Por Luciana Lanhi Balthazar
Julho/2025
⠀⠀⠀Nos últimos anos, tenho me dedicado à formação de professores de italiano em contextos escolares diversos, com especial atenção à produção de materiais didáticos significativos, situados e críticos para crianças. Foi nesse percurso que vivi uma experiência pedagógica particularmente enriquecedora, desenvolvida em escolas públicas da rede municipal de Curitiba, que me aproximou de Le avventure di Pinocchio. A experiência resultou no curso Le avventure di una bambola e di un burattino, no qual a graduanda Patrícia dos Santos, do curso de Letras Italiano Licenciatura da UFPR, sob minha supervisão, elaborou dez unidades didáticas voltadas ao ensino de italiano para crianças, articulando a obra de Carlo Collodi com a literatura infantil brasileira, em especial os livros da Emília, de Monteiro Lobato. O curso teve como ponto de partida uma personagem familiar às crianças brasileiras, a boneca Emília, e sua aproximação com o protagonista de Collodi, Pinocchio. Além dessa motivação, tentamos aproximar os dois personagens porque ambos são figuras que rompem com a passividade atribuída aos objetos inanimados, o boneco de madeira que ganha vida e a boneca de pano que pensa, fala e age com independência. Os dois se tornam sujeitos ativos, muitas vezes desobedientes e transgressores, mas sem nunca perder a doçura. Essa autonomia de Pinocchio e Emília se revela em suas trajetórias marcadas por travessuras, experiências dentro e fora do espaço escolar e um aprendizado construído por meio do erro e do confronto com o mundo. Tanto Pinocchio quanto Emília mentem, reinventam palavras, debocham de convenções e, ao fazerem isso, também questionam valores sociais e modelos pedagógicos rígidos.
⠀⠀⠀Embora o curso Le avventure di una bambola e di un burattino tenha seguido um caminho próprio em relação às fontes textuais, é inegável que o trabalho de Daniela Bunn contribui fortemente para iniciativas como a nossa: a existência de traduções sensíveis e acessíveis, como a de Daniela, favorece e estimula projetos pedagógicos que articulam o ensino de italiano à literatura infantil clássica, permitindo que obras como Pinocchio ganhem vida também em salas de aula brasileiras.
⠀⠀⠀A edição brasileira traduzida por Daniela Bunn e publicada pela Editora Positivo destaca-se por seu formato compacto, valor acessível e projeto gráfico atraente, aspectos que favorecem sua circulação em contextos escolares. Ao apresentar um clássico italiano com vocabulário acessível, essa edição torna-se uma ferramenta potente de mediação cultural. O projeto gráfico da Editora Positivo dialoga com o leitor infantojuvenil e reforça o caráter pedagógico da obra, inserindo-a em um contexto de formação leitora e intercultural. A presença de ilustrações coloridas e um design amigável amplia o apelo da narrativa e potencializa seu uso em ambientes escolares, especialmente em séries iniciais. Esses elementos contribuem para que a obra não apenas circule entre leitores, mas seja adotada em contextos formais de ensino, prática observada em escolas públicas e privadas que integram a leitura literária ao currículo interdisciplinar.
Mais do que um instrumento de leitura, essa tradução pode ser compreendida como uma ferramenta de aproximação entre línguas e mundos. Crianças que entram em contato com a história de Pinóquio em português frequentemente carregam essa memória para a sala de aula de italiano, mobilizando saberes prévios que facilitam o aprendizado. A literatura, nesse sentido, torna-se um ponto de encontro — afetivo, linguístico e cultural — entre os estudantes e a língua adicional. Como defende Paulo Freire, “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção” (FREIRE, 1996, p. 47). Ao ativar lembranças, imagens e narrativas já conhecidas, a obra traduzida atua como uma dessas possibilidades de construção conjunta de sentido, contribuindo para uma aprendizagem significativa e situada. O trabalho com literatura traduzida, especialmente quando essa literatura já faz parte do repertório das crianças, permite que o ensino da língua adicional se torne mais vivo, mais dialogado, mais intercultural. É justamente nesse cruzamento entre o texto traduzido, a prática pedagógica e a realidade do aluno que a língua se torna espaço de encontro com o outro. Como observa Claire Kramsch (2017), esse encontro não se dá apenas no plano da comunicação, mas no da representação simbólica de identidades e experiências culturais. A língua adicional, nesse sentido, torna-se um “terceiro lugar” (third place), onde vozes distintas podem coexistir e negociar sentidos. Os alunos, dessa forma, passam a enxergar a si mesmos e ao outro sob novas perspectivas, em um processo de transformação mútua.
⠀⠀⠀Num país como o Brasil, em que o acesso à leitura e ao ensino de línguas adicionais ainda é profundamente desigual, a existência de traduções como a de Daniela Bunn representa também um gesto de democratização cultural. Ao tornar o clássico de Collodi acessível a um público mais amplo, essa edição não apenas aproxima crianças brasileiras da literatura italiana, mas cria condições para que essa literatura seja apropriada, vivida e transformada no contexto da escola. Em iniciativas como o curso Le avventure di una bambola e di un burattino, essa apropriação se concretiza na criação de materiais didáticos que valorizam tanto os textos estrangeiros quanto os referenciais locais, reafirmando a potência da literatura como ferramenta pedagógica e cultural.
⠀⠀⠀Ao refletir sobre a circulação da obra de Collodi no Brasil, especialmente por meio da tradução de Daniela Bunn, evidencia-se a importância de olhar para a literatura não apenas como patrimônio artístico, mas como instrumento de formação em que se constroem sentidos, valores e identidades culturais em diálogo com o mundo, especialmente dentro da sala de aula de italiano como língua adicional. Nesse processo, a tradução se mostra como uma forma de mediação que não apenas conecta línguas, mas também pessoas, memórias, histórias e práticas de ensino. E é nesse horizonte que a presença de Pinóquio nas salas de aula brasileiras, mesmo que em português, revela-se significativa: como um primeiro passo rumo ao outro, como uma porta de entrada para o aprendizado da língua italiana e para o encontro com o mundo.
PIUMINI, Roberto. Pinóquio. Il. Lúcia Salemi. Trad. Daniela Bunn. Curitiba: Positivo, 2011.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 23. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
KRAMSCH, Claire. Cultura no ensino de língua estrangeira. Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso, São Paulo, v. 12, n. 3, p. 134–152, 2017. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2176-457333606. Acesso em: 3 jul. 2025.
PIUMINI, Roberto. Pinóquio: Recontado da obra de Carlo Collodi. Translation from Daniela Bunn. 1. ed. Curitiba, PR: Editora Positivo, 2011. ISBN: 9788538542834.
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