Por Julia Scamparini
Outubro/2024
⠀⠀⠀Antes de ser Ginzburg, era o sobrenome do pai que acompanhava o nome de uma das mais belas vozes italianas do século XX. Natalia Levi nasceu em Palermo em 14 de julho de 1916 e foi a última dos cinco filhos de Giuseppe Levi e Lidia Tanzi. Nascida siciliana, a caçula da família cresceu em Turim, estudou em casa durante os primeiros anos de instrução e só aos 11 anos passou a frequentar a escola. Desde muito nova escrevia poemas e pequenas prosas, e aos 17 anos publicou pela primeira vez a novela I bambini, na então prestigiosa revista Solaria. Nos anos seguintes, continuou a publicar narrativas breves em várias revistas literárias.
⠀⠀⠀Em 1938, casou-se com Leone Ginzburg, que dois anos depois foi condenado ao exílio por sua participação na luta antifascista. Fazendo parte de uma família de origem judaica, com pai e irmãos atuantes na militância contra o regime, além do marido, Natalia acompanhou a movimentação partigiana e fascista de fora e de dentro de casa. As lembranças dos efeitos da guerra na vida de familiares e amigos compõem a trama de Léxico familiar, seu mais conhecido romance, publicado – e vencedor do premio Strega – em 1963. Muito antes disso, seu primeiro romance, chamado La strada che va in città, fora publicado em 1942 sob o pseudônimo Alessandra Tornimparte, para fugir das leis raciais então em vigor.
⠀⠀⠀Natalia Ginzburg perde o marido, assassinado pelo regime fascista, em 1944. Vivendo um período conturbado com o pós-guerra e a dolorosa ausência do pai de seus três primeiros filhos, a escritora foi reconstruindo sua vida com o reconhecimento profissional e o apoio afetivo de parceiros do mundo literário. Começou a trabalhar na Editora Einaudi, e passou cada vez mais a escrever, editar, traduzir, publicar. Sua obra reúne romances, novelas, contos, alguma poesia, peças de teatro, ensaios.
⠀⠀⠀Mai devi domandarmi (Não me pergunte jamais) foi publicado pela primeira vez em 1970 reunindo ensaios escritos entre os anos de 1965 e 1970, quase todos publicados no jornal La Stampa, com alguns acréscimos explicados pela própria autora no volume (2022, p. 245-246). Os ensaios estão organizados cronologicamente, mas poderiam ser reunidos por temas ou assuntos. Há crônicas do cotidiano, como em A casa, texto que abre o volume e descreve a busca por uma nova moradia ao lado do segundo marido, Gabriele Baldini; ou em O menino que viu ursos, em que narra um episódio vivido pelo neto em uma viagem com seus pais – ambos os textos com saborosas pitadas de humor e uma dose certeira de autobiografia do melhor tipo, aquela que parte de acontecimentos pessoais para pensar o universal. Há também reflexões sobre a vida mais destacadas da figura da autora, como em A velhice, As tarefas domésticas, Sobre crer e não crer em Deus. Há ensaios sobre o fazer literário, seu ofício particular, e ensaios que poderiam ser de crítica literária (elogiosos ou não) sobre um autor e sua obra, como em Cem anos de solidão e Coração. Outros ensaios ainda tratam de filmes, de quadros, de teatro, e da ópera Lohengrin, cujo verso mai devi domandarmi dá título ao livro. Seria possível continuar a inventar e reinventar categorias para alocar todos os textos do volume, mas é mais importante notar que seus temas, gêneros, assuntos e tons contaminam-se e vão delineando uma escrita particular que comove, ensina, faz rir, faz pensar.
⠀⠀⠀Essa escrita de Ginzburg é apreciada tanto por “leitores comuns, mulheres e homens sem distinção com respeito a idade, nível social e meios econômicos”, como por atores e diretores, “pessoas que trabalham com o corpo e para as quais as palavras são um membro, um órgão de sentido, uma matéria [...] que se pode tocar e manipular”. Mas também por escritores, que têm as palavras como instrumento, matéria que se pode “transformar com a audição interna” (Scarpa, 2016, p. 263). No entanto, sua “linguagem concisa e concreta, em cuja inteligência o brio se dissolve”, é raramente apreciada por acadêmicos e críticos, indiferentes a uma literatura que prescindiria de teoria e intelectualidade, segundo Scarpa (2016, p. 264), importante estudioso e curador da obra de Ginzburg.
