀⠀A amizade, assim, é uma questão muito forte no livro de Emanuele Trevi. No entanto, não a amizade que se constitui a partir apenas de consensos, mas principalmente a partir dos dissensos, dos conflitos. Essa é uma questão de democracia. Sem dissensos não há democracia. Portanto, ler o que nos perturba, o que nos incomoda, colocar-se à escuta, com atenção, ao que nos desequilibra. Duas vidas é uma canção de amizade, uma canção que por vezes nos acalma, que por vezes nos fere, que faz com que nos tornemos mais abertos às desafinações da vida. Há muitas desafinações entre Trevi, Rocco e Pia. A epígrafe que Trevi escolhe como abertura ao livro é muito importante, de Cristina Campo:
Quanto a ser feliz,
isso é terrivelmente difícil, exaustivo.
É como equilibrar sobre a cabeça
um precioso pagode de vidro soprado,
adornado de sinos e frágeis chamas ardentes;
e a todo instante continuar executando
os mil movimentos obscuros e pesados do dia,
sem que um fio de luz se apague,
sem que um sino desafine.
[de uma carta para Gianfranco Draghi, fevereiro de 1959]
Nesse sentido, traduzir Duas vidas, para mim, foi uma experiência fabulosa, pois sai da ordem da dicotomia (original/tradução) para entrar na esfera do terceiro incluído, como uma espécie de concerto desafinado, quando o que mais importa não é a tradução em si, mas a traduzibilidade dessas vidas. Tradução não como trabalho de identificação e equivalência, mas como questão de convivência de extremos e paradoxal assimetria: relação de extremo conflito. A relação de amizade entre essas três figuras, testemunhadas em Duas vidas, não fazem entender a tradução enquanto transfiguração, na medida em que toda figura é uma disposição, um umbral no qual se debatem identidades e diferenças, semelhanças e dessemelhanças.
A essência da tradução, assim como todas nossas relações humanas, é o descentramento.
Estilhaçar a imagem refletida.
Ser-trans: sua ética.
TREVI, Emanuele. Duas vidas. Translation from Davi Pessoa. 1. ed. Rio de Janeiro, RJ: Tipografia Universal de LaemmertBelo Horizonte, MG: Editora Âyiné, 2022. ISBN: 9786559980000.
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