⠀⠀⠀No entanto, os últimos anos vêm demonstrando que tanto o mercado editorial quanto a academia prezam e dedicam-se à literatura ginzburgiana. Na Itália, novas edições e novas formas de distribuição, como, por exemplo, a obra completa como coleção adquirida junto aos jornais La Repubblica e La Stampa. No Brasil, o interesse de muitos pesquisadores que se dedicam à literatura contemporânea pela escrita de mulheres e por narrativas autobiográficas abriu portas para estudos acadêmicos sobre a obra de Natalia Ginzburg, sua poética e muitas de suas facetas. Ao mesmo tempo, a partir dos anos 2000, houve um aumento significativo no número de traduções de obras nunca antes publicadas, como é o caso de Não me pergunte jamais.
⠀⠀⠀A tradução de Mai devi domandarmi deu ao leitor brasileiro mais um volume em que Natalia Ginzburg dedica-se à escrita de ensaios, antes conhecidos somente com o livro Pequenas Virtudes, disponível em português desde 2015. Estes “ensaios” são textos de uma voz tão própria que, em conjunto, compõem, segundo Petrignani (2018, p. 49), uma “forma literária particular, inventada por ela, entre ensaio, conto, autobiografa, memória”.
⠀⠀⠀O processo de tradução dos textos de Não me pergunte jamais envolveu as etapas de pesquisa a respeito da autora, das traduções já presentes no Brasil, e deste gênero que, por falta de palavra melhor, denominamos ensaio. Algumas questões de tradução estiveram mais presentes, como a adequação de uma linguagem que é, ao mesmo tempo, simples, sem rebuscamento, e elevada em um sentido muito próprio: a escrita de Ginzburg é elegante, transparente e engraçada; outras vezes é grave e taciturna. Independentemente do humor (da autora? da narradora?) que perpassa as palavras, a elegância sempre se mantém. A meta de uma tradutora que traduz uma mulher “mais ou menos de sua época” – somos contemporâneas em um sentido e não em outros – é a da fidelidade à sua voz, ao seu tom, e aos efeitos que sua escrita propõe aos leitores.
⠀⠀⠀Natalia Ginzburg também traduziu, o que alivia o trabalho de suas tradutoras e tradutores: ela sabe de tudo o que envolve a leitura e a recriação de um texto literário. Agarrar as palavras, encontrar seu sentido e transpor o ritmo das frases na nova língua (Ginzburg, 2001) não é tarefa fácil, sobretudo quando se trata de um nome do cânone literário, mas é grande – e prazerosa – a responsabilidade de compor parte da ponte intercultural que apresenta a escritora ao leitor brasileiro.
⠀⠀⠀A tradução é uma das atividades a que ela se dedicou no fim da vida. Madame Bovary, uma comédia de Marguerite Duras, o romance autobiográfico Non mi dimenticare, escrito em francês pela finlandesa Sirkku Taljia. Ao lado da atividade política como parlamentar, desde 1983, continuou também a editar e a escrever. Suas últimas publicações, em 1991, ano de sua morte, foram a comédia Il cormorano, e a tradução do romance de Maupassant, Una vita.
GINZBURG, Natalia. Mai devi domandarmi. Torino: Einaudi, 2014.
GINZBURG, Natalia. Não me pergunte jamais. Trad. Julia Scamparini. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2022.
GINZBURG, Natalia. La signora Bovary – Nota del traduttore. In: Non possiamo saperlo: saggi 1973- 1990. Torino: Einaudi, 2001.
GINZBURG, Natalia. I bambini. In: Un’assenza. Racconti, memorie, cronache. Torino: Einaudi, 2016.
GINZBURG, Natalia. Léxico familiar. Trad. Homero Freitas de Andrade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
GINZBURG, Natalia. La strada che va in città. Torino: Einaudi, 2010.
GINZBURG, Natalia. As pequenas virtudes. Trad. Maurício Santana Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
GINZBURG, Natalia. Il cormorano. In: Tutto il teatro. Torino: Einaudi, 2005.
MAUPASSANT, Guy. Una vita. Trad. Natalia Ginzburg. Torino: Einaudi, 1997.
PETRIGNANI, Sandra. La corsara. Ritratto di Natalia Ginzburg. Vicenza: Neri Pozza Editore, 2018.
SCARPA, Domenico. Vicende di una voce. In: GINZBURG, N. Un’assenza. Racconti, memorie, cronache. Torino: Einaudi, 2016.
TALJA Sirkku. Non mi dimenticare. Trad. Natalia Ginzburg. Torino: Bollati, Boringhieri, 1988.
GINZBURG, Natalia. Não me pergunte jamais. Translation from Julia Scamparini. 1. ed. Belo Horizonte, MG: Editora Âyiné, 2022. ISBN: 6559980340.
